Paredes de vidro
Uma situação hipotética: alguém está sentado do lado de dentro de um edifício numa cidade e, através de um vidro, olha para fora. De repente outra pessoa, que está do lado de fora, se aproxima do edifício e começa a usar o reflexo de si, produzido pela parede de vidro, para se olhar, organizar sua aparência, e faz pequenas mudanças na posição das vestimentas e dos cabelos. Sem perceber, sua imagem se transforma numa cena em primeiro plano para a outra pessoa do lado de dentro, que nesse instante se constrange e desvia o olhar.
Percebendo ou não, sei que vivi algumas vezes a cena descrita acima, como a personagem do lado de fora ou do lado de dentro. É um acontecimento cotidiano e comum nas cidades, onde as fronteiras entre o que está dentro e o que está fora é com frequência produzida por vidros. Muitas vezes estas limitações são reforçadas por películas que nos impedem de penetrar, ao menos com os olhos, o que está dentro. E, como barreira física, não basta essa capacidade de ferir o corpo prometida pelo vidro quando quebrado, muitas vezes se tem a blindagem contra invasões belicosas.
O uso do vidro como parede na produção dos espaços arquitetônicos começa a aparecer nos debates da arquitetura europeia no início do século XX. Contra a clausura dos ambientes fechados e com pouca incidência de luz, o uso do material esteve vinculado a propostas para o futuro das construções, como propunha o poeta alemão Paul Scheerbart em 1914:
Para levar nossa cultura a um nível mais alto somos forçados, gostemos ou não, a mudar nossa arquitetura. E isso só será possível se livrarmos as dependências em que vivemos de seu carácter fechado. Isso, por sua vez, só será possível pela introdução de uma arquitetura de vidro que deixe entrar a luz do sol, da lua e das estrelas, não só por algumas janelas, mas pelo maior número possível de paredes, que devem ser inteiramente de vidro – vidro colorido (Scheerbart apud Frampton, 2015, p. 139).
No mesmo ensaio, intitulado Arquitetura de Cristal, o poeta anuncia também que o vidro colorido acabaria com o ódio. Mais de um século depois, a ideia do vidro como antídoto do ódio e material de abertura dos espaços construídos parece estranha, constrangedora. Nossa cor mais recorrente não é um convite para fruir de dentro para fora ou de fora para dentro, ela está nas películas espelhadas que devolvem o reflexo das pessoas e do entorno, sem se deixar ver. E, ao menos no contexto brasileiro, as paredes de vidro raramente delimitam espaços a que a maior parte da população se sente convidada ou onde pode entrar.
As relações com o vidro nos espaços públicos e privados hoje circundaram muitas das entrevistas e leituras estéticas coproduzidas sobre o trabalho de arte Tempo suspenso de um estado provisório (2011-15), de Marcelo Cidade, durante minha pesquisa de campo realizada entre junho de 2018 e maio de 2019 no Museu de Arte de São Paulo. O trabalho consiste numa réplica de um cavalete de vidro, concreto, metal e madeira, como os que são usados na exposição do acervo permanente do museu, mas em vez de quadros há duas marcas de tiro e diversas rachaduras sobre o vidro blindado.
O trabalho de campo integrou minha pesquisa, em desenvolvimento, que investiga o envolvimento dos sujeitos nos processos de leitura estética e nas possíveis recriações dos trabalhos artísticos, derivadas do contato com essas imagens e de ações educativas, artísticas e de mediação cultural. O processo foi desenvolvido com foco em quatro trabalhos da exposição de longa duração Acervo em Transformação, que retoma a expografia dos Cavaletes de Cristal no MASP: Moema, 1866, Victor Meirelles, Rosa e Azul (As Meninas Cahen d’Anvers), 1881, Pierre-Auguste Renoir, Tempo suspenso de um estado provisório, 2011-15, Marcelo Cidade, e As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo?, Guerrilla Girls, 2017.
Escalas humanas
Quando escolhi o trabalho Tempo suspenso de um estado provisório (2011-15) na pesquisa, pensava naquilo que me despertou ao entrar em contato com o objeto. Foi em janeiro de 2016, quando o museu retomou a expografia original dos Cavaletes de Cristal, proposta por Lina Bo Bardi para a sede do museu na avenida Paulista. Ver aquele trabalho composto por Marcelo Cidade ali deu uma torcida no meu encanto pela proposta expográfica do museu, criando um movimento que eu ainda não sabia nomear.
Mais de um ano depois desse encontro, algumas inquietações levaram ao recorte da pesquisa, e com o trabalho de Cidade o movente era um desejo de saber como outras pessoas pensavam aquele objeto naquele museu – um cavalete, como outros ali, mas rachado por um acontecimento provocado/simulado pelo artista e sem uma pintura afixada.
Nessa época tinha algumas ideias do que poderia aparecer nas leituras estéticas a partir do objeto, baseando-me na minha própria experiência como leitora de trabalhos de arte e também como educadora. Imaginei que poderiam aparecer leituras relacionadas à própria pinacoteca dos Cavaletes de Cristal, sobre a apropriação do vão como espaço de manifestações políticas, sociais e culturais, e questionamentos sobre a exposição de um trabalho de arte contemporânea no MASP.
Mas o que pensei inicialmente foi ficando para trás a cada leitura criada com os participantes da pesquisa. Fui percebendo que aquele trabalho disparava tantas coisas que a associação com a expografia, por exemplo, depois de um tempo pareceu desimportante. Estava formando ali mais um veio do meu trabalho como pesquisadora/cartógrafa. Esse veio encontrei descrito por Sueli Rolnik, sob o enfoque da psicanálise. Sua descrição me ajudou a pensar as expressões de subjetividades que estava pesquisando:
A prática de um cartógrafo diz respeito, fundamentalmente, às estratégias das formações de desejo no campo social… O que importa é que ele esteja atento às estratégias do desejo em qualquer fenômeno da existência humana que se propõe perscrutar: desde os movimentos sociais, formalizados ou não, as mutações da sensibilidade coletiva, a violência… (Rolnik, 2016, p. 65).
No percurso de cocriar e registrar as leituras e relatos com os participantes, a partir dessas formações de desejo, muitas coisas apareceram para deslocar o trabalho de arte de Cidade, suas correlações com o museu, os discursos do artista e da curadoria e minhas próprias leituras iniciais. Um dos princípios desses deslocamentos ali poderia ter acontecido também se fosse mediada por Waldiel Braz:[1]
A leitura que faço dessa escala humana do trabalho é: se você tem duas pessoas posicionadas dos dois lados da peça você vai ter, dependendo da altura da pessoa, os tiros localizados em diferentes partes do corpo.
Por exemplo, em mim que tenho 1,72 o tiro mais alto fica exatamente localizado entre a minha jugular e meu ombro direito e o tiro mais baixo ficaria mais ou menos na minha canela, próximo ao meu joelho [ver Figura 2]. Quando a gente traz essa ideia geralmente incute ali uma suspensão, um choque.
O espírito das pessoas, nos primeiros contatos com o trabalho, ainda está num lugar de riso, em se deparar com a confirmação que o objeto é uma obra de arte e não um cavalete avariado, geralmente eles estão nessa energia… e quando a gente traz uma possível leitura de que é um projétil que venha a acertar aquele que está do outro lado, sobretudo se aquele outro for alguém próximo, acaba criando uma imagem impactante, e muda a energia, assim conseguimos colocar o público nessa outra energia e dela desdobrar outras tantas perguntas e levar a leitura para outros lugares… (Trecho de entrevista com Waldiel Braz, realizada em 28 de fevereiro de 2019).
Quando acompanhei as ações da equipe de Mediação e Programas Públicos do museu não experimentei a proposta para a suspensão e o choque criada por Waldiel com outros mediadores,[2] mas participei da criação de algumas leituras estéticas que projetavam medos, memórias e experiências com a violência na cidade.
Desde os primeiros registros os leitores já imaginavam possíveis cenas violentas a partir do trabalho e de si mesmos:
…De repente vem um acontecimento, um fato e quebra você todo por dentro, quebra as coisas que você tinha como expectativa. Nos machucamos, machucamos os outros. Está tudo em paz e do nada você tem que se ver de outra forma, porque agora não é mais nada daquilo que estava… (Leitura estética produzida com uma visitante no MASP em 8 de junho de 2018).
No relato a leitora também comenta que achou o trabalho muito bonito, por suas rachaduras, e que até tinha tirado algumas fotografias com zoom. O interesse por fotografar o trabalho, ser fotografado ou se fotografar com ele, ou mesmo tocar no suporte, era experimentado por muitas pessoas que passavam ali. Numa anotação feita no Diário de Bordo da pesquisa descrevo uma das cenas desses modos de aproximação:
Chego ao final do salão, a grande atração para o grupo escolar é o cavalete de Marcelo Cidade. Duas crianças já estão agachadas para ler as informações sobre o trabalho, algumas avançam e ficam bem próximas da peça, outras olham de longe, algumas observam as laterais. Estão muito curiosas, os corpos cobrem o trabalho engolindo, tocando ou tentando tocar… a faixa indicativa da distância corporal da peça fica invisível (Relato produzido a partir do Diário de Bordo da pesquisa, anotação de 20 de junho 2018).
A relação estésica dos corpos com o trabalho, apropriada como dispositivo de mediação, foi associada nas leituras estéticas com as vivências no meio urbano. Os modos como a vida nas cidades se molda, a partir da experiência ou do medo da violência, também foi algo recorrente nas percepções e leituras dos participantes:
Eu fiz uma leitura da parte quebrada no sentido que a gente vive preso para que as pessoas que estão à margem, seja lá o nome que se dê, tenham liberdade e vivam soltos… Eu venho de Juiz de Fora, em Minas, e acaba que a violência do Rio de Janeiro respinga na minha cidade. Cenas de vidro assim no Rio são muito comuns… (Leitura estética produzida com uma visitante no MASP em 10 de julho de 2018).
Remete também muito à violência, o vidro é frágil. Eu venho do Rio de Janeiro e ouvi dizer que a Rota aqui em São Paulo é muito violenta. Então mesmo vindo do Rio eu estou muito assustado, não estou conseguindo nem andar à noite aqui… (Leitura estética produzida com um visitante no MASP em 10 de julho de 2018).
Minha leitura? Para mim que… que trabalho numa escola lembro que até hoje eu perdi quinze alunos, contando com hoje cedo, por conta de chacina, morte… é algo que faz parte da nossa realidade. A escola é em Osasco, num bairro extremamente periférico da cidade (Leitura estética produzida com um visitante no MASP em 12 de junho de 2018).
Nos três trechos citados é possível interpretar relações diferentes com a violência, a partir de pessoas que vivem em três cidades do sudeste do Brasil, e possivelmente em territórios socioeconômicos distintos.
Se pensarmos no lugar dos corpos, associados à leitura do professor de Osasco, ele fala de um corpo que foi atravessado e aniquilado. Na leitura da pessoa de Juiz de Fora, é a proteção provisória do vidro blindado que organiza o relato. Já o rapaz do Rio de Janeiro fala que não consegue caminhar à noite em São Paulo por medo da Polícia Militar paulista (Rota).
Analisando por esse aspecto as concepções do papel social dos mecanismos e instituições de controle, estatais ou privados, foram sugeridos de maneiras diferentes nessas leituras e em outras sobre o trabalho: uma polícia ou sistemas de segurança que estão contra ou a favor de seus corpos.
Na leitura estética que o mediador Waldiel fez sobre o objeto, ele também recorre a suas experiências pessoais com a violência:
A minha experiência pessoal é: eu sou um migrante nordestino, que vem aqui para o contexto paulistano, para as periferias de São Paulo. Então eu tenho um histórico de galgar muitos lugares sociais com todas as violências que o sujeito paulistano está exposto… e essa violência específica da troca de balas, infelizmente, ela foi e ainda é para muitas pessoas da minha família uma questão presente. Eu venho da região de Sapopemba/São Mateus, na zona leste paulistana, e esse imaginário não tem como não atravessar as minhas experiências, as minhas falas e até a minha poética como artista (Trecho da entrevista com Waldiel Braz realizada em 28 de fevereiro de 2019).
E, assim, articula sua experiência de vida e cidade para pensar nas relações que os públicos mediados estabelecem com o trabalho:
Às vezes é não só uma coleção de experiências mesma e sim de medos. Mas medos que nos trancam, que nos afastam uns dos outros. Porque ao colocar duas pessoas de dois lados diferentes da peça você está falando de fronteiras. As fronteiras, que nos dividem, podem ser aqui simbolizadas por esse medo construído e muitas vezes replicado por uma mídia intencionada, de controle social (Trecho da entrevista com Waldiel Braz, realizada em 28 de fevereiro de 2019).
O mediador coloca as palavras fronteira e medo perto de um vidro blindado que é desestabilizado ou colocado em evidência pelo ato de atirar. Buscando outras referências sobre a palavra-imagem fronteira, nos estudos da Geografia, encontrei esse apontamento sobre seu significado:
… a fronteira deriva do front, expressão militar que designa aquele espaço onde a guerra está sendo travada exatamente pelo controle do espaço. Definida a vitória pelo controle do espaço, o front transforma-se em fronteira e o espaço, em território. A fronteira substantiva tende a esconder o front que a fez (Gemelli, 2011, p. 104).
A imagem da fronteira, reconstruída a partir das leituras criadas e do trabalho do artista, coloca o vidro blindado como uma fronteira em negativo – evidencia um front das vivências urbanas contra uma ideia abstrata de fronteira entre centro e periferia que tenta encobrir as experiências dos sujeitos nos territórios.
Outras palavras-imagens que aprofundaram os sentidos das leituras estéticas, criadas a partir do trabalho do artista, foi a ideia de olhar opaco. O olhar opaco apareceu na entrevista com Horrana de Kássia Santoz,[3] também da equipe de Mediação e Programas Públicos. Horrana comentou sobre sua experiência na produção do projeto de audioguias do MASP, na mesma época que atuava como Supervisora Artístico-Pedagógica na Fábrica de Cultura do Jardim São Luís, localizada na zona sul de São Paulo.
Lembrando do percurso que fazia entre um ponto e outro da cidade, reflete, a partir do cavalete blindado, sobre os diferentes modos de se relacionar com a cidade, seus lugares sociais e violências:
É impressionante o quanto o tamanho da cidade às vezes nos deixa com o olhar opaco para o que acontece em dimensão quase… continental. São muitas grandes cidades em São Paulo e aí atravessando os rios tem essa mesopotâmia cultural que é o centro, onde todos os espaços culturais estão, mas do rio para lá também são dimensões enormes, são acontecimentos de vida e de experiência de cidade… (Trecho da entrevista com Horrana de Kássia Santoz realizada em 30 de janeiro de 2019).
Após a entrevista a participante produziu uma fotografia (Figura 3), compondo o trabalho de Marcelo Cidade com outro, do artista Jaime Lauriano, Costa da Mina (2018). No site do artista há um texto contextualizando seu trabalho: “Um dos principais símbolos da invasão e colonização, as pedras portuguesas assentavam a chegada dos colonizadores portugueses ao chamado ‘Novo Mundo’. Era comum que a mão de obra utilizada para pavimentar o calçamento, construído com as pedras, fosse de pessoas escravizadas. Em ‘Pedras portuguesas’, os nomes dos portos de origem dos navios negreiros são escritos utilizando a técnica do calçamento português…”[4] Juntos na imagem produzida por Santoz, os dois trabalhos remetem à vulnerabilidade e à violência racial dirigida às pessoas negras no país, presente também no modo como a habitação na cidade de São Paulo está configurada.
Opacas, transparentes e reflexivas
O objeto construído por Cidade tem pontos opacos, pontos transparentes e pontos reflexivos. Ao se apropriar do cavalete de Bo Bardi, Cidade usou o concreto, a madeira, metal e pequenos resíduos em preto e branco para compor a base, ou seja, materiais opacos; e o vidro blindado para “desenhar” com os tiros e rachaduras, sendo o vidro um ponto onde a peça é algumas vezes transparente e outras reflexiva, dependendo da luz e da posição de quem observa.
Seguindo a imagem do olhar opaco, lembrada por Horrana para a dimensão da cidade, podemos endereçar suas palavras às possíveis relações dos leitores com o trabalho Tempo em supenso de um estado provisório como imagem. As três qualidades encontradas na peça também provocam corpos e olhares transparentes, que imaginam possibilidades; reflexivos, que percebem a si mesmos e seus contextos, ao mesmo tempo que são olhados pelo trabalho; e opacos, que resistem a toda verbalização sem resto (Alloa, 2015, p. 16), ou seja, que negam a ressiginificação do trabalho como metáfora ou alegoria e se pautam nas materialidades da peça.
Nesses movimentos de transparências e reflexividades outras referências recorrentes foram as leituras associadas ao momento político do país. Um dos primeiros relatos que criou esse espaço na pesquisa aconteceu em julho de 2018:
… Eu não sabia que dava para ficar assim, eu achei que ele ia quebrar todo, mas foi só em algumas partes. Isso mostra um pouco do que o Brasil é, meio que só algumas partes foram atingidas, tipo só em dois cantos foi atingido e… as outras partes também sofrem, porque ficaram as rachaduras, mas elas não se soltam (Leitura estética produzida com uma visitante no MASP em 10 de julho de 2018).
E, à medida que as eleições de 2018 se aproximavam, os diálogos a partir desse trabalho começaram a fazer referências diretas a essa temporalidade específica. Desde julho as leituras já tinham menções às dinâmicas políticas, mas às vésperas das eleições presidenciais as tensões, presentes de modo mais amplo nas cidades, estavam explícitas no museu. Duas falas coletadas na pesquisa de campo transbordaram esse acirramento:
Quando eu vi me remeteu à instabilidade e insegurança que nós estamos vivendo hoje. É frágil, a qualquer momento esse vidro pode se romper e nós vamos ser atingidas, pela violência, pelo ódio, o que nós estamos vivendo hoje. [pergunto: Por que você escolheu ser fotografada atrás da obra?] Porque eu me sinto uma das vítimas, por ser uma minoria – ela é minha esposa, nós somos LGBTs [apontando para pessoa ao seu lado] – eu sinto que estou sendo apedrejada, com uma película de vidro me protegendo. É assim que eu me sinto hoje… é resistência, mas é aquela questão, até quando esse vidro vai segurar? (Leitura estética produzida com uma visitante no MASP em 23 de outubro de 2018).
No mesmo dia convidei um senhor que olhava o trabalho do Marcelo Cidade de longe para participar da pesquisa. Ele não aceitou, mas enquanto passava na frente da obra, sem olhar para trás, perguntou para mim, levantando a voz: “Quem deu esses tiros? Foi o Bolsonaro?”.
Na entrevista com Waldiel Braz o mediador comentou que os debates e as disputas políticas, permeados pelas eleições, também apareceram na ação Diálogos no Acervo, realizada às terças-feiras com os públicos não agendados. Nessa mesma época estava colaborando na coordenação de dois projeto educativos, em outras exposições que aconteciam em unidades do Sesc São Paulo, e essas tensões também estiveram presentes nas práticas das educadoras e educadores em formação (estagiários) que estava acompanhando. Um dos episódios ocorreu enquanto duas educadoras conversavam entre si sobre política, no espaço da exposição, e um frequentador da unidade começou a cantar o hino nacional como uma espécie de ameaça aos posicionamentos das educadoras identificados como “de esquerda”.
Também ocorreram embates em mediações com visitantes agendados e não agendados. Nesse período a construção tanto de estratégias de diálogo quanto de defesa institucional e pessoal a possíveis ataques verbais e físicos, a que os educadores estavam sujeitos, foram recorrentes no acompanhamento artístico-pedagógico das equipes.
Na semana seguinte às eleições, voltei ao museu para continuar a pesquisa e parecia que a tensão tinha evadido do trabalho do artista, por isso ficou a pergunta: como o tempo suspenso dessa imagem seria reconstituído em 2019? Como descreveu um dos sujeitos visitantes no mesmo ano, as marcas de bala parecem dois olhos me olhando, por isso pensava que a transparência e a reflexividade, a abertura dessa imagem, seguiriam reagindo e relatando, de certa maneira, o presente.
Muito lindo
Quando voltei a coletar as leituras sobre o trabalho, em fevereiro de 2019, o cavalete de Cidade não estava em exposição. Ao retomar a pesquisa de campo, em maio de 2019, tinha voltado para Acervo em Transformação, mas junto com uma inversão na cronologia da pinacoteca, proposta pela curadoria por ocasião do ciclo “Histórias das Mulheres, Histórias Feministas”.
Assim, após algumas semanas fechada para montagem, a pinacoteca reabriu no final de março de 2019 com os trabalhos contemporâneos à frente, seguidos das pinturas modernistas, do século XIX e assim por diante. Essa inversão cronológica foi uma estratégia para dar visibilidade a trabalhos de artistas mulheres, negros e outras abordagens que provocam rupturas nas narrativas eurocêntricas e imperialistas pelas quais o museu é conhecido e valorizado. Como o trabalho do Marcelo Cidade data de 2011-2015, foi colocado na primeira fileira dos cavaletes no canto esquerdo.
Essa localização, próxima a vários trabalhos que desafiam o suporte e a “sacralidade” dos Cavaletes de Cristal com propostas contemporâneas, fez com que o impacto singular do trabalho fosse descentralizado. Durante o mês de maio de 2019 observei que as pessoas continuaram a parar para ver o trabalho, tentar tocar e tirar fotografias. Mas o tempo que passavam ali pareceu ser mais curto, e com isso encontrei poucas brechas para começar uma leitura compartilhada e presenciei poucas conversas entre os públicos ali também.
Mesmo com poucas leituras, no último dia que fiquei próxima do trabalho conversei com uma senhora que estava encantada pela beleza do objeto, das rachaduras:
Nossa! O que aconteceu? Mas eu gostei, eu nunca tinha visto. E eu já trabalhei em lugares que tinham seguranças de todas as maneiras, assim, tinha segurança até para olhar o seu cabelo e eu nunca tinha visto isso. Achei bonito, muito lindo. Se você ver isso lá fora você vai falar: “aí meu deus tem alguma coisa…” e aqui não, aqui você consegue parar e olhar, muito lindo (Leitura estética produzida com uma visitante no MASP em 28 de maio de 2019).
Depois da gravação continuamos nossa conversa e ela me contou que já tinha trabalhado em muitos lugares com vidro blindado. E que num dos lugares em que trabalhou o chefe instalou o vidro e perguntou quem queria ir lá participar de um teste de tiro e ver se o vidro era mesmo blindado. Contando a história ela concluiu: “Ninguém foi, né? E eu não ia mesmo… imagina!”.
Uns dias depois e eu ainda estava recriando essa cena na minha cabeça e pensando nas diversas camadas da institucionalidade violenta que o artista provoca ali e no que emergiu na fala da leitora sobre o vidro blindado. Mas refletindo também como seu relato, ao mesmo tempo, apareceu permeado por um vínculo visual com o trabalho de arte, que definiu como muito lindo. Ela encontrou e descreveu seu prazer com a beleza percebida num objeto que reconhecia como referência para uma experiência de opressão.
Na primeira leitura que registrei ali, em junho de 2018, a referência de beleza já aparecia, a participante dizia que tinha achado muito bonito. Mas só em contato com essa outra leitura, de maio de 2019, que associei o prazer estético com o trabalho à memória de experiências violentas e medos que ali eram parte da mesma rede de correlações e não duas formas diferentes de perceber o objeto criado.
O trabalho Lindo, lindo, lindo (1976), de José Antonio da Silva, que faz parte da pinacoteca do MASP, pode ser uma referência para pensarmos nessa rede de correlação entre prazer estético e violência. Na pintura o artista brasileiro representa um campo, uma linda plantação de algodão. Pensando nas plantações de algodão e sua produção por trabalhadores escravizados ou em situações análogas à escravidão, a violência pode ser lida nas entrelinhas do trabalho. Também nessa imagem potencialmente está colocada a mesma relação entre violência, opressão e prazer estético.
Temporal
Voltamos, pois, sempre ao mesmo ponto: há só um Tempo real e os outros são fictícios. Que é em efeito um Tempo real senão um Tempo vivido ou que poderia o ser? Que é um Tempo irreal, auxiliar, fictício, senão aquele que não poderia ser vivido efetivamente por nada nem por ninguém? (Bergson, 1972 apud Coelho, 2004, p. 234)
Em uma coleção de audioguias produzida pelo museu, Marcelo Cidade começa a pensar em seu trabalho a partir da pergunta: como registrar um acaso?, e em seguida delimita esse acaso como um fato que registra um crime, uma quebra social, e mantém esse registro de uma maneira atemporal.[5]
Depois de alguns meses vivendo os tempos dos participantes com esse objeto, e antes de começar as entrevistas com os funcionários e ex-funcionários do museu, de diversos modos esses acasos da quebra social latejavam na pesquisa.
Nesse momento as leituras criadas e suas relações com o tempo presente estavam tão fortes, tão vivas para mim, que comecei a pensar que o trabalho tinha uma vida própria, autônoma, que o museu e as referência dos Cavaletes de Cristal tinham se perdido na temporalidade que havia co-criado com os participantes da pesquisa até aquele momento.
Mas quando comecei as entrevistas com funcionários e ex-funcionários, que atuam ou atuaram nas ações educativas e de mediação cultural no museu, essas referências voltaram e eu fui percebendo que, mesmo com a força desses relatos de tempos vividos, lidos no trabalho de Cidade, as camadas do museu, sua expografia e suas significações ainda permaneciam ali, implícitas.
Nas relações e leituras dos mediadores foram se restabelecendo os pontos de contato entre o trabalho de Marcelo Cidade e a expografia de Lina Bo Bardi, que a princípio não apareciam nas leituras estéticas produzidas com os participantes da pesquisa.
Limites
Um dos relatos com o qual comecei a recompor essas correspondências foi de Lucas Oliveira,[6] que participou da retomada dos Cavaletes de Cristal no final de 2015. Na entrevista Lucas fala sobre o sentido do trabalho no MASP:
Para mim, este trabalho cobra outro sentido naquele contexto [exposto entre os cavaletes]: o vidro é uma interface que falsamente rompe os limites entre o espaço público e o espaço privado, um aparato formal para os discursos arquitetônicos modernos. E evidenciar que o vidro é também barreira por meio dos desenhos que o tiro grava na blindagem, seu uso como material de segurança, quebra com aquela ideia dos arquitetos modernos de que o vidro é um dos materiais da indústria que estreitam a relação entre rua e espaço privado. Por isso, para mim, a obra do Marcelo denuncia a falência do projeto que aqueles materiais e aquele espaço, o museu, também representam, enquanto projeto e aparato da modernidade. Não é apenas uma homenagem à Lina (Trecho da entrevista com Lucas Oliveira realizada em 18 de dezembro de 2019).
O educador, que trabalhou também com outra edição do mesmo trabalho quando atuava no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), pensa o trabalho do artista como uma metacrítica da pinacoteca dos Cavaletes de Cristal e do uso do vidro na arquitetura dos dois museus, e lembra que a transparência do vidro não é permeável, mas sim um limite material que é explícito pelas rachadura no vidro blindado.
O pensamento de Lucas se encontra com concepções anunciadas pelo artista no audioguia sobre o trabalho exposto no MASP, que falam da dicotomia entre espaço público e privado. Cidade também relaciona sua proposta com uma crítica à apropriação contemporânea do modernismo como uma época que, do meu ponto de vista, estava sendo pensada apenas por valores estéticos,[7] ou seja, sob uma perspectiva das artes separadas da vida e dos questionamentos de seu próprio tempo histórico.
Há diversos desdobramentos sobre essa questão no museu que remetem: às diferenças de apropriação do vão do museu e seus espaços internos; ao valor cobrado para a visitação; às filas, a lotação e a espera para visitar as salas expositivas no dia em que a visitação é gratuita; entre outros. E há também transbordamentos encontrados nos relatos dos leitores e dos profissionais a partir do trabalho de Marcelo Cidade, imbricados às vivências de cidade dos participantes, às críticas institucionais, às reflexões sobre o tempo presente e o vidro como parede, reflexo, transparência, proteção, limite, fronteira. São fissuras e sobre elas podemos nos perguntar, lembrando a leitora que temia por sua existência e de sua companheira no final de 2018, “…até quando esse vidro vai segurar?”.[8]
* Auana Diniz é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes, Instituto de Artes da UNESP, área de concentração Artes e Educação, linha de pesquisa Processos Artísticos, Experiências Educacionais e Mediação Cultural. Atualmente é sócia da Colchete Projetos Culturais e colabora em projetos e programas educativos e artísticos em museus e instituições culturais.
Referências
ALLOA, Emmanuel. (Org.). Pensar a imagem. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos; COUTINHO, Rejane Galvão (orgs.). Arte/educação como mediação cultural e social. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
BARDI, Lina Bo. Uma aula de arquitetura, Revista Projeto, São Paulo, n. 149, Edição Especial, p. 59-64, jan/fev 1992.
COELHO, J. G. Ser do tempo em Bergson, Interface – Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.15, p. 233-246, mar/ago 2004.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do Tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
GEMELLI, Edson Belo Clemente de S. V. Território, Região e Fronteira, Revista Estudos Urbanos e Regionais, Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (ANPUR), v. 13, n. 2, p. 101, nov 2011.
MAZZUCCHELLI, Kiki (Org.). Marcelo Cidade: empena cega. Rio de Janeiro: Cobogó, 2016.
PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da (orgs). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009.
PEDROSA, Adriano e PROENÇA, Luiza (orgs.). Concreto e cristal: o acervo do MASP nos cavaletes de Lina Bo Bardi. Rio de Janeiro: Cobogó; São Paulo: MASP, 2015.
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora UFRGS, 2016.
ROSSI, Maria Helena Wagner. Imagens que falam: leitura da arte na escola. Porto Alegre: Mediação, 2009.
SANTOS, Milton. Metamorfose do espaço habitado: fundamentos teórico e metodológico da geografia. São Paulo: Hucitec, 1988.
Notas
[1] Waldiel Braz na época era Assistente de Mediação na equipe Mediação e Programas Públicos do MASP.
[2] Para os funcionários que atuam ou atuaram no MASP com as ações de mediação cultural sob a direção artística de Adriano Pedrosa utilizaremos a palavra mediador numa tentativa de abranger pelo termo as funções que a equipe de Mediação e Programas Públicos, que na época das entrevistas era composta por cerca de dez pessoas, desempenha no museu: proposição e produção dos programas MASP Escola, MASP Seminários, MASP Professores, visitas e ações formativas com grupos agendados (exceto escolas), não-agendados e internos, curadorias de exposições, entre outras.
[3] Na época Horrana de Kássia Santoz era Assistente Curatorial da equipe Mediação e Programas Públicos do MASP e curadora da Sala de Vídeo.
[4] Trecho encontrado no site do artista: https://pt.jaimelauriano.com/pedras-portuguesas, último acesso em 18.02.2020.
[5] Trecho transcrito do audioguia do trabalho Tempo suspenso de um estado provisório, disponível no canal do MASP no aplicativo Soundcloud. Acesso em 15 de maio de 2018.
[6] Lucas Oliveira foi Assistente de Curadoria, integrando a equipe de Mediação e Programas Públicos participando de diversos projetos. No momento da retomada dos Cavaletes de Cristal elaborou os textos para os trabalhos da pinacoteca do museu.
[7] Trecho transcrito do audioguia do trabalho Tempo suspenso de um estado provisório, disponível no canal do MASP no aplicativo Soundcloud. Acesso em 15 de maio de 2018.
[8] Esse artigo foi escrito no início de 2020 a partir de leitura estéticas e entrevistas realizadas entre 2018 e 2019. Atualmente o Museu de Arte de São Paulo está fechado para visitação, devido à COVID-19 e a políticas de contenção da doença em São Paulo. Possivelmente se a pesquisa fosse realizada nos dias atuais outras palavras e imagens seriam presentificadas.