Introdução: Uma luz no fim da sala de cinema
Em uma época em que consumimos muitas imagens e somos moldados por elas, era de se esperar que o campo de produção imagética fosse um dos mais prejudicados em um momento pandêmico e de distanciamento social. Primeiro, porque tanto as imagens que nos vendem produtos como aquelas que nos alimentam ideológica e culturalmente são construídas por uma indústria. A propaganda de uma loja de móveis ou eletrodomésticos precisa de uma equipe de produção, assim como um filme direcionado às salas de cinema. Pensando no que abrange o audiovisual, compreendendo mercado, cultura, entretenimento e tecnologia, as interrupções de gravações em sets de filmagens prejudicaram não só a captação de imagens, mas principalmente a veiculação delas. Seguindo as normas da Organização Mundial da Saúde (OMS) (Indústria…, 2020), como forma de conter a propagação da Covid-19, salas de cinema em todo o mundo estão fechadas, como também ocorreu com teatros, museus, centros culturais e demais estabelecimentos que não são definidos como essenciais, sob o risco de aglomeração social e potencial contaminação. Dessa maneira, a indústria do cinema foi uma das mais afetadas – como “indústria do cinema” entende-se ainda a produção de séries, ou, para exemplos nacionais, de novelas televisivas.
O processo de adaptação para o mercado de produção e distribuição dessas produções é gradual; enquanto produtos que envolvem técnicas de animação, ou filmes em fase de pós-produção (montagem, correção de cor, motion design, edição e mixagem de som, etc.), permanecem em desenvolvimento de maneira remota, ou seja, com profissionais que dispõem de equipamentos qualificados em suas residências, a produção publicitária se aproveitou de bancos de imagens previamente criadas e vendidas online, ou assumiu uma estética caseira, com imagens domésticas de clientes, funcionando também como incentivo às pessoas a permanecerem em suas residências. Longas-metragens que já possuíam datas de estreia no circuito comercial precisaram rever suas agendas e, desse modo, adiaram seus lançamentos para meses vindouros, ou estrearam diretamente em serviços on-demand (assinatura virtual e streaming, como Netflix, Prime Video, Google Filmes, Apple TV, Hulu, Disney+).
Ainda que as salas de cinema estejam fechadas, o consumo de filmes e séries aumentou consideravelmente. A Netflix, por exemplo, praticamente obteve o dobro de assinantes previstos para o primeiro semestre de 2020, adicionando cerca de 16 milhões de assinantes pagos ao serviço (Quarentena…, 2020). Ainda, segundo reportagem da Folha,
a receita total da Netflix aumentou para US$ 5,77 bilhões (R$ 30,5 bilhões), ante US$ 4,52 bilhões (R$ 23,9 bilhões) no trimestre anterior. Os analistas esperavam, em média, US$ 5,76 bilhões (R$ 30,4 bilhões), segundo dados do IBES do Refinitiv (Quarentena…, 2020).
A Universal Pictures, por sua vez, lançou uma nota surpreendente referente ao faturamento de um de seus lançamentos mais esperados e também prejudicados pela pandemia da Covid-19. Trolls 2 – World Tour (2020, Walt Dohrn), antes previsto para estrear no mês de março nas salas de cinema, foi lançado para compra e aluguel digitais no valor de US$ 19,90. No dia 28 de abril de 2020, o Wall Street Journal informou que o filme havia alcançado quase cinco milhões de clientes e arrecadado US$ 95 milhões em três semanas (Trolls…, 2020). Outros filmes aguardados pelo grande público, como Scooby! – O filme (Scoob!, 2020, Tony Cervone) e Artemis Fowl: O Mundo Secreto (Artemis Fowl, 2020, Kenneth Branagh), que também tiveram seus lançamentos presenciais cancelados, foram distribuídos diretamente para serviços de streaming, comprovando que as majors do setor cinematográfico estão apostando no consumo doméstico.
Especular sobre o retorno das salas de cinema, no entanto, é trabalhar com incertezas ainda maiores do que sobre o regresso às filmagens. O cinema, sendo uma arte coletiva e braçal, envolvendo centenas de profissionais em diversos departamentos e fases de produção para cada projeto, tardará a encontrar a sua normalidade de trabalho. Alguns países dispõem de planos emergenciais para ajudar os profissionais de setores artísticos. O presidente da França, Emmanuel Macron, informou que o plano de recuperação para o setor cultural francês se estenderá até agosto de 2021, mantendo remunerados artistas, produtores e técnicos das artes. Além disso, foi criado um fundo de indenização para os profissionais do audiovisual francês que tiveram suas produções interrompidas a partir de 17 de março de 2020, período em que o país entrou em distanciamento social (Bechara, 2020). Espera-se, dessa forma, beneficiar principalmente as produções locais já finalizadas, direcionando às produções francesas um espaço especial na programação de canais de televisão e serviços de streaming. Já na Lituânia, o governo destinou uma verba de fundos extras de € 68 milhões à cultura. Entre os beneficiados estão organizações públicas e privadas, cuja parte do montante auxiliará no desenvolvimento e renovação de infraestruturas culturais. Para o cinema, foram direcionados € 3,4 milhões às produções e distribuições de filmes lituanos, à recuperações de salas e ao desenvolvimento de novas séries televisivas (Kancereviciute, 2020).
A situação no Brasil permanece uma das mais obscuras. Até o momento, nenhum plano de apoio ao setor cultural foi criado. A iniciativa, ainda que restrita, partiu da magnata Netflix, que injetou 5 milhões de reais na indústria cinematográfica brasileira. A doação é destinada aos profissionais que participavam de alguma produção audiovisual para cinema ou televisão, com exceção de filmes publicitários, até março de 2020, então prejudicadas pela pandemia. O plano emergencial deve ajudar 5 mil profissionais do setor, que receberão um único depósito equivalente a um salário mínimo (R$ 1045,00) (Padiglione, 2020).
Como a indústria cinematográfica brasileira ainda depende de editais, leis de incentivo e de renúncias fiscais para a elaboração de seus projetos, assim como para sua difusão – sendo assim, nossa maior dificuldade hoje em dia é a distribuição dos filmes –, a pandemia talvez seja um momento importante para a revitalização de produções que não chegaram às salas de cinema e que circularam por edições passadas de mostras e festivais. Dessa maneira, filmes e séries “engavetadas” que esperam o seu lugar ao sol há anos poderiam encontrar um espaço de distribuição em plataformas digitais.
O incentivo à produção audiovisual doméstica no Brasil parte, inicialmente, de maneira independente. A cineasta Petra Costa, indicado ao Oscar pelo documentário Democracia em Vertigem (2019), prepara um novo documentário intitulado por Dystopia, que deve narrar as consequências da pandemia da Covid-19 (Petra…, 2020). Em suas redes sociais, Petra Costa revelou que o filme será construído com a colaboração do público; os interessados deveriam enviar registros diários à produção. Pretende-se montar um filme com olhares diversos e sobre classes diante da crise política e sanitária que o país enfrenta.
Outro projeto que prevê a participação do público, mas liberado em curto prazo e à medida em que é montado, foi pensando pelos cineastas Cavi Borges e Bebeto Abrantes. Definido como um “filme-processo”, Me Cuidem-Se consiste em relatos cotidianos de moradores do Rio de Janeiro durante o distanciamento social. A cada semana, um novo capítulo é adicionado gratuitamente ao canal da produtora por intermédio da plataforma Vimeo. A ideia é que o material seja estruturado em um longa-metragem ao fim da pandemia e distribuído em diversos formatos (Labaki, 2020).
Vale ressaltar que não só a produção dos filmes e sua distribuição em salas de cinema foram afetadas. Importantes vitrines para os realizadores, os festivais e mostras de cinema também precisaram se adaptar aos novos tempos. Ainda que festivais tradicionais e conceituados sejam reticentes a uma iniciativa online, diversos eventos cinematográficos adotaram o formato virtual e tiveram bons resultados, como o Festival Internacional de Curtas-Metragens de Oberhausen (Alemanha), o mais importante dedicado a curtas-metragens, e o Visions du Réel, consagrada vitrine de documentários na Suíça. As exibições foram abertas em segmentos diferentes para não prejudicarem o lançamento oficial de seus filmes com o fim da pandemia. Oberhausen cobrou uma taxa de € 9 para acesso completo a mais de 350 filmes, enquanto o Visions du Réel limitou suas exibições aos profissionais do mercado, servindo então como plataforma de negócios – embora tenha liberado filmes de edições anteriores em seu site. A plataforma FestivalScope também sedia de maneira online, e quase sempre gratuita, alguns festivais europeus importantes, como o Festival Internacional da Tessalônica (Grécia), o Festival Internacional de Friburgo (Suíça) e o Cinéma du Réel (França). O Festival Internacional da Tessalônica ainda fez um convite a cineastas gregos e outros importantes realizadores espalhados pelo mundo. O projeto, chamado Spaces, incentivou a produção de curtas-metragens inspirados no livro Espéces d’Espaces (1974), do escritor francês Georges Perec (1936-1982). Outra condição era que os curtas fossem inéditos e produzidos durante o período de quarentena. A série Spaces é constituída por 14 filmes e foi disponibilizada integralmente no YouTube, tendo na lista cineastas de filmografias consagradas, como o chinês Jia Zhang-ke, o catalão Albert Serra e o canadense Denis Côté (Quand…, 2020).
No Brasil, festivais tradicionais como o É Tudo Verdade (documentários) e o Curta Taquary (curtas-metragens), impossibilitados de sessões presenciais em 2020, receberam edições online com uma programação diversificada e gratuita. O Fantaspoa – Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre, o mais importante “festival de gênero” da América Latina, dedicado ao fantástico, ao horror e à ficção científica, também se predispôs a liberar alguns filmes de suas edições anteriores para acesso online. Criou-se ainda um concurso/festival virtual que incentivou a produção doméstica. O chamado Fantaspoa at Home exibiu 35 curtas-metragens, entre nacionais e internacionais, produzidos durante a quarentena (Carmelo, 2020). Vale ressaltar que, embora as produções sejam realizadas quase integralmente no espaço da residência de seus realizadores, muitas das vezes com câmeras portáteis e aparelhos celulares, são filmes de excelente qualidade técnica e narrativa. Com a limitação de recursos, os cineastas estimularam a criatividade e experimentaram mais com a linguagem, inserindo não só elementos que dialogassem com o momento de pandemia, mas com suas relações de imagens cotidianas. Um dos curtas-metragens vencedores do Fantaspoa at Home, Pra Ficar Perto (2020, Lucas dos Reis), tem suas ações integralmente capturadas por aplicativos de celulares, como o WhatsApp.
Enquanto esperamos pela contenção do vírus e por uma vacina, para que assim as atividades cinematográficas sejam retomadas, um projeto maior aconteceu no mês de maio. O We Are One: A Global Film Festival reuniu mais de vinte festivais de cinema de todo o mundo e transmitiu dezenas de filmes em um canal do YouTube. São produções que passaram por curadorias de Cannes, Berlim, Veneza, Tribeca, entre outros importantes eventos. Ainda que as exibições fossem gratuitas, a iniciativa da Tribeca Enterprises obteve doações dos espectadores, destinadas ao Fundo de Reação de Solidariedade da Covid-19 da Organização Mundial da Saúde (OMS) (Maiores…, 2020).
Além das sessões virtuais, à medida que algumas salas são reabertas seguindo rígidas políticas de segurança, como em Portugal e na França, alguns países voltam à experiência de um cine drive-in, prática não muito comum no novo século, mas de muito sucesso nas décadas de 1950 e 1960. São projeções ao ar livre, geralmente em parques ou estacionamentos, em que os espectadores assistem aos filmes de dentro de seus veículos, reduzindo o risco de contágio do vírus. A nova tendência já chegou inclusive no Brasil, como o Belas Artes Autorama Drive-in, em São Paulo. Como aponta a jornalista Juliana Domingos de Lima, no mundo pós-pandemia, tal prática pode ser estudada para outros eventos, como formaturas, cultos de igrejas e shows musicais (Lima, 2020).
O Experimento Odradek – Domicílio Incerto
Se antes o mercado cinematográfico via seus projetores desligados com desesperança, formas alternativas e de impacto internacional têm sido pensadas para que, ao menos, a experiência do cinema permaneça na residência de seus espectadores. De acordo com Soumya Swaminathan, cientista-chefe da Organização Mundial da Saúde (OMS), enfrentaremos novos estágios da doença e, por conseguinte, momentos esporádicos em quarentena nos próximos cinco anos, até o controle do vírus (Ker, 2020). A projeção de futuro é, portanto, nebulosa e conflitante. A cultura demonstrou sua importância vital neste momento; funciona como alento e esperança em longos dias de um distanciamento muito mais físico do que social, uma vez que a tecnologia permanece aproximando o contato uns com os outros. Curioso, no entanto, que cada vez mais nos transformemos em imagens, sejam estas em chamadas de vídeo, em conferências por Skype, ou fotografias postadas no Instagram. Ciente do movimento dessas imagens, fornecendo a ilusão da vida não só à retina, aos aparelhos e às objetivas das câmeras, a intimidade-tato e a presença é que nos fazem falta de verdade. Logo, a projeção do futuro é nos lembrarmos do passado. Talvez por isso o “relato” apareça com tanta personalidade nesta pandemia. O registro do que somos e o que fomos, daquilo que é estar em uma imagem.
Penso que dessa interferência da memória o arquivo ajudará a narrar as próximas histórias. De nossas casas e ao alcance da mais amadora das tecnologias, a memória é chave para processos experimentais. A necessidade de se expor nas redes sociais, esses arquivos e lápides virtuais, só comprova uma forma de mostrar-se presente – e, nesses tempos, mostrar-se vivo. Acompanhar a subjetividade de uma história é também encontrar a universalidade de sentimentos, como podemos observar no cinema da autorreferência, também conhecido como cinema da autoficção; em suma, formas de construir um filme-ensaio, a maneira de escrever-se na tela como partida de uma compreensão maior do outro (um outro no qual também nos encaixamos).
Como explica Timothy Corrigan (2015, p. 8-9), o que move um filme-ensaio é a experiência: o abraço à “condição antiestética” e ao legado literário, portanto, produtivamente tão inventivo ao combinar o “pessoal” com a realidade coletiva, características que podem ser encontradas em cineastas como Chris Marker, Jonas Mekas e Agnès Varda.
Na ocasião do lançamento de filme As Praias de Agnès (Les Plages d’Agnès, 2008, Agnès Varda), Vasco Câmara realizou uma entrevista com a cineasta franco-belga. Um trecho específico vale ser mencionado:
Vasco Câmara: [Você] Mistura momentos de documentário com a recriação de episódios que estão na sua memória. A sensação, aí, é que está a viver outra vez esses momentos, a experimentar outra vez o que já viveu… A pergunta é: essa forma de fazer, esse jogo com a recriação, serviu-lhe para mergulhar fundo nas emoções ou para se defender delas?
Agnès Varda: As duas coisas. Há um momento em que digo: “Je me souviens pendant que je vis” [recordo-me enquanto vivo]. Poderia dizer, e seria a mesma coisa, “vivo enquanto me recordo”. Eu vivo na memória. Não há nostalgia. Há aquilo que a minha memória deixa sair naquele instante em que estou a filmar. Se filmasse não naquela altura mas seis meses depois, certamente o filme teria outras coisas. Queria que as coisas fossem orgânicas. Claro que controlei, montei, evidentemente. (…) (Câmara , 2009)
Dessa forma, Varda evidencia o confronto que existe entre a criação de uma imagem e a memória: uma capacidade performática de ressignificar um instante por intermédio da montagem, justamente por seu caráter libertário.
O que a memória tem em comum com a arte é o talento para a seleção, o gosto pelo detalhe. (…) Mais do que qualquer coisa, a memória se parece com uma biblioteca em desordem alfabética, e onde não se podem encontrar as obras completas de ninguém (Brodsky apud Manguel, 2006, p. 34).
O filme-ensaio se propõe a dar forma a tal desordem, e não trabalha com a objetividade, uma vez que a realidade é reconstruída de maneira prosaica e seletiva. A figura do “eu” ditará as conexões visuais, às vezes por uma voz que se reflete e faz a coleta de ecos à linha de montagem. É autoconsciente porque dialoga o tempo todo consigo – o “sujeito” e o “cinema” – e com o público.
Entre outubro de 2011 e fevereiro de 2012, o Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona esteve com a exposição Todas Las Cartas – Correspondencias fílmicas. Consistiu em um espaço expositivo com projeções e monitores que reunia trocas de videocartas entre seis duplas de cineastas[1] ao redor do mundo. Tal experiência assemelha-se ao formato do filme-ensaio pela subjetividade presente em cada videocarta, muitas delas com as vozes de seus realizadores, mostrando situações cotidianas e partilhando lembranças e intimidades. O processo do fazer artístico transforma a experiência da carta em um autorretrato de interesse universal. Parte desses vídeos foi lançada em um box de DVDs e vendido durante o período de exposição, e foi dessa maneira que tive acesso ao material. Durante o meu mestrado em Comunicação, meu coorientador Jamer Guturres de Mello, que residiu em Barcelona por alguns anos, emprestou-me os DVDs para estudos e referências.
Quando os primeiros casos da Covid-19 no Brasil foram divulgados pela imprensa e, poucos dias depois, o distanciamento social mostrou-se a melhor alternativa para o controle de propagação do vírus, pensei muito em uma amiga com quem cursei a graduação em Cinema em São Paulo, a também cineasta Deborah Perrotta, que hoje reside em Turim, no Norte da Itália. Ela já estava em quarentena havia algumas semanas e não conversávamos havia um bom tempo. Imediatamente, veio-me a vontade de escrever-lhe uma carta, mas não uma carta comum, a punho e letras, pensei antes em uma correspondência audiovisual e virtual, como as que vi em Todas las Cartas, e lhe propus a ideia.
Escrevi o texto no computador e gravei as imagens em uma tarde, com dois tipos de câmeras (uma Handycam da Sony HD de 2010 e a câmera de meu celular). Com o próprio celular, gravei a minha voz enquanto lia a carta. Separei algumas fotografias de meus aniversários antigos – o tema dessa primeira carta acabou sendo justamente a possibilidade do esquecimento e a vontade de rever algumas lembranças –, montei a videocarta e a enviei à Deborah, que muito pronto respondeu-me com um relato muito sincero sobre suas solitários dias observando as janelas de seus vizinhos, mas também o privilégio de possuir um teto todo tela (em referência à escritora inglesa Virginia Woolf)[2] nesses momentos de reflexão.
Dessa experiência, surgiu-nos a vontade de expandir os registros e criarmos um projeto artístico que dialogasse com o período de quarentena e o desejo de compartilharmos algumas memórias. À época, eu tinha acabado de ler o livro de contos Um médico rural (1920), de Franz Kafka, e ainda estava impressionado com a síntese surrealista e emocional de um de seus textos, “A preocupação de um pai de família”, que me apresentou uma criatura misteriosa: o Odradek.
À primeira vista ele tem o aspecto de um carretel de linha achatado e em forma de estrela, e com efeito parece também revestido de fios; de qualquer modo devem ser só pedaços de linha rebentados, velhos, atados uns aos outros, além de emaranhados e de tipo e cor dos mais diversos. Não é contudo apenas um carretel, pois do centro da estrela sai uma varetinha e nela se encaixa depois uma outra, em ângulo reto. Com a ajuda desta última vareta de um lado e de um dos raios da estrela do outro, o conjunto é capaz de permanecer em pé como se estivesse sobre duas pernas. (…) Inutilmente eu me pergunto o que vai acontecer com ele. Será que pode morrer? Tudo o que morre teve antes uma espécie de meta, um tipo de atividade e nela se desgastou; não é assim com Odradek. Será então que a seu tempo ele ainda irá rolar escada abaixo diante dos pés dos meus filhos e dos filhos dos meus filhos, arrastando atrás de si os fios do carretel? Evidentemente ele não prejudica ninguém, mas a ideia de que ainda por cima ele deva me sobreviver me é quase dolorosa (Kafka, 2003, p. 43-35).
A imagem de uma criatura que não se define e que não possui um domicílio específico, embora habite as memórias de um lar, passível de ser a própria memória, fascinou a mim e a Deborah Perrotta. Pensamos, então, na impossibilidade da presença em um espaço expositivo. Com as sessões remotas de festivais de cinema e com a acessibilidade de visitas virtuais em alguns dos mais importantes museus do mundo, condensamos a ideia de uma “casa expositiva” em uma instalação virtual: o Experimento Odradek – Domicílio Incerto. Um site foi criado com o propósito de simular tais características, ao que defendemos:
Partindo da experiência de dois cineastas que vivem em cidades diferentes, reclusos em seus lares em decorrência de um período de quarentena, o “EXPERIMENTO ODRADEK – Domicílio Incerto” é uma instalação virtual sobre a afetação do isolamento e a iminência da memorabília como esquecimento. De São Paulo a Turim e de Turim a São Paulo, por meio de palavras, fotografias e correspondências virtuais, as imagens funcionam como estímulos de uma autorreflexão fabulística, não preocupadas com uma definição, mas sim com o processo de sua evocação.[3]
O Experimento Odradek – Domicílio Incerto acontece dentro de uma casa de seis cômodos (hall de entrada, sala de estar, banheiro, cozinha, quarto, porão) e um quintal. O conteúdo de cada cômodo pode ser acessado por uma planta anexada ao site e também no menu principal da página.
O “hall de entrada” apresenta o conto “A preocupação de um pai de família”, de Franz Kafka. Dessa forma, os visitantes têm um primeiro contato com a principal referência de nosso projeto, elucidando a ideia de memórias transitórias e impacientes, as quais ilustrarão o nosso conteúdo.
Na “sala de estar”, crônicas, cartões-postais e fotografias decoram a página.
Vídeos com um propósito mais sinestésico, experimentando texturas e combinações sonoras, são encontrados na “cozinha”, cômodo destinado exclusivamente a produções assinadas pelos dois cineastas, já que os demais vídeos são construções individuais.
No “quarto”, autorretratos em vídeo propõem desmistificar a necessidade da presença do personagem retratado. O processo se dá com a seguinte pergunta: “Quem ou o que somos quando ninguém nos vê?”.
Colagens e divisões de telas simulam uma fragmentação do cotidiano no “banheiro”, cômodo que visa explorar a intimidade da observação.
Por fim, enquanto o “porão” ressignifica imagens e vídeos arquivados, sejam de viagens antigas ou de projetos abandonados, o “quintal” é a junção de todos os experimentos audiovisuais contidos nos outros cômodos. É pelo quintal que chegam as nossas videocartas, sempre buscando um olhar de São Paulo e outro de Turim, aproximando fronteiras e vozes.
Por ser uma instalação experimental e em processo, a cada semana novos cômodos são inaugurados e/ou novos materiais audiovisuais são inseridos. Portanto, o objetivo é que o visitante consuma aos poucos as produções, participando desse processo criativo. Independentemente das atualizações e datas de acessos, todo material pode ser visto quando e quantas vezes quiser, isto é, o conteúdo das semanas anteriores continuarão disponibilizados online. No entanto, como toda instalação/exposição, o Experimento Odradek – Domicílio Incerto tem um período de atividade. O projeto foi pensado para ficar disponível de 17 de abril de 2020 a 15 de julho de 2020, mas foi prorrogado até o dia 15 de setembro de 2020, uma vez que o material incluído foi legendado para o inglês, assim ampliando o seu alcance. Em vinte semanas, a instalação teve quase dois mil acessos e ganhou notas de divulgação em importantes portais culturais, como a Revista DASartes, os sites Vertentes do Cinema e Curta Curtas e o Portal da Cidade de Santa Rita do Sapucaí.
Considerações finais
Diante de uma crise sanitária global, pela primeira vez em décadas a humanidade precisa se ausentar de seus espaços de convívio social e de lazer, decisão de empatia e autopreservação. Certamente, um capítulo importante nos livros de história das próximas gerações, evidenciando um período de ansiedade e melancolia, mas também de muita partilha em busca de novos meios de aproximação e criação.
A virtualidade provou que as distâncias podem ser temporariamente dribladas por intermédio de computadores, celulares ou eletrônicos de realidade aumentada. Logo, a nossa memória é constantemente digitalizada e compartilhada em questão de segundos. Os novos meios de ver e agir interferem nas ações ritualísticas, como frequentar uma sala de cinema, um palco de teatro ou um salão de igreja. Lugares se transformam em não lugares: o espaço é tão imigrante como uma lembrança.
Entender todas as adaptações, no entanto, demanda um tempo. A nossa sociedade ainda é fruto de uma exploração capitalista, e adaptações são construídas à sombra de uma política mercantilista: um tempo de desassossego significa, contudo, sua estagnação. Da educação à produção de imagens, diversas profissões são prejudicadas pela impossibilidade de um lugar e um presente. Unir, portanto, a “incerteza” e o “futuro” é pensar em democracia. Democratizar a saúde, democratizar a tecnologia, democratizar o acesso às imagens.
A democratização das imagens é a segurança de nossas memórias; sua partilha garante a nossa sobrevivência.
* Davi Marques Camargo de Mello é doutorando em Educação, Arte e História da Cultura na Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestre em Comunicação pela Universidade Anhembi Morumbi e bacharel em Cinema e Audiovisual pela mesma instituição (UAM). Também atua como cineasta e teve curtas-metragens exibidos em mais de setenta festivais, como o Festival do Rio, o Festival Latino-Americano de São Paulo, Kinoforum, Bogoshorts (Colômbia) e Fest New Films | New Directors (Portugal).
Referências
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CÂMARA , Vasco. “Vivo enquanto me recordo”, Público, 23 jul. 2009. Disponível em: https://www.publico.pt/2009/07/23/culturaipsilon/noticia/quotvivo-enquanto-me-recordoquot-237161. Acesso em: 28 maio 2020.
CARMELO, Bruno. Fantaspoa: Conheça os filmes selecionados para o festival online, Papo de Cinema, 4 maio 2020. Disponível em: https://www.papodecinema.com.br/noticias/fantaspoa-conheca-os-filmes-selecionados-para-o-festival-online/. Acesso em: 28 maio 2020.
CORRIGAN, Timothy. O filme-ensaio: Desde Montaigne e depois de Marker. Campinas: Papirus, 2015.
INDÚSTRIA do cinema é uma das mais afetadas pela crise do novo coronavírus, CNN, 10 maio 2020. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/2020/05/10/industria-do-cinema-e-uma-das-mais-afetadas-pela-crise-do-coronavirus. Acesso em: 28 maio 2020.
KAFKA, Franz. Um médico rural. Tradução: Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
KANCEREVICIUTE, Aukse. Lithuania Supports Hard Hit Cultural Sector with Over 68 m EUR, Film New Europe, 8 maio 2020. Disponível em: https://www.filmneweurope.com/news/lithuania-news/item/119952-lithuania-proposes-over-68-m-eur-for-heavily-affected-cultural-sector. Acesso em: 28 maio 2020.
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TROLLS 2 fatura cerca de US$ 100 milhões com lançamento em streaming, G1/France Presse, 29 abr. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2020/04/29/trolls-2-fatura-cerca-de-us-100-milhoes-com-lancamento-em-streaming.ghtml. Acesso em: 28 maio 2020.
Notas
[1] José Luis Guerin (Barcelona) e Jonas Mekas (Nova York), Isaki Lacuesta (Girona) e Naomi Kawase (Nara), Albert Serra (Banyoles) e Lisandro Alonso (Buenos Aires), Víctor Erice (Biscaia) e Abbas Kiarostami (Teerã), Jaime Rosales (Barcelona) e Wang Bing (Shaanxi), Fernando Eimbcke (Cidade do México) e So Yong Kim (Busan/Nova York).
[2] Um teto todo seu (A Room of One’s Own, 1929).
[3] Disponível em: https://www.experimento-odradek.com/inicio.