dossiê
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UMA ESPERANÇA: CORREIO CLARICEANO

Pode-se dizer, aliás, que, a partir do momento em que a mais ínfima esperança se tornou possível para a população, o reinado efetivo da peste tinha terminado.
Albert Camus (2019, p. 3422)

A esperança equilibrista
sabe que o show de todo artista 
tem que continuar.
Aldir Blanc, João Bosco e Elis Regina (1979)

No início do mês de abril deste ano de 2020, já estávamos isolados em casa por conta da pandemia. Mas continuamos online os encontros do nosso grupo de pesquisa, “Leitores de Clarice”. Alguém sugeriu procurar uma passagem que colocasse em cena algum desastre, talvez com a esperança de que a cena literária transmitisse algum tipo de companhia ou de legibilidade para toda aquela estranheza. Mas suspeitamos que a busca poderia, ao contrário, gerar ainda mais mal-estar. Então pensamos que, contra a política de morte do governo brasileiro e como uma forma pequena mas possível de protesto – “Porque há o direito ao grito. Então eu grito” (Lispector, 1998, p. 13) –, precisávamos afirmar a vida. Sim, a vida. Alguém lembrou, então, o conto “Uma esperança”, publicado primeiro como crônica, em 1969, no Jornal do Brasil, e depois como conto, em Felicidade clandestina, 1971.

Saímos da primeira leitura conjunta com a decisão de escrever um texto a oito mãos. Escrever juntos um mesmo texto não era um detalhe, mas condição para a costura dos gritos, “teia tênue” que procurasse se tecer, como no poema de João Cabral, com “fios de sol de seus gritos de galo” (Melo Neto, 2003, p. 345). Mas como? Em 1958, depois de meses sem responder uma carta de Clarice, João Cabral parece se justificar, sem culpa, dizendo: “Parece é que perdi mesmo o jeito de escrever cartas. O jeito e o fôlego” (Lispector, 2002, p. 235). Passagem despretensiosa, mas que marca algo fundamental para a tarefa que tínhamos. É que não se escreve coisa nenhuma sem um “jeito” para escrevê-la. Por nossa parte, tínhamos o grito, o fôlego, mas faltava “o jeito”, isto é, a forma para a costura.

Daí, com a angústia do que ainda se anuncia sem forma e com as angústias da situação pandêmica, que causa uma sideração totalmente avessa a condições razoáveis de escrita, pensamos em resistir à não escrita assim: escrevendo cartas.

Então, este texto, na verdade, forma um correio clariceano em torno do conto “Uma esperança”. De início, a escrita das cartas serviria como pretexto para a escrita prosseguir e, por isso, tínhamos pensado em “limpar” as marcas do correio para a forma final. Mas seria um erro. Vendo, agora, o modo como as cartas foram se costurando, seria talvez uma violência (mais uma) arrancar da forma com que conseguimos sustentar uma escrita suas marcas próprias, para que “ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas” (Lispector, 2020, p. 19).

 

Carta de Clarice às irmãs, Elisa e Tânia. (Gotlib, Nádia Battella. Clarice Fotobiografia. 3ª ed. São Paulo: EdUSP, 2014.)
Carta de Clarice às irmãs, Elisa e Tânia. (Gotlib, Nádia Battella. Clarice Fotobiografia. 3ª ed. São Paulo: EdUSP, 2014.)

1ª carta: Com amor, os insetos

Rio de Janeiro, 17 a 19 de abril de 2020.

Queridos,

Escrevo porque quero dar um presente a vocês. Mas calma, ainda está se construindo. Esperem que virá. Escrevo, também, porque sinto saudades, já faz um tempo que não nos vemos. Acabei de olhar o calendário e me dei conta de que a última vez que nos vimos foi lá na Faculdade de Letras, dia 12 de março, quinta-feira, durante a aula do Camillo, que tinha aquele gostinho tão bom de novidade. Nesse dia, ainda não sabíamos exatamente o que aconteceria quando o vírus começasse a se espalhar por aqui. Foi durante essa aula, entretanto, que descobrimos que um caso tinha sido confirmado na UFRJ, um técnico do setor de radiologia do Hospital Universitário. Mesmo assim, eu estava animada. Era a primeira semana de aula do meu primeiro semestre no mestrado e eu estava vendo um lugar que conhecia já há cinco anos tomar outras formas, renascendo para mim, e nascendo, novamente, para os calouros da graduação, que enchem os corredores de vida. Naquele momento, não queria pensar em Covid-19, em presidente ou em declarações da OMS confirmando a pandemia. Mas essa realidade não demorou a se mostrar. No dia seguinte, a reitoria da UFRJ cancelou as aulas por tempo indeterminado. Alguns dias depois, o governador decretou quarentena. Depois disso, o prefeito mandou fechar o comércio. Seguimos em isolamento desde então.

Olhei no calendário de novo (o calendário tem sido um grande amigo: costumo pensar nos dias que já passaram e não nos incontáveis dias que ainda faltam e isso me deixa mais tranquila) e contei quatro semanas e seis dias de quarentena. Com altos e baixos, posso dizer que grande parte desses dias foi difícil. Uma parte minha da alegria está na relação que tenho com a literatura, mas parece impossível pensar nela enquanto países inteiros são assolados pela Covid-19 e as mortes não param de subir e São Paulo tem 80% dos leitos ocupados e existem cidades do Nordeste do país que só têm cinco leitos de UTI disponíveis e a Baixada Fluminense tem 16% dos casos do Rio de Janeiro (e os meios de comunicação não param de informar que a Baixada já não tem a estrutura de saúde necessária em dias normais). Enquanto temos medo de que as estatísticas ganhem nomes e rostos, e enquanto o governo federal investe em uma política aberta de morte. A sensação que dá é que estamos sendo largados para morrer.

Apesar de tudo, gostaria de transmitir algum tipo de força a vocês. É que para transmitir, eu preciso resgatá-la de algum lugar, de modo que eu tenha a possibilidade de tê-la também. Portanto, essa transmissão não é apenas um exercício para vocês, mas um exercício para mim.

E pensando nisso, vem o presente de que eu falava.

Eis o presente: insetos.

Dois insetos, na verdade, o vagalume e a esperança. O vagalume é aquele de Georges Didi-Huberman (2011), as pequenas luzes na escuridão que sobrevivem apesar de tudo. A esperança, por sua vez, está naquele conto/crônica da Clarice Lispector, “Uma esperança”, sobre o qual conversamos num dia desses. O texto traz as duas esperanças: o inseto e uma outra esperança, aquela que, de acordo com a narradora, nos sustenta, e imagino que precisamos tomar conta de ambas nos dias que se seguem.

Sei que lembram do conto, lemos há poucas semanas. Mas vou escrever sobre ele mesmo assim, porque parte do presente está no compartilhamento de leituras. É um texto pequeno, de três páginas, mas com uma grande potência. Começa assim: uma esperança pousou perto da narradora. Sabem que eu não sabia o que era uma esperança? Pesquisei e descobri que é um inseto com natureza de camuflagem e, por isso, tem um aspecto muito semelhante às folhas das árvores. Tem um canto parecido com o da cigarra, só que a cigarra canta de dia, a esperança, de noite, o que me leva a pensar em uma voz que se faz presente na escuridão, a voz que permanece apesar de – assim como os vagalumes.[1] Acho que o conto me fez descobrir as duas esperanças: a “clássica que tantas vezes verifica-se ser ilusória, embora nos sustente sempre” (Lispector, 1998, p. 92), e o inseto. Talvez seja por isso que eu não estava conseguindo me sustentar antes de me voltar para a literatura nessa quarentena, porque eu não estava a par da esperança. E aqui vai uma outra parte do presente-esperança: a possibilidade sustentar-se.

A primeira pessoa a reparar no inseto é uma criança, que, emocionada, consegue unir o pequeno inseto à esperança clássica:

Houve um grito abafado de um dos meus filhos: – Uma esperança! e na parede bem em cima de sua cadeira! Emoção dele também que unia em uma só as duas esperanças, já tinha idade para isso. Antes, surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim, sem ninguém saber, e não acima da minha cabeça, numa parede (Lispector, 1998, p. 92).

O inseto se mostra quase sem corpo e “mais magra e verde não podia ser”. Era de uma delicadeza só. Existe quase não existindo, se sustenta quase não se sustentando, no limiar entre corpo e alma (já conversamos que essa dicotomia é impossível para Clarice, porque corpo e alma são, para ela, da mesma natureza).[2] Parece que a esperança é translúcida, se esvaece aos poucos, mas nunca chega a hora de finalmente desaparecer, permanecendo ali, apesar de tudo, apesar de seu corpo ser quase restos, enquanto tentava sair do impasse em que se encontrava: “ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre dois quadros, três vezes teve que retroceder” (Lispector, 1998, p. 92). Suas pernas de fiapos e que mesmo assim sustentam o corpo quase-não-corpo se esforçam para sair desse caminho tortuoso que, concluído, lhe traria a liberdade. Mas a esperança, hesitante, se guia pelas antenas, não pelos olhos, se guia por outros meios.

Estavam os dois, mãe e filho, observando o inseto delicado quando surgiu a aranha. Acontece que encontrar aranhas traz sorte. Ficar com o quê? Sorte ou esperança? Enquanto para nós, gente grande, é difícil fazer essa escolha, para o menino parece fácil: antes que a narradora consiga se articular em defesa da aranha, ele mata a sorte com uma vassoura.

Passado o perigo, ficam algumas reflexões, ainda sobre a forma e o corpo da esperança, que é contraposto à brutalidade do toque humano: “mas como é bonito o inseto: pousa mais do que vive, é um esqueletinho verde, e tem uma forma tão delicada que explica por que eu, que gosto de pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la” (Lispector, 1998, p. 94). A narradora receia em pegar no inseto e desfazer a fraca integridade desse corpo quase inexistente que não sustentaria o toque. Assim como ela, também gosto de pegar nas coisas, porque muito da experiência vem do toque (acho que a Amanda consegue falar disso com muito mais propriedade do que eu). Mas sei que não dá para tocar em tudo com o corpo, algumas coisas não suportam a nossa agressividade. A esperança é uma delas, deve ser deixada quieta, pousando, existindo, pousando mais do que vivendo. É importante que nossa brutalidade não a perturbe para que ela consiga se sustentar em suas finíssimas patas de inseto.

Por último, uma lembrança de uma outra esperança, essa bem menor, que pousou no braço da narradora, que não sentiu seu toque suave, percebeu-a apenas com os olhos, talvez da única forma que a esperança precise ser percebida:

Não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência da sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: “e essa agora? que devo fazer?” Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu nada (Lispector, 1998, p. 94).

E o que fazer com esse inseto, pequeno, frágil, delicado e incapaz do toque humano? Resposta: nada. Deixe a esperança existir, agir, sem a nossa interferência direta. Nosso trabalho é observá-la, porque nossa ação sobre ela é incompatível com a sua existência, ao mesmo tempo que a sua existência nos é necessária. Dito isso, esse é um conto que defende a passividade? Certamente que não! Não escreveria uma defesa da passividade, principalmente no contexto atual, porque não fazer “nada” também é uma maneira de fazer, bem sabemos, para o bem ou para o mal. A questão é deixar com que a esperança, sozinha, aja, para que possamos agir em outros lugares. Para nós, resta-nos saber o que pode ser feito e entender nossos limites como sujeitos. Entender que deixar que certas coisas aconteçam também é uma forma de nos mantermos ativos. No que diz respeito ao combate efetivo da pandemia, não podemos fazer quase nada.

Não somos profissionais da saúde ou pesquisadores das ciências biológicas e não podemos, pelo menos não diretamente, ajudar na luta contra o novo vírus. Mas somos outro tipo de pesquisadores, trabalhamos, cada um a seu modo, com a literatura. E a literatura pode, agora, manter-nos, de alguma forma, vivos. E precisamos dar importância ao pequeno. Voltamos, então, aos vagalumes, que agem na microesfera, “apesar do todo da máquina, apesar da escuridão da noite, apesar dos projetores ferozes” (Didi-Huberman, 2014, p. 45).

Ontem teve uma carreata aqui perto de casa, na praia, a uns vinte minutos de onde moro. É engraçado, porque, no momento, entendo bastante as pessoas que estavam lá, pedindo a “volta da normalidade” – o que eu mais quero no momento é a volta ao “normal”. Acontece que não existe mais normalidade, pelo menos não a volta a essa normalidade anterior. Sabemos que reabrir a cidade significa levar muitas pessoas à morte. O que nos resta, então, são duas opções (a princípio): ficar em casa, protegidos, esperando uma cura, um tratamento ou apenas que o ciclo do vírus termine, ou sair às ruas e ser um dos responsáveis pela sobrecarga do sistema de saúde e a consequente morte dos mais vulneráveis. Entender que as coisas não vão voltar a ser o que era antes da pandemia não significa que as coisas não podem ser boas, de alguma forma. Didi-Huberman nos alerta do erro de dizer frases como “a normalidade não é mais como era antes” e logo concluir “não há mais normalidade”. Precisamos criar uma nova e outra normalidade.[3]

Então, vocês façam o favor de facilitar o caminho da esperança!

Com amor, carinho e muitas saudades,

Maju.

P.S.: Outra coisa engraçada: estou aqui, falando sobre vagalumes e esperanças, mas eu nunca cheguei a ver esses insetos que dei para vocês. Mas é que dar é uma forma de ter.

P.S.2: Hoje, 30 de agosto de 2020, pego novamente essa correspondência. Achei que seria mais honesto não alterar nada, então só me resta esse novo post scriptum, direto e rápido. Já não consigo mais fazer a contagem de dias e semanas, é claro, são meses de pandemia agora. A sensação de desolação é menor, contudo. Há umas semanas, Patrick comentou como é incrível a nossa capacidade de adaptação. Pois é, querido, pois eu diria que é inacreditável. Porque a adaptação é difícil e muitas vezes dolorosa e tenho certeza de que seria muito pior sem vocês. Obrigada por serem vagalumes.

 

2ª carta: Os cavalos e o fogo

Nova Friburgo, 19 a 21 de abril de 2020

Minhas queridas,

Li a carta da Maju há pouco. Tão engraçado: estava achando que o fim desse domingo, felizmente lento por aqui, iria ser uma leitura um pouco preguiçosa de Proust e depois alguma coisa leve antes de ir para a cama. Cheguei a acender a lareira, que foi um modo que o padrasto de meu pai, Gert, pensou de proteger a casa do frio. Fazia anos que não tentava fazer isso e vi o fogo hesitando em acender-se pela minha falta de manejo. Não pude deixar de pensar nessa imagem como metáfora das coisas que vingam, ou que não vingam, que queimam rápido numa chama alta e logo se apagam, ou que se elaboram desde uma chama fácil, como a dos papéis de jornal velho, depois devoram pedacinhos de madeira, e aquilo como que cozinha um pedaço de tronco maior, que vai se entregando em brasa e, embora não haja uma chama alta, a temperatura ali no centro é altíssima e a chama se demora ao longo da noite. Então, a primeira carta do nosso correio chegou, essa primeira chama. Fui ver e, bem, estou com a sensação de que não vou conseguir dormir antes de respondê-la.

Maju, obrigado pelas primeiras palavras e pelos presentes, pelos insetos. Ele é em si mesmo um gesto clariceano, vocês devem conhecer uma passagem que diz assim: “vou te dar de presente uma coisa. É assim: borboleta é pétala que voa” (Lispector, 2002, p. 289). Diria que a delicadeza do seu gesto também é uma pétala que voa, uma delicadeza que os insetos, com seus fiapos de pernas, ensinam.

Vocês sabem, tenho tentado ler a Clarice a partir desses dois romances, O lustre (1999) e A cidade sitiada (1998). E você, Maju, com o seu presente, me fez pensar uma coisa. É que Clarice aparece aqui na nossa conversa ocupada com os insetos, e claro que a barata de G.H. está ressoando pelos cantos. Mas é engraçado: vocês lembram que em A cidade sitiada a obsessão é por cavalos. Lucrécia Neves, a protagonista, e um cavalo compõem o mito de fundação da cidade de São Geraldo:

A moça e um cavalo representavam as duas raças de construtores que iniciaram a tradição da futura metrópole, ambos poderiam servir de armas para um seu escudo. […]: tudo o que ela via era alguma coisa. Nela e num cavalo a impressão era a expressão. Na verdade função bem tosca — ela indicava o nome íntimo das coisas, ela, os cavalos e alguns outros; e mais tarde as coisas seriam olhadas por esse nome. A realidade precisava da mocinha para ter uma forma (Lispector, 1998, p. 22-23).

Essas relações imediatas entre ver e ser, entre impressão e expressão, marcam A cidade sitiada. Essa “função bem tosca” de indicar o “nome íntimo das coisas”, que só a moça, os cavalos e “alguns outros” têm, garante que, mais tarde, essas coisas possam ser “olhadas por esse nome”, o que faz pensar que, na ausência dessa forma dada pelos olhos da moça e dos cavalos, o futuro não teria coisas a serem olhadas. Então, a moça e os cavalos têm uma função, ao mesmo tempo tosca e altamente vital, de dar existência à realidade e a certo futuro – vocês lembram que um dos títulos de A hora da estrela (1998) é Quanto ao futuro. Mas o que quero marcar mesmo é que parece haver dois campos que Clarice “ativa” com diferentes funções: um dos bichos maiores e outro dos insetos, bichos menores. Do primeiro participam os cavalos. Mais de uma vez o cavalo é uma espécie de imagem da liberdade, como nessa passagem, de “Seco estudo de cavalos”:

O que é cavalo? É liberdade tão indomável que se torna inútil aprisioná-lo para que sirva ao homem: deixa-se domesticar mas com um simples movimento de safanão rebelde de cabeça – sacudindo a crina como a uma solta cabeleira – mostra que sua íntima natureza é sempre bravia e límpida e livre (Lispector, 1999, p. 36).

Semelhante a essa natureza “bravia e límpida e livre”, não deixo de pensar em Joana, a que diz “eu posso tudo” (Lispector, 1998, p. 50), no livro que termina com aquele monólogo incrível, cuja última frase é: “de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo” (p. 202). A liberdade é questão central para Joana, como vocês sabem: “Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome” (Lispector, 1998, p. 70). Virgínia, de O lustre, também se deu uma liberdade maior do que pôde suportar, quando mergulha desmesuradamente no prado e, na “volta”, o narrador diz: “Intimamente fora ela quem ousara levar-se além do que poderia” (Lispector, 1999, p. 254).

Acho que acabei falando dos cavalos porque parecem ser uma contra-imagem da pequena esperança do nosso conto. Assim, o seu presente, Maju, ele ganha mais nitidez ainda, como se evocar a cavalgada daqueles corpos com “solta cabeleira” desse a justa medida de “uma delicadeza só”, como você escreveu, esse “corpo quase-não-corpo” (e o “quase” aqui deve ressoar ao infinito) da esperança, que é, entretanto, também “bem concreta e verde” (Lispector, 1998, p. 92).

Acho que também me lembrei dos cavalos porque você, Maju, escreveu a palavra “liberdade”, a propósito do parágrafo em que a esperança aparece hesitante, sem saída diante de dois quadros, sem saber que rumo tomar. Então tem essa parte que eu adorei: é que ela “custava a aprender” (Lispector, 1998, p. 92). O menino não demora em dizer, com a falta de pudor típica das crianças, que “ela é burrinha”. Resta à mãe, “um pouco trágica”, dizer que o sabia. Esse custar a aprender me parece fundamental para a esperança. O que é custar a aprender? É, de certa forma, demorar-se no não-saber-quanto-à-coisa. Também questão central para Clarice, não é? Lembro, talvez seja importante para o nosso artigo, do texto de Isabelle Stengers, chamado “A proposição cosmopolítica”, em que ela recorre à figura do idiota:

Mas o idiota de Deleuze, que ele tomou de empréstimo de Dostoïevski para dele fazer uma personagem conceitual, é aquele que sempre desacelera os outros, aquele que resiste à maneira como a situação é apresentada, cujas urgências mobilizam o pensamento ou a ação. E resiste não porque a apresentação seja falsa, não porque as urgências sejam mentirosas, mas porque “há algo de mais importante”. Que não lhe perguntemos o quê. O idiota não responderá, ele não discutirá. O idiota faz presença, ou, como diria Whitehead, ele coloca um interstício. Não se trata de interrogá-lo: “o que é mais importante?”. “Ele não sabe.” [ele é burrinho, diria o filho] Mas sua eficácia não está em desfazer os fundamentos dos saberes, em criar uma noite onde todos os gatos são pardos. Nós sabemos, existem saberes, mas o idiota pede que não nos precipitemos, que não nos sintamos autorizados a nos pensar detentores do significado daquilo que sabemos (Stengers, 2018, p. 444, grifos meus).

A fala do filho, que percebe a esperança em cima da cabeça da mãe, no início do conto, mostra essa perplexidade diante da leveza de uma coisa que “faz presença”. E porque a esperança é burrinha, e só por isso, é que causa esse efeito, de uma levíssima presença, uma presença que diz “não sei”. Acabei de ler a sua carta, Leyliane, e achei perfeita a sua leitura, digamos, da esperança como carta roubada. Estava justamente escrevendo dessa leveza do quase-não-corpo, de que Maju disse, e, lendo sua carta, lembrei do Benjamin, leitor de Poe, que escreve assim: “esconder significa: deixar rastro. Mas invisível. É a arte da mão leve” (Benjamin, 2013, p. 99) Levemente a esperança, Maju e Leyliane, ameaça quase não se deixar ver, uma arte de tornar-se invisível, com essa coisa que fascina muita gente, eu também, chamada mimetismo. Sabe quem também me deu de presente uma visão incrível dos insetos, Maju? O Benjamin, de novo, no ensaio sobre Proust, a que sempre retorno, numa das imagens mais interessantes do texto: o mimetismo do curioso. Diante da “vida vegetativa” das personagens proustianas, como que imóveis “na floresta de seu destino”, “determinados pelo sol do feudalismo”, Proust implanta pequenos insetos:

Suas cognições mais exatas e mais evidentes pousam sobre seus objetos como insetos pousam sobre folhas, flores e galhos, sem traírem nada de sua presença até que um salto, uma batida de asas, um pulo, revelam ao observador assustado que uma vida própria havia se insinuado num mundo estranho, de forma incalculável e imperceptível (Benjamin, 2012, p. 44).

Essa batida de asas que delata uma existência mínima, perturbando a lógica de uma realidade vegetativa, é, talvez, o presente da esperança, minhas queridas. Isso os cavalos não podem dar, porque a exuberância de seus corpos selvagens grita o nome “liberdade”. A esperança, burrinha, não sabe gritar nada, nem dizer nada, é essa levíssima presença que se oferece a nossos olhos como ponto cego, nós também cegos como ela, que parece “olhar” pelas antenas. Mas acho que estamos precisando das duas coisas: dos insetos e dos cavalos. O “e” não resolve nada, antes aumenta o problema. Dizer “e” não é um deus ex machina.

As antenas, vocês sabem, as finas antenas são tão fundamentais. Não sei se vocês têm essa impressão, mas eu diria que a gente, que escreve “sobre” literatura, a gente precisa também se guiar pelas antenas. O que, de certo modo, quer dizer se guiar por um sussurro. Amo com toda a força aquela passagem de A hora da estrela: “Os fatos são sonoros mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro que me impressiona” (Lispector, 1998, p. 24). Essa voz quase-sem-corpo.

Bem, enquanto esperava sua carta, Maju, dizendo algo sobre o conto “Uma esperança”, como comecei esta carta, “não sei” por que fui tentar acender uma lareira. Meus olhos depois voltaram ao conto e encontram lá: “Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando. Vigiando-a [a esperança] como se vigiava na Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não apagasse” (Lispector, 1998, p. 93). “Para que não apagasse”.

Entre os insetos da Maju, os cavalos que eu trouxe, a esperança como carta roubada da Leyliane, e um toque de Amanda que está por vir, talvez já possamos dizer que há, que há “o começo do fogo”. Esta carta, minhas queridas, é para que não se apague.

Um beijo em cada,

P.

 

3ª carta: Cartas – sopros de vida

Rio de Janeiro, 19 de abril de 2020.

Queridas Amanda e Maju e querido Patrick,

Pela terceira vez na minha vida, vejo-me envolvida com cartas.

A primeira, ainda criança, foi quando mudara de cidade e só tinha duas formas para me comunicar com a minha melhor amiga: via orelhão ou via carta. Encontrei-me nas cartas (será que já era um indício do que ocorreria 23 anos depois?!). A segunda vez, já nos anos de 200…, um amigo e eu trocamos cartas que guardavam expectativas e frustrações. E agora, a terceira vez, em que estou em um lugar de pesquisadora de cartas, ao escrever esta, penso em Clarice escrevendo as tantas correspondências de sua vida.

Não me lembro precisamente de quando começamos nosso grupo Leitores de Clarice, mas ouso dizer que o que fazemos agora – a escrita destas cartas – marcará nossas vidas como pesquisadores, como leitores e, quem sabe, como escritores. Só lamento não tê-los encontrado antes para que tivéssemos mais tempo de conversa, mais tempo de escrita, mais tempo de risadas e mais tempo de Clarice.

Mas é tempo de cartas e, curiosamente, sinto a mesma sensação que tive nas duas primeiras vezes nas quais endereçava cartas e também esperava por recebê-las. Uma sensação meio infantil de toda hora ir à caixa dos correios para ver se chegou coisa nova! De certa forma, é esperar, ansiosamente, para ver pousar uma esperança! A escrita dessas cartas, para além do que se escreve nelas, a carta em si, seu envio, seu endereçamento, aquela, à semelhança de “A carta roubada” de Poe e de Lacan, cujo conteúdo não sabido é um ato de esperança, porque, ao ser guardada em um envelope, revela que há algo, mesmo não sabido, muito importante.

Há muito tempo não vejo esperança – o inseto. Fico me perguntando se o bichinho está escondido ou extinto ou são meus olhos que não enxergam. Mais provável ser esta opção. Mas, esses dias, com vocês, li “Uma esperança” e, por mais que o texto, pelo menos em sua superfície, insista no plano denotativo das palavras, não consigo lê-las assim, só vejo essa esperança no sentido conotativo. Só consigo ver a cena em que a aranha se encaminha em direção à esperança de forma figurada, como uma alegoria do que vivemos: um bicho peçonhento e ameaçador querendo comer, engolir e destruir a esperança, pequeno inseto, bicho quase sem corpo, que parece se guiar por antenas e não por olhos.

Uma esperança. Clarice Lispector. 10/05/1969. Já li muitas e muitas vezes esse texto. Mas toda vez que o leio só me vem uma vontade: lê-lo de novo. E lê-lo em voz alta. E lê-lo para os outros. No texto de Clarice, a esperança vive e a aranha morre. Iludida talvez, quero dizer que as nossas cartas vivem e fazem viver a esperança.

Um abraço saudoso,

Leyliane.

 

4ª carta: Entre Clarice, Poe e as (nossas) cartas: em vias de encontrar a esperança

Rio de Janeiro, 23 de abril de 2020.

Queridos Maju, Leyliane e Patrick,

Patrick disse há pouco que a minha carta estava por vir. Hoje, dia 23 de abril, escrevo-lhes finalmente a resposta para as suas cartas. Diferentemente de vocês, meus queridos colegas, não foi com ímpeto que abri minha caixa de e-mails procurando suas cartas… Desculpem-me, mas, acreditem: o acontecimento não é para ser visto como uma espécie de negligência ou pouca curiosidade. É que infelizmente ainda para mim o momento é de poucas luzes e clarões, por mais que tenhamos escolhido “Uma esperança”, belíssimo e delicado texto de nossa autora preferida, para retornarmos aos estudos.

Sabe, certo dia estava com a minha família em casa – exatamente igual às demais que também estão podendo ficar em casa nessas quatro semanas contabilizadas pela Maju – e assim de repente notamos algo sobrevoar a cozinha. As luzes estavam apagadas e vimos uma sombra refletida na parede da sala, onde estávamos amontoados no sofá. A sombra mexeu-se tão rapidamente, tão fugaz e camuflada no escuro, que não tivemos tempo de olhar, sequer de entender com os olhos o que se passava. Só tivemos tempo para o susto, então ficamos assustados nos descolando finalmente do sofá. O deslocamento foi através do medo, pois: o que seria aquilo que invadiu a nossa casa?

Achei curioso Patrick e Leyliane evocarem o Poe quando era nele mesmo que pensava esses dias. Naquela noite, não pude não lembrar dos versos do misterioso e sombrio poeta a perguntar-se, no poema “O corvo”, como uma presença maligna, um maldito corvo, adentrara a sua casa e o dizia apenas a pior frase já dita. O “Nunca mais” (Poe, 2017, p. 4482) tem me atormentado desde então; é que não tenho uma lareira para acender nessas horas, Patrick. Nem para assim espantar o animal! Então me resta ficar em alguma escuridão confrontando-me ou tentando expulsar o corvo de dentro de casa. Minha irmã, no entanto, assegurou-nos de que era: um morcego, um morcego até grandinho. Eu ainda, por outro lado, tentava me convencer de que “É o vento, nada mais” (p. 4464).

Sei que o morcego não é inseto e não quero ser ingrata com o presente que Maju nos ofereceu de forma tão brilhante. Mas é que também preciso dizer que o morcego sobrevoa a escuridão e vem adentrar pela janela sem sequer pedir permissão. Não sei como conseguiu passar pelo minúsculo buraco aberto em nossa janela, pelas roupas estendidas no varal, e sem fazer um barulho sequer! E também não sei como sorrateiramente nos toma a luz: ficamos a tentar olhar o escuro para ver se encontrávamos alguma coisa, pois sabemos que nas luzes o morcego se esconde. Não o encontramos, mas os sussurros ainda estavam aqui, eu os sentia: “E o bordão de desespr’ança de seu canto cheio de ais / Era este ‘Nunca mais’” (Poe, 2017, p. 4511).

Então, com o ressoar desses tempos sombrios, fiquei espantada demais para abrir a caixa de e-mails imediatamente e ler o que me trazem, sentada no sofá há quatro semanas e alguns dias, inerte. Não só o susto me pega, como a eterna dificuldade de resposta; sou diferente de você, Leyliane… Ah, como gostaria de enviar as cartas que escrevo! Diversas vezes escrevi, mas não enviei o que escrevi… Mesmo que por vir, e por último, dessa vez endereçarei um pouco de mim. Um pouco de mim entrelaçado a Clarice, entrelaçado a nós, quatro pesquisadores de Clarice, e, também, quatro pessoas tentando dar luz a tempos sombrios através não só da literatura, mas da confidência e sobrevivência em cartas.

Mas ainda preciso confidenciar outro segredo meu: infelizmente ouço o canto rouco da desesperança de Poe; e ela se choca com o conto de Clarice que tomamos como mote e força para esses tempos. Por isso, mesmo tentando escrever sobre a esperança de Clarice, tanto a “clássica”, como a narradora diz, ou o inseto, possivelmente posso cair nas garras de um animal obscuro e invisível na noite. Nesse momento caótico em que vivemos, só achei ser possível escrever sobre o que sinto de verdade, até porque só consigo ler sentindo. Então leio “Uma esperança” sentindo ainda medo e desesperança, meus amigos. Ainda me sinto como Martim, personagem de A maçã no escuro, percorrendo a noite.

O romance inicia da seguinte forma: “Esta história começa numa noite de março tão escura quanto é a noite enquanto se dorme” (Lispector, 1999, p. 13). E pouco antes do personagem despertar, o narrador sinaliza: “Lentamente o escuro se pusera em movimento” (p. 14). É o escuro, portanto, que vai iniciando e guiando a narrativa, insistente em não permitir que adentre qualquer tipo de luminosidade, até mesmo no despertar do personagem. Em um outro momento antes de acordar, “o arrebatado grito de uma ave, cujas asas haviam sido espantadas na sua imobilidade” (p. 14), rompeu o silêncio do quarto onde Martim dormia. Penso em uma espécie de ave obscura que grita e sequer o tira da escuridão do sono ou da noite. E logo após a aparição da ave, você não vai acreditar, Maju, mas aparece um vagalume!

No entanto, cabisbaixa, leio: “Um ou outro vaga-lume tornava mais vasta a escuridão” ((Lispector, 1999, p. 15). Mas concordo com você, Maju, até porque lemos o texto do Didi-Huberman juntas para a seleção de mestrado, lembra? Aliás, a sua impressão do livro está aqui comigo. Você me deu de presente isso também. Concordo com você: gosto mais do vagalume do filósofo porque ele ilumina e se manifesta na noite, sem torná-la mais vasta. Ele permite que algo seja visto à noite. Talvez eu precisasse dele no momento em que o bicho obscuro adentrou a minha casa essas quatro semanas. Então talvez precisasse também ter lido as cartas há mais tempo para perceber que eu não estava tão fixada na escuridão como eu imaginava, diante da completa ausência de fôlego para aguentar os tempos sombrios ilesa.

Mas o que percebi na leitura das cartas é que seguir ferida não rompe a ideia de sobrevivência, né? Tudo pode ser uma espécie de cavalgar, pensando, também, nos cavalos trazidos por Patrick. Aliás, lembra da nossa marcha, amigo? Quando tentávamos traduzir o texto do Nancy (2020) sobre Água viva juntos e pairamos diversas vezes no título: “Ce que je suis en train de t’écrire, serait-ce derrière la pensée?”. O en train clariceano nos capturou e nos demoramos dias para traduzir. Na verdade, não batemos o martelo ainda, sequer voltamos a traduzi-lo na íntegra (vamos voltar?), mas fico de novo a pensar nas diversas traduções do en train: trem; marcha; movimento, movimentação; em ato de.

Lembrei-me também, Patrick, de quando refletíamos sobre um “prestes a” de um instante-já clariceano. A própria esperança-inseto no texto de Clarice caminhava lentamente sobre a parede, lembram? Talvez ela estivesse mesmo ferida, sobrevivendo, tentando seguir de alguma forma. Minha carta por vir pode ser isso também: algo que estou em vias de encontrar – a esperança de vocês e a de Clarice, acendendo-se lentamente como uma “pequena flama do dia” (Lispector, 2009, p. 29). Mas que não, não pode apagar-se ao final do dia, como aconteceu com a personagem Ana do conto “Amor”.

Percebo, então, que há outras ameaças maiores à esperança do que a aranha a escapar de sua teia invisível e tentar alcançar o inseto, queridos, como no texto da Clarice. A ameaça maior está, se posso dizer, naquilo que reside na vasta escuridão. Lembro-me de um fragmento de Didi-Huberman:

Há provavelmente motivos para ser pessimista a respeito dos vagalumes romanos […] Há sem dúvida motivos para ser pessimista, contudo é tão mais necessário abrir os olhos na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os vagalumes (Didi-Huberman, 2011, p.49).

Quando eu e minha família procuramos o suposto morcego na escuridão da noite, naquela cozinha apagada, penso agora escrevendo a vocês que não deveríamos procurar aquilo que reside em si mesmo; deveríamos, principalmente eu, ter voltado a procurar os vagalumes em vez de ouvir os sussurros desesperançosos da noite… Devemos lembrar, sim, queridos amigos, que, como a narrativa de Clarice nos diz, a esperança de corpo e alma também sobrevive apesar de. Temos de conseguir reconhecê-la como uma pequena luz que resiste à escuridão.

Infelizmente os vagalumes, voltando a Didi-Huberman, estão sempre em vias de desaparecer, como uma pequena flama do dia, como pode ser a da sua lareira, Patrick. Mesmo em vias de desaparecer, de desistir, pouco a pouco a cavalgada segue, não é? A esperança-inseto do texto de Clarice continuou lentamente, mesmo que houvesse o “certo cansaço que havia na minha voz” (Lispector, 1998, p. 93), diz a narradora. Apesar do cansaço, ela diria sucinta para a empregada facilitar o caminho da esperança, ou seja, impedir que haja aranhas, pois elas colocariam em risco a vida do inseto. O apesar de é a sobrevivência e uma certa possibilidade de continuar.

Queria dizer-lhes, também, que, apesar de tudo, as pequenas luzes podem ser correspondências belas em meio a uma pandemia que nos assola há quatro semanas. Hoje, enviando-lhes esta carta, percebo que a minha esperança, enfim, tomou corpo e está aqui, inquieta. Algo furtivo fez com que eu abrisse os olhos; pode ter sido Clarice através de vocês, vocês através de Clarice, ou a literatura em carta e vocês na carta. Não sei dizer. Mas, como a narradora de “Uma esperança”, resolvi não matar a esperança que surgiu de repente, mesmo que em alguns dias haja cansaço na minha voz enquanto fico sentada há semanas no sofá.

Dessa vez enviarei a carta aos amigos como você outrora fizera, Leyliane. Esse endereçar, por sua vez, é uma hora de surpresa… Iniciei falando de medo e desesperança para, de repente, ter avistado um inseto descrito e trazido por Maju. E através de um en train vou dando corpo a uma esperança que quer pousar em mim também, querendo me tocar com a ponta de suas anteninhas… Mas ela me toca lá onde não posso tocá-la de volta, nem com a ponta dos meus dedos. Vou nos fazer o favor de não matar a esperança, principalmente no fim deste correio clariceano.

Pois esta carta é, acima de tudo, por mais oblíqua que tenha sido, uma carta de agradecimento. Obrigada por terem aberto os meus olhos na noite, queridos sobreviventes. Estou sentindo-a bem aqui, como aconteceu ontem à noite com você, Patrick, a nos enviar uma foto de uma esperança em sua parede. Senti bem de perto as suas anteninhas e a noite tornou-se menos vasta. Obrigada.

Beijo-os com carinho,

Amanda.


* Leyliane Gomes e Patrick Gert Bange são doutorandos do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura – PPGCL/UFRJ; Amanda Dib e Maria Júlia Santana são mestrandas do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura – PPGCL/UFRJ.

 

Referências

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______. A imagem de Proust. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 37-50.

BLANC, Aldir; BOSCO, João; REGINA, Elis. “O bêbado e a equilibrista”. In: REGINA, Elis. Essa mulher. LP. São Paulo: WEA, 1979, 2ª faixa.

CAMUS, Albert. A peste [recurso eletrônico]. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2019.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vagalumes. Trad. Vera Casa Nova, Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

LISPECTOR, Clarice. A cidade sitiada. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

______. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

______. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

______. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

______. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

______. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.

______. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

______. Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.

______. O lustre. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

______. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

______. Para não esquecer: edição comemorativa ampliada com posfácio. Rio de Janeiro: Rocco, 2020.

______. Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar 2003.

NANCY, Jean-Luc. Ce que je suis en train de t’écrire, serait-ce derrière la pensée? (dialogue avec Água viva de Clarice Lispector). Inédito. 2020.

PENNA, João Camillo. O nu de Clarice Lispector, Alea [online], vol.12, n.1, p. 68-96, junho 2010.

POE, Edgar Allan. O corvo [recurso eletrônico]. Trad: Fernando Pessoa. In: Contos de terror, de mistério e de morte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.

STENGERS, Isabelle. A proposição cosmopolítica, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 69, p. 442-464, abr. 2018.

 

Notas

[1] E aqui cabem as palavras de Didi-Huberman (2014, p. 65), que, criticando o diagnóstico apocalíptico do cineasta Pier Pasolini sobre desaparecimento dos vagalumes, diz: “o que desapareceu nele [Pasolini] foi a capacidade de ver – tanto à noite quanto sob a luz feroz dos projetores – aquilo que não havia desaparecido completamente e, sobretudo, aquilo que aparece apesar de tudo”. O vagalume, assim como a esperança, é o inseto noturno que aparece apesar de e, se não conseguimos enxergá-lo, não é porque ele não exista mais, mas sim porque perdemos a capacidade de vê-lo.

[2] Um pouco nesse sentido, João Camillo Penna, no artigo “O nu de Clarice Lispector”, defende o termo “estado de graça”, que “não se trata de uma experiência metafísica, trata-se tão somente da existência, da dádiva do corpo, quando se recebe o dom de ‘existir materialmente’” (Penna, 2010, p. 81), no lugar do termo religioso “epifania”, atribuído a Clarice por Benedito Nunes. Isso porque não há um mundo metafísico, epifânico nos textos de Clarice, mas sim um estado de graça que se mantém dentro do material e do corpo. As experiências clariceanas estão concentradas sempre no material e nessa magia de existir e, portanto, quando a autora fala de “alma”, devemos entender como uma alma da mesma natureza do corpo.

[3] Declarar as mortes das sobrevivências “não seria abandonar-se à inferência desgastada que vai de uma frase como o desejo não é mais como era antes à outra como não há mais desejo?” (Didi-Huberman, 2014, p. 64).