Este texto, escrito a muitas mãos, foi uma maneira que encontramos de estar juntas em tempos de isolamento social devido à pandemia da Covid-19 e de nos lançarmos para fora de nossas casas e quadrados digitais à procura de novas conexões. Começamos a nos reunir via plataforma digital nos encontros da Quarentena Feminista, uma das ações do Laboratório de Teorias e Práticas Feministas do PACC da UFRJ. Temos nos encontrado quinzenalmente, desde o dia 8 de abril de 2020, começando como um grupo de leitura e debate de textos feministas. No início, selecionamos textos a respeito dos impactos da pandemia na vida das mulheres, mas, após o quinto encontro, quando percebemos que a situação se prolongaria por mais tempo do que imaginávamos inicialmente, decidimos tentar vislumbrar coletivamente um futuro. Escrever coletivamente foi uma forma de dar destino a uma angústia que ia crescendo entre nós, através de uma sensação de dissociação muito grande entre teoria e prática, radicalizada pelo isolamento.
No texto que segue, experimentamos modos de entrelaçar as nossas leituras com as vivências individuais e coletivas pelas quais temos passado nesses tempos de pandemia, lembrando de uma entrevista da Donna Haraway que debatemos, na qual ela pensa na relação entre teoria e prática, desde o ponto de vista da universidade:
Nos tornamos grandes graças às conexões. Acredito que minhas ideias e, tanto quanto possível, minha vida tratam da criação de conexões. Uma pessoa tem uma vida só, por isso vai fazer algumas coisas bem e outras mal. Mas ficamos com os problemas e tentamos deixar nossas ideias serem, as quais são elas mesmas práticas. As ideias não estão aqui e as práticas acolá, a criação de conhecimento é uma prática (Haraway, 2020).[1]
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Nunca quis tanto estar junta com outras mulheres como agora, quando devo ficar isolada. Minha mãe costumava passar na minha casa sem me avisar, sempre com alguma desculpa como: preciso fazer xixi. Uma vez sugeri que ela fizesse xixi na padaria que fica embaixo do meu prédio, ao que ficou alguns dias sem falar comigo. Quando começou a quarentena me perguntei quando minha mãe tocaria a campainha de novo, e sem saber a resposta chorei embaixo das cobertas, até que meu filho de 7 anos me consolou. Talvez a sua resiliência viesse do fato de que estava com a mãe dele. Todas as conexões, familiares, de amizade, profissionais, até as pessoas de que não gosto me fazem falta. Sou menos individualista de que pensava.
Já em quarentena, meu lugar preferido da casa virou a cozinha. E como quase todo mundo que conheço comecei a cozinhar compulsivamente. Bolos, brownies, canjicas, feijão, quanto mais enrolada melhor a receita. Depois aquele bolo enorme na minha frente, a ser comido por apenas três. Cozinhar parece mais fácil nos programas de televisão. Demora sempre muito mais tempo do que sugerem as receitas e resta aquela pilha enorme de louça, tomando muitas horas por dia. Depois, quando vou ler o texto de Silvia Federici para o grupo amanhã, meus olhos estão fechando e minha cabeça doendo. Lembro de Platão e a divisão do trabalho na República. E da raiva aos poetas que fingiam fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Será possível cozinhar e produzir conhecimento? Uma única pessoa tem tempo para isso? Como sair das armadilhas infernais desse mundo patriarcal-capitalista-racista e suas perversas divisões do trabalho que são também divisões daquilo que se entende por gente e seu valor?
Enquanto isso tanta gente morrendo sem dinheiro para comprar comida. Tanta gente morrendo à minha volta. E aqui nesta cozinha com cheiro de bolo e café eu me revolto pensando em como, quando e por que esses milicos com boné dos EUA e suas garrafas pet de coca-cola e pistolas Glocks parecem ao povo brasileiro uma solução para seus problemas. Talvez estejamos todos exaustos, tentando dobrar o tempo, tentando sobreviver. Talvez quiséssemos mesmo morrer e matar os outros. Não sei lidar com essa hipótese. Não sozinha. Que alguém invada esse textinho e leve ele para outro lugar. Alguém vem? Ou afundo a minha cara no bolo?
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Escrevo sentada na sala da casa da minha irmã do meio. Aqui nesse cruzamento de latitude e longitude que chamo de minha cidade. Nessa rua, os meios de transporte são tratores e motos estalando os canos de descarga. Ainda na rua, um quebra-molas digno de cidade do interior, uma barreira física para evitar morte de pedestres porque a rua não tem calçada. Os carros que passam desavisados, turistas desta rua, socam o fundo da lataria e sempre penso: esse agora deu PT. Enquanto escrevo, minha irmã passa a limpo sua série da academia, são dois movimentos, o corpo e a mente. Penso no signo de gêmeos, Castor e Pollux, e penso isso porque nestes últimos dias ensinei ao meu sobrinho como saber o que são estrelas ou planetas no céu. Ele ficou maravilhado. Coisa de céu do interior.
Escrevo isso depois de dias nesta casa em isolamento cuidando de um vírus fantasma. Minha irmã testou positivo para Covid-19, mas era falso o resultado. Enquanto o exame com resultado negativo não vinha, aqui eu vivia a extrema prática dos trabalhos de cuidado e relações entre mulheres. Eu não sou mãe e frequentemente vejo o olhar cansado das minhas amigas que são. Nesta pandemia, os olhares parecem ainda mais cansados e afetuosos. Estar com as mães se faz cada dia mais necessário e me entristece que eu não possa pegar um ônibus e ir estar com as mães que me cercam, como fiz agora com minha irmã.
Em dado momento desse isolamento, pensei em como ter uma outra bunda suja de merda pra limpar que não a nossa organiza as prioridades. A interrupção constante e o nosso novo nome. Aqui, agora me chamo Tistela. Mas já faz três dias que o isolamento acabou e Vítor, meu sobrinho, pode ir para a casa do pai. Acontece que hoje, dormindo na cama dele, sonhei que ele estava em perigo, que me dizia que o primo tinha brigado por causa de um dinossauro, eu carregava ele no colo para uma parte isolada da casa em que estávamos no sonho, ele cabia no meu colo, mesmo sendo um menino grande. Rio comigo mesma e percebo que eles sempre caberão no nosso colo, pequenos ou grandes. Todos os dias, antes de dormir, ele me diz: Tistela, você promete que me protege? Como dizer não a essa promessa, mesmo sendo eu avessa a elas? Hoje, dormindo sem ele na cama de cima, sonhei que cumpria a promessa. É a prática.
Para viver essa semana de vírus fantasma, precisei deixar minhas leituras de lado. Eu estava lendo um livro chamado Vikinga Bonsái, a história de uma criança e sua mãe, o menino Pequeña Montaña e a mulher Vikinga Bonsái ou Bombai. Logo no primeiro capítulo, Vikinga sofre um mal súbito diante de seu filho e suas amigas. Pequeña Montaña fica órfão, o pai, Maridito, está sempre viajando, claro, não atende telefone, o menino não tem pai, como tantos Pequeñas Montañas por aí. As amigas de Vikinga se organizam para cuidar do menino e assim se constitui uma nova comunidade de afeto comandada pelas crianças. Estar lendo este livro quando a notícia do positivo chegou aos meus ouvidos foi uma piada muito sem graça. Interrompi a leitura, virei no mesmo instante todas as amigas de Vikinga cuidando de mi Pequeña Montaña. Enquanto esquentava o leite pontualmente às 21h30, pensei tantas vezes nas minhas companheiras em isolamento com seus filhos, cumprindo o que falamos tantas vezes na teoria, os trabalhos de cuidado. E, agora, enquanto escrevo, sem nenhuma surpresa percebo: foram elas as que mais perguntaram por mim. É a prática. Prática. Prática. Prática.
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Quando sentei pra escrever este texto estava ainda sob o impacto de uma leitura que fiz da Lélia Gonzalez. Havia um trecho em que ela subvertia a nossa percepção tradicional de consciência dizendo que seria o lugar do “desconhecimento” porque ali o discurso ideológico se faz presente, e a memória, por outro lado, seria o “não saber que conhece”, possível lugar da emergência da verdade. Pensar por meio dessa outra lógica, menos pragmática, tem sido uma estratégia importante pra encarar os dias. Dias difíceis, duros, em que, se não bastasse a pandemia que nos angustia, ainda há um desgoverno que nos desespera. Vejo meus dois filhos gêmeos em atividades completamente sem sentido por demanda de uma escola particular que quer fazer jus às mensalidades. Meu mais velho sem aula… Estamos todos em casa, privilégio de uma parcela tão pequena da população e isso também dói tanto. A consciência me chama à realidade a todo momento, as notícias de violência contra a mulher, contra os indígenas, o racismo… Por diversas vezes, perco o foco, o sono, a paciência, a libido, as palavras… Fiquei três meses sem tocar e sem ver meus pais, que são meus vizinhos, porque os dois são idosos e com doenças crônicas. Ainda não os toquei, mas fui visitá-los com todo o cuidado do mundo e fiquei melhor. Revisito a memória como antídoto pra esses dias. Já fomos tão felizes, tantas histórias, tantas conversas e festas… Meu mundo particular se expande para a memória pública e me lembro de negros, mulheres, artistas, intelectuais, trabalhadores que fizeram tanto para que estivéssemos em outro estado de coisas… Não estamos partindo do zero, mas não podemos deixar de avançar. É a memória que alimenta minhas esperanças, que me inspira a continuar. São os rostos dos meus filhos que exigem que continuemos pensando, lutando. São os rostos de outros que poderiam ser meus filhos e que estão agora em total vulnerabilidade… Este texto cheio de reticências dá o tom do momento que vivo, de suspensões, de desejos, de questões…. As questões nos mantêm humanizadas e vivas. Se julgássemos normalidade, já estaríamos mortas. Muito bom compartilhar vida e memórias com vocês! Muito bom estar viva com vocês!
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Ando dormindo mal na quarentena, mais do que o “normal”. Tenho tido sonhos conturbados, embora nem sempre me lembre deles quando acordo. Fica uma sensação de perigo, são cenários meio apocalípticos, vivo todas as aventuras que a situação atual impede e acordo exausta. Troquei os dias pela noite e só sei o que é acordar com despertador nos dias que preciso ir à feira. Os sons da madrugada são outros. Mais de uma vez ouvi o rolezinho de motos e levei um susto. Como se precisasse de mais alguma coisa pra criar pânico durante esses tempos de pandemia. Mas é um bom horário para ler e escrever, e tenho me cobrado avançar no texto de qualificação. São noites preenchidas por Francesca e Virginia e outras leituras. Sorrio com ironia e penso em Virginia quando leio: “E da raiva aos poetas que fingiam fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Será possível cozinhar e produzir conhecimento? Uma única pessoa tem tempo para isso?”. Relembro o ensaio Três Guinéus no qual ela diz que as mulheres sempre pensaram em meio aos afazeres cotidianos, “enquanto mexiam a panela, enquanto balançavam o berço”. Tudo tem sido mais cansativo na quarentena, e o Brasil não ajuda, e nem consigo imaginar como está sendo pra quem é mãe. Mas se for pra escrever, produzir conhecimento, espero que seja assim, misturado com a casa, com a exaustão do isolamento e em conversa.
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Moro em um bairro que só tem uma rua de acesso e neste momento ouço o latido dos cachorros. Morar no final da rua tem lá suas vantagens…
Hoje o dia foi extremamente puxado, porque foram várias mensagens de desabafo, pranto, confissões. Neste final do dia, eu estou recordando das minhas amigas, elas que sempre me escrevem, mas ultimamente não estão suportando o fardo da vida: A luta contra o Tumor! A falta de grana! Depressão! Ansiedade! E outras coisas mais…
Vou repetir o que a Jeni sempre me diz: “Eu odeio o tumor!” Eu odeio o tumor em criança! Vou seguir tentando entender, tentando achar uma explicação. Quando teremos a cura para o tumor da irmã da Jeni? Ainda continuo fazendo pergunta, mas não obtenho respostas.
Uma vez, eu estava conversando com uma amiga e ela me disse: “Ana, eu queria ser forte igual a você!” Doce ilusão, querida amiga, pois eu não sou forte, mas sou resistente! Aproveito para olhar o celular para ver se tem alguma mensagem da Jeni, já que desde as 15 horas ela não me responde. Nada. Estou preocupada! Certamente, irei dormir pensando em vocês, em mim e na quarentena que afeta a minha mente.
Penso nas pessoas que sofrem, nas pessoas que estão nos hospitais, presídios, na margem, nas pessoas que estão com fome, com sede, sem teto, nas mulheres que sofrem agressão, rejeição, nas mulheres que são traídas e que não conseguem dar um basta.
Pausa: eu sinto raiva do Bolsonaro, do Witzel, do Rafael Diniz e de toda a corja q nosso dinheiro. Sinto raiva!
Sinto-me paralisada, queria poder fazer mais! Eu queria poder dar colo, abraço e dizer a vocês que tudo ficará bem, meninas! A quarentena me poda! Volto a pensar na Jeni, na Dany, na Lu. Respiro…
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Quarentena, este período me fez sentir o quanto sou privilegiada, mais do que eu já imaginava, talvez seria isso: imaginação, não ter que sair e enfrentar ônibus cheio, não ter que chorar por perder o emprego, não ter preocupação de que o aluguel está atrasado, tenho casa própria, ainda moro com meus pais, e estamos juntos nesta quarentena, tenho pais, mãe e pai casados, sou registrada pelo meu pai, fico pensando em quantas pessoas não são registradas por seus pais, e ainda fica a briga de legalizar ou não o aborto, enquanto muitos homens abortam os seus filhos, o quanto nós, mulheres, não somos donas do nosso corpo, o quanto que temos que nos proteger de doenças, gravidez, saúde, pessoa, o quanto temos que vender nosso corpo de forma gratuita. Ouvindo uma resenha do livro A mulher de trinta anos, de Honoré de Balzac, primeiramente devemos pensar que foi um homem que escreveu sobre as mulheres, mas enfim, para a época do livro, temos que entender que ele era bem progressista, mas o que mais me chamou a atenção foi a fala de que as mulheres que estão num estado comum do casamento monogâmico heterossexual vendem as suas vidas sem ter vontade e sem receber nada para isso, e ainda falam mal das mulheres que se prostituem, ou seja, acho que esse modelo ainda não passou.
Mas eu não quero ser parte desse modelo, não me enquadro, mas ainda me sinto deslocada, e essa quarentena também me trouxe isso, meu pai tem suas falhas ainda machistas, mas não deixamos de puxar a orelha dele, não deixamos passar as atitudes, alertamos e refletimos juntos. Minha mãe ainda carrega a carga da cuidadora do lar, e além da conversa busco assumir tarefas em casa para dividir esse peso, meu pai auxilia muitas vezes, mas acho que ainda é pouco, pois ele não tem o trabalho de pensar no que tem para fazer.
Mas ainda assim esses pensamentos são de uma pessoa privilegiada, que se encontra na casa dos pais por comodismo, para juntar um dinheiro, para não ter tantos problemas do cotidiano para pensar, para poder me envolver nos projetos profissionais, esse é um relato de um privilégio, e essa pandemia revelou o quão mais privilegiada eu sou do que imaginava.
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Ser a número oito deste texto coletivo me faz pensar no infinito. Ou no looping – o que dá no mesmo, na prática. O ano de dois mil e vinte nos inseriu em um looping infinito e nauseante. Reverberam muitas desesperanças e dores. Pensar sobre isso agora, já no segundo semestre, me remete ao início de tudo, às esperanças cultivadas para este ano, que seria-teria-sido melhor em vários sentidos.
No final de dois e dezenove, desenhei uma árvore em meu diário. A árvore era fruto (ou frutífera?) das últimas sessões de análise nas quais os temas que me atravessavam eram as raízes e as asas. Eu falava com minha terapeuta sobre a minha sensação de não ter raízes profundas fincadas em nenhum lugar. Eu sou famosa pelos abandonos. Já abandonei meu feudo familiar. (Vim de um bairro da periferia da Baixada Fluminense cuja população é formada, em pelo menos quatro quarteirões, por componentes da minha família. Vivi, por muitos anos, dentro de um feudo e com todas as implicações que isso pode provocar.) Já abandonei um casamento. Já abandonei empregos. Já abandonei casas. Já abandonei mestrado. Já abandonei pessoas. Esse conjunto de abandonos me fez mais folha esvoaçante de outono do que árvore. A árvore, sempre fixa, vê ambientes serem transformados, dá frutos (quando fértil), faz sombra, mas jamais muda de lugar (porque isso pode, inclusive, custar-lhe a vida). A árvore é infinita. Por isso, acho que cresci com medo de me tornar árvore (como minha mãe, minhas avós e minhas tias, por exemplo, que jamais ousaram mudar de lugar).
Hoje em dia, adulta, voltei a pensar em árvores e em raízes. Começou a cansar-me o processo de mudanças constantes e infinitas, e passei a pensar em achar um lugar só meu, onde eu pudesse fincar raízes. Passei o réveillon pensando sobre isso. Escrevi no meu diário. E a questão se instalou: quero me tornar árvore ou quero permanecer folha esvoaçante? A pandemia, por me obrigar ao isolamento, à raiz fixa e imóvel, me trouxe uma resposta: não quero nem ser árvore fixa nem folha seca transitória; quero ser passarinha, que escolhe suas árvores e pousa nas que lhe parecem mais bonitas, seguras e frutíferas, faz ninhos, mas pode continuar seus voos no decorrer das estações.
Unir-me a este grupo é como pousar em uma árvore bonita, segura e frutífera. Assim, entre mulheres, em meio a nossas discussões, observando suas luzes, sinto-me em casa, mesmo sendo passarinha. Já não me lembro dos planos de dois mil e dezenove para dois mil e vinte. Eles não importam tanto. O looping me trouxe uma árvore frutífera. De alguma forma, quando estava desenhando aquela árvore em meu diário, eu evocava vocês, e esses encontros, e essa sinergia que nos une.
Desde o início eu estava errada. O infinito não é permanecer enraizado no mesmo espaço para sempre. A cada estação de nossos voos, vivemos infinitos, que podem ser frutíferos ou não, como as estações do ano. Dois mil e vinte bagunçou as estações, mas frutificou encontros, ideias e saberes. Que no pós-pandemia sejamos cada vez mais árvores frutíferas e passarinhas, criando, pousando e voando juntas. Afinal, “a criação é ilimitada / excede o tempo e o meio”.
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Não há um descanso. Todo dia um novo bombardeio. Apenas pisco e mais um direito me é expropriado. Respirar em um mundo caótico é árduo. Respirar é um ato tão vital que serve de marcador para definir se você está vivo ou não. A respiração de um corpo feminino como o meu, e o seu, possuem alguns marcadores também específicos. Há engendramentos muito bem articulados que nos sufocam para que sejamos apenas meras operárias. Operárias que geram outros operários. Ou melhor, não só gerar, mas também maternar aqueles que pariu e os que não pariu para que tudo funcione conforme uma certa lógica.
Quero explorar aqui não apenas o ato biológico da respiração. Quero te levar a ver que meu pensamento também busca respirar. A forma pela qual eu tento fazer isso? Os meus dedos teclam com alguma velocidade as surradas teclas de um equipamento antigo. É no seu percorrer que a mente busca fazer a tão vital troca de gases. Inspira e expira. Ou talvez, perca os dois começos “ins” e “ex” para ser apenas “pira” e com isso ganhar uma ambiguidade de sentidos. Seria “pira” no sentido de surto mental ou “pira”, de fogueira onde se queimam bruxas e doentes mentais? Em meio ao caos pandêmico, eu afirmo: “Não os separe”. A ambiguidade não é inocente.
No dia 5 de maio Flávia Andrade Fialho, até então coordenadora da secretaria de saúde da mulher no Ministério da Saúde, foi retalhada de seu cargo. O motivo? Fez o seu trabalho. Ela emitiu uma nota técnica na qual abordava as formas de contracepção de emergência, como o DIU, a pílula do dia seguinte e os procedimentos de aborto legais no território nacional. Flávia estava a garantir a mulheres brasileiras acesso à informação sobre suas escolhas de não maternidade no momento. Momento esse que a pandemia faz inflar as piras. Piras-fogueiras abastecidas de violência doméstica, violência sexual, desigualdade social, uma não distribuição equitativa do cuidado etc. Piras-surtos que estão sendo alimentadas pelo esgotamento mental, expropriação do direito ao trabalho e ao seu próprio corpo.
Ao escrever e participar de um grupo que pensa nesses marcadores sufocantes do feminino, eu respiro. Nem que seja um filete de ar que me lembre que não estou louca e que sou uma das netas das bruxas que não foram queimadas. Reexisto isto ao respirar junto a outras. Flávia não está só. Eu não estou só e vocês também não estão.
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Na minha primeira conversa no laboratório nós comentamos sobre um trecho de Calibã e a Bruxa, da Silvia Federici, no qual a autora diz que o corpo da mulher é terreno de exploração e de resistência. Não por acaso, o cuidado também é um campo onde resistir e explorar se fazem presentes. Meu olhar tem se voltado intensamente para a dimensão do cuidado como uma forma de luta. Explico.
A quarentena começou antes pra mim. Em fevereiro, eu tinha um mês pra fechar o texto da minha dissertação e cumprir o prazo do programa. Não pulei carnaval, já fazia algum tempo que não encontrava meus amigos. Meu último momento misturada com o mundo foi o trabalho de campo numa ocupação de imigrantes venezuelanos/as criollos/as e indígenas em Roraima.
Na ocupação, homens e mulheres experienciam uma vida em conjunto, onde o cuidado é fundamental (quem cuida das crianças? quem cuida dos idosos? como fazer funcionar?). Nesse formato, as fronteiras entre o público-privado, masculino-feminino se confundem, tornando essas preocupações um compromisso de todxs!
Dentro desse contexto, não surpreende que as mulheres sejam as principais lideranças dentro ocupação e aquelas que a mantêm de pé, como uma vez me disse a líder criolla. Entretanto, entre as festas, o café da tarde no quintal, a construção da escolinha infantil etc., novas relações de afeto vão se construindo e se fortalecendo, provocando perturbações potentes. Tão potentes a ponto de alguns meses eu ainda ser atravessadas por elas.
Nesses tempos quarentênicos é justamente o cuidado comigo e com xs outrxs que tem sido um respiro pra mim. Tenho ressignificado minhas relações familiares; passo mais tempo com meus gatinhos e com meu companheiro; faxino a casa ao som de Maria Bethânia; acendo velas para os Orixás; leio livros; pego sol deitada no chão da sala; pratico yoga; faço, aos poucos, as pazes com a cozinha.
Na atual pedagogia da crueldade, combater os afetos tristes me parece uma forma arrojada de luta e de nos fazer continuar dançando mesmo que entre paredes.
11
(escritos de 2020),
Pulo a parte do convite e finjo que já conheço vocês todas. Uma e outra ali, conheço mesmo! Glaucia… Marlí… e são deliciosos reencontros. É como se me olhasse no espelho ou caleidoscópio (melhor essa imagem) e me visse enfim. Eu sou essa, fragmentada, fluida, porosa, atravessada. Sujeita, enfim. Que finge ar de desconexão entre passado, presente e futuro, que segue o rio pela margem (como é bom ser marginal!), que quando está cansada senta na grama, escuta o barulhinho das águas roçando nos “obstáculos”, que resiliente que só (a água e depois eu) seguem seu caminho. É imparável e imprevisível. Tal qual vida que insiste. E martelando lá no fundo… “eu odeio os indiferentes, eu odeio os indiferentes…” (escritos de 1917). Porque também sou revolução e não permito mais que me atropelem. Perscrutar. Pode desembocar numa queda de véu de noiva… a ilusão da liberdade do voo e da intensidade da queda livre. Foi um rio que passou em minha vida… Pode depois dormir um sono profundo naquelas águas tão macias e doces… E martelando lá no fundo… “homens que não pensam são como sonâmbulos, mulheres que não pensam são como sonâmbulas, pessoas que não pensam são como sonâmbulas…” (escritos de 1995). E como palavrinhas mágicas, “minhas Iarinhas andam cantando suas ladainhas para mim”… vou retornando à superfície. O Ponto Zero da Revolução. Cenário de pós-náufrago. Partes de um bando de coisas. Até ossos! Tudo ali, flutuando. Em suspenso objetos abjetos. Não precisa nada além de respirar pelos próprios pulmões. Sentir pelo próprio coração. Olhar pelos próprios olhos, e martelando lá no fundo… “que tipo de ciência escrita acadêmica queremos construir?”.
PS.: Fazer pelas próprias mãos, depois de, não sem protestos, é claro, chiar que a bateria do celular acabou e não pude escutá-las até o final… Faz parte. Sinal que estamos juntas. Lembrei de uma amiga agora, professora escritora, pesquisadora. Posso convidá-la para nossas discussões científicas?
Niterói, 15 de julho.
12
O mundo não pode parar. O tempo não para, é dragão que devora a todos, sem exceção. Tempo é dinheiro. A vida cada vez menos vivida e mais sobrevivida. A lógica do capitalismo. Mundo que gira maquinalmente.
De repente, a roda incessante que empurra a vida da gente para um final que não avisa quando e como vai chegar, emperra. Uma vogal de uma palavra é trocada, empurra vira emperra, e o mundo para da noite para o dia. O tempo que cada um pode ficar em casa passa a valer mais do que qualquer carro importado na garagem, qualquer cobertura de frente para o mar, qualquer roupa de grife no armário, qualquer joia no cofre. Territórios existenciais criados pelo senso-capitalístico implodem deixando à mostra as tripas do espaço doméstico: cresce a violência contra mulheres e crianças, uma carga ainda maior de trabalho recai sobre as mães, que passam a cuidar dos filhos em tempo integral, tendo que se responsabilizar inclusive pelo ensino escolar, as tarefas de cuidado com a casa e com a alimentação aumentam, colocando em evidência a exploração do trabalho feminino não remunerado, praticada desde sempre pelo capitalismo.
A pandemia veio esfregar na cara do mundo que a única coisa que realmente não pode parar é o cuidado de cada um consigo e com os outros. Se proteger é proteger o outro. Proteger o outro é se proteger. Estamos todos imbricados numa imensa teia de relações e afetos mútuos.
Por sorte minha, num desses emaranhamentos de que a vida é feita, me conectei com o LabFeminista e recebi ar em forma de trocas de passagens da pandemia. Ganhei o direito de respirar num mundo onde há superfaturamento na compra de respiradores pelo governo.
Então, nos chega um texto no qual María Galindo afirma que “não poder respirar é aquilo a que nos condena o coronavírus, mais que pela doença, pela reclusão, pela proibição e pela obediência”. E propõe: “que a morte não nos pegue encolhidas de medo obedecendo a ordens idiotas, que nos pegue nos beijando, que nos pegue fazendo amor e não guerra. Que nos pegue cantando e nos abraçando, porque o contágio é iminente”.
Talvez o contágio seja mesmo iminente. Mas escolhi me contagiar de outra forma. E percebi isso, no encontro do LabFeminista do dia 15 de julho, quando escutei mulheres lendo textos que falavam de si, ao mesmo tempo que falavam de mim. A maioria delas, mulheres que eu nunca encontrei pessoalmente. Como elas sabem tanto de mim? – me perguntei várias vezes. Estou apostando que é porque juntas resolvemos que nossa desobediência é acreditar que “a criação de conhecimento é uma prática”.
Assim, volto a Donna Haraway e ao início deste texto coletivo.
Inverno de 2020
* Anna Lee, Ana Paula Almeida, Camila Fabre, Estela Rosa, Glaucia Secco, Lays Gabrielle Neves Moreno, Jucilene Braga Alves Mauricio, Luciana Albuquerque Soares, Marcela Filizola, Mariana Castro e Mariana Patrício fazem parte do Laboratório de Teorias e Práticas Feministas do PACC/UFRJ.
Nota
[1] Haraway, Donna. Entrevista feita por Andrea Ancira, publicada originalmente revista Terremoto e posteriormente no jornal Página 12 em fevereiro de 2020. Tradução Estela Rosa e Luciana di Leone. Disponível em: https://terremoto.mx/donna-haraway-y-andrea-ancira-en-conversacion-solidaridad-multi-especie-y-justicia-reproductiva/.