Minhas mãos agarravam os remos obstinadamente, já no limite do suportável, a madeira molhada deslizando indócil por entre dedos e palmas. Braços, tronco, pernas, exaustos da missão de escapar, em ziguezague, de redemoinhos e águas traiçoeiras, lutavam, desesperados, para superar o contrafluxo vigoroso de um rio caudaloso e desconhecido. Jatos de cinza-chumbo, vermelho-sangue, amarelo-ouro riscavam a abóbada de um céu oco e sombrio, impregnado de nuvens carregadas, escalonadas em revoluteio, prontas para explodir em tempestade a qualquer momento. Nas margens, uma floresta cerrada multiplicava os verdes, justapunha formas irregulares, debruçando-se, sinistra, sobre as águas barrentas em convulsão. Eu remava, remava, não parava, insano, sozinho, remava tentando equilibrar, na inconstância voraz de um rio selvagem, um frágil barco salva-vidas de madeira pintada na cor laranja-fogo, o casco avariado, um líquido viscoso dançando embriagado pelo piso sem isolamento, encobrindo totalmente os meus pés. A sensação era a de que já estava há horas nesse esforço extenuante, de antemão fadado ao fracasso, mas que, agora, finalmente, entregaria os pontos. No limite do esgotamento, desistiria de tentar chegar à cabeceira do rio, me abandonando, de vez, à impetuosidade de seu fluxo, que me conduzia, incansável, à sua foz, desaguando nos braços do oceano.
Relendo agora o que acabo de escrever, confesso que me senti desconfortável. As imagens que emanam das palavras, apesar de razoavelmente belas, são bastante inverossímeis, diferindo em muito das que me visitaram durante o sono. Também não gostei de ter enveredado por um estilo de escrita tão cheio de metáforas e torneios sintáticos, muito carregado na dramaticidade, valorizando além da conta o que fora simplesmente um rápido devaneio. Queria apenas produzir uma espécie de rascunho, ainda que detalhado e informativo, registrando um sonho recém-vivido, hábito que tenho cultivado, de modo assistemático e sem qualquer finalidade, nesses dias de confinamento compulsório. O texto, com o jeito retórico que assumiu, dá a impressão de que quero produzir, a qualquer preço, alta literatura; perspectiva que, nos dias de hoje, por si só já nasce esvaziada. Despertei um pouco atormentado, é verdade, mas com plena consciência de que experenciara, mais uma vez, um daqueles lapsos desimportantes que se dão no trânsito entre o sono e a vigília. Além disso, a interpretação imediata, que se desprega do sonho como um todo, não tem nada demais, é mesmo, numa palavra, de uma obviedade constrangedora: a saga de um sujeito remando contra a maré em águas turbulentas, coisa de escritor maudit lutando against the sytem, postura abandonada por mim, como projeto de vida e arte, há muitos anos.
Creio que o melhor a fazer agora, após ser acometido, em plena madrugada, por espasmos crítico-literários dessa natureza, é me levantar e sair, o quanto antes, do estado extemporâneo em que me encontro. Uma luz sorrateira se projetando pelas frestas das persianas da janela do quarto indica que a manhã já quer chegar. Com a preguiça mastigando os meus músculos, me sento na borda da cama e coloco na mesinha de cabeceira a agenda onde há pouco descrevera minha aventura onírica. Alongo pescoço e ombro com gestos lentos, respirando calmo, pausadamente. Preciso iniciar o dia mais disposto, já que, nos últimos tempos, abandonar os lençóis tem sido uma missão quase impossível. Finalizo os exercícios e, num movimento ágil, me ponho de pé, abro as janelas, me olho no espelho e digo, com voz jovial: – Vamos agir a vida?
Na cozinha, enquanto despejo a água no bule para preparar um chá, a imagem de minha falecida mãe, sorridente e solícita, se desenha, num átimo, à minha frente. Ela adorava repetir o adágio popular que acabei de falar sozinho. Relembrá-lo foi, certamente, um modo inconsciente de me sentir agasalhado por ela e, ao mesmo tempo, conectado à filosofia de vida ali implicada. Absorto nessas recordações, molho, proustianamente, madelaines no líquido escuro, que, deslocado para a xícara, solta pequenas espirais de fumaça. Gritos inusitados de algum pássaro desconhecido, rondando a área externa do apartamento, me arrancam do universo da reminiscência e me lançam, sem escolhas, no centro da terra da vida prática. Dou início ao planejamento das ações que realizarei ao longo do dia. Pesquisar, ler e escrever. Sim, é tudo o que tenho feito nas semanas de isolamento social, e será o que farei, mais uma vez, hoje. Vivia reclamando de falta de tempo para compor o meu primeiro romance e, devido à pandemia, o tempo está, inacreditavelmente, sob o meu controle. Posso, inclusive, me dar ao luxo de acompanhar, nos intervalos de meu trabalho, noticiários, lives, mesas de debates, que me deixam informado, na medida do possível, sobre a tragédia que nos assola.
Hoje, no entanto, algo em mim começa a se modificar. A estratégia de listar um plano de metas, a fim de aproveitar ao máximo o tempo disponível para produzir arte, me incomoda como se tivesse que cumprir uma planilha de planejamento institucional. Um imenso vazio me envolve, opressivo, saturando cada gesto meu de uma espécie de nada transbordante. Ruídos matinais, vindos da rua e dos vizinhos, passam a me ferir, arranhando as paredes do casulo-vidraça em que me resguardo. Forças centrífugas começam a me impulsionar para o espaço-limite, esgarçado, de zonas de fronteira. Um novo posicionamento se ergue diante da multidão de seres microscópicos que bate sem medo à minha porta, ou melhor, na minha cara. “O que está acontecendo?”, pergunto, calado; “o sonho”, respondo a mim mesmo, “o sonho…”
“Preciso dar uma caminhada” – constato, enfim tomando uma decisão. Sem perder tempo, dou início às movimentações para a minha primeira saída, após semanas trancado em casa. As portas, durante esse tempo, só foram abertas para jogar o lixo no depósito ou para receber entregas de compras, feitas sempre por funcionários aparentemente bem protegidos. Recordo-me, de súbito, que havia pedido, há alguns dias, máscaras ao serviço de delivery da farmácia. “Não posso cometer a gafe de sair pelas ruas sem elas” – enfatizo. “Além do mais, hoje é o primeiro dia em que o seu uso se torna obrigatório.” Passo em revista, de memória, os apetrechos e vestes necessários para um passeio em tempos de pandemia. Ok, nada esquecido. Tudo certo, tudo bem. Vamos em frente! Contudo, assim que coloco a mão na chave para abrir a porta da entrada, um odor forte e sombrio invade as minhas narinas e me paralisa. Penso em retornar e ver se o mau cheiro vem de dentro de casa, se não fechei bem o saco de lixo que trazia nas mãos. Não, o fedor pantanoso, impositivo, quase insuportável, move-se pelo corredor do prédio, exalado de algum andar, de algum apartamento vizinho ao meu. “Cheiro de comida estragada, de alma partida, de tristeza infinita, de água estagnada” – sentencio, me esforçando para definir, de modo mais preciso, a qualidade da emanação, depois de fechar a porta e começar a descer as escadas.
Um dia de sol estranho, tímido, abafado, abraça o bairro. Pelas ruas, um ambiente de cidade fantasma emerge aqui e ali: poucas pessoas, poucos carros, quase nenhuma bicicleta. Os cidadãos que atravessam meu caminho mantêm um ar de normalidade contida, de dignidade remota controlando os seus passos. Nas calçadas, folhas de amendoeiras castanhas se misturam a máscaras sujas jogadas pelo chão, copos plásticos brancos rasgados, cacos de vidro verde-musgo, flores amarelas e lilases, arrancadas pelo vento de árvores frondosas. Estas, com raízes entrelaçadas aos troncos, finas trepadeiras verdejantes pendendo dos galhos, me veem passar e, delicadas mães da vida, acariciam meus cabelos com gentileza e cuidado. Fico encantado, como se as estivesse vendo pela primeira vez, pelo simples fato de existirem, de resistirem há séculos à nossa destruição insana, sustentando, elegantes, a sua pulsação silenciosa, pacientes, altivas.
Assim que dobro a esquina, atinjo o calçadão à beira-mar, local em que habitualmente a comunidade realiza os seus passeios. A sensação de novidade inaugural se mantém, adicionada, agora, a um mundo de sons exóticos que se abre para mim: bandos de maritacas em acaloradas discussões nas copas dos coqueiros; malemolentes marulhos lançados pela respiração boca a boca que o mar faz, indo e vindo, nos lábios das pedras; fragor de motores de traineiras saindo para a pesca, indolentes, vadias; ofegantes rajadas de uma ventania que levanta papéis velhos, folhas mortas, saias desprevenidas, eriçando as costas do mar a contrapelo, passando pelas frestas entre os prédios, os dedos, os cabelos, pelas rodas dos automóveis, enchendo bocas, narinas, olhos de poeira, mandando, impetuosa, que as pessoas voltem para as suas casas, para o isolamento social.
De repente, sou assaltado por um som bem distinto dos outros – alto, cortante, seco, pungente–, que me faz parar e perseguir com os olhos de onde provém e quem o emite. Deparo-me, então, com um pássaro de um palmo e meio de altura; plumagem peitoral de cor laranja-fogo; cabeça cinza com penugem espigada na parte de trás; pescoço branco; cauda em formato de tesoura; bico longo e pontudo; pousado na zona leste de uma árvore que se desdobra, majestosa, sobre as águas da baía. A ave silencia imediatamente, assim que percebe que alguém parara somente para admirá-la. Ficamos por um tempo nos encarando de modo intenso, numa entrega total, pelo menos de minha parte. Começo a pensar nas razões que a levam a permanecer ali, estabelecendo uma inexplicável relação com um ser como eu, de outra espécie, uma alteridade radical, uma forma de vida tão dessemelhante à sua. Para mim – tenho isso muito claro e é o que me fascina –, nossa interação resgata um elo vital com as potências invisíveis da natureza. Mas o que a move, ou melhor, a faz estancar, suspendendo o tempo e se fixando, entre outras coisas, num possível predador? Curiosidade? Pânico? Vaidade? Desafio? Indiferença? Ímpeto guerreiro? Imprudência? Tudo isso e muito mais, junto? Ou nada disso, outros motivos e estados que não chegam nem perto do que neste instante especulo?
Podiam, entretanto, ser interrompidas, e foram, por uma voz feminina doce, intrusa, inesperada. Uma mulher de meia-idade, morena, de face protuberante, cuja roupa parecia feita da pelagem cinza brilhante do cão imenso que segurava pela coleira, se aproxima falando:– É um Pica-pau, não é? Lindo, não? Muito lindo! Que bicho lindo! O tom mítico de sua voz me surpreende, o desenho canino de sua face também. – Sim, muito lindo sim – respondo reticente, amuado pela quebra do vínculo que se estabelecera magicamente entre mim e aquele pássaro imponente, feiticeiro, realmente lindo. Sem pestanejar, temendo ter desfeito um laço raríssimo, volto os meus olhos outra vez em direção ao animal. Isso leva a mulher sem máscara, com cara de cão, talvez decepcionada com meu desinteresse em entabular qualquer tipo de papo, a se retirar, continuando a sua caminhada. Meu receio não fora sem razão, o bicho não quis mais sustentar a nossa conexão, projetou-se num voo rasante sobre as águas azuis matinais e subiu, transpondo os mastros mais elevados dos barcos ancorados, se perdendo pela imensa e deslumbrante paisagem carioca.
Dou um suspiro triste, resignado com o fim brusco de uma relação tão bela quanto fugaz, e reinicio a caminhada. Dentro de mim, duas imagens se alternam renitentes, pendulares: a da relação que acabara de viver, o encontro magnético de brilhos de olhos de naturezas tão diversas, com o misterioso pássaro de cauda em formato de tesoura; e a da rápida visão que tive de uma mulher-cão sem máscara, sem proteção, parecendo não temer a morte, que, asseguro, mais do que nunca, nos espreita silente. – E isso justo no dia em que a lei passou a vigorar, ordenando o uso obrigatório da proteção facial – complementei, falando em voz alta. Som expressivo que leva uma moça, passando de máscara naquele momento, a cravar dois imensos olhos negros sobre os meus. Incapaz, dessa vez, de sustentar qualquer relação intensa, abaixo, de modo ríspido, porém humilde, a cabeça e sigo o meu caminho.
Começo, numa espécie de autorretaliação por ter acabado de tomar uma atitude de submissão, a encarar, desafiador, os rostos camuflados que passam por mim. Estranho exercício que requer um misto de precisão desabusada, rapidez de raciocínio, imaginação expandida. “As pessoas se deixam decifrar principalmente pelos olhos…”, filosofo, recuperando surrado clichê romântico, no intento de dar uma base plausível ao estado patético em que mergulho. Persisto, obstinado, na defesa da tese: “… e tudo isso se dá num brevíssimo espaço de tempo, o tempo efêmero do contato entre sujeitos andando sem pressa e – aparentemente – despreocupados pela calçada”. Indo mais fundo no sofisma, passo a nomear os olhos que, de várias maneiras, me afetam, encetando um processo classificatório muito particular: olhos fatais, marginais, amorosos; olhos de ressaca, cínicos, de águia; olhos de serpente, de quem mente, cismadores; olhos bolsonaristas, moristas, evangélicos; olhos lava-jatistas, petistas, neoliberais; olhos ameríndios, felinos, de peixe-boi; olhos quilombolas, cosmopolíticos, ecológicos; olhos plásticos, suásticos, de lentes de contato; olhos de rato, de iguana, de jacaré-açu; olhos cristãos, de macumba, de damares; olhos rústicos, de milicos, de malabares…
Essa compulsão perigosa, bastante invasiva, arrefece justo na hora em que me recordo que é imprescindível manter uma distância interpessoal rígida, evitando a formação de grupelhos, ajuntamentos, aglomerações. Todavia, presencio algo que novamente me indispõe com as pessoas ao redor. Saindo não sei de onde, um desfile de tipos – arrogantes, irresponsáveis – se deslinda ante meu olhos; parecem querer impor na marra uma ideia cínica de normalidade: um grupo, acompanhado de bichos de estimação tratados como filhos, empurra, indiferente, os transeuntes para o meio-fio; corredores suarentos, atletas de ocasião, colocam os bofes para fora, cuspindo, infectados, o último porre entediado, a última briga familiar, exigindo de seus corpos mais do que, antes da quarentena, um dia estiveram acostumados a exercitar; casais de mãos dadas, em andadura bucólica em plena selva urbana, dão beijos viróticos cheios de amor e dor; famílias felizes, em bando, saltitantes, como se contracenassem em anúncios de tevê, pavimentam o caminho para futuros óbitos com feliz descompromisso; solitários paranoicos, arredios, carentes, desiludidos avançam em seus roteiros improvisados; anjos apocalípticos, sentados na mureta da calçada, papeiam solertes, gastando o tempo por desenfado, se fartando de churrasquinho de gato e cerveja, banalizando, velhacos, a morte, antiga anciã.
Pulo para a rua ao ver criaturas na calçada vindo em minha direção; volto para a calçada se as observo na rua; atravesso para o outro lado ao percebê-las chegando na lateral em que me encontro; saio desse espaço quando distingo, a distância, que outras estão se aproximando de mim. Furioso com toda essa situação, abro, incontido, o verbo, num surto profético: – Vocês não sabem de nada! O vírus é fatal! Pior do que todos os outros que já nos aterrorizaram antes! Rápido, rasteiro, rastejante, aéreo, mutante! O índice de mortalidade é altíssimo! Se não o vencermos agora, ele voltará em cepa nova, refeito, repotencializado para o ambiente dos trópicos. Já em altos brados, possuído por uma qualidade de verdade originária de alguma linhagem sagrada, insisto, movimentando todo o corpo descompassadamente. As pessoas começam a se afastar do endiabrado que delira e berra: – O vírus é capaz de causar derrames cerebrais, pneumonias, ataques cardíacos, tromboses, arruinar os rins. Os que já têm problemas crônicos de saúde serão os primeiros a partir. Os hospitais ficarão superlotados, morrerão pessoas com doenças tratáveis por falta de vaga nas UTIs, não haverá pessoal ou maquinaria para atender a todos! O país entrará em colapso! Será o caos, barafunda, calamidade pública, dor, fracasso de Eros, apocalypse now!
Respiro fundo, me recomponho, me calo. Diviso, num ponto de fuga da paisagem, as águas ondulantes da Baía de Guanabara. Noto, estarrecido, que bolhas brancas residuais formam filamentos deslizando, em córregos, por entre bostas boiando, sacos plásticos salpicados de sujeira encardida, bonecas de borracha sem cabeça, longas lâmpadas fosforescentes, fragmentos de isopores, tubos de tevê, madeiras de matizes várias, garrafas de refrigerantes pet, sapatos velhos, câmaras de pneus, trapos de roupas apodrecidas, enquanto cabeças de tartarugas sobem à superfície sedentas de oxigênio. Volto os olhos para o céu clamando pela ajuda de alguma divindade, mais impotente do que indignado, na verdade, enojado, envergado por uma vertigem venal. Paulatinamente, retomo a caminhada, avanço, de novo andando, de novo, pode-se dizer, razoavelmente bem. Os passos, no entanto, de uma hora para outra, começam a ralentar, ralentar, até que paro de vez, estático e doentio diante do mar.
Ouço, chegando por trás de mim, um som abafado de tosse seca, em forte crescendo, entrecortado por grunhidos aspirados anginosos, como os de alguém que está se afogando em plena atmosfera. Ao me girar, defronto-me com um mendigo em farrapos, trazendo uma garrafa de cachaça na mão, muito pálido, um morto-vivo vindo, mancando, na minha reta. Estupefato, sem saber se corro ou se fico, sem noção de como agir, acabo por não me mover, permanecendo ali, fincado, frente a frente com aquele ser em frangalhos. Sua face, repentinamente, é trespassada por uma iluminação profana, improvável, ganhando um ar de mártir cristão, momento em que, com ternura histriônica, profere essas palavras:– Fica calmo, doutor! Todos têm que manter a calma! O mar não tá pra peixe! Veja você, eu moro na rua e estou calmo. Eu já devo estar com o danado circulando no meu sangue, junto com a marvada pinga e outros vícios, e continuo calmo! A gente nasce pra morrer, doutor, mais cedo ou mais tarde a morte nos leva. Por que ter medo da faminta, da indesejada das gentes, da única certeza que temos na vida? Fica tranquilo, doutor, é o melhor remédio… Após dizer isso, dá uma talagada longa, lançando para dentro de si uma boa parte do conteúdo do casco escuro oscilante, que quase escorrega de suas mãos.
Fui dominado por uma vontade piedosa de colocar a cabeça no ombro daquele ser humano e chorar até o final dos tempos. Talvez por encontrar conforto na fala de alguém com quem enfim me identifico, que parece compreender que o nosso mundo está, definitivamente, em ruínas. Claro que não fiz isso. Ainda que tivesse acabado de sair de um descontrole imperdoável, tinha uma reputação – não sabia mais ao certo qual – a zelar. Retiro do bolso, num arroubo impensado, uma nota de cinquenta reais e a coloco, suavemente, em uma de suas mãos, que, enérgica, já estava espalmada para receber o papel. Mão túrgida, corroída por dermatites progressivas, eczemas múltiplos, realmente em petição de miséria. Depois de pegar a grana, olha para mim com olhos penetrantes, enervados por raios avermelhados, extasiado diante de minha atitude. Num gesto inesperado, estica a cédula à contraluz para ver se não era falsa e, sem agradecer, sai eufórico, puxando de uma perna, com um pano imundo amarrado no pé, aos berros, entrecortados por tosses secas: – Ganhei na loteria! Ganhei na loteria! Tô rico! Rico, macacada! Rico! Tô rico! Rico!
Sigo em frente sem saber ao certo por que insisto na caminhada, a máscara me sufocando, irritante. Mas não desisto, persevero, os passos lentos, o corpo recurvo, uma leve falta de ar, um início de coceira na garganta, de coriza escorrendo pelas narinas, vivendo tudo isso como se fosse um leproso que tivesse perdido as mãos, pois não posso nem ao menos usá-las para me coçar, ajeitar os cabelos, cuidar de mim. De imprevisto, rasgando o céu mormacento, um sol titânico, encantatório, derrama ouro pela cidade. Protejo a minha vista, escondo com o braço a cabeça, olho de viés, encontro uma saída, viro a esquina, entro numa rua sombreada por árvores magníficas, me encanto com o cenário, antevejo no final da via uma praça abandonada. Vou me aproximando vagaroso, tateante, com passos de onça estudando o bote, passos de tocaia malandra. Não acredito, coço os olhos – agora já era, não tem mais jeito, a mão salpicada de perdigotos acaba por limpar também o nariz –, é fumaça o que vejo? Uma fogueira grande, alta, numa praça esquecida no coração da Urca, bairro nobre da Zona Sul do Rio de Janeiro, em plena manhã? Será verdade? Ao mesmo tempo em que receio ir até lá, com medo civilizado do que possa estar me esperando, neuroticamente aperto o passo, anseio pela chegada, resoluto, suando frio, nem cogito parar.
Reunidos em torno de labaredas exuberantes, que sobem de um buraco cavado no chão da praça abandonada, estão Davi Kopenawa, Ailton Krenak, Sonia Guajajara, Álvaro Tukano, Raoni Kayapó Metuktire, Eliane Potiguara, Dauá Puri, Jaider Esbell. Cheiros de resinas aromáticas, queimando próximas ao fogo central, estriam o ambiente com olores verdejantes, que se misturam ao ar enfumaçado, causando sensações infinitesimais. Sentados em minúsculos bancos de madeira, assopram nas narinas uns dos outros, por meio de longos tubos de bambu, certamente pó de yãkoana, trazido, é provável, da Amazônia Ocidental pelo xamã yanomami. Com todo o cuidado do mundo, sento-me, em silêncio, num banco de praça de cimento, tentando, antes de tudo, não atrapalhar o ritual e, na medida do possível, participar do evento venerável que testemunho encantado. Não sei quanto tempo fico ali, o que me gera a ilusão de que a minha presença não fora de todo notada. Desfaço esse pensamento quando Raoni se levanta, conduzindo o tubo nas mãos, e se reorienta para o meu lado, se preparando para assoprar o pó em meu nariz. Ergo a cabeça, fecho os olhos e meu corpo recebe, por inteiro, o furacão vegetal, que se dissemina por minha alma…
Vendo-ouvindo cantos-falas-danças na língua de cada um dos líderes ali reunidos, gradualmente adentro o universo invisível, guiado por meu espírito auxiliar, o Pica-pau mensageiro. Passo a compreender, nesse instante, os significantes flutuantes emitidos pelos pajés, acompanhados pelo som dos maracás, homens-fantasmas, xamãs vivos-mortos, viajando pelo presente contínuo de mundos paralelos e simultâneos ao nosso. Meu duplo de peito laranja-fogo me explica que seres do Caos e do Vendaval, agentes sobreviventes da primeira queda do Céu, escaparam do fundo da Terra, onde estavam presos, e vieram ajudar o Grande Capital do Branco Bravo na batalha cega, obsessiva, patológica que empreende, dia após dia, ano após ano, para destruir o planeta. Essa parceria catastrófica provocou nova e imensa rachadura no Céu, que está a um passo de cair outra vez, após milênios desde a sua queda primeva. Os tuxauas foram avisados pelo lindo pássaro de cabeça cinza com penugem espigada na parte de trás, que visitou aldeia por aldeia para anunciar que os espíritos malignos dos madeireiros, garimpeiros, grileiros, milicianos, catequizadores, supremacistas, deuses de Wall Street, dos paraísos fiscais, dos laboratórios de guerra, da gula cega que especula, estavam tentando arrancar as colunas de metal que sustentam o Céu. Devido a tanto estrago, o firmamento começou a rachar. Para piorar a situação, ainda comiam, com voracidade canibal, as almas de todos os povos isolados, contatados, viventes das cidades, dos animais, os espíritos do mar, dos rios, das cachoeiras, das nuvens, das montanhas, das florestas, sertões, caatingas, matas, cerrados, pantanais. Com isso, se fazia urgente e necessário um grande esforço coletivo para que a tragédia estancasse, ainda que provisoriamente.
Pude perceber, em determinada hora, que eu não incomodava, pelo contrário, estavam, na verdade, me esperando, ou melhor, aguardavam a chegada de meu espírito-auxiliar para avançarem no ritual. Meu duplo se encontrava exausto das muitas viagens de contatos que fizera e, por isso, parara numa árvore próxima ao mar para descansar. Agora, já recuperado, experimentando a multidimensionalidade do mundo, o mensageiro de peito laranja-fogo explicava que o Sars-Cov-2 fugira do corpo da Natureza por meio de uma ferida aberta pelos braços de motosserra e bomba atômica do Grande Capital do Branco Bravo, num ataque desferido na mais recente batalha cósmica travada. Mais uma das pelejas que se tornaram, ao longo do período antropoceno, excessivamente sangrentas e desumanas. A fim de socorrer o Céu, os pajés-açu reunidos convocaram, primeiro, o duplo do bicho-preguiça, para que lançasse, por meio de zarabatanas, finas lanças de metais nas bordas esgarçadas da rachadura; depois, o espírito das harpias se esforçava para vergá-las, conferindo se estavam bem fixadas nas partes separadas do Céu; por fim, os duplos das formigas passavam gosmas tenazes para tentar arrematar o remendo final na rasgadura. Todos empenhados na tarefa cosmopolítica de salvação do planeta. Como grandes diplomatas cósmicos que são, os xamãs exortavam, numa ação coletiva, os seus espíritos-auxiliares a permanecerem colando o firmamento, descendo a jusante, da cabeceira do rio celestial em direção à foz na Terra.
Fui saindo, progressivamente, de minha viagem pelo reino invisível e retornando para o meu corpo-carcaça. Somente quando me sinto outra vez pertencendo à maloca de nervos, ossos, sangue, linfas, pregas, órgãos em que habito, me dou conta de que já anoitecera, e que os pajés iriam manter-se em sua busca incansável até que conseguissem colar, em definitivo, o rasgo fatídico que o Grande Capital do Branco Bravo havia feito na ligação do Céu com a Terra. Palpitando da cabeça aos pés, levanto-me e saio andando como se fosse um pássaro no chão de asfalto, desajeitado, saltitando torto, com espasmos pontuais. As luzes baças dos postes me iluminam no exato instante em que me conscientizo de que caminho, outra vez, como um bípede humano – bem afastado da fogueira, ainda opulenta, rebrilhando lá atrás –, atravessando a rua, margeando o vinho tinto do mar noturno da Baía de Guanabara. Da lua cheia jorra um caminho de prata branco, me seduzindo para que troque de rota e me lance na aventura de palmilhá-lo oceano afora. Progrido pela calçada, passando por pescadores com camisas com a palavra Urca escrita nas costas, que tomam caipirinhas e ouvem música sertaneja a toda a altura. Estampidos de motores de motos, falas histéricas, gargalhadas estridentes, sons de agitação marinha, latidos de cães completam a sinfonia urbana que embaralha os meus sentidos.
Quando dou por mim, estou parado diante da portaria de meu prédio. Coloco a mão no bolso, tateante, perseguindo as chaves. Abro a porta. Entro no corredor, pouso o antebraço na balaustrada para dar maior impulso na subida e jogo os meus pés nos primeiros degraus da escada. Congelo, contudo, quando aquele mesmo odor nauseabundo que impregnava o ar pela manhã retorna mais intenso ainda. O cheiro fatal, agora, se mistura a exalações ambulatoriais, de álcool a 70 graus, de soluções cloradas, de aromas de Equipamentos de Proteção Individual saídos recentemente de lavanderias hospitalares. Um estrépito de movimentações apressadas, falas abafadas, choro contido, de corpos no esforço de carregarem algo pesado, reverbera pelo ambiente interno do prédio. Observo, de baixo para cima, um homem paramentado dobrando o final do piso do andar superior, começando a descer a escada, segurando a parte da frente de uma maca. De gorro, máscara cirúrgica, avental de manga comprida, luvas nitrílicas, botas impermeáveis, desce os degraus em andamento de procissão fúnebre. Pausadamente, a equipe sanitária arremete e se entremostra mais um pouco a cada movimento: outro enfermeiro, que segura a ponta oposta da maca com firmeza; uma médica vigilante, ladeando, atenta, o falecido; e uma mulher em prantos ressecados, segurando um lenço compresso entre a boca e o nariz, um corpo-estranho no time, mas que compunha muito bem o mórbido movimento do tableau-vivant. Por instinto, desço a escada, na incerteza de quem caminha de costas sobre o abismo, e retorno para o térreo, abrindo espaço para a passagem do esquadrão assistencial.
Miro, com acuidade, o morto que desfila à minha frente, embalado, na primeira camada, em lençol, depois envolto em dois sacos impermeáveis, próprios para impedir vazamentos de fluidos corpóreos. Leio, num esparadrapo afixado no invólucro, a seguinte informação: “COVID-19, agente biológico classe de risco 3”. A senhora, que acompanha o conjunto e que foi a última a passar, se detém diante de mim e, quem sabe por ter intuído que encontraria alguma acolhida de minha parte, repentinamente, desabafa: – Meu irmão, meu querido irmão… Morava sozinho, disse que precisava de tempo e solidão para escrever os seus romances, pois nunca conseguiria fazer isso sendo funcionário de Banco do Brasil. Assim que se aposentou veio para cá, trouxe somente livros, muitos livros e estantes, a casa toda era uma biblioteca. Morreu solitário, não quis chamar ninguém quando desconfiou que pudesse estar infectado; achava mesmo que tudo isso era uma bobagem, que ia passar logo… Na última ligação telefônica que trocamos, farejei algo estranho no ar, sexto sentido de mulher nunca falha… Meu irmão, meu querido irmão… Éramos só nós dois, todos já morreram em nossa família, agora sou a última, meu deus… Quando cessou a falação, se lançou em meus braços, desconsolada. Abracei-a, condoído, mas por poucos segundos. Preocupado com os fômites que poderíamos estar trocando, logo me apartei, delicadamente, dela. Levei-a até o carro mortuário, ao rabecão parado no outro lado da rua, e voltei ao prédio para poder subir, em paz, a escadaria de mármore encardido.
Em casa, depois de passar mais de uma hora empenhado na limpeza caprichada dos objetos que trouxe da rua, pego o celular para verificar os recados recebidos. Deviam ser muitos, estive o dia inteiro fora, algo incomum de minha parte nesses tempos de isolamento social. Havia uma quantia imensa de links compartilhados no WhatsApp, no Facebook, no Instagram, todos remetendo a matérias indignadas com o negacionismo, bárbaro e tosco, de nosso governo diante de uma calamidade mundial. Nas mensagens privadas do aparelho móvel, entretanto, uma se destaca: um velho amigo narra que está com o vírus, passando muito mal, precisando de apoio urgentemente. Empunho, apressado, o telefone, digito os números apreensivo. Ninguém atende do outro lado da linha. Aciono camaradas em comum, todos se compadecem, tentam ligar também; outros já sabendo de tudo, se mostram bem abalados. Uma amiga me diz que vinha acompanhando desde cedo e que falara há pouco com ele. Narra que nosso velho amigo já tinha ido a uma Unidade de Pronto Atendimento em Botafogo, que seguia a medicação prescrita rigorosamente, mas que não melhorara, se encontrava pior, temendo, por isso, que tivesse chegado a sua hora. A amiga insistiu para que se dirigisse à Coordenação de Emergência Regional, ao lado do Hospital Miguel Couto, de imediato, sem volteios, naquele exato momento. Ele pediu um Uber e foi.
Fico extremamente preocupado. Não respondo a ninguém, abro uma garrafa de vinho e começo a beber, nervoso. O líquido sanguíneo, devido à minha afobação, escorre por meus lábios, desce por meu peito desnudo, por minha coxa direita, por um dos meus pés. Entendo a queda de Baco – rolando por meu corpo, se espatifando no chão, desenhando uma pequena poça irregular no ladrilho branco da cozinha – como um presságio de que a celebração da vida está cedendo ao princípio de morte, obsedante, renitente, implacável. Aliviado, logo noto que tudo isso é uma bobagem, pois ouço o casal de meninas, que mora no apartamento ao lado, cantando alto, certamente dançando, pulando, felizes da vida. Um cheiro de churrasco, entrelaçado ao som de gargalhadas e samba de raiz, guia a minha atenção para uma nova ambiência próxima, ratificando que as potências de celebração do mundo, da felicidade, dos ímpetos vitais, ainda se impõem, epifânicas. Distensiono o meu corpo por inteiro e, enfim relaxado, consigo degustar o vinho, gozar as vibrações dos vizinhos, ter calma para acreditar que, supostamente, ninguém vai mais morrer. Acomodo embaixo do braço a garrafa do néctar de Dioniso, na mão uma taça pela metade, e vou para o meu quarto ligar o ar-condicionado e a tevê.
Já na cama, resolvo averiguar se surgiu alguma mensagem nova com informações a respeito da situação de meu velho amigo. Havia, sim, uma reconfortante: ele já fora liberado do atendimento no hospital, se encontrava em casa, estava melhor, passando bem. Enviou um recado coletivo agradecendo, do fundo da alma, pelo carinho e ajuda de todos os camaradas que se empenharam incansavelmente na sua recuperação. Mais calmo, deposito o celular na mesinha ao lado da cama e tento prestar atenção nas imagens que deslizam pela tela da tevê. Numa delas, o presidente da nação faz um pronunciamento eugenista, ditatorial, neoliberal, de extrema-direita, como exige o papel de fantoche de nossas elites que interpreta. Um panelaço de alta voltagem toma contado bairro. Exausto por tudo o que vivera ao longo do dia, ajeito o travesseiro, viro de lado e, mesmo com todo o alarido ao redor, sem qualquer dificuldade, pego no sono rapidamente.
Abrindo os olhos com lentidão de ressaca, sou flechado por uma claridade de lâmpada de led, o que me impede de saber em que lugar vim parar. O corpo moído, deitado de lado, se recusa a se mover. Detecto, nauseado, que estou coberto pela metade por um líquido gosmento que cheira a fezes, vômito, urina, saliva, água marinha e doce. Evocando forças oriundas de não sei qual profundeza de meu ser, consigo me sentar em um dos bancos do bote salva-vidas de madeira pintada da cor laranja-fogo, de casco avariado. A embarcação esbarra, mansamente, ao sabor da maré, no dourado-musgo das areias de uma praia de baía, belíssima, sob a forma de uma boca banguela.
O céu, rajado de cinza-chumbo, vermelho-sangue, amarelo-ouro, é, a um só tempo, teto de quarto, copa de árvore, cúpula de caverna, abóbada mormacenta. Desvela-se à minha frente, no espaço entre a praia e a floresta, imenso sambaqui, com uns trinta metros de altura, quatrocentos de comprimento, duzentos e cinquenta de largura. Lá estão empilhados – entre camadas de conchas do mar, ossadas de milhões de filhos do holocausto ameríndio, espinhas de peixes, objetos artesanais, vértebras de bichos de várias espécies – os corpos das vítimas contemporâneas do coronavírus de todas as partes do mundo. Um cheiro insuportável de morte, pantanoso, impositivo, impregna o ar toda vez que o vento, bailando impaciente, muda de direção no espaço.
Andando cambaleante, andando torto, andando mancando, com um pano podre amarrado no pé, contorno o monte funerário à procura de um riacho ou de qualquer outra fonte de água potável, ressecado por dentro, a boca um deserto de poeira acumulada, retirada da limpeza que fiz, mais cedo, em minha sala de estar. Rescende, vindo do lado oposto do sambaqui, o aroma sedutor da árvore-mãe, deusa amazonas da natureza-cultura, dona da vida e da morte, sorridente e solícita na cozinha, preparando um chá para o café da manhã. Do meio de seu tronco jorra, copiosa, uma fonte de água puríssima, através de um chafariz colonial com desenho de anjo barroco. Da copa, flores amarelas e lilases reluzem esplendentes, brancas borboletas passeiam por entre as folhas e finas trepadeiras, pendentes dos galhos, acariciam os meus cabelos.
Depois de saciar a secura que me matava, bebendo na fonte de água cristalina, noto que as sapopemas, nas laterais do tronco da samaúma-mãe, abrigam duas imagens alegóricas, divinais. Do lado de onde emerge o sol, se encontra uma mulher cinocéfala, que afirmara, em outro sonho, a beleza do Pica-pau de plumagem laranja-fogo no peito, tão lindo pousado na árvore que se desdobra sobre a zona leste da Baía de Guanabara. A mulher-cão não crava a sua visão na minha, permanece despejando a luz que emana de seus olhos no horizonte, impassível, sem qualquer medo da morte, trazendo na pele múltiplas pinturas figurativas, míticas, de orelhões, centauros, iawaipanomas, chullachaqui curupiras, coniupuiaras. Do lado oposto, onde o sol recurva, uma índia em pé sobre a raiz achatada, com pinturas geométricas por todo o corpo, me estica, solícita, a mão, quer me levar, temerosa e aflita, nem imagino para onde.
Caminhamos floresta adentro – eu com o Pica-pau de cabeça cinza com penugem espigada pousado em meu ombro; ela com um tubo de ensaio, no qual havia uma colônia de coronavírus, em uma das mãos –, cruzando, em nosso percurso, com corredores de ocasião cuspindo perdigotos do último porre noturno, motocicletas ruidosas, famílias felizes como se estivessem em anúncios de tevê, pescadores vestindo camisas com a palavra Urca escrita nas costas, olhos inquisidores de mil faces dissimuladas, mendigos contaminados, um grupo de líderes xamãs empenhado em colar, com ajuda de seus espíritos-auxiliares, uma imensa rachadura no céu. Chegamos, em dado momento, no térreo do prédio em que moro, toda a atmosfera do ambiente é de evento funerário. A índia que me conduziu na caminhada de retorno me oferece, solene, educadamente, um naco da carne do corpo de seu falecido irmão romancista. Em respeito aos costumes de seu povo, aceito participar integralmente do ritual; porém, assim que dou a primeira dentada, todos os meus nervos reclamam, sou dominado por engulhos, coloco os bofes para fora, esbarro, sem querer, no tubo de ensaio que estava nas mãos dela, o objeto laboratorial se espatifa no chão, nos olhamos aterrorizados, saio correndo, subo as escadas em pânico, os antebraços pegando impulso nas balaustradas, procurando o abrigo do meu apartamento no andar de cima.
Tateio os bolsos atrás das chaves de casa e não as encontro. Toco a campainha num gesto absolutamente patético, pois sei que moro sozinho. Aperto o dedo no botão uma, duas, três, quatro vezes. Ninguém atende. Na quinta, abre a porta nada mais nada menos do que a imagem do presidente de nosso país. Com olhos de águia americana, me vasculhando de cima abaixo, diz, com palavreado grosseiro e língua presa: – E daí? Lamento. Eu não sou coveiro. Quer que eu faça o quê? Sou Messias, mas não faço milagres. Impelido pelo desejo de vingança de milhões de brasileiros, penso em pegar o títere do Grande Capital do Branco Bravo pela gravata e jogá-lo, sem qualquer culpa, pela janela. Lembro-me, então, de que estou diante de um ser audiovisual eletronicamente esboçado à minha frente. Vou correndo para o meu quarto e desligo o aparelho de tevê, que esquecera ligado. Depois, tranco todas as entradas, saídas do apartamento, abaixo as persianas e, no limite de minhas forças, deito em meu leito, atrás de algum reconforto, mínimo que seja. Começo a tossir, a febre está muito alta, suo em bicas, todo o meu corpo treme, não sinto mais cheiro, perdi o paladar, me falta o ar, o ambiente pesa, oleoso, liquefeito. Tento pegar o telefone para pedir ajuda, o utensílio se desmancha, os eletrodomésticos se desmontam, as poltronas, os quadros, os livros esfarelam. Somente o lençol, o travesseiro, a cama em que me encontro se mantêm sólidos. Enfim, o sono dentro do sono vem, e o tempo do sonho não vai mais embora, permanece, dorme comigo.
* André Gardel é professor associado II da Escola de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UNIRIO; compositor e cantor de música popular e escritor.