Ano XVI 0201
vale a pena ler de novo
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FOTOGRAFIA E MEMÓRIA: ENTREVISTA COM MIRIAM MOREIRA LEITE

Miriam Moreira Leite foi uma das feministas mais brilhantes da geração que viveu a segunda onda sob a pressão da ditadura. Seus estudos sobre imagem e narrativa se tornaram fundamentais porque faziam perceber a mão pesada do patriarcado sobre as mulheres em retratos de família e textos dos viajantes no século XIX. Além disso, Miriam fez um resgate triunfal de Maria Lacerda de Moura, militante anarquista nascida em 1877, crítica ferrenha da moral sexual burguesa e defensora da educação sexual dos jovens, do amor livre, do divórcio e da maternidade consciente.Mas o que me parece mais importante na carreira de Miriam foi, de fato, ser a pioneira em estudar a imagem com uma perspectiva feminista. Precisamos conhecer e aprender com Miriam, que foi uma amiga cheia de amor, cuidado e delicadeza. Miriam foi pesquisadora visitante do PACC quando éramos ainda CIEC – Coordenação Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos.

Saudade grande dessa amiga genial.

Heloisa Buarque de Hollanda
curadora da seção Vale a Pena Ler de Novo

Em 2008, Miriam Lifchitz Moreira Leite completou 82 anos de idade. Sua reflexão sobre a questão das imagens e da memória tem inspirado e influenciado muitos pesquisadores do campo das Ciências Humanas, justamente pela sua capacidade de provocar outras reflexões, provocar outros olhares. Partindo desta inquietude, própria à obra de Miriam, sentimos ser este um momento privilegiado para rever sua obra e biografia, procurando retraçar os caminhos de suas escolhas e inquietações. Neste movimento, produzimos um documentário no qual buscamos praticar a metodologia criada por Miriam em suas pesquisas: mobilizando a memória a partir das imagens e, assim, tecendo sua biografia. Neste percurso, nos debruçamos sobre o material produzido pela autora, sua pesquisa sobre a feminista Maria Lacerda de Moura e suas caixas e álbuns de fotografias pessoais. Desta forma, nasceu Caminhos da memória – Miriam Moreira Leite (2008, 35 min), vídeo dirigido pelas autoras desta entrevista, o qual compõe a Série Trajetórias nas Ciências Sociais, produzido no âmbito do Projeto Temático Alteridades, Construções da Realidade e Expressões Culturais do Mundo Sensível, financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP (2003-2007).

Publicamos aqui uma entrevista produzida neste contexto em que a autora nos brinda com importantes elaborações sobre a imagem, em especial a respeito das relações entre fotografia e memória[1]. Cabe dizer que, em sua trajetória acadêmica, Miriam reflete sobre as construções da realidade social nos livros de história, produz um importante estudo sobre as imagens do Brasil presentes na literatura produzida pelos viajantes e o seminal estudo sobre a estrutura da representação da família a partir de imagens fotográficas, entre outros.[2] A entrevista aqui apresentada é um pequeno fragmento da profundidade que há no trabalho e na biografia de Miriam.

Andréa: Como apareceu a ideia de trabalhar com fotografias? Como é que a fotografia entrou na sua vida de trabalho?

Miriam: Eu sempre gostei muito de olhar álbuns e verifiquei, vendo álbuns de famílias de origens muito diferentes, que as figuras eram muito parecidas. Havia uma semelhança muito grande entre as fotografias de um álbum e de outro, não propriamente da fisionomia das pessoas, mas da posição, da maneira e da frequência com que tiravam retratos. Isso que me orientou para fazer uma coleção, exatamente, de retratos de filhos e de famílias de imigrantes para São Paulo, em um período em que a pose era um problema, quer dizer, a pose era muito longa, porque o filme era muito lento. Então, realmente isso era um fator identificável e que fazia com que todas fossem meio parecidas. As pessoas todas precisavam ficar retas, olhando de cara para a câmera, de frente e cansadas de tanto esperar. Então eu fiz essa reunião de fotos de família e a partir daí eu fiquei examinando o que a fotografia trazia e o que não trazia.

Para mim foi extremamente útil perceber que, em vários momentos, no caso de algumas fotografias que são muito repetidas, você acaba não vendo mais, justamente porque é muita repetição. Tanto que, no fotojornalismo, as pessoas recorrem a elementos extremamente exóticos para chamar a atenção, porque senão a saciedade da percepção é muito grande, e você acaba não vendo aquela coisa que se quer mostrar. O próprio retrato de família, de uma, duas gerações colocadas em fileiras e, frequentemente, os mais velhos bem no meio e as crianças sentadas na frente, foi colocado, até por um dos estudiosos de fotografia, como exemplo de uma fotografia invisível, pois como todo lugar tinha, você acabava não vendo. O que também me chamou a atenção é que a questão da pose acabou se tornando um sinônimo de retratar, porque fazia parte da fotografia você estar sendo observado, então você ficava numa atitude de quem está sendo visto.

Francirosy: Você considera Retratos de família[3] um livro de metodologia de análise de imagem?

Miriam: Eu tenho impressão de que é um ponto de partida. Na verdade, cada tipo de fotografia tem uma lógica própria. Eu até pensei em fazer, primeiro, de um grupo pequeno que seria a família, depois, de um grupo médio de festas, ou o movimento social, e depois, de grandes grupos, como os comícios e revoluções. Essa última ideia não vingou na medida em que você acaba não vendo a expressão das pessoas, você acaba tendo a ideia de um mundo de pessoas que você acaba não enxergando e nem podendo tirar nada dali. No caso, por exemplo, de outro trabalho com o qual eu colaborei, que foi Retratos de carnaval,[4] realmente existe uma outra maneira, apesar de todos serem redutíveis a retratos de família. Isso fez com que eu insistisse nele, porque, inclusive, nos retratos de carnaval, existe a família que aluga o carro para o ‘corso’ e aquilo se torna um salão que, de certa maneira, é uma forma privada de festa. E, a partir daí, também as famílias de projeção acabavam pondo seus retratos nas revistas ilustradas, e o retrato que era uma questão privada e apenas exibido para as pessoas de dentro da casa ou amigos passou a ser uma coisa pública. Todos esses elementos da fotografia acabaram aparecendo nesse trabalho – sempre à procura de um equilíbrio entre aquela visão imediata que você tem do conteúdo da fotografia à primeira vista e a falta de percepção quando você não consegue mais ver a fotografia, dada a sua repetição.

Francirosy: E, neste ponto, você fala dos quatro vetores…[5]

Miriam: Na verdade, a fotografia exige muito mais do que um texto escrito para sua revelação, porque você precisa levar em conta tanto o produtor da foto, como as pessoas retratadas, aquilo que as pessoas retratadas gostariam que aparecesse, quer dizer, elas realmente fazem uma pose daquilo que elas querem que apareça e aquilo que o fotógrafo acha que melhora o seu produto, de maneira que existe uma porção de ângulos que você precisa levar em conta para conseguir extrair da fotografia aquilo que não é imediatamente visível.

Francirosy: O que me chama bastante atenção no Retratos de família é a maneira como você conseguiu articular tanto os autores da História, da Sociologia, da Antropologia e da Psicologia. Isso foi um caminho que você acabou optando para a análise dessas imagens, dessas fotografias, ou essas referências foram aparecendo?

Miriam: Elas foram aos poucos aparecendo. Uma coisa, por exemplo, que eu tive de usar sempre foi a questão da percepção visual que é muito estudada pela Gestalt,[6] a psicologia da forma, que tenta entender a forma e o fundo, e tudo isso aparece na fotografia. Para você poder ver o que está na foto, você precisa ver o que está no foco e o que está em torno, que é uma das técnicas da Gestalt. No caso, por exemplo, da Antropologia Visual, o trabalho que a Margareth Mead e o Bateson fizeram em Bali[7] foi um trabalho que me inspirou muito, na medida em que eles procuraram perceber como uma criança adquire sua forma de ser balinesa. Aí eu percebi que a fotografia é principalmente sobre o espaço e, para você obter a dimensão do tempo, você precisa construir esse tempo. Precisa ter várias fotografias, em vários momentos, para obter a dimensão do tempo. Isso é verdade não só para o caso das crianças que iam crescendo, que iam adquirindo formas de vida e comportamento, como também para qualquer fotografia. É preciso ter várias fotografias, tiradas em vários momentos, para você poder compreender o que é aquilo. A fotografia isolada é muito difícil de ser analisada, você precisa de uma sequência que te revele o conteúdo.

A fotografia por si não fala. É preciso que os fotografados revelem a sua identidade, quando tiraram, por que tiraram, o tipo de recurso que tinham. No caso do Retratos de família, eu tive que fazer entrevista com todos eles, porque muitos deles me revelaram também um outro elemento muito importante: que a memória da fotografia é muito diferente da memória de um texto escrito. A sua memória é feita através de uma convocação de outras imagens parecidas. É dessa forma que você consegue compreender aquela imagem. E no caso, por exemplo, desse meu arquivo fotográfico de famílias de imigrantes, eu tive a oportunidade de ter depoimentos, tanto de descendentes como às vezes dos fotógrafos que tinham tirado essas fotografias. E assim, as lembranças que eles tinham e a revelação dessas lembranças me permitiram perceber o que era aquela fotografia.

Francirosy: Você lembra de alguma história interessante que você ouviu mostrando essas fotografias? Você se deparou com algum silêncio?

Miriam: Isso apareceu no exame dos álbuns. Os álbuns tinham realmente algumas ‘cruzinhas’ em baixo, que às vezes revelavam que a pessoa que estava organizando queria aparecer ou, por outro lado, algumas eram recortadas. Demorou um pouco para eu entender o que isso queira dizer. Na verdade, alguns casos eram pessoas que eram malvistas na família ou que pretendiam afastá-las da família, então elas retiravam do retrato. Depois eu percebi que, em alguns casos, elas retiravam das fotografias (que é uma diminuição, uma redução da realidade, ela nunca é só uma reprodução), elas retiravam aquilo para colocar em relicários. O relicário em camafeus ficava mais próximo das pessoas, de maneira que são movimentos praticamente opostos e que são revelados por um ato que você só vê manuseando não só a fotografia como os seus invólucros, que são os álbuns ou até, às vezes, caixas de sapatos.

Andréa: Como você reuniu o arquivo de fotos de família?

Miriam: Foi uma coisa inteiramente empírica, não foi, digamos, uma coisa representativa. Eram pessoas do meu convívio, que se interessaram pelo trabalho e que eram descendentes de imigrantes, aliás, em São Paulo, você encontra uma quantidade bastante variada dessas pessoas. E elas me emprestaram os seus álbuns, alguns, uma quantidade enorme, alguns, algumas fotografias. A reunião delas eu uniformizei, reproduzindo todas no mesmo tamanho, no mesmo tipo, porque havia tamanhos muito diferentes, fotografias pintadas também, coisas que eram muito difíceis de você comparar, e a comparação é a base do trabalho. Então foi necessário fazer esse arquivo provisório com o qual eu trabalhei. Depois eu apresentava o arquivo que eu tinha feito para as pessoas, que me falavam daquilo que lembravam da fotografia.

Andréa: Você não reapresentava os álbuns delas, você mostrava a organização que você fez do material?

Miriam: É, porque aí elas tinham o afastamento do material, que permitia que a memória funcionasse melhor, porque aquelas que elas viam sempre acabavam sendo esmaecidas da sua memória. Esses experimentos que eu fiz de percepção visual contaram com o depoimento das pessoas retratadas e, também, em assessorias que eu dei às pessoas que queriam trabalhar com fotografias. Elas traziam núcleos diferentes de fotografias, e a gente tentava classificá-las e tentava ver até que ponto a gente conseguia extrair delas o que elas não tinham de aparente ou o que elas tinham de latente. Assim como no texto escrito você precisa fazer uma crítica para aceitá-lo, na imagem é da mesma maneira, você precisa fazer essa crítica externa e interna. A externa você verifica o tipo de conservação, onde foi conservado. A interna é essa visão de cada um, porque as pessoas estão lá, a posição em que elas ficam, por quê é que elas são assim e aquelas que são mais comuns, o que leva as pessoas a tirarem foto do nenemzinho de bruços e nuzinho. Também existem as coisas que não são fotografáveis, por exemplo, não se tira fotografia de banheiro. Aliás, hoje em dia, nos filmes, tem aparecido muita gente em banheiro, mas é uma coisa muito recente, até pouco tempo o banheiro era interdito à máquina fotográfica.

Ana: Existem dois aspectos diferentes: uma coisa é trabalhar com a imagem como objeto de pesquisa e outra é como forma de construir um diálogo com seu interlocutor, o sujeito que você está estudando. As fotografias acionam as memórias, como você discute essa relação entre imagem fotográfica e memória?

Miriam: Na verdade, acabou ficando para mim que o retrato é um instante congelado da memória. A memória é um processo muito dinâmico, e o retrato é uma fixação de um momento. Mas, a memória que você tem é a fixação de vários momentos sucessivos. É verdade que eu trabalhei muito, não com uma história da família pelo retrato, mas com o retrato como um instrumento de percepção e forma de compreensão da imagem fixa. A imagem móvel, como o cinema e a televisão, traz toda uma série de outros problemas que eu não tratei, porque aí entra uma questão de como o tempo é resolvido, a sequência das cenas. E na foto não, a foto fica parada e ela é aquela só e aquele momento único, e tem essa vantagem que você pode olhar quantas vezes quiser e ir tirando, aos poucos, tudo aquilo que você pode tirar da contemplação. A imagem móvel passa muito depressa, você perde muita coisa. Estou tendo agora a experiência de ver vários filmes várias vezes, e a quantidade de coisas que você perde é muito grande, tanto que é muito difícil dizer que você lembra de cena a cena. Já a fotografia permite essa análise muito mais profunda, e em alguns casos essa análise é obtida por uma ampliação da fotografia, porque a fotografia é redução da realidade. Você pega uma coisa de três dimensões e reduz para duas e, também em relação à chapa e aos negativos, ela é diminuta. Nesse sentido, a ampliação às vezes é necessária para você ampliar o seu olhar. Naquele filme Blow up, o Antonioni[8] se aproveitou dessa condição do fotógrafo diante de alguma coisa que ele não vê e que, a partir de várias ampliações e de dias de contemplação, ele consegue entender que ali atrás está um homem morto.

Andréa: Você disse que a pose tinha uma questão prática, que a pessoa tinha de ficar parada muito tempo porque o filme era lento, mas também a questão da escolha, da composição do quadro, porque posar deste jeito, os objetos que se escolhem, por exemplo, criança com cavalinho, a paisagem pintada no fundo. Você chegou a pensar neste rol de significados que compõe o quadro?

Miriam: Isso acontecia muito na fotografia de imigrantes, em que eles tentavam, não só na sua roupa como também na imagem de fundo, apresentar um lugar distinto, ou plantas, móveis antigos, retratos também, retrato dentro do retrato e depois a roupa domingueira com que eles se apresentavam para serem fotografados. Tudo isso eram maneiras para se apresentar e poder exibir, para as pessoas que ficaram na terra ou para as outras pessoas da família, como eles estavam bem. Uma outra dificuldade desses retratos é a diferença. Você não consegue distinguir a classe social e econômica dos fotografados, porque eles procuram melhorar muito as suas imagens. Eu tenho um retrato de um antigo marceneiro com a mulher, e os dois têm uma pose e uma postura que você tem a impressão que eles são da nobreza, isso dificulta muito, é um dos limites da fotografia.

Andréa: Você falou que a fotografia também serve como troca de significados entre as pessoas…

Miriam: Porque, na verdade, a fotografia tem também a qualidade de ser objeto de culto dos antepassados, aqui eles estão e continuam presentes, mas é também uma forma de exibição, que é também uma maneira de você mostrar, para os outros, quem você é. Isso existe muito, tanto entre os imigrantes como nos outros. Havia muitos fotógrafos que tinham fantasias de outros lugares ou fantasias muito bonitas e que eles forneciam para os fotografados para que eles pudessem tirar as fotografias.

Ana: Lembro de um artigo que você produziu há algum tempo que se chamava “Atirei no que vi, acertei no que não vi” (Leite 2002:193-202), em que você comentava as poses de mulheres publicadas em revistas femininas, mas você comentava também como a mulher não deveria ser fotografada, poses que não se deveriam mostrar, pensando em representações sobre a mulher…

Miriam: Não é que não deveriam, mas as mulheres não gostavam, por exemplo, de ser retratadas naquele afogamento de tarefas intermináveis que a mulher tinha. Ela precisava se preparar para tirar a fotografia, mesmo quando a pessoa queria tirar na sua cozinha, ela dizia: não, eu preciso limpar, eu preciso arrumar. Era uma necessidade muito grande, porque aquilo fica fixo, você na memória pode apagar, mas na fotografia ela é fixada, ela é a imagem.

Andréa: E o que foi que você não viu e que você acertou, com esse trabalho das imagens das mulheres nas revistas femininas?

Miriam: Como eu estava muito interessada em fazer retratos de grupos, então de cara eu descartei fotografias individuais, mesmo porque as individuais são muito mais difíceis de analisar, você precisa de uma sequência muito grande de fotos da mesma pessoa para conseguir ter a análise. Então eu inicialmente descartei essas fotografias, existem muitas de primeira comunhão, por exemplo, também de pessoas mortas e todas essas eu inicialmente descartei, mas depois eu verifiquei que havia vários elementos que essas fotografias podiam me trazer, na medida em que eu poderia compará-las com mulheres de outros grupos, por exemplo, as mulheres e as imigrantes em geral, elas não sorriem, elas não têm do que sorrir, estão sempre muito sérias e muito preocupadas sempre. E o sorriso para a máquina é uma coisa da classe alta que depois foi se generalizando.

Francirosy: Eu tenho uma curiosidade, Miriam, já que a gente está conversando sobre fotografias, sobre memória. Hoje a gente não tem mais álbum, depois da câmera digital você fotografa tudo, você arquiva um monte de CDs que você demora quinhentos anos para olhar de novo e você se afoga nessas quinhentas mil fotos. Outro dia eu me deparei com uma imagem que eu não conseguia nem lembrar quando nós tiramos, quem tirou, mas a foto existe, ela está lá no meio das quinhentas mil fotos digitais que estão lá arquivadas. Eu tenho os álbuns até uma certa idade, o primeiro álbum de cada um. O primeiro filho a gente fotografa muito, o segundo diminui e o terceiro quase nada… Mas com a câmara digital, isso mudou, você fotografa qualquer respirada da criança hoje em dia, ele mexeu o dedinho você fotografa. Será que isso muda na análise da imagem? E a gente não faz mais ampliações como fazia antes, de uma ou outra, às vezes você até esquece, só tem em CD mesmo…

Miriam: Você olha muito menos o CD do que você olha uma fotografia, ele exige recursos mecânicos que a fotografia não exige. Houve um filme, eu não me lembro muito bem o nome, mas que as pessoas que tinham retratos de família eram seres humanos, os outros não tinham.[9] Essa é uma referência a isso que você está dizendo, mas as pessoas não vão usar o CD como usavam a fotografia, é uma outra coisa.

Andréa: É que a gente ainda não sabe como vai ser, porque estamos em uma fase de transição. É muito difícil, a gente se perde e perde as fotografias, porque quando a gente tinha que revelar, a gente era obrigado a fazer essa seleção, olhar, escolher, escolher a ordem que você vai pôr no álbum. É um relacionamento físico…

Miriam: E o tempo que você leva com ela é muito maior.

Andréa: Há um elo entre você e a fotografia impressa e aquelas imagens lá no computador parecem não criar elos…

Miriam: Elas não exigem de você nem seu tempo, nem sua atenção.

Francirosy: A gente cria álbuns virtuais, por exemplo, no Orkut. Então fotos mais recentes estão lá e outras mais antigas também. Você vai montando esses álbuns virtuais, mas é um outro tipo de relação, e essa garotada hoje em dia é muito rápida. Não tem nem a preocupação de guardar…

Miriam: Eu acho que a própria relação com o tempo dos mais jovens é diferente, é uma necessidade de velocidade que a gente não tinha, as coisas eram mais compassadas. E agora a coisa fica muito difícil de você adaptar um comportamento que era essencial, das famílias, pelo menos de classe média e alta, para as coisas de hoje. Hoje você consegue ter uma câmera digital até razoavelmente barata. E a fotografia tradicional exige muito mais de tempo, de dinheiro e de atenção.

Ana: Queria voltar um pouquinho à pesquisa sobre Maria Lacerda de Moura. Durante as gravações do vídeo, fizemos uma viagem para Guararema (São Paulo), quando fomos fazer uma segunda entrevista com a Dona Norma Campagnoli, e você levou fotografias dos pais dela, dos tios… Era um segundo encontro que tínhamos com ela. No primeiro encontro, ela havia sido muito seca, lacônica e, nesse segundo encontro, a partir do momento em que você entregou as fotografias, ela passou a contar muitas histórias, que era o que a gente estava buscando e não tínhamos encontrado até então…

Miriam: A fotografia é um instrumento de pesquisa fundamental, quer dizer, é possível que você chegue a não ter mais, mas em todo caso é muito importante. Nesse trabalho da Olga Von Simon sobre o carnaval nas primeiras décadas do século XX, ela usou o método frequentemente com os chefes de escolas de samba, as próprias fotografias deles que ela reunia e depois apresentava para eles dizerem o que eles tinham na memória sobre aquilo que estava ali.

Ana: Nessa situação com a Dona Norma, ela contou a infância, a história do tio, a partir daí a gente pode reconstruir um pouco do que foi aquela comunidade de Guararema. Interessante como a foto remeteu a esse outro tempo, as histórias dos antepassados, a infância…

Miriam: Pois é, mas dentro disso que estamos examinando, eu acho que daqui a pouco vai ser um instrumento que não vai ter mais, vamos ter que recorrer a outras formas de evocação da memória.

Andréa: A fotografia para você também serviu como um procedimento metodológico para evocar a memória?

Miriam: Foi, sem dúvida! Tanto que todas aquelas fotografias que vocês filmaram são todas fotografias de minha família e que me trouxeram vários momentos da minha vida que tinham se apagado.

Andréa: O que despertou que você tinha deixado apagar?

Miriam: Vimos fotos de umas tias com nenê no colo, que era um tempo em que eu estava muito longe delas…, mas eu tinha um entusiasmo por elas. São umas coisas assim, momentos de emoções que passaram e que voltam com a fotografia.


* Miriam Lifchitz Moreira Leite (1926-2013) formou-se em Ciências Sociais e História, pela Universidade de São Paulo (1947), tendo sido uma das fundadoras do NEMGE – Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher da USP, em 1985 – desde 1998 participava do GRAVI – Grupo de Antropologia Visual (LISA – USP). Realizou seu pós-doutorado pela Eastman Foundation-KODAK (1990), foi professora-doutora de pesquisa em imagem do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da USP. Dedicou-se a várias áreas do conhecimento, entre elas: gênero, família, fotografia e memória. Publicou 15 livros, mais de 30 artigos em revistas especializadas, contos, poemas e outros textos.

 

Artigos

LEITE, Miriam Lifchiz Moreira. 2003. “Janela da Alma”. Cadernos de Antropologia e Imagem, 15(2):177-180.

______. 2002. “Atirei no que vi e acertei no que não vi”. Gênero, 2(2):193-202.

______. 2002a. “Luce Fabri e o anarquismo contemporâneo”. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção.

______. 2002b. “Trajetória de uma rebelde”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 415:85-97.

______. 2000. “Mulheres viajantes no século XIX”. Cadernos Pagu, 15:129-143.

______. 2000a. “A condição feminina no reinado de Dom João VI” in: Anais do Museu Histórico Nacional – Dom João VI, um rei aclamado na América, p. 94-106, Rio de Janeiro: IPHAN.

______. 2000b. “Imagem e Memória”. Resgate, 8:9-16.

______. 1999. “As transformações da imagem fotográfica”. Revista de Antropologia, 41(2):7-18.

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______. 1997. “Psicanálise, sociologia e história” in: Ensaio – Avaliação e Políticas Públicas em Educação, 12:175-178.

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______. 1995. “A longa espera”. Revista da Biblioteca Mario de Andrade (Imagens de Mulher), 53:77-82.

______. 1995a. “Natureza e naturalistas: profissionalização do cientista”. Cadernos IG/Unicamp, 5(1):60-76.

______. 1994. “História das mulheres”. Revista USP, 23:56-62.

______. 1994a. “Memória da Faculdade de Filosofia (1934-1994)”. Revista do Instituto de Estudos Avançados da USP, 22:167-177.

______.1993. “50 anos do grupo universitário de teatro”. Revista USP,18:170-175.

______.1993a. “Fontes históricas e estilo acadêmico”. Estudos Feministas, 1(1):83-95.

______.1993b. “Ritual revestido: o retrato de casamento”. Encontros com a Antropologia: identidade, imigração, memória, 1:39-44.

______.1992. “História e fotografia”. Vozes (Cultura), 86(3):43-52.

______.1991. “Retratos de casamento”. Novos Estudos Cebrap, 29:182-189.

______.1990. “Uma construção enviesada: a mulher e o nacionalismo”. Ciência e Cultura (SBPC), 42(2):144-149.

______.1981. “Literatura de viagem: características de uma documentação”. Notícia Bibliográfica e Histórica, XIII (104):212-229.

______.1978. “Bibliografia anotada sobre a mulher brasileira”. Ciência e Cultura (SBPC), 30(1):24-31.

______.1975. “O Ensino de história no primário e no ginásio (cinco anos depois)”. Revista de História USP, 103:627-637.

 

Livros:

LEITE, Miriam Lifchiz Moreira; FELDMAN-BIANCO, B. (eds.). 1998. Desafios da imagem (Fotografia, iconografia e vídeo nas ciências sociais). 2ª ed. Campinas: Papirus.

LEITE, Miriam Lifchiz Moreira. 1997. Livros de viagem (1803-1900). 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.

______. 1997a. GUT: o ritmo vivaz. São Paulo: EDUSP.

______. 1997b. Diário do Barão E.de Langsdorff (1824-1825). 1ª ed. Campinas: Unicamp; Manguinhos: Fundação Oswaldo Cruz.

______. 1995. Pedagogia da Imagem e Imagem da Pedagogia. 1ª ed. Niterói, UFF: Faculdade de Educação da UFF.

______. 1994. “Caetano de Campos: fragmentos da História da Instrução Pública em São Paulo”. 1ª ed. São Paulo: Associação de ex-alunos do IECC, vol. 1.

______. 1993. Retratos de Família (Leitura da Fotografia Histórica). 3ª ed. São Paulo: EDUSP-FAPESP.

LEITE, Miriam Lifchiz Moreira; SIMSON, O. V. (eds.). 1992. Reflexões sobre a pesquisa sociológica. 1ª ed. São Paulo: Textos CERU 3.

LEITE, Miriam Lifchiz Moreira. 1991. A infância na história do Brasil. 1ª ed. São Paulo: Contexto.

______. 1984. A condição feminina no Rio de Janeiro século XIX. 3ª ed. São Paulo: HUCITEC/Pró-Memória/INL.

______. 1984. Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. 1ª ed. São Paulo: Ática.

LEITE, Miriam Lifchiz Moreira; MOTT, M. L.; APPENZELLER, B. K. 1982. A mulher no Rio de Janeiro no século XIX. 1ª ed. São Paulo: Fundação Carlos Chagas.

LEITE, Miriam Lifchiz Moreira. 1980. Iniciação à história social contemporânea. 3ª ed. São Paulo: Cultrix.

______. 1969. O ensino de história no primário e no ginásio. 3ª ed. São Paulo: Cultrix.

 

Capítulos de livros publicados:

LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. 2002. “Aspectos do Segredo”. In: FUKUI, Lia (org.). Segredos de família, p. 61-69. 1ª ed. São Paulo: Annablume; NEMGE; FAPESP.

______. 2001. “Morte e fotografia”. In: KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. (org.). Imagem e memória (ensaios em antropologia visual), p. 41-50. 1ª ed. Rio de Janeiro: Garamond.

______. 1999. “O opaco e a transparência no texto visual”. In: ECKERT, Cornélia; MONTEMOR, Patrícia (orgs.). Imagem em foco (novas perspectivas em antropologia), 105-114. 1ª ed. Porto Alegre, RS: Editora da UFRS.

______. 1999a. “Trabalho em andamento” In: KOSMINSKY, E.V. (org.). Agruras e prazeres de uma pesquisadora: ensaio sobre a sociologia de Maria Isaura Pereira de Queiroz, p. 69-76. 1ª ed. São Paulo-Marília: Unesp-Marília-Publicações; FAPESP.

______. Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 13, vol. 20(1+2), 2009, p.354.

______. 1999b. “Prefácio ao Diário da baronesa E.de Langsdorff (1842-1843)” in: Diário da baronesa E.de Langsdorff (1842-1843). 1ª ed. Florianópolis, SC: Editora Mulheres.

______. 1998. Maria Paes de Barros. In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de. (org.). A vida cotidiana em São Paulo no século XIX. 1ª ed. São Paulo: Ed. Unesp.

______. 1998a. “Imagem paradigmática no passado e no presente”. In: SAMAIN, Etienne (org.). O fotográfico, p. 35-40. 2ª ed. São Paulo: HUCITEC; CNPq.

______. 1997. “A infância no século XIX”. In: FREITAS, Marcos Cesar de. (org.). História social da infância no Brasil, p. 19-52. 3ª ed. Bragança Paulista: USF-IFAN; Cortez Editora.

______.1997a. “Mulheres viajantes no século XIX”. In: SCHPUN, Mônica Raisa. (org.). Gênero sem fronteiras, p. 35-44. 1ª ed. Florianópolis, SC: Editora Mulheres.

 

Notas

[1] Entrevista realizada pelas antropólogas Andréa Barbosa, professora adjunta do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo, Ana Lúcia Marques Camargo Ferraz, realizando pós-doutorado no Departamento de Antropologia da USP e membro do Grupo de Antropologia Visual (GRAVI/USP) e do Núcleo de Antropologia da Performance e do Drama (NAPEDRA/USP), e por Francirosy Ferreira, bolsista PRODOC no Instituto de Artes Unicamp, pesquisadora do GRAVI (Grupo de Antropologia Visual) e do NAPEDRA (Projeto Temático – Antropologia da Performance: Drama, Estética e Ritual). Publicada na revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 13, vol. 20(1+2): 339-354 (2009).

[2] Veja lista das principais publicações da autora ao fim desta entrevista.

[3] Moreira Leite, Miriam. 1993. Retratos de Família. São Paulo: EDUSP. Prêmio Jabuti.

[4] Miriam faz referência à Tese Brancos e negros no carnaval popular paulistano – Tese de Doutorado de Olga Von Simon (FFLCH/USP, 1989).

[5] Ver Moreira Leite (1993:161).

[6] Ver Moreira Leite (1993:162).

[7] Balinese Character, a photographic analysis. New York: New York Academy of Sciences, 1942.

[8] Referência ao filme Blow up, depois daquele beijo, de Michelangelo Antonioni, Inglaterra/Itália, 1966, 114 min.

[9] O filme referido é Blade Runner, o caçador de androides, Ridley Scott, EUA, 1982, 116 min., onde num mundo habitado por homens e androides, só os primeiros tinham memória, essa encarnada pelas fotografias de família.