Ano XIX 0201
Resenha
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Heloisa Teixeira e o olhar para a cultura na ditadura

Uma foto da professora Heloisa Teixeira, de cabelos longos pretos, aos 27 anos, em 1967, abre o seu mais novo livro Rebeldes e marginais: cultura nos anos de chumbo (1960-1970), publicado pela Editora Bazar do Tempo, com um projeto gráfico de qualidade assinado pelo designer Thiago Lacaz. É a primeira obra que ela assina com o sobrenome materno Teixeira (antes Buarque de Hollanda), iniciativa anunciada próxima da sua eleição para a Academia Brasileira de Letras (ABL), em 2023.

Capa de Rebeldes de marginais (divulgação).
Capa de Rebeldes de marginais (divulgação).

Com uma foto da atriz Helena Ignez na capa, em trabalho realizado para o filme A família do barulho, do cineasta Julio Bressane, o livro reúne textos escritos pela professora durante o período da ditadura militar, abordando as produções da cultura, os sinais de turbulência, visões estéticas e as dinâmicas do cenário artístico brasileiro. No texto de apresentação do livro, dedicado aos seus três filhos, Heloisa disse que se sente como se estivesse dividindo também uma grande parte da sua vida, “que se mistura às experiências e pesquisas em torno desse tempo de medos e sonhos”.

Testemunha dos acontecimentos, ela acompanhou e escreveu, no calor do momento, sobre várias questões do cenário cultural, em panoramas que se interligaram com a conjuntura política e seus dilemas. O grande mérito do seu trabalho envolveu a capacidade de observação, mediação e escuta atenta dos diversos atores envolvidos no campo cultural, como cineastas, cantores e escritores. É importante contextualizar a trajetória da professora para a compreensão da sua produção, influências e redes de sociabilidade, embora a marca da observação dos fenômenos, no aqui e agora, tenha sido seu potencial de investigação.

Nos seus tempos de estudante de Letras na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Heloisa fez amizade com a equipe que produzia o jornal Metropolitano e integrou o grupo universitário de teatro. Foi assistente do professor Afrânio Coutinho, seu orientador no mestrado e doutorado em Literatura, na antiga Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil (hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro). Os seus primeiros cursos e trabalhos acadêmicos mostram predileção por dois autores: José de Alencar e Lima Barreto. No final dos anos 1960, os textos de Roland Barthes começaram a aparecer como referência em suas aulas e estudos. Na UFRJ, construiu uma longa trajetória acadêmica em projetos variados, entre eles, a criação na Escola de Comunicação (ECO) do Centro de Documentação Cultural, que mais tarde daria origem ao Centro Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos. Dirigiu documentários, assinou coluna em jornal e organizou exposições (Hollanda, 2009).

A avaliação da professora a respeito do cenário cultural instaurado com o golpe militar de 1964 tem forte afinidade com a visão do crítico literário Roberto Schwarz, autor do texto Cultura e política, 1964-1969, em que ele fez uma contextualização da produção cultural brasileira da década de 1960 levando em conta as limitações e contradições das iniciativas surgidas no período. Schwarz propõe o conceito de “hegemonia cultural de esquerda” para explicar as dinâmicas culturais nos primeiros anos da ditadura militar. Apesar do comando da direita no Brasil, que derrubou o governo de João Goulart, Schwarz argumentou que a esquerda conduzia grande parte dos processos culturais e, em suas próprias palavras, dará “o tom” nos “santuários da cultura burguesa”.

Foto: Chico Cerchiaro/Companhia das Letras.
Foto: Chico Cerchiaro/Companhia das Letras.

No texto “O que fazer?”, Heloisa afirmou que o golpe traz consigo a reordenação dos laços de dependência, a intensificação do processo de modernização, a racionalização institucional e a regulação autoritária das relações entre classes e grupos e, nesse cenário, a dinâmica da produção cultural dificilmente poderia ser avaliada senão em confronto com as questões de ordem política, colocadas pelos movimentos sociais. Na avaliação da professora, houve uma situação até certo ponto paradoxal: “o país, encaminhado pelos trilhos modernos da industrialização dependente, encontra suas elites cultas fortemente marcadas por uma disposição que, em sentido ampliado, poderíamos dizer de esquerda”.

De autoria de Armando Costa, Oduvaldo Vianna e Paulo Pontes, o musical Opinião, que estreou no Rio de Janeiro em dezembro de 1964, foi apontado como a primeira resposta ao golpe, trazendo uma novidade importante, diferentemente do teatro realizado pelo Centro Popular de Cultura (CPC) na fase Goulart: o contato com setores da classe média e estudantil. Segundo a autora, a mobilização desse novo público, formado em sua maioria por estudantes e intelectuais, “revelava os limites da nova conjuntura e deixava entrever a formação de uma massa política que conheceria seu momento de força e radicalização nas passeatas de 1967 e 1968”.

Para a professora, os movimentos do Cinema Novo e do Tropicalismo ganharam relevância diante do momento de readequação dos trabalhos intelectual e artístico, e de dificultada relação entre a produção cultural e a militância política. Com o Cinema Novo assumindo um papel de frente, no campo da reflexão política e estética, e expressando o conflito e as ambiguidades que dilaceravam as práticas políticas e culturais naquele momento, e o Tropicalismo, ao catalisar os impasses da situação pós-1964, iria explodir no movimento de renovação da canção popular. No teatro, a encenação da peça O Rei da Vela, dirigida por José Celso Martinez Corrêa no Teatro Oficina, aproximava-se do cinema de Glauber Rocha e da renovação conduzida na MPB pelo grupo tropicalista e do trabalho de vanguarda das artes plásticas. Heloisa considerou que se configurava uma vasta área de afinidades no campo da produção cultural que envolvia uma geração sensibilizada pelo “desejo de fazer da arte não mais o instrumento repetitivo e previsível de uma veiculação política direta, mas um espaço aberto à invenção, à provocação e à procura de novas possibilidades expressivas, culturais e existenciais”.

Em “O vazio cultural: ame-o ou deixe-o”, Heloisa fez considerações do cenário cultural que divergem das interpretações do jornalista e seu amigo, Zuenir Ventura. Em reportagem na revista Visão, com base em depoimentos de intelectuais, Zuenir cunhou a expressão “vazio cultural” para explicar os impasses e desafios da produção e criação cultural frente às pressões do mercado e aos entraves do governo militar na década de 1970. Para a autora, o cenário de interferência do Estado no processo cultural e do rigoroso controle político da veiculação das mensagens passa a exigir dos intelectuais e artistas uma série de redefinições, recolocando em novas bases o debate de suas funções e de seu lugar social, o estabelecimento de novas táticas, a composição de novas alianças e até mesmo a opção por experiências formais e de linguagem.

Em especial, como forma de demonstrar que o “vazio” não se sustentava, Heloisa esteve atenta às produções da poesia marginal e aos comportamentos e valores da contracultura de liberação sexual, experiência com drogas e busca da liberdade. Frequentou os eventos e reuniões da geração do mimeógrafo, lançando, em 1976, a antologia 26 poetas hoje, com textos de Ana Cristina César, Torquato Neto, Chacal, Waly Salomão, entre outros. A poesia marginal, de acordo com a autora, se afirma na segunda metade da década de 1970 de maneira independente, tanto do mercado cultural aquecido do momento quanto das novas políticas culturais “amigáveis” anunciadas pelo governo do presidente Ernesto Geisel.

As suas pesquisas sobre o período da ditadura militar, realizadas em parceria com Marcos Augusto Gonçalves, indicaram que, nos anos 1970, surgiram condições para a consolidação de um mercado para a produção cultural e outras características, como indícios da profissionalização do escritor, o “surto” da poesia, a promoção de concursos literários, a proliferação de revistas da área, o lançamento de obras por editoras do ponto de vista mercadológico e a abertura de espaço da imprensa para os suplementos literários.

Na avaliação de Heloisa, as características da poesia marginal, que passam pela quase identificação entre vida e arte, vão encontrar forte semelhança com o teatro alternativo do Asdrúbal Trouxe o Trombone, criado no Rio de Janeiro em maio de 1974, e com o grupo musical Novos Baianos. Em outra frente, diversa do ethos marginal, ela apontou também o papel da imprensa alternativa na resistência ao controle de informações e divulgações político-culturais do período de forte censura da grande imprensa.

A trajetória e a produção da professora envolveram os desafios de apontar e interpretar as dinâmicas culturais, em um diagnóstico que as ligassem com contextos políticos na abordagem de assuntos até mesmo pouco observados (ou renegados) pelo meio acadêmico. Os textos ajudaram a abrir a discussão nos espaços onde fluíram e deixaram, em grande medida, caminhos e sugestões que podem ser avaliados e interpretados por novos leitores e interessados nas relações entre cultura e política. Os textos representam uma visão (entre outras possíveis) ao se lembrar daquela época.

Com estudos que caminharam para outros temas (a cultura produzida nas periferias urbanas, as relações de gênero e o impacto das tecnologias digitais na produção e no consumo), Heloisa fez algo importante neste livro, pouco ainda notável no meio universitário: o compartilhamento das suas fontes de pesquisa, em uma abertura de gavetas e arquivos onde se encontram potenciais de novas pesquisas. Ao final do livro, com o título “O livro vivo: entrevistas e documentos audiovisuais”, o leitor encontrará QR codes para interação que levam a vídeos, entrevistas, depoimentos, áudios e imagens do acervo da autora, em uma iniciativa que demonstra a generosidade e a partilha de própria parte da sua vida, dedicada a compreender o campo cultural brasileiro.

* Felipe Quintino é professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP).
Referências bibliográficas
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Escolhas: uma autobiografia intelectual. Rio de Janeiro: Carpe Diem; Língua Geral, 2009.

SCHWARZ, Roberto. Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

TEIXEIRA, Heloisa. Rebeldes e marginais: cultura nos anos de chumbo (1960-1970). Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2024.

VENTURA, Zuenir. O vazio cultural. In: GASPARI, Elio; HOLLANDA, Heloisa Buarque de; VENTURA, Zuenir. Cultura em trânsito: da repressão à abertura. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2000.