Pornô? Erótico? Pornô/erótico?
Desejo, erotismo, obscenidade, pornografia e seus correlatos: dimensão humana fundamental – e também assunto (lucro) dos produtos na indústria cultural, seja pelo escracho ou pelo silêncio, enfrentando ou reforçando a moral. O Cinema não fica de fora desse panorama paradoxal e oferece um cenário extremamente particular nos anos 1970, convidando-nos a assistir ao flerte ambíguo entre alguns regimes autoritários e o cinema pornô/erótico. Traz uma faca de dois gumes: o campo permeia ideais regulatórios em meio à exploração da sexualidade e o transgredir acaba por se interligar à moral.
De início, vale comentar a velha dicotomia entre pornografia e erotismo, discussão sempre efervescente. Maria Filomena Gregori faz uma brilhante passagem por algumas dessas discussões no início de seu livro Prazeres Perigosos: Erotismo, gênero e limites da sexualidade (2004), na qual explica sua opção pelo uso das nomenclaturas de maneira indistinta, “seguindo a orientação dos estudiosos da tradição de escritos e imagens eróticas desde o Renascimento” (p. 30), apesar do senso comum fazer essa distinção. Gregori se refere ao uso corrente que relaciona o erotismo à literatura libertina do século XVIII, insinuando reflexões da filosofia e das artes e remetendo ao erudito, enquanto a pornografia seria a “contraparte empobrecida”, ligada à produção mercadológica e vulgar.
Segundo Freire (2000, p. 70), estaria em pauta também a questão da explicitude: o erotismo seria onde “o verbo nunca se faz carne”, se deixa e não se deixa ver, enquanto a pornografia pode mostrar… tudo. Ou tudo que o âmbito público comporta, chamando a atenção para outra dualidade, com a esfera privada: há autores que caracterizam a pornografia como permanentemente marginal, legitimando-se justamente em não se pretender artística. Menos sobre como e mais sobre onde, seu aspecto transgressor se daria justamente por cruzar os limites do doméstico, sem jamais superar o tabu (Ayla, 2013). Por outro lado, os grandes mestres do erotismo, como lembra Eliane Robert Moraes, eram também muito explícitos (A parte maldita brasileira: Literatura, excesso e erotismo, 2024). Onde e por que se traça o corte?
De maneira geral, essas categorias discursivas dependem de onde se faz o discurso, por quem e sob quais motivações, especialmente em se tratando da produção de cultura material e das estratégias mercadológicas aí imbricadas. Um mesmo cartaz ou filme poderia receber diferentes alcunhas se visto no Cine Íris[1] ou mencionado em um trabalho acadêmico, por exemplo. A teia de sentidos é densa e tensa, e muitos pesquisadores evitam a distinção entre pornografia e erotismo, a fim de desviar da legitimação os gostos e espaços da classe dominante, se tomamos uma visão bourdiana. Em vez de relegar a pornografia e seu público ao banal e sem crítica, buscam “tomá-la como o resultado de um longo percurso histórico, [o que] significa inseri-la na trama das representações do erotismo e da sensualidade no Ocidente sem deixar de reconhecer as especificidades que a particularizam e diferenciam de seus antecessores” (Maçaranduba, 2017, p.9). “A pornografia é o erotismo dos outros”, diz a famosa frase de autoria insegura, atribuída em suas variações a André Breton, Georges Bataille, Millôr Fernandes, entre outros.
Aqui, elegemos a denominação “pornô/erótico”, marcada pela barra, como maneira de sustentar a problematização e evitar reduzir as produções cinematográficas a uma ou outra classificação. Mais vale uma mirada ampla sobre as produções que tatearam a sexualidade – comercialmente ou não, explicitamente ou não – para pensar a relação dessas com a censura vigente então (e atualmente, com novas facetas) na América do Sul e no restante do globo.
Antes e durante a pornochanchada brasileira
A década de 1970 é marcada por dicotomias. Enquanto uma onda de liberação dos costumes se mostrava na militância organizada e nos movimentos artísticos e culturais, ditaduras violentas se consolidavam em vários países. No Brasil, o milagre econômico, a televisão e uma vitória na Copa do Mundo disfarçavam as atrocidades do regime instaurado em 1964 e suas censuras, mas grupos de teatro, música e cinema não deixavam o moralismo passar totalmente impune. É justamente aí que a exploração do pornô/erótico nas telas ganha vigor, amparada por uma tendência internacional e pelo interesse do próprio Estado em lucrar com esse tipo de produção.
O cinema latino-americano passa a retratar suas contradições nacionais com mais força nessa época: contradições individuais, daqueles atormentados pelos regimes militares, em meio à juventude transgressora; contradições políticas dos próprios regimes em suas permissões e proibições; contrastes nas famílias latino-americanas em seu encontro com o número crescente de produções e produtos importados – o paradoxo, tônica do erotismo, é também a tônica do período. Por alto, podemos dizer que persistem filmes questionadores e guiados por temáticas sociais, muitos com tom mais intimista, em relação à pegada épica da década anterior. Mas, humor, paródia e ironia também tomam papéis fundamentais, na tentativa de aproximar o universo popular das telonas.
Na Europa, esses elementos são observados no cinema pornô/erótico desde meados dos anos 1950, quando despontam as commedias all’italiana, com seus personagens típicos como o “malandro” e o “cornud” (Couto, 2023). Essas comédias populares, que viriam a ser sucesso mundial até meados dos anos 1970, consistiam em “lidar com os termos cômicos, engraçados, irônicos e bem-humorados em relação a assuntos que são bastante dramáticos”. Foi como explicou Mario Monicelli, um dos diretores-chave do gênero, completando: “é isso que distingue a comédia italiana de todas as outras comédias” (Monicelli, 1999, tradução nossa). E claro, em meio ao riso e ao drama, circulavam as muitas cenas eróticas all’italiana.
A Espanha não ficou de fora desse tipo de produção nem durante a ditadura franquista (1936-1975), mas foi nos anos de abertura, em meados da década de 1970 que o cine de destape espanhol inundou o país com filmes de humor grosseiro e absurdo, referências a personagens populares e paródias sociais. Eram trabalhos permeados por nudez, conteúdos sexuais e eróticos, baratos para produzir e lucrativos, que tiveram sua circulação permitida sob a classificação “S”[2], a partir da aprovação do então presidente Adolfo Suárez.
As pornochanchadas brasileiras são diretamente influenciadas por essas produções italianas e espanholas, tanto nos conteúdos quanto nos tratamentos gráficos dos cartazes, escolhas de cenário, figurinos etc. Inegável também que os três países de língua latina em algum momento banharam-se do Golden Age of Porn (1969-1984), época em que a pornografia comercial estadunidense alcança níveis de distribuição assombrosos. Com as primeiras exibições de sexo explícito nas telas, os filmes pornô/eróticos norte-americanos se espalharam pelo mundo e atraíram a atenção positiva da mídia, do público e até de críticos em geral. A circulação dos filmes tornou-se mais fácil depois de uma decisão da Suprema Corte dos EUA relaxando a definição de “obscenidade”, dando espaço não só para produções consideradas “intelectualizadas”, como de Andy Warhol e Bernardo Bertolucci, mas para filmes bastante comerciais.
Garganta Profunda (1973), dirigido por Gerard Damiano e estrelado pela atriz Linda Lovelace, foi um desses sucessos de bilheteria e tornou-se símbolo da “era dourada” sob o rótulo de “pornô chic” (Paasonen; Saarenmaa, 2017). Anos depois, Lovelace revelou que tinha sido obrigada pelo então namorado a participar do filme e a submeter-se a atos sexuais indesejados. O relato brutal de Linda traz à tona a faceta mais perversa do mercado pornográfico, não raro escondida sob o “entretenimento” exibido nas telas (Ribeiro, 2022).
A nomenclatura “pornochanchada” surge fazendo referência às tradicionais chanchadas brasileiras dos anos 1940 e 1950, nas quais problemas do cotidiano popular eram tratados com comédia e ironia. Esse tipo de filme teve forte influência das comédias italianas em episódios, fonte da qual também beberia o sucessor mais “ousado” – ainda que “pornô” tenha sido adicionado como mero chamariz, prometendo algo que, para os menos conservadores, quiçá nem se cumprisse nas telas. O rótulo “pornochanchada” foi uma mera “expressão da liberação dos costumes da época. Uma tematização da ‘revolução sexual à brasileira’” (Abreu, 1996, p. 75). Também à brasileira, ficou escrachado o falso moralismo: se a pornochanchada fez sucesso, não foi por corromper o respeitável público, mas por dar rosto e corpo ao que já pairava no imaginário predominantemente normativo do público.
Um olhar cuidadoso nota que a tal “pornochanchada” se caracteriza menos como gênero cinematográfico, estanque em sua definição, e mais como movimento. As pornochanchadas se aproximam não necessariamente pela comédia ou pela pornografia, mas por uma maneira particular de fazer cinema. Com a censura baforando no cangote de um lado e as produções estrangeiras de outro, surgiram os “roteiristas de suvaco”, andando com suas ideias em busca de um produtor que os financiaria do próprio bolso. Essas produções artesanais e comunitárias tiveram seu principal reduto na Boca do Lixo, em São Paulo, onde trabalhadores da indústria do cinema consolidaram uma espécie de Bollywood pornô/erótica.
O baixo orçamento, os títulos chamativos e a provocação com a obscenidade para atrair bilheteria, tudo contribuiu para uma homogeneização das produções em questão. Foi a legitimação do gosto dominante, no entanto, que determinou quais filmes teriam cravado o rótulo em geral pejorativo de “pornochanchada”. Dona Flor e seus Dois Maridos (1976), celebração do livro de Jorge Amado ao som de Chico Buarque, por exemplo, ocupa um lugar mais “ao sol”, considerado o clássico do cinema brasileiro que de fato é. Poderia, entretanto, ser lido também à luz de seu tempo: mescla de comédia e erotismo, bem explorada no cartaz também clássico que remete a outros títulos da pornochanchada. Na série Boca do Lixo: A Bollywood Brasileira (2011), o ator Adriano Stuart menciona o filme de Bruno Barreto seguido de algo como “me perdoem, mas aquilo é pornochanchada!”. Não se trata de qualificar e classificar um ou outro filme, mas justamente de refletir sobre o reducionismo que assola certas nomenclaturas e restringe novas leituras.
Benício, nome artístico de José Luiz Benício da Fonseca, foi o responsável por esse e muitos outros pôsteres de divulgação cinematográfica na época, consagrando-se como principal criador dos cartazes da pornochanchada – muitas vezes mais “bem-trabalhados” que os próprios filmes. Utilizando guache, fotografias e desenhos, sua linguagem visual, sempre atravessada de erotismo, serviu muito bem à divulgação intensa das películas e acabou por sintetizar e reunir o “gênero” graficamente. Benício é um dos poucos artistas gráficos do período que recebem crédito pela autoria dos cartazes fílmicos.
Outro cartaz que se tornou símbolo internacional e marcou o início da carreira da protagonista, Vera Fischer, foi o de A Super Fêmea (1973), filme de Aníbal Massaini Neto. Os cabelos esvoaçantes e o olhar penetrante da atriz miram o espectador e fazem a pin-up à brasileira quase saltar do fundo branco. Elementos reduzidos contrastam com a ilustração entre realista e kitsch, carregada em sombra abaixo do título colorido e irregular, no estilo de histórias em quadrinhos. No título mesmo se vê a busca pela insinuação e pelas curvas, ingredientes que também valiam para a figura feminina desse e de outros cartazes. Benício foi “direto ao ponto”, fazendo de Vera, em sua caricata feminilidade, objeto inevitável do olhar.
Outro cartaz interessante, de um filme bem menos aclamado e até “malvisto”, é o de As Taradas Atacam (1978), dirigido por Carlos Mossy. Mulheres nuas, com poses insinuantes e novamente como objeto do olhar, enquanto a direção dos filmes é majoritariamente assinada por homens. Aqui, o personagem masculino aparece de maneira central, servindo de espelho para o espectador, em clássico retrato da orgia de um homem só (a julgar por sua expressão, a fantasia é, no mínimo, inquietante).
A Embrafilme, principal órgão de regulação e financiamento do cinema brasileiro nas décadas de 1970 e 1980, nasceu em 1969 e tangibilizou ainda mais a dualidade das produções pornô/eróticas com o Estado, além de sedimentar essa legitimação ambígua. Havia uma docilização para com o órgão: era preciso driblar possíveis censuras, sem deixar de oferecer o “segredo do sucesso” da pornochanchada – leia-se, o sexo. Sacanagem condenada, mas financiada. Ainda assim, a Embrafilme reservou seus recursos principalmente a filmes com polêmicas apaziguadas, seja pela legitimidade conferida pela literatura, convocando atrizes respeitadas pelo grande público ou vislumbrando a possibilidade de destaque internacional. Dessa maneira, a pornochanchada acabou não perdendo seu caráter marginal de todo, circulando pelas beiradas do regime, ainda que não o combatesse diretamente.
O crivo da Embrafilme, tanto para censura quanto para a distribuição de financiamentos, é parte do retrato das “irmãs gêmeas de comportamentos opostos”, na expressão do crítico brasileiro José Carlos Avellar, que nos demos ao luxo de adaptar para o título, a partir da leitura de Katharine Trajano. A relação de “siameses opostos” é cerne das produções eróticas paródicas em meio a ditaduras: “repetição em termos grosseiros dos ideais do poder, e também (…) forma de oposição ao apelo para os bons modos contidos nas mensagens produzidas pelo governo” (Avellar, 1980, p. 70 citado por Trajano, 2019, p.8).
As sexi comedias argentinas
Partindo para a Argentina, as sexi comedias marcaram a última ditadura do país (1976-1983) com seus roteiros eróticos, cômicos e esteriotipados. Atrizes sedutoras no papel de amantes, esposas traídas ou infiéis, contracenavam com garanhões “malandros” e irresistíveis. Os cartazes não deixam mentir: com influências hollywoodianas e do teatro de revista, como no caso brasileiro, são geralmente dominados por uma mulher seminua a ser observada por outros personagens e pelo próprio espectador. No cartaz de Los Hombres Piensan Solo En Eso (1976), a dupla cômica Alberto Almedo e Jorge Porcel segura as mãos da atriz Susana Gimenez, em uma versão mais perturbadora do cartaz de seu contemporâneo brasileiro já mencionado, Dona Flor e seus Dois Maridos. A figura feminina no centro, cores vibrantes, tipografia brincalhona e chamativa são alguns dos elementos que se repetem nos cartazes satíricos e populares das sexi comedias – “amador” também é adjetivo comum.
A legislação também se alinhava ao caso brasileiro e delineava a duplicidade do regime em relação a essas produções: ao passo que fomentava o Cinema nacional e financiava extensivamente as sexi comedias, mantinha um discurso agressivo de repressão ao sexo e à “imoralidade”. Em 1971, o Decreto-Lei n° 20.170 traça cortes orçamentários a películas que abordassem sexo e drogas experimentais; em 1978, um Decreto-Lei da Comisión Asesora Legislativa (CAL) reforça o desenvolvimento da cinematografia como “um meio positivo de educação para a comunidade e de difusão da cultura nacional no país e no estrangeiro” (D’Antonio, 2015, p. 915-918). No mesmo período, as sexi comedias representavam 17% da produção cinematográfica argentina durante o Proceso de Reorganización Nacional (PRN) – como era chamada por seus líderes essa última fase da ditadura – e apenas três foram censuradas, ainda que houvessem órgãos específicos criando listas de atores ou diretores considerados perigosos e obscenos.
As sexi comedias não se caracterizavam propriamente como propaganda governamental, no estilo da Alemanha Nazista, mas ensaiavam uma relação cortês com o Estado (Avellar, 1980). Por vezes um sorriso amarelo e um engolir seco, quando desafiavam a censura com temas homoeróticos, por exemplo, mas jamais o cuspir da bebida no anfitrião – aquele que “gentilmente” financiava a festa e acabava por justificar a existência mesma das sexi comedias na época. Sem deixar de brindar o público com uma ansiada quebra de tensão cotidiana (“pão e circo”), esses filmes eram também “forma de mascarar a brutalidade do regime – servindo, então, a um suporte ideológico” (Avellar, 1980, p. 7). Quer em Buenos Aires ou na Boca do Lixo, lembremos que as obras desse período apresentam, em diversas manifestações culturais, “contradições internas às próprias concepções estéticas engendradas pela Censura” (Novaes, 1980, p. 3) e refletem, embora nem sempre claramente, o pensamento desafiador, mas também o pensamento dominante.
Não se pode negar os efeitos dos filmes pornô/eróticos em nossos vecinos: assim como no Brasil, foi aquecida a discussão sobre os vínculos entre sexo e política. No final dos anos 1970, o nome destape, trazido da Espanha, se populariza na Argentina e ganha sentido para além das sexi comedias: contamina revistas, televisão e outros meios de comunicação que acendem os questionamentos sobre as relações entre censura, cinema, erotismo e Estado. Como dizia a revista porteña Somos, a única diferença entre o destape latino-americano e o espanhol era a tarja, que ainda cobria as mulheres argentinas – timidez quiçá compensada pelo tom mais grosseiro nas terras do Sul. As afinidades entre “os destapes” eram facilmente reconhecíveis, temáticas e formais, apesar das produções espanholas jamais haverem circulado nos cinemas da Argentina (Manzano, 2019).
Novamente caminhando em passo similar às coletâneas brasileiras, as sexi comedias são progressivamente divulgadas no exterior, na tentativa de distorcer ou distrair o olhar internacional. Como poderiam as cenas hilárias e coloridas, tão libertárias, serem filmadas sobre os porões de tortura? Se havia denúncia, essa costumava ser menos explícita do que as cenas picantes.
Permanece, então, a crítica de que o destape, num geral, seria uma forma de meramente “tapar” problemas sociais, através de retratos sexistas e moralistas. Continuam a sobrar dualidades: se a nudez das mulheres foi parcialmente permitida pelos censores durante a década de 1970 e principalmente nos filmes de 1980, não foi assim nos cartazes. A mulher manteve-se objeto chamariz do fetiche normativo enquanto o falo era “protegido” dos espectadores, um dos motivos pelos quais muitas teóricas feministas não inserem a maioria das sexi comedias e das pornochanchadas no âmbito dos filmes pornô “libertários”. A estética “amadora” foi outro alvo de comentários duais, sendo assim chamada ora de maneira pejorativa, ora para ressaltar a qualidade proposital dessas representações “toscas”:
Quando a câmera estica o olho para ver os seios de uma secretária por trás de um decote amplo, (…) não é a possível excitação provocada pela imagem do peito meio coberto, ou da calcinha entrevista. O que importa é a grosseria da construção da cena. O sexo de dimensões imensas. (…) E a visão ruim mesmo, o plano mal construído, a imagem indefinida por um erro de exposição ou por um defeito na lente. (Avellar, 1980, p. 77)
Sem necessariamente julgar as qualidades éticas ou estéticas das sexi comedias, antes é preciso assumir seu valor de testemunho histórico. São registros tangíveis de um período conturbado e fértil, atualizados no cinema pornô/erótico de outros países latinos até hoje e nas inúmeras pesquisas acadêmicas que vêm sendo desenvolvidas sobre o assunto. Se são “hipócritas” de essência, são também reflexo da hipocrisia inerente ao período de seu nascimento.
O apagão chileno
Com Brasil e Argentina já mergulhados em autoritarismo, em um contexto de Guerra Fria e Revolução Cubana, militares chilenos decidem abandonar sua neutralidade e intervir diretamente nas instituições democráticas do país andino. O Palácio Presidencial La Moneda é bombardeado no dia 11 de setembro de 1973, culminando na saída do então presidente Salvador Allende e na tomada de poder do general Augusto Pinochet.
Nos anos que se seguem, as políticas dos Chicago Boys, grupo de economistas chilenos adeptos das ideias do professor Milton Friedman, da Universidade de Chicago, se instauram no país e transformam-no em um “grande experimento do neoliberalismo econômico no século XX” (Memória e Resistência/USP, 2017). A tática da “terra arrasada” foi sanguinária ao ponto de solapar um sentido de identidade cultural e coletiva para a população chilena. A perseguição e tortura aos opositores do regime e o forte autoritarismo se consolidaram juntamente ao “reforçamento da ordem tradicional no que tange ao gênero e à sexualidade, expressado na difusão e defesa do modelo heterossexual, da família nucelar e dos valores conservadores e católicos” (D’Antonio; Eidelman, 2017, p.3).
O Chile, porém, não se eximiu totalmente da liberação dos costumes, ainda que muitas vezes normativa, característica dos anos 1970: pipocaram nos centros urbanos vários estabelecimentos na linha dos cafés con piernas, lugares que até hoje atraem homens em Santiago ou Valparaíso para tomar drinks caros servidos por mulheres de mini saia. Também não eram poucos os clubes de striptease, saunas gays e cabarés. O país hospeda convívio e confronto comuns a vários países latino-americanos, onde um cenário “subversivo” ao mesmo tempo choca e se mescla ao rígido controle da moral e dos costumes.
No caso do Chile, esse controle foi especialmente rigoroso com as temáticas ligadas à sexualidade e ao sexo, já duramente reguladas no âmbito cinematográfico desde o início do século XX, quando a Liga das Damas Chilenas avaliava filmes e opinava nas proibições. As formas de vigilância e censura foram se modificando e persistindo ao longo do século: no âmbito estatal, através do Código Penal e das normas e instituições regulamentadoras (eram muitas para fiscalizar o Cinema), bem como por meio de estratégias agressivas de normatização mascaradas como conquista de direitos. É o caso das cirurgias de redesignação sexual realizadas nos anos 1970 em hospitais públicos de algumas capitais, sob a vista grossa do Estado. Mais do que a liberação dos costumes, esse “deslize de permissividade” ilustra a preocupação do regime em “normalizar as sexualidades ambíguas e ressituar essas pessoas no marco de um dos gêneros aceitos socialmente” (D’Antonio; Eidelman, 2017, p. 22). Os siameses se embrenham.
Um parêntese para esse “deslize de permissividade” é o caso de Marcia Alejandra: a legislação chilena deixava um “vazio legal” no tema das intervenções cirúrgicas, o que acabou por viabilizar a realização, caso a caso, de cirurgias de redesignação sexual nos anos 1970. Marcia Alejandra foi a primeira. Não era apenas uma brecha: além de extensas coberturas midiáticas sensacionalistas, a Sociedad Chilena de Sexología Antropológica endossou as cirurgias (jamais falando em transsexualidade, mas em “mudança de sexo”) como via para resolver a “indefinição sexual” e os conflitos legais “causados” por pessoas que não se enquadrassem no esquema binário de gênero (Edwards, 2016). Como explicar que um regime ditatorial dos mais violentos da América Latina, em uma época em que coletivos heterodesviantes eram praticamente inexistentes no país, tenha apoiado estas cirurgias? A indefinição, mais do que qualquer inversão, perturba a ordem. Se o Estado se valeu das cirurgias para reforçar sua lógica normativa, Marcia resistiu “(…) com a ajuda do próprio material deslocado, movido com fins de reconstruções cambiantes” (Derrida, Roudinesco; 2004, p. 9). Virou vedette, foi ao Egito, se apaixonou pelas canções de Maria Bethânia, abriu um então raríssimo espaço de inteligibilidade para pessoas trans, ainda que pela via medicalizante do regime. Como escreveu Pedro Lemebel sobre a amiga: “Para mis verdes abriles de mariquilla poblador, la Marcia Alejandra era casi Marilyn Monroe, casi Liz Taylor, casi Eva Perón, casi la Venus marica del norte, casi la virgen cola de las arenas que ocupaba las portadas de los diarios, después de que la ciencia médica de un hachazo le había cortado el sobrante masculino, pero le dejó el casi” (Lemebel, 2003, p. 152).
A julgar pelos exemplos argentino e brasileiro, poderia se imaginar que o momento de liberação sexual teria ressonância na tela dos cinemas chilenos, fazendo frente ao passo que baila com a censura. Os filmes nacionais teriam sido também cabos de guerra entre polos de uma mesma corda? A discussão sequer pôde tomar forma no contexto do Chile: o “apagão cultural” foi implementado com tamanha violência no país que basicamente minou a produção cinematográfica local na década de 1970 e o “Novo Cinema Chileno” dos anos anteriores ao golpe, quando estava no poder a Unidade Popular. Com a ditadura de Segurança Nacional instaurada, produzir filmes no Chile tornou-se tarefa extremamente árdua de maneira geral, que dirá no caso de filmes eróticos ou pornográficos. Diferindo dos vizinhos do Cone Sul, o cinema pornô/erótico chileno não foi ferramenta para distrair do cotidiano opressivo ou instrumento para promover os interesses morais do governo – autores como Jacqueline Mouesca (1992) e a já citada historiadora D’Antonio (2017) sugerem que houve um movimento radical e bastante eficaz de eliminação do Cinema.
Vale comentar que durante o governo da Unidade Popular (1969-1973) houve grande fomento à produção cinematográfica nacional, de cunho altamente político-social, em concomitância à censura de filmes estrangeiros que promoviam ideais capitalistas e burgueses. No entanto, conteúdos homoeróticos ou considerados demasiado obscenos eram também motivações explícitas para a censura das películas importadas. Vê-se que os temas sexuais no Cinema foram alvo da censura sob diferentes governos – sem relativizar as atrocidades da ditadura militar, podemos pensar que a década de 1970 ilustra bem como vertentes políticas radicalmente diferentes podem acabar se aproximando em alguns de seus discursos proibitivos.
O efeito do reforçamento das políticas sexuais do regime militar se fez profundo na sociedade chilena. O Cinema resistiu com o pouquíssimo que se alcançava, ao produzir localmente e através do “cinema chileno de exílio”, feito fora do país por chilenos exilados, como o nome entrega. Já o cinema pornô/erótico essencialmente se extingue e só vem a desabrochar nos anos 2000. Nos anos 1970, de produção local com algum cunho erótico restam apenas programas como Jappening con Ja (1978), exibido inicialmente pela Televisão Nacional, mostrando cenas de flerte entre um chefe bonitão e sua secretária sedutora.
Devido ao “atraso” de décadas, o cinema pornô/erótico chileno tem sua “era de ouro” apenas no início do século XXI e acaba por resgatar estética e temáticas das sexi comedias e pornochanchadas dos anos 1970. Valendo-se do humor e “escracho” típicos das produções latino-americanas, o pioneiro Leonardo Barrera filma em 2000 Historias de una Adolescente Ninfomaníaca e Hanito, el Genio del Placer. São considerados os primeiros filmes pornô/eróticos chilenos, ou ao menos os primeiros filmes do gênero a serem aprovados pelos órgãos de regulamentação e vendidos em sex shops ou locadoras (o primeiro cinema a exibir pornô, Cine Apolo, só chegaria em Santiago em 2001).
O cartaz de Hanito, el Genio del Placer é um ótimo exemplo do resgate da época-não-vivida pelo país do Pacífico: a figura central feminina “sendo vista”, título chamativo e certo exagero de elementos gráficos (destaque para o “selo” da bandeira do Chile e a palavra “CHILENO”, ressaltando a produção nacional). Outros cartazes exibiam ilustrações, títulos com grafismos exagerados e, de uma maneira geral, a estética improvisada ou “amadora” inconfundível das sexi comedias argentinas e pornochanchadas brasileiras – agora ainda mais improvisada, como se verifica pela dificuldade de encontrar uma imagem do cartaz em alta resolução. A maioria desses filmes chilenos foi feita com baixo financiamento e ajuda de amigos, não contando com o apoio do Estado como seus antecessores. Já o retrato cômico das mudanças sociais de seu tempo (propositalmente ou não) permanece visível como nas produções de trinta anos antes. Mesmo que muitos considerem “alienada” toda sorte de produções do gênero, o distanciamento histórico evidencia a possibilidade de ler alguma carga de reflexão sobre o período histórico e político da época.
As “irmãs gêmeas de comportamentos opostos” afagam e enforcam: se por um lado a última década trouxe importantes conquistas no campo dos direitos civis para algumas vivências não hegemônicas, foi marcada também por um avassalador avanço do conservadorismo em nível nacional e global, institucionalizado pela eleição de governantes de extrema-direita e marcado por tentativas de apagão cultural e implementação de medidas autoritárias e de censura que remetem às ditaduras militares do último século.
O cinema pornô/erótico dos anos 1970, bem como seus cartazes, conserva algo de resistência ao autoritarismo, sem perder seu status de ferramenta poderosa de controle de massa a serviço dos mesmos regimes autoritários que critica. A pornochanchada sintetiza muitas dicotomias que marcaram o período e até hoje se fazem sentir no nosso país tropical: quente, bem-humorado, permissivo; assolado pelo autoritarismo e pela busca incessante de agradar ao público internacional. Não se trata de crucificar os filmes, tampouco de relevar seus aspectos normativos, machistas e propagandistas, mas de tomar o paradoxo como modo de pensamento e construção do mundo. Lançar um olhar cuidadoso (crítico e atento) sob e sobre o emaranhado que envolve e move o cinema pornô/erótico dos anos 1970 até hoje é tentativa de refletir sobre os “siameses opostos” do presente e questionar a herança maldita e sorrateira das ditaduras, sessenta anos após o golpe militar – como a resistência, a herança pode ser encontrada nos lugares mais insuspeitados. A ponderação sempre arrisca resvalar para a covardia, mas aqui buscamos apenas traçar um primeiro panorama: “essa aventura inverossímil foi a primeira, o ponto de partida para muitas outras” (Rodrigues, 1992, p. 223).