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Os indícios da perda | de Eduardo de Araújo Teixeira

Uma leitura de Nós que adoramos um documentário, de Ana Rüsche 1

“Pensei que viver seria estar no poema”
Ana Rüsche

I
Em Nós que adoramos um documentário, Ana Rüsche parece levar a termo esse desejo, posto aqui na epígrafe, de ser poema. Partindo de um título que anuncia um texto que se propõe documental, Ana Rüsche cerze uma intrincada autobiografia poética, menos lírica e mais prosaica, embaralhando formas, tencionando limites entre poesia narrativa e lírica discursiva. Memória, presente e futuro sci-fiction se entrelaçam na construção da paisagem interior de um ser em crise, posto que o livro orbita e se distende a partir da experiência de um trauma.
II

Se o romance Acordados, pelo protagonismo de uma linguagem poética que se parecia bastar página a página, fazia inexata a classificação de prosa, o mesmo cabe a Nós que adoramos um documentário. Ana Rüsche mais uma vez parece querer tensionar os limites dos gêneros, compondo uma autobiografia que não dispensa a ficção, mas que ao longo das 114 páginas se realiza de modo fragmentado em poemas que se conectam por continuidade de temas e até por versos reiterados.

Conectar parece o termo certo a uma obra que é também produto da fragmentação, da escrita rápida (quase descuidada) dos blogues; estendendo aqui seu intimismo, à natureza de diário em forma versificada. Consciente desta relação com a internet, a poeta faz do próprio projeto-livro uma extensão da relação autor/leitor, incluindo páginas em branco entre os poemas para que o leitor escreva-se igualmente, como quem preenche os comments das páginas eletrônicas. Propõe, inclusive, uma troca: livro rascunhado enviado pelos Correios em prazo certo com a promessa de devolução de um outro exemplar, possivelmente autografado pela autora.
III

Nós que adoramos um documentário é composto de poemas predominantemente curtos2 . Escritos em versos livres e brancos, a linguagem faz-se mais próxima da oralidade urbana típica de São Paulo; não lhe faltando insertsem inglês e espanhol, intertextualidade com poetas consagrados, frases clichês, e até pequenas transgressões da norma ortográfica oficial em abreviações saídas da escrita imediata da internet, como simplificações do pronome você para “vc”, da conjunção porque para “pq”. Mas o diferencial da escrita de Rüsche está na “quebra” de versos não orientada pela estrutura sintática, cadência da frase ou apoio em rimas. Um modo “falho” que parece querer traduz um tempo deficiente de lógica e sentido, propenso ao anacoluto:

a folha

sempre achei meio idiota isso do Anchieta
ter escrito o poema na areia e agora tem,
em qualquer azulejo, o nem-sei-qual-o-poema
dele
(…)
é mais uma gritaria tão grande que vc nem
consegue enxergar.
tenta. (p. 9)

Por “trair” a disposição lírica tradicional, a leitura se faz pedregosa, em ritmo da prosa; e não apenas pelas quebras propositais e/ou aleatórias dos versos, mas por permutas rápidas de um tom confessional para uma terceira pessoa que narra, comenta, infere, convoca o leitor para um posicionamento ativo em relação ao poema: “era vitória e não Ana/como uma filha da ilha e não com esse nome de/avó.//olhe, aquela ali, a menorzinha, uma tartaruga no horizonte, a mais escura, está vendo? (“testemunha n.2”, p.13)
IV

O livro de Rüsche divide-se em três cantos/capítulos: I.Município de Ubatuba, janeiro de 1983; II.Município de São Paulo, outubro de 2009 e III.Município de Ubatura, janeiro de 2037.

O primeiro, trata da memória da infância, por isso os versos aproximam-se da “dicção” infantil, e abundam anacolutos, saltos de assuntos, frases, temas, vácuos, lacunas. Busca-se, neste primeiro momento, investigar “ana” (assim em minúscula, infantil, apequenada), matéria da biografia/documento. Não por acaso, em toda a primeira parte o “ser” retratado se compõe de “testemunhos” que oscilam, e que mais “indefinem” quanto mais se propõem a aprofundar, esclarecer a interioridade de Ana, desta menina que se descobre frente ao mar, ante as brincadeiras violentas dos meninos, às disposições de uma ordem familiar ainda reinante.

“I.Município de Ubatuba” trata de uma espécie de descoberta do mundo que “Ana-poeta”, distante no tempo, faz da “Ana-que-foi”. Esta Ana, contudo, encontra-se fragmentada, recuperada na fala de “testemunhas numeradas” que figuram nos títulos dos poemas e, como projeções, reflexos de Ana em fases distintas, propõem-se a, “de fora”, entender a Ana de tempos pretéritos, cogitando assim uma Ana que será: “seria fernanda de arruda botelho e não ana erre/e voltaria para São Paulo toda semana.” (testemunha n.2); “essa nunca foi eu, ana. mas sempre quis./a menina dos olhos amendoados também não/tirava a camiseta.” (testemunha n.4); “aqui só chove. e os meninos ficam chutando/pedra/dando umas voadoras, sei lá o nome. Tô de férias, sabe?/mas só chove, o marido subiu pra trabalhar(…)”(testemunha n. 2 bis).

No aprofundar da Ana-menina e Ana-mulher, faz-se também uma investigação do feminino. A Ubatuba “das férias” evoca um período de inocência, ao mesmo tempo em que principiam as imagens do mar, dos peixes e de uma profusão de elementos aquáticos que remeterão ao feminino e ao ventre. Também a imagem da casa é metonímia de proteção/abrigo, núcleo familiar e, por fim, útero, centro do segundo capítulo.

“II.Município de São Paulo, outubro de 2009”, abre com um poema que evoca a questão de perda de centro geográfico: “mas a escola não fixou na nossa cabeça as capitais/do mundo(…)(“são esses dias de lua”, p.31)”, ponto de partida para focar de modo alusivo/cifrado o trauma do bebê perdido ainda no ventre: “mas não adianta, nada adianta/se a abóbada cede aos escombros de sangue/e há novamente uma tempestade/a te comer útero adentro/pq a vida é sempre quem guarda a melhor fome/a lamber os próprios planetas em luz(…)” (p.31). Nesta segunda parte, em todos os poemas proliferam imagens de águas violentas: chuvas, tempestades, torós, nuvens, torneiras, poças, águas negras, rios; e, por fim, o mar e figuras marinhas como baleias, arraias e peixes, bem como a figura da “mãe das águas”, Rainha, Iemanjá: “(…)meu cérebro então flutua como um bebê/alienígeno com desejos de casa, de conforto/parira como uma arraia-jamanta no azul profundo//e há novamente uma tempestade/a te comer o útero a dentro” (p.32)

A “filha” não-gerada conduz Ana ao mergulho na dor pela infância (cujos ecos estão no primeiro capítulo/canto) que não existirá: “(…)seria menina/tão bonita, muito tranqüila, ia chorar só um/pouquinho e dormiria, anjinha/quando te insere em todo esse engodo terrível até/a freira bondosa te perguntar/- e o teu bebê?” (p.52). Corpo, exames, marcas, sinais, pontuam os poemas de todo capitulo, onde predominam os périplos em hospitais para exames, diálogos desarticulados com freiras, médicos, visinhos; até, por fim, seu recolhimento na casa. Esta se torna, paradoxalmente, abrigo e assombro, pois refletirá o trauma do aborto sofrido por Ana-adulta que parece, por essa razão, perder-se igualmente de si.

Ao leitor, mais que “sentir” os poemas, há como uma convocação para decifrá-los, pôr sentido à estrutura do livro, em grande parte linear, mas contraditoriamente fragmentada, formando uma obra repleta de desvãos narrativos e confessionais, como no poema “veja, foi um delito involuntário”: “(…)/veja, nem sabia que eu possuía um prédio/ou ainda que existiam leis, quedas e vôos/abortados/agora sou o coração quebrado, ombro infiltrado/e furos na barriga – uma pirâmide/umbigo, ovário esquerdo, ovário direito – / três pontos que, com o quarto imaginário, logo/seriam os cardeais/uma mini-crucificação, prática e portátil/que levaria comigo sozinha/não mostraria para ninguém.(…)”(p. 45)

Nesta segunda parte, agudiza-se o pessimismo, a solidão, a aversão a um mundo de perdas. A dor interior atinge o centro físico, o corpo, o útero da protagonista: “(…)um útero, cemitério de bichos de pelúcia/desdentados,/cadaverezinhos dos que morreram/erguendo fundações(…)(“culinária doméstica”, p.66). O que faria de Ana uma mulher plena, lança-a num mundo infantil, a uma vida que almeja ser de “história em quadrinhos” como negação do trágico. Ela termina, assim, por exceder-se numa dor que é escamoteada pela suplência afetiva: “meu cãozinho não sai agora de meus pés/ele sabe toda a história, e assim nem passear longe vai/(…)nunca se afasta nada. e late bem bravo aos maus/sonhos que se avizinham”(“depois”, p.51).

Neste pesadelo que mergulha, homens ou estão ausentes ou são igualmente projeções fantasmagóricas. As impressões afetivas formam vãos, lacunas, labirintos como páginas a se perder/conhecer/completar, como em “os papéis”: “e assim ficamos/como tudo, como sempre/esse ever unfinished business//como tudo e como sempre/with so much love/esse isso tão difícil, a kind of rush/um compromisso com algo mais terrível do que o/amor.”(p.63)
Por fim, quando surgem os poemas de amor, eles evocam desilusão (“os papéis”, “anotações”), ou se fazem por auto-ironia de um tempo festivo, como em “(livro de poema sem poema de amor não é livro).”

Em “III.Município de Ubatura, janeiro de 2037”, predominam imagens de dissolução surrealista. O mundo violento, doente, de prédios vigilantes, hospitais, ruínas, caos urbano, morte de motoboys, crimes sem testemunhas e omissões (de afeto/de companheirismo), retornam redimensionados num futuro apocalíptico, abismal. Marca o retorno a uma “Ubatuba” agora sem espaço para prazeres e descobertas infantis.

O poema que se propunha a ser documentário/autobiografia, ao se situar no ano de 2037 ganha o sentido de ficção científica, descaracterizando o relato real, por isso pondo em descrença o que se “narrou”. Apesar de enfatizar a atmosfera opressiva de um futuro ácido, uma leitura detida permite identificar neste capítulo a fusão entre a primeira e a segunda parte do livro; como se o futuro fosse uma projeção fantasmagórica entre infância e trauma do aborto, a ecoar as mesmas imagens mar/corpo numa reiteração de aspectos angustiantes da existência: “Neste quando sem mundo nenhum/uma mulher me cortou o ventre de pequena//e por isso ela cortou é o ventre do peixe/queria ali bisbilhotar meus futuros/na barrigada da peixinha pulsando/da vida que já não foi(…)”(“eu própria sou a vida no outro planeta”, II, p.83)

As “coordenadas” (geográficas/cosmográficas) desenhadas no ventre (em “us abdome total”), a imposição de repouso/descanso na casa, e imagens/projeções que se seguem, terão por símile a cidade corrompida pela violência e a imposição do silêncio. O vazio do ventre refletirá a inexistência do mundo, de futuro e, igualmente, de abrigo seguro: “existe sim uma cidade que está sempre escura/(…)/mas às vezes a ouço ofegante/entrando pelas minhas janelas do sono/degolando criancinhas/(…)/não vi, não ouvi é regra de qualquer casa no/terceiro mundo/por isso eu digo que não a conheço/nunca estive lá/esqueci que existia isso logo hoje, eu te juro, peço/desculpa” (“dias com luz. pouca”, IV, p. 59)
V

Em Nós que adoramos um documentário, Ana Rüsche abusa de recursos já “desbravados” no plano da experimentação poética: verso livre, anacolutos, colagens, intertextualidade, metalinguagem, coloquialismo, uso da espacialidade da página, predileção pelo uso de minúsculas, ausência de pontuação e outras transgressões da norma oficial. Sua poesia destaca-se, contudo, por se posicionar fora da tradição de uma lírica portuguesa passional e discursiva (da qual somos ainda herdeiros). Rüsche surpreende ao converter tom confessional em fluxo de consciência, e dele deslizar a uma livre-associação que soa como empréstimo da prosa labiríntica de um James Joyce. Some-se este procedimento a uma estratégia de colagem/montagem de elementos eruditos/pastiches/clichês (à T.S.Elliot) expresso num verso aparente simples, mas repleto de subentendidos. Entendendo esses procedimentos, é possível reconhecer o que de revigorante há em sua poesia:

Whiteout

(sinto que houve
uma chuva de estrelas cadentes na pele
mas é tanta cidade iluminada que não se vê mais
as constelações
que desenho para meu amor, minhas rotas de
escuros)
(…)
De ouvidos cerrados de gelo essa verdade entra
No degelo da cera dos teus ouvidos
Agora é essa tua mão
Direita que desliza cirurgicamente fria
E move algo nessa tela
Onde esculpe e escalpela novamente
Minhas brancas estalactites cravejadas de dores
Sem me tocar
(…)

Como em “esculpe/escalpela”, “cerrado de gelo/degelo da cera”, na maior parte dos poemas, a sonoridade das palavras parece prevalecer sobre um sentido facilmente apreensível, impulsionando outras associações para traduzir uma desordem interior que se faz linguagem, cuja desconexão materializa a perda de certezas do mundo. Amor, solidão, perda, desilusão amorosa, o eu vs. mundo e natureza/mãe/inimiga, tudo se amalgama no questionamento do direito a ser, a existir. Assim o aborto, como a náusea sartreana, gera o turbilhão que lança Ana a dor de um mundo “documental”, com seu realismo cruel, martírio de crenças: “(…) ou ainda que existiriam leis, quedas e vôos/abortados/agora sou o coração quebrado, ombro infiltrado/e furos na barriga – uma pirâmide/umbigo, ovário esquerdo, ovário direito – três pontos que, com o quarto imaginário, logo seriam cardeais/uma minicrucificação, prática e portátil(…)”(“veja, foi um delito involuntário”, p.45)

Quando as tentativas de recuperação da infância (fomentadas pela gravidez/aborto) insurgem, sobrepõem-se planos em que ações pretéritas e futuras fundem-se em forma de pesadelo. No plano da linguagem, o efeito atingido muitas vezes é o de nonsense (entre o dadaísmo e o surrealismo), com “imagens de derruição” materializando a intraduzível dor na forma de cenários, “paisagens interiores” de um eu dilacerado. Por isso (como dito anteriormente), palavras e versos reverberam memórias, desdobram-se e se reconfiguram de um a outro poema, para completar, para dar sentido ao trauma cifrado: (“eu própria sou a vida no outro planeta”): “Ontem, quando o mundo ainda não existiu/eu era triste, as câmaras do meu coração tão/abandonado/naves de todas as catedrais de santos impassíveis/sentei e chorei/onde nem mesmo havia lugar.(…) e “agora caem anjos em forma de meninos sobre a terra./as formigas desse mundo caem nas correntes dos/meus rizomazinhos de tristeza/do lixo à pia, passando pelo fogareiro(…)”(VIII, p.93).

Resguardando-se das vozes indiscriminadas, dos discursos vazios (quando “dizer o trauma” torna-se interdito), Ana faz-se incomunicável, termina por se isolar e estender seu desconforto com o mundo para a cidade opressora: “(…) tenho bem medo dessa noite, tranco-me em/algum lugar, é a violência/medo desses dias em que todos os corações já são/escuros//aninho-me no meu cobertor que já não dança,(…)”(“dias de pouca luz”, p.54). Realiza a ruptura com o mundo, negando-o; e termina por fim a ensimesmar-se: “seria eu Jéssica ou Ana ou uma outra Márcia,/tantas,/as ideias todas e nenhuma, como nos filmes de/bombardeios/as conjugações pertencem a um eu, um outro.//E eu ali, sozinhas espremidas na faixa de areia/entre dúvidas.(…)(“A Quarta Pessoa”, p.111)

O movimento final é ver a si como um outro ser, uma tentativa de decifração de alguém que se perde de si, já demarcado no título “mesmas duas” e na troca súbita de possessivos de “meus” para “seus”: “pra variar, ela rondava e rondava a sala com seus/vermes dançantes na cabeça/(…) comia as próprias lágrimas, do seu último dia do/mundo/tão altos os traços nos meus céus de deserto (…)”(p.69). O uso de focos distintos está na essência do documentário, formato que ao multifacetar (depoimentos e perspectivas) busca aproximar-se do “real”. Na autobiografia, a memória e o recorte do real são arbitrários, mudam o fato, até num sentido de autopreservação do biografado. Usando drummondianamente a auto-ironia, a poeta dialoga consigo mesma, questionando a entrega sentimental de seu eu-feminino em oposição a objetividade embrutecida dos homens:

anotação
.
esse amor demais vai acabar te matando, Ana
escuta, presta atenção
vê se espreme esse coraçãozinho
pra ver se surgem um par de bolas embaixo
vai ser homem na vida
e para com isso, essa coisa toda,
essa bobageira.

tem dias que a gente só quer
que nos tirem pra dançar. (p. 70)

VI

Essa ironia sobre o “amor” está no título de um dos mais belos poemas do conjunto “(livro de poema sem poema de amor não é livro)”, narrativa lírica de encontro/despedida em linguagem coloquial e urbana com saltos temporais e discurso-direto. O poema rearticula a relação casa/abrigo vs. mundo exterior/opressão, elemento predominante em Nós que adoramos um documentário, já que nele, o espaço exterior projeta-se no corpo, metonímia/metáfora da sensação de perda de centro (autonomia e identidade). Mesmo a presença da natureza (tempestade) surge como prenúncio criativo de um fim (a árvore derrubada/os hematomas flores do eu-lírico) criativamente traduzida no corpo “solar” do ser amado, que a abandonará no fim do poema ao adentrar sozinha o “escuro” (no cinema). A dinâmica com que “narra” o encontro/fuga, presença/ausência do amado (ser reduzido a mero “tu” e “você), mostra a habilidade com que Ana Rüsche traduz sensações e sentimentos complexos em imagens prosaicas, quase “táteis”, sempre com uma graça singular que amalgama erotismo, afeto e melancolia:

(livro de poema sem poema de amor não é livro)

É tarde, dia claro, e num repelão há uma
tempestade lá fora
‘Que barulheira’ e me beijas
Te beijo tanto, ‘eu gosto de tempestades`

Amendoeiras japonesas alastram-se pela cama
em pink, em preto
É calor e chove-se tanto, nos lençóis, pelas tuas
costas ensolaradas
Dormimos mais meia hora, agora já queria mais
um dia, plis, mais uma noite, por favor.
Percebi que a chuva desbotou meu cabelo e todos
os meus hematomas colecionados na semana
– com a tinta escorrida, logo brotaram minúsculas
flores roxinhas no flanco dos travesseiros,
essas pequenas tatuagens do acaso
(…)
Na rua, foi ao chão a árvore de 6 metros de altura
e 20 anos de comprimento
orvalhando de folhas minúsculas carros, valas, a
gente velha fofoqueira, os vizinhos torcedores
domingo é um mesmo dia para tombar e já se
remover – caminhões, a prefeitura
Telefono: Você viu a árvore que caiu?
(…)
Seguro medrosa a mão invisível da saudade. Teu
cheiro, meus cabelos, suspiro
Adentro ao escuro. (p. 74)

VII

Dona de uma linguagem que pede esforço maior de classificação, Ana Rüsche parece pelejar em favor da Poesia. Do trânsito que faz entre experimentações (de quebra abrupta do nexo lógico da frase à uniformidade verbo-temporal), passando por um fragmentar/colar que nos remete a T.S.Eliot e James Joyce, sua escrita parece não querer definir-se, por isso vai à fonte da prosa de Guimarães Rosa, de Clarice Lispector, e retorna sem atrito, à poesia substantiva de Drummond e Ana Cristina César.

O que Ana Rüsche traz de muito próprio, é a forma como funde intimismo e nonsense. Ainda que aparente na escrita uma “frouxidão” blogueira (escrita automática? Dadá?), que pode passar por desleixo na forma, é habilidosa na expressão de um delicado olhar feminino, um tanto desiludido e melancólico. Sem itinerário fácil, linear, seu livro avança e recua para um tempo de afetos para, por fim, mergulhar na falta. Porque na poesia de Ana Rüsche, a perda surge como estratégia fundamental de autoconhecimento.

Nós que adoramos um documentário se constitui um desafio mesmo ao leitor contemporâneo familiarizado com linguagens múltiplas, fragmentação, fusão de gêneros e intertextualidade. Se boa parte dos poemas pode figurar facilmente fora do conjunto da obra, a leitura do livro como narrativa fechada parece redimensionar seu campo de sentido e ampliar o prazer estético da leitura.

Ana Rüsche, apesar do título irônico – Nós que adoramos um documentário – que denuncia o interesse contemporâneo no factual (talvez da vida alheia) e o atual desprestígio da interioridade/poesia, presenteia seus leitores com uma autobiografia que são indícios de uma “possível experiência pessoal”. Em tempos em que os autores “ficcionalizam-se” para além dos blogues, constituindo-se extensões de seus próprios escritos em mácaras-egos (pensemos em Clarah Averbuck, em Santiago Nazarian, por exemplo), Ana Rüsche escamoteia-se. Não nos dá a facilidade de penetrar sua biografia, composta de um eu pesaroso que se multiplica, ou ecoa suas angústias com vaguidões, projeções sobre projeções de passado, presente e futuro. Não trai a proposta inicial de documentar/biografar-se, antes se expõe/resguarda por indefinir, seja nos planos do real, da ficção, da memória, da reinvenção do vivido.

Fosse um filme, Nós que adoramos um documentário seria uma ficção futurista em primeira pessoa, cenas captadas em super-8, atemporais, com um mar ao fundo, e a sombra aos pés de um eu que enquadra o seu olhar, mas não se mostra.

 

REFERÊNCIAS

1RÜSCHE, Ana. Nós que adoramos um documentário. Ed. Ourivesaria da Palavra. São Paulo, 2010.

2À exceção de “são esses dias de lua”, “dias com luz. pouca”, “eu própria sou a vida no outro planeta” de maior extensão, apesar de partidos em seqüências menores, numeradas, apresentando contigüidade de tema.

 

*Eduardo de Araújo Teixeira

Doutor em Letras/USP