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A CONEY ISLAND DO VÍRUS: COVID-19 EM NOVA YORK

Tradução de Lucas Bandeira de Melo Carvalho

Conjunto habitacional Coney Island Houses, da Autoridade Habitacional da Cidade de Nova York, 2020. Acervo pessoal.
Conjunto habitacional Coney Island Houses, da Autoridade Habitacional da Cidade de Nova York, 2020. Acervo pessoal.

Nos meses mais intensos da pandemia, quando Nova York era o epicentro do desastre mundial, fiz algumas caminhadas solitárias pela cidade deserta. Deixei-me guiar por dois mapas produzidos pelo governo municipal que eram atualizados diariamente em seu site na internet. Um deles exibe a taxa de contaminação por 100 mil moradores por cada código postal; o outro mostra a taxa de mortalidade.[1]

Taxa de casos de Covid-10 (esquerda) e taxa de mortalidade (direita) por 100 mil habitantes por código postal na cidade de Nova York, 1º de julho de 2020 (nyc.gov)
Taxa de casos de Covid-10 (esquerda) e taxa de mortalidade (direita) por 100 mil habitantes por código postal na cidade de Nova York, 1º de julho de 2020 (nyc.gov)

O primeiro mapa (à esquerda) representa, em tons de rosa e roxo, a taxa de contaminação per capita por distrito postal. As zonas mais claras têm concentrações menores de casos. É fácil perceber que essas áreas correspondem à Nova York que a maior parte dos visitantes conhecem, a Nova York que costuma ser representada nas artes e que aparecer na mídia. Elas incluem quase toda a Manhattan, com exceção do East Harlem e de Washington Heights, bairro majoritariamente hispânico. Uma faixa rosa-claro estende-se ao longo do East River, na borda de Queens e do centro do Brooklyn. Algumas poucas ilhas de saúde rosa-claras aparecem aqui e ali, especialmente em direção ao nordeste, onde a cidade desaparece nos subúrbios de Long Island.

As regiões com altas taxas de contaminação, por sua vez, concentram-se, como era de se esperar, nas margens. A partir do nordeste do Bronx, uma faixa roxa cada vez mais forte desce seguindo a margem do rio Hudson e cruza o rio Harlem em direção à fronteira do bairro com o estreito de Long Island, o profundo braço de oceano que transforma-se no que chamamos de East River, mas na verdade é um corpo de água salgada. Ao longo da Flushing Bay, que separa o Bronx de Queens, há uma zona intensamente escura que inclui a ilha Rikers (onde fica o complexo prisional) e bairros de população extremamente diversificada, mas com predominância de hispânicos e negros, como East Elmhurst, Jackson Heights e Corona, no Queens. A tonalidade fica ainda mais escura à medida que se desce no mapa e nos aproximamos da longa e estreita ilha de Rockaways, de onde se pode chegar facilmente a outros pontos roxos no sul de Brooklyn, perto de Jamaica Bay e Coney Island. Já em Staten Island, as zonas com alto contágio aparecem ao longo da costa leste e do Kill Van Kull, o estreito marítimo que separa Nova Jersey de Nova York.

Não há nada de surpreendente nessa topografia da doença. Os bairros mais pobres são os mais afetados; um número desproporcional de pobres é composto por negros e hispânicos. Na maior parte das cidades grandes, não apenas nos Estados Unidos, os pobres tendem a ser empurrados para a periferia. Em Nova York, isso significa perto da água. É surpreendente em que medida a cidade empurrou muitos de seus mais pobres e mais idosos para perto de praias, mangues, calçadões e píeres. Pode-se ver isso no segundo mapa, que traça a geografia da morte pela Covid-19.

O mapa da morte acompanha de perto o mapa da taxa de contágio, mas há pequenas nuances e discrepâncias. No norte do Queens, o bairro predominantemente chinês e coreano de Flushing tem mortalidade mais alta do que Corona, bairro adjacente que tem uma taxa de contágio muito mais alta. O motivo não é difícil de adivinhar: o vírus mata principalmente os idosos e tende a poupar os jovens. As áreas com alto número de mortes são aquelas que hospedam grande número de pessoas mais velhas – mais especificamente, grande número de pessoas mais velhas vivendo juntas. Até 40% das mortes nos Estados Unidos ocorreram em lares de idosos. Um dos motivos para o ponto roxo-escuro no extremo oeste de Coney Island é que ali fica uma grande colônia de casas de repouso ao longo da costa, que é dividida entre eles e um grande conjunto habitacional. Aqui, como em outros lugares da cidade, desenvolveu-se uma simbiose: lares de idosos são em grande medida atendidos por moradores desses conjuntos, e o vírus vai e volta entre os dois. Como New York desenvolveu o ecossistema propício para essa simbiose? Nesse sentido, o caso de Coney Island é instrutivo, exemplar e extremo.

Casa Scheuer do Centro para Idosos de Coney Island, 2020. Acervo pessoal.
Casa Scheuer do Centro para Idosos de Coney Island, 2020. Acervo pessoal.

Quando pensamos em Coney Island, não costumamos pensar em lares para idosos e conjuntos habitacionais. Pensamos em parques de diversões, feiras e shows de aberrações. Se tivermos visto algumas das fotografias tiradas por Diane Arbus no final dos anos 1950 e no começo dos 1960, o nome talvez evoque imagens belas e brutais de casais porto-riquenhos brigando e engolidores de fogo. Talvez não suspeitemos que essas fotos foram feitas quando a Coney Island lendária estava perto de seu fim definitivo, e que o último dos parques clássicos que se espalhavam pela área estava prestes a ser demolido por Fred C. Trump, pai de Donald, em uma cerimônia na qual garotas de biquíni foram contratadas para observá-lo estender tijolos aos convidados a fim de que o ajudassem a quebrar as vidraças que ainda estavam em pé, antes que as escavadeiras chegassem.

Coney Island é – ou era, uma vez que o riacho que a separava do continente foi quase completamente aterrado – uma ilha estreita ao sul do Brooklyn, com uma praia extensa banhada pelo oceano Atlântico. A área, originalmente um manguezal de água salgada, permaneceu praticamente deserta até meados do século XIX, quando barcos a vapor começaram a levar excursionistas para pegar sol. Mas, no final do século, a área havia se transformado em um ponto florescente de veraneio com uma organização espacial estrita. Na metade leste da ilha ficam dois bairros – Manhattan Beach e Brighton Beach – que, na época, abrigavam resorts de luxo projetados para atrair visitantes sazonais da classe alta. A ponta oeste oferecia uma cena muito diferente.

A dramática expansão das linhas ferroviárias depois dos anos 1870 trouxe uma multidão cada vez maior formada principalmente por visitantes imigrantes, a maior parte vinda da classe trabalhadora, que queriam passar o dia na praia. Para atender a essa população, vários restaurantes, salões de baile, bordéis e casas de banho surgiram na parte oeste da ilha. Em 1890, a área costumava atrair 500 mil pessoas em um domingo típico de verão, seduzidas pelo mar e pelos artistas de comédia pastelão, domadores de cobras, acrobatas e mascates que os recepcionavam, enganavam e entretinham. A paisagem, ainda limpa, era pontilhada por vários carrosséis, uma montanha-russa enorme e primitiva e uma torre de noventa metros trazida da Exposição da Filadélfia de 1876. A Ocean Parkway, a primeira estrada pavimentada de entrada para a ilha, foi construída nos estertores do século XIX; e, em 1896, o primeiro parque de diversões cercado foi inaugurado.

Nessa época, visitantes negros eram proibidos de entrar em parques de diversão, hotéis e restaurantes, além de fortemente desencorajados de ocupar as praias. Apesar disso, abundavam artistas de blackface nas centenas de quiosques e nos três parques autônomos que dominavam a área em sua época de ouro, as primeiras décadas do século XX. Entre esses parques, o Steeplechase permaneceu o mais próximo em espírito das feiras e dos shows de horrores. Ele exibia não apenas “anões e gigantes”, mas todo tipo de “gente primitiva e selvagem” (birmanesas com “pescoço de girafa”, nômades beberes, guerreiros somalis, dançarinos turcos). Mas os clientes gostavam também de assistir a outros visitantes caírem e rolarem na Roleta Humana, ou serem aterrorizados por um palhaço carregando uma vara num enorme Pavilhão da Diversão revestido de vidro e metal.

Luna Park, Coney Island, 1905 (Biblioteca do Congresso)
Luna Park, Coney Island, 1905 (Biblioteca do Congresso)

Um pouco a leste ficava o Luna Park, que pretendia oferecer um tipo de entretenimento mais refinado, menos focado nas emoções rudes de plataformas giratórias e palhaços ferozes e mais na criação de uma realidade alternativa governada pelos novos deuses da eletricidade e da velocidade. Saindo do Luna Park em direção ao mar, ficava o Dreamland Park, cujas torres e minaretes de uma arquitetura impossível – cujo legado vive nas Disneylândias ao redor do mundo – proporcionavam o cenário para touros tatuados e contorcionistas, centenas de dublês que reencenavam desastres naturais ou humanos e o Pequeno Povo da cidade de Lilliputia – que, com população de trezentas pessoas, foi construída para lembrar a cidade alemã de Nuremberg no século XV, mas em escala reduzida a metade. Dreamland foi criado para atrair clientes de classes mais altas, visitantes mais exigentes, que preferiam navegar por canais serenos em gôndolas venezianas, escalar a monumental torre mourisca diante da lagoa cercada por uma pista para corrida de carruagens, ou visitar as instalações da Incubadora de Bebês, um pavilhão em que dezenas de bebês prematuros eram exibidos em minúsculas vitrines, cuidadas pelo falso médico Dr. Martin Couney. Milhões de lâmpadas elétricas tingiam as enormes construções e estátuas de papelão, todas pintadas de um branco imaculado, com um esplendor que devia tornar inconcebível a ideia do fim iminente do Dreamland.

Mas os golpes simultâneos do fogo e da administração catastrófica atingiram todos os parques com força total. Dreamland pegou fogo em 1911 e nunca foi reconstruído; Luna Park conseguiu ficar em pé por mais três décadas, desaparecendo lentamente até que, em 1946, foi comprado por Fred Trump, que começou a construir arranha-céus em seu lugar. Mas Trump não era o único inclinado a apagar o passado. A partir dos anos 1920, a cidade, sob o comando de Robert Moses, começou dois empreendimentos maciços na área: a restauração da praia, que, devido à erosão e ao uso excessivo, havia encolhido para uma faixa estreita; e a construção de um calçadão amplo e elevado percorrendo toda a extensão da ilha. Para isso, foi preciso demolir partes de Steeplechase e Dreamland e expulsar diversos quiosques que haviam se espalhado perto do mar. Deve-se observar que Trump também não foi o primeiro a querer transformar partes do distrito de entretenimento de Coney Island em uma zona residencial: imigrantes recentes, na maior parte italianos e judeus da Europa oriental, já estavam se estabelecendo no lado norte da ilha, depois da área dos parques, cujo limite oeste era marcado pela estrutura exótica do Half Moon Hotel.

Parque Dreamland, 1905 (New York Times); Trump Village, 2020 (R. Laddaga). Acervo pessoal.
Parque Dreamland, 1905 (New York Times); Trump Village, 2020 (R. Laddaga). Acervo pessoal.

As condições para uma transformação mais definitiva, algo a que os reformadores aspiravam havia décadas, foram proporcionadas pelo aparecimento de Moses no cenário. É impossível, em um artigo curto como este, fazer justiça à quantidade de projetos que Moses completou em um quarto de século por meio dos diferentes papéis que assumiu como responsável pela construção e pela administração dos parques e das rodovias da cidade durante os anos 1930 e 1940, e pela remoção de cortiços e realocação de seus moradores na década crucial de 1950. Ele teve um impacto em Coney Island tão imenso quanto seu desprezo pelos divertimentos que a área oferecia e pelos seus frequentadores habituais. Moses acreditava firmemente nos efeitos positivos do exercício e das atividades ao ar livre na saúde mental e física das pessoas. Essa convicção fez com que ele construísse um número surpreendente de piscinas e parques infantis nos cinco bairros e reformasse e ampliasse parques existentes. Ela também inspirou dois projetos monumentais à beira-mar: a Jones Beach, na costa sul de Long Island, e a Orchard Beach, no ponto em que o Bronx dá para a Pelham Bay, no estuário de Long Island. Ele esperava que moradores da parte norte de Nova York, que até então viajavam nos fins de semana e no verão para Coney Island em busca de sol e diversão, enchessem Orchard Beach. Mas essas pessoas, pouco impressionadas pelos atrativos do que os jornais chamavam de “Riviera do Bronx”, continuaram a lotar os trens para o sul do Brooklyn. Moses, por sua vez, usou seu poder para garantir que um número menor de atrações os esperasse lá.

Coney Island Beach, 2020. Acervo pessoal.
Coney Island Beach, 2020. Acervo pessoal.

A necessidade de restaurar a praia, em perpétuo desaparecimento, proporcionou ao desmedido funcionário público uma oportunidade. Ele moveu a calçada para dentro, comendo ainda mais espaço dos quiosques e dos parques. Ao mesmo tempo, importou areia clara e imaculada a fim de criar uma superfície regular, um “bem público valioso” que ele poderia proteger com unhas e dentes. Para isso, Moses introduziu regulações rígidas: proibiu a presença de vendedores, malabaristas, cantores e promotores de vendas no calçadão e de fonógrafos e jogos de pôquer na praia embelezada. “Um novo lugar de veraneio, muito diferente, deve se estabelecer no lugar [da velha Coney Island]”, afirmou ele. “Mais terra deve ser propriedade pública, deve haver menos superlotação, aplicação mais rigorosa de decretos e regras, melhores arranjos de transporte e tráfego, menos dispositivos mecânicos de diversão barulhentos e menos atrações paralelas, e um crescimento mais ordenado de residentes ao longo do ano.”

Esse último decreto – “um crescimento mais ordenado de residentes ao longo do ano” – deveria ser alcançado por meio de uma das ferramentas mais poderosas à disposição de um urbanista: o rezoneamento. Até os anos 1940, a maior parte da terra à beira-mar era destinada a estabelecimentos recreativos; com Moses, ela foi oficialmente aberta ao uso residencial. Isso permitiu que a cidade se tornasse proprietária e vendesse terrenos para construtores privados ou os transformasse em conjuntos habitacionais populares subsidiados pelo governo. O processo gerou uma contração ainda maior da área de diversão, especialmente nos quarteirões mais à margem da lei, onde ficavam as casas de apostas, pontos de venda de drogas e salões de dança, conhecidos como “The Gut” [O Intestino], e onde hoje está a maior concentração de lares para idosos na cidade e que tem sido uma das principais áreas de mortalidade durante a crise da Covid-19.

Moradia para Adultos Mermaid Manor (primeiro plano) e Friendset Apartments (segundo plano), Coney Island, 2020. Acervo pessoal.
Moradia para Adultos Mermaid Manor (primeiro plano) e Friendset Apartments (segundo plano), Coney Island, 2020. Acervo pessoal.

Em meados do século XX, muitos nova-iorquinos que antes alugavam bangalôs em Coney Island agora tinham acesso a carros, o que permitia que acampassem mais longe, na costa de Nova Jersey. Ao mesmo tempo, os moradores italianos e judeus iam frequentando cada vez menos a área, à medida que abandonavam a cidade e se juntavam à classe média branca no subúrbio. A transformação da área acelerou-se com a perda de empregos locais devido à crise da economia do entretenimento – que se aprofundou durante e depois da Guerra – ao reassentamento forçado de grandes contingentes de negros e hispânicos na região, expulsos do Harlem e de parte do Brooklyn pelos programas de remoção de cortiços de Moses. Para recebê-los, a Autoridade Habitacional da Cidade de Nova York construiu, em 1957, o conjunto habitacional Coney Island Houses, quinhentos apartamentos separados em quatro edifícios erguidos perto do calçadão.

Quatro anos antes, em 1953, o Hospital e Casa de Repouso Hebraico havia comprado o Half Moon Hotel (que na época funcionava como maternidade) e o transformado no Centro Geriátrico Judaico Metropolitano. Nas décadas seguintes – durante as quais juntou-se, ao Coney Island Houses, o complexo ainda maior de Gravesend Houses – dezenas de instalações para idosos de baixa renda foram erguidas no espaço antes ocupado por casas onde antes morava uma família apenas e por casas de veraneio. O resultado foi um dos cenários mais singulares de Nova York. Quando o visitei recentemente, em uma manhã nublada, na hora em que permite-se que os residentes das casas de repouso deem uma saída e eles são vistos sentados sozinhos com um café ou um cigarro no calçadão, a paisagem super-simplificada, com fileiras de construções idênticas erguendo-se em um espaço vazio e geometricamente traçado, era particularmente misteriosa. Era como se os edifícios, por mais maciços que fossem, não tivessem sido construídos, mas postos ali. Talvez a sensação de equilíbrio instável fosse reforçada por minha consciência de que essa parte da cidade está entre as mais expostas à elevação do nível do oceano causada pelo aquecimento global, e por minha lembrança de que trechos grandes dela foram totalmente devastados pelo Furacão Sandy há quase uma década.

Muro exterior do Aquário de Nova York, Coney Island, 2020. Acervo pessoal.
Muro exterior do Aquário de Nova York, Coney Island, 2020. Acervo pessoal.

Essa precariedade em face do oceano é algo que Coney Island – assim como outros distritos em que se desenvolveu a simbiose entre conjuntos habitacionais e instalações para idosos, de maneira mais dramática na península de Rockaways – tem em comum com Miami Beach, na Flórida. Mas as semelhanças não param aí, como construtoras alegre e recorrentemente enfatizam. Ainda nos anos 1960, Fred Trump encomendou o projeto da Trump Village (seu maior empreendimento na área) da Morris Lapidus, empresa que havia projetado os hotéis Sans Souci e The Fountainbleu em Miami – exemplos extravagantes do estilo “Miami Modern” de meados do século, que estava na última moda na época e virou sinônimo de uma vida luxuosa em lugares de turismo. Quando visitei a área recentemente, fiquei intrigado por duas torres de 21 andares construídas no extremo oeste de Coney Island, entre a Moradia para Adultos Oceanview Manor e a grade do condomínio privado de Sea Gate. Descobri que o projeto, chamado Ocean Drive, é uma iniciativa do bilionário John Catsimatidis (fundador do Red Apple Group, um importante conglomerado do setor de finanças, seguros e imóveis que também é proprietário da cadeia de mercados Gristedes na cidade de Nova York) por meio de sua construtora, a Red Apple Real Estate.

Conselho Comunitário Judaico da Grande Coney Island (primeiro plano) e empreendimento na Ocean Drive (segundo plano), 2020. Acervo pessoal.
Conselho Comunitário Judaico da Grande Coney Island (primeiro plano) e empreendimento na Ocean Drive (segundo plano), 2020. Acervo pessoal.

Também invocando a Costa Dourada da Flórida com sua promessa de trazer “a ‘sofisticação de Miami’ para o calçadão de Coney Island”, o complexo de Ocean Drive não se parece com nada que encontramos na redondeza. Mas seu tipo é familiar: ele lembra um dos numerosos prédios residenciais sofisticados que recentemente surgiram em pontos inesperados do Harlem, do Brooklyn e do Queens. “Residências personalizadas para uma vida moderna”, diz o site do Ocean Drive, que promete apartamentos equipados com os melhores eletrodomésticos europeus, pisos de carvalho, bancadas de mármore e janelas grandes para deixar a brisa e o sol entrarem, além de “atendimento e manobrista 24 horas (lavagem a seco, passeio com cães, reparos e entregas) disponíveis para dar conta de seu estilo de vida agitado, tudo que você precisa à sua porta”. A responsável pelo projeto é a Hill West, uma das firmas de arquitetura favoritas de construtoras agressivas e que colaborou com luminares mundiais como Herzog & de Meuron e Christian de Portzamparc em construções similares em toda a cidade. A descrição do projeto da Ocean Drive enfatiza a localização do empreendimento “fora dos condomínios fechados da vizinhança” e segue explicando como ele vai “contribu[ir] para a área com uma amplo espaço comercial preparado para abrigar uma mercearia de bairro de primeira linha, melhor[ar] o calçadão e o fim das ruas, e despert[ar] um renascimento da região”. Assim, as duas torres vão se tornar o nó mais distante de uma rede de construções de luxo que tem se estendido por toda a cidade de Nova York, e cujo maior exemplo ergue-se em Midtown Manhattan: Hudson Yards.

Logo as torres receberão novos moradores, que poderão saborear plácidas refeições em mesas redondas de madeira de um restaurante que em breve vai abrir no calçadão imaculadamente limpo. Depois da sobremesa, talvez eles passeiem pelas instalações do novo “Luna Park”, mais seguro e menor, aberto há dez anos pelo Central Amusement International, uma subsidiária da fabricante italiana de brinquedos Zamperla. Se o renascimento que os construtores prometem realmente ocorrer, eles precisarão creditar parte do sucesso ao coronavírus: ao redor das construções e fora dos condomínios fechados, idosos e seus vizinhos negros e hispânicos pobres estão morrendo em uma das maiores velocidades de Nova York. Como ao menos algumas das casas de repouso certamente vão fechar e serão demolidas, não é absurdo ver nisso a conclusão lógica de um processo que Robert Moses iniciou quando ergueu uma série de prédios austeros de tijolos no calçadão para realocar moradores dos cortiços de Manhattan e quando o Hospital e Casa de Repouso Hebraico comprou o Half Moon Hotel e o transformou em um asilo para idosos.

Empreendimento na Ocean Drive (centro) e Moradia para Adultos Oceanview Manor (direita), 2020. Acervo pessoal.
Empreendimento na Ocean Drive (centro) e Moradia para Adultos Oceanview Manor (direita), 2020. Acervo pessoal.

E, assim, outro ciclo parece prestes a começar. Porém, a não ser que ocorra uma mudança de direção coletiva, abrangendo toda a espécie, esse provavelmente vai durar menos. No passado, o fogo foi o flagelo de Coney Island, queimando parques e hotéis e abrindo caminho para urbanistas e incorporadores imobiliários. Hoje é o coronavírus. Mas o flagelo de amanhã pode ser o mais difícil de domar: a onda crescente do mar.


* Reinaldo Laddaga é argentino, autor de Estética da emergência e Estéticas de laboratório, publicados no Brasil pela Martins Fontes. Foi professor de literatura e crítica na Universidade da Pensilvânia, na Universidade Princeton, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e na Universidad de Rosario. Este artigo fará parte de seu novo livro.

[1] Originalmente publicado em https://newmodels.io/proprietary/coney-island-of-the-virus-reinaldo-laddaga. Todas as fotos do acervo pessoal foram feitas pelo autor.