Este artigo faz uma breve excursão pela história européia da ciência e da tecnologia numa perspectiva antropológica, destacando os valores humanos nas diretrizes subjacentes, imaginação, e atividades relacionadas à mente, como a maioria fundamentalmente constitutiva de toda a colaboração inter-disciplinar e seu impacto sobre a avaliação atual do valor associado às trocas cada vez maiores entre as Artes e as Ciências.
A Conferência Científica Internacional “Rumo a uma terceira cultura. A coexistência da arte, ciência e tecnologia”, organizada pelo Centro Laznia de Arte Contemporânea e o Museu de História em Gdansk, 23 a 25 maio de 2011, começou a discutir como “Atingir a arte por tecnologias científicas desenvolvidas agora no contexto da visão de uma terceira cultura, postulada por John Brockman “. Em vista das críticas e equívocos da problemática “duas culturas” da C.P. Snow, a postulação de uma “terceira cultura” foi criticamente abordada pela agenda das discussões da conferência, em particular em torno de idéias sobre a ciência para a arte e arte para a ciência, o papel, o significado da abordagem colaborativa, revista e criticamente a partir de diferentes perspectivas. A dimensão da interação humana em seus aportes subjacentes, a imaginação e a atividades mentais relacionadas, foi um entre muitos outros assuntos discutidos, o que será destacado aqui como o mais significativo parceiro constitucional, em especial entre as artes e ciências. Este artigo, portanto, concentra-se nas intersecções históricas entre a arte e a ciência e o que isso pode nos dizer, se não sobre a mudança de paradigmas, pelo menos, sobre a mudança em relação aos valores humanos envolvidos na colaboração.
A partir de uma excursão na história da ciência e tecnologia dos últimos dois séculos, fica evidente que o final do século 18 via a Arte e a Ciência ainda intimamente relacionados, como é explicitado, por exemplo, pelo químico e inventor Sir Humphrey Davy (1778-1829), na sua comparação entre o filósofo natural e o estado mental do artista:
A contemplação das leis do universo está conectada a uma exaltação imediata a e tranqüila da mente e puro prazer mental. A percepção da verdade é quase tão simples quanto um sentimento, como a percepção da beleza … o amor da natureza é a mesma paixão, como o amor do magnífico, do sublime e do belo. (WRIGHT, 1980: 199)
Quando o filósofo e historiador da ciência William Whewell cunhou o termo cientista, em 1833, na Inglaterra, o termo foi publicado pela primeira vez, anonimamente, em 1834, na resenha de “On the Connexion of the Physical Sciences” de Mary Somerville, com um comentário satírico sobre a crescente tendência “de separação e desmembramento “das ciências, que excluía filosofia, a menos no que referia aos termos “natural” ou “experimental”1. Ele propôs o termo novamente, de modo mais sério e em seu próprio nome em 1840, em “The Philosophy of the Inductive Science”, dando um nome genérico compreendendo vários campos científicos, semelhante à maneira como ele concebeu o termo artista para se referir às áreas da música, pintura, poesia etc. O que é particularmente interessante sobre a intervenção de Whewell para o contexto atual é que ele concebeu que todo conhecimento tem um ideal, ou dimensão subjetiva; bem como uma dimensão objetiva. O que ele viu como uma antítese fundamental do conhecimento, revelou em todo ato de conhecimento há dois elementos opostos: idéias e percepções. Por contrariar os Idealistas Alemães, bem como os sensacionalistas por sua propensão exclusivista, ele alegou estar procurando uma “via intermediária” entre racionalismo puro e um empirismo extremo.
Whewell (1858, I, 91) denominou ideias fundamentais como sendo: “… não uma conseqüência da experiência, mas um resultado da constituição particular e atividade da mente, que é independente de toda a experiência em sua origem, embora constantemente combinadas com experiência no seu exercício “. Ele reconheceu que a mente não é um mero receptor passivo de dados sensoriais, mas um participante ativo na produção de conhecimento.
É notável que a filosofia da mente reflete na história da ciência no modo como vários processos de produção de conhecimento foram compreendidos e modificados nas metodologias e significados implicados. Embora tenha sido freqüentemente alertado que a condição humana tem de ser reconhecida na sua implicitude em qualquer ato de observação ou de análise (se não na coleção científica de dados em si, e ainda, na leitura e interpretação da informação recolhida), as implicações do papel ativo da mente humana, no entanto, tem sido freqüentemente subestimado. A longa tradição na separação dualista entre a racionalidade como um processo de ordem superior e os sentidos físicos e a mente do corpo como os processos menores relacionados ao instinto deixou seus traços e ainda prevalece. Consequentemente, o dualismo cartesiano serviu predominantemente de modelo para racionalizar a separação crescente entre as Artes e Ciências durante o século 19 com uma presunçosa oposição binária entre o racional e o irracional, o inteligível e o sensível, ou o dionisíaco e o apolíneo, que Friedrich Nietzche (1872) reinterpretou como as unidades da natureza artística, como oposição estética fundamental.
Ao olhar para a interseção entre Arte e Ciência em estudos de casos particularizados, no entanto, muitos dos limites freqüentemente discutidos parecem se dissolver no reconhecimento das tensões produtivas dentro de contradições, paradoxos e incoerências nas práticas cotidianas. A partir dos muitos exemplos que podem ser extraídos da história da ciência, um caso paradigmático pode ser encontrado no fisiologista francês Etienne-Jules Marey (1830-1904), cuja obra se coloca entre as tensões que transformaram a ciência do século XIX dentro do paradigma positivista do século XX. Enquanto um estudo de caso mais completo é desenvolvido em outros lugares (BLASSNIGG, 2009) deve-se notar aqui que os estudos sobre movimento de Marey estava entre a sua capacidade visionária e orientação motivadora que entendeu o movimento como força subjacente para além da atividade executada de corpos em movimento ou substâncias, e o método científico de análise que reduziu essa força de apreender momentos para estudar posições individuais e casos de intensidades.2 A sobreposição de fotografias em série em sua “composite chronophotographs” situaram as tensões entre a calibração instrumental e a expansão da percepção subjetiva por uma ligação rigorosa com uma imaginação visionária e uma consciência explícita das suas implicações perceptuais e epistemológicas. Através de sua combinação única de métodos gráficos e fotográficos, de tecnologias de análise e de síntese, Marey teve sucesso abordando intrinsecamente a ambos: o capturado (análise) e o percebido (em suas tensões entre o experienciado e o sintetizado), em contraste com o paradigma positivista, cada vez mais privado desta totalidade e dinamismo visionário3 enquanto método científico. Esses recursos são evidentes no trabalho inovador de Marey, em que a imaginação desempenhou um papel fundamental tanto quanto a estética, ambos aplicados como ferramentas intrínsecas para complementar o rigor científico e a precisão.
A discrepância entre a análise e a descrição (ou representação visual) do movimento e o dinamismo atual das forças subjacentes de corpos animados que se cristalizam como duas dimensões chaves no trabalho de Marey, que na época também foi discutido pelo filósofo Bergson Hneri (1859-1941), que foi quem identificou a confusão entre a medição do tempo quantificável e do tempo como experiência qualitativa, uma vez que permanece fundamental reconhecer as potencialidades intrínsecas da mente humana que se mantém envolvida. Ele procurou desenvolver uma abordagem pragmático filosófica para abordar a questão da mudança de paradigma anteriormente mencionado nas ciências; inicialmente escrito como uma crítica à posição extremada do idealismo de Kant dentro do idealismo alemão de uma filosofia transcendental, ele tentou se mover através da dicotomia matéria (corpo) e espírito (mente), evitando estabelecer um reino transcendental e sem ter que considerar a consciência como um epifenômeno do cérebro. Assim procedento, os esforços de Bergson resultaram na distinção de duas tendências da mente – intelecto e intuição (antigo instinto), em uma oposição esquemática, que de forma construtiva e colaborativa foram complementando-se mutuamente ao longo do processo evolutivo, como ele demonstra em particular o caso dos processos criativos da mente (BERGSON 1999, 1998). Ao invés de representar uma crítica polêmica ao método científico, ele refletiu sobre o entreleçamento implícito e de contingências entre esses dois pólos dinâmicos e as suas necessidades evolutivas como tendência integradora: “Há coisas que a inteligência sozinha é capaz de buscar, mas que, sozinha, nunca as vai encontrar. O instinto, por si só, poderia encontrar; mas nunca irá procurá-las ” (BERGSON, 1998, 151).
A partir da perspectiva de uma filosofia (ou antropologia) da ment,e Marey e Bergson reconhecem intuição e imaginação como constituintes intrínsecos de sua prática do conhecimento, e viram a arte como uma disciplina importante para manter o movimento em uma posição dinâmica e instável – o próprio princípio da vida como é experimentado e aspirado. Há paradigmáticos exemplos anteriores de tentativas similares para descobrir um acesso mais direto e holístico para os fenômenos observados, em particular nas suas comunicações interrelacionais e representações com e no espectador, como nas obras de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832 ) e Joseph Mallord William Turner (1775-1851), que tanto tentaram mediar e comunicar a experiência de fenômenos de luz e escuridão em seu caráter unificado e alterações transitórias.4 Goethe, mais explicitamente, tinha manifestado a interação entre a intuição e o intelecto de uma forma semelhante a Bergson, pois ele compreendeu a percepção intuitiva (Anschauung) e a faculdade do pensamento (DENK-KRAFT) como duas forças complementares na conformação de qualquer ato criativo que objetiva alcançar uma maior atenção e análise mais completa (NAYDLER, 1996, 120). Não obstante que a resolução de Turner para estas tensões inerentes, como expresso em particular na sua pintura do Dilúvio, tem sido interpretada como uma imagem de desespero, a resolução de Goethe foi vivamente contestada e as intenções inerentes de Marey têm sido negligenciadas ou deliberadamente prejudicadas , suas obras tem sido orientadas por sensibilidades e preocupações interconectadas, embora em enquadramentos muito diferentes e através de metodologias divergentes. As tensões intrínsecas no tratamento do movimento dinâmico no seu trabalho e pensamento indicam a aparente incompatibilidade e paradoxo que Bergson e, semelhante aWhewell e Goethe, situou como tendências complementares da mente humana: o intelecto e a intuição.
A busca de Bergson, no entanto, não só reconhece alguns destes paradoxos irreconciliáveis, mas escava um caminho através do reconhecimento da agência imanente durante o processo perceptivo co-criativo como evento ontológico que interliga apreensão estética e intuição com rigor intelectual. O esforço em direção ao holismo, sem negligenciar a agência criativa e promulgada autodeterminação do participante (seja ele humano ou não humano), oferece-se como uma solução potencial para a dicotomia comumente assumida entre mente e matéria através de uma compreensão pragmática da intuição, que suplementa e, finalmente, contém o intelecto. A fim de manter em vista a constante renegociação dos valores humanos em qualquer prática do conhecimento (no pleno reconhecimento de agência e criatividade como forças motrizes), uma das principais preocupações pode ser identificada nos canais que facilitam a co-construção de conclusões específicas levantados deles mesmos. Estes “conjuntos” com as práticas e experiências do cotidiano através de participação(1) pro-ativa, co-criativa e consciente pode constituir uma verdadeira “ciência compartilhada”, em especial quando se trata de troca de conhecimento através da colaboração. Neste sentido, o binário arte-ciência genérico, talvez entre os muitos binários interdisciplinares, serve como um modelo para aludir ao potencial transformador da dinâmica da troca, como eles aspiram e que Sundar Sarukkai (2009) chamou de uma “ética da curiosidade” em ciência. Ao invés de contar os resultados em termos de diferença (1 + 1 = 2) ou de equalização em terra comum como uma espécie de amálgama (1 + 1 = 1), a equação mais valiosa da arte-ciência pode estar no recorte da dinâmica fusão: 1 + 1 = 3; não como uma terceira “cultura”, no entanto, mas como algo novo e diferente que pode acontecer em um meta-nível como princípio autotranscendente de qualquer colisão materializada. O restabelecimento do sublime como uma qualidade na efetiva atividade da mente humana, ao invés de um “dado” de natureza transcendental em termos de um “absoluto”, fornece uma reconciliação potencial da condição humana de viver entre binários, em um dualismo que não precisa ser necessariamente superado, mas que alimenta a fusão evidente que produz os deleites da mente promulgada por meio de uma responsabilidade de a conceber como um todo. Um dom ativo do amor que só pode ser apreciado na atividade concreta de estar com, no próprio ato co-criativo entre dois elementos, nas seções transversais de qualquer prática com o objetivo de produzir novos conhecimentos ou algo assim, com ou sem o auxílio da tecnologia, o movimento efetivamente criativo da mente que “mentaliza”. Como tal, a polaridade da arte-ciencia pode ser vista em uma gama muito maior de oposições binárias, onde questões semelhantes e dificuldades de comunicação podem ocorrer: nas colaborações interdisciplinares relacionadas a diálogos inter-culturais, a assuntos relacionados a gênero, a trocas inter-nacionais, a relações inter-geracionais etc.
A capacidade de apreciar e facilitar a transcendência disciplinar aparece como o fulcro de que podem inflamar no encontro ciência-arte, mas somente se os métodos envolvidos e as abordagens forem mantidos inteiros numa relação dialógica (ao invés de uma dialética ou uma convergência) que desafiem a unificação e abraçem a diferença na mutualidade (co-sendo). Deixar de lado modelos paradoxais como premissas, para dislumbrar novas visões podem provocar uma fusão onde as relações envolvidas estão sendo transformadas e discernimentos sendo transferidos através de uma troca de conhecimentos que não elimina, mas acomoda diferenças. Um encontro idealizado e produtivo que se orienta potencialmente em direção a uma auto-transcendência responsável, privilegiando o todo . Mentalidade aberta, tolerância, generosidade intelectual, curiosidade ética, modéstia – qualidades essenciais para qualquer encontro na fronteira entre as disciplinas, culturas, nações, ideologias, etc – indicam um papel-modelo que a ciência da arte da colaboração poderia representar no século XXI, para um reconsideração dos valores das Humanidades, que não se restringem aos seres humanos, mas estende seu parentesco a todas as formas de vida. Isto estava no cerne da visão de Henri Bergson de uma nova ciência que abraçava a metafísica por meio da filosofia, especialmente como expressa em sua abordagem para a compreensão da consciência além dos limites humanos em “L’Evolução Créatrice “(1907. Evolution, Creative, 1998) pelo que , pode-se sugerir retrospectivamente, ele talvez deveria ter ganhado o prêmio Nobel da Paz, além do que ele recebeu em 1929, de Literatura. Intuição, entendida como prática responsável auto-consciente e dom ativo do amor , mais que uma visão espontânea, pode servir como abordagem potencial em direção a uma atitude “humanitária” através da escolha auto-transcendente e agência individual para descobrir os domínios que são deliberadamente ou acidentalmente perdidos na tradução. Numa última análise, o principal desafio a ser identificado pode não ser a busca de uma linguagem comum, mas sim o desenvolvimento de competências e habilidades em relação ao entendimento da mente humana de modo a acomodar diferença e contingência em sintonia com os valores selecionados e advogados para orientar buscas futuras.
Referências
Bergson, Henri. An Introduction to Metaphysics (tr. T.E. Hulme). Indianapolis, Cambridge: Hackett Publishing. [1903. ‘Introduction à la Métaphysique’ in Revue de Métaphysique et de Morale, January].
______ 1998. Creative Evolution (tr. A. Mitchell). Mineola, New York: Dover Publications. [1907. L’Évolution Créatrice. Paris: Alcan].
Blassing, Martha. 2009. Time, Memory, Consciousness and the Cinema Experience: Revisiting Ideas on Matter and Spirit. Amsterdan: Rodopi.
Marey, Étienne-Jules. 1895. Movement: The Results and Possibilities of Photography (tr. E. Pritchard). London: William Heinemann. [French original: 1894. Le Mouvement. Paris: Masson].
Naydler, Jeremy (ed.) 1996. Goethe on Science. An Anthology of Goethe’s Scientific Writings. Trowbridge: Floris Books.
Nietzche, Friedrich. 1872. Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik (The Birth of Tragedy: Out of the Spirit of Music). Leipzig: E.W. Fritzsch.
Sarukkai, Sundhar. 2009. Science and the Ethics of Curiosity. Current Science 97 (6): 756-767.
Whewell, William. 1858. The History of Sientific Ideas. Two Volumes. London.
Wright, C.J. 1980. The ‘Spectre’ of Science. The Sutdy of Optical Phenomena and the Romantic Imagination. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, Vol. 43.
1Citação retirada da Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2006. Disponível em http://plato.stanford.edu/entries/whewell. Acessado em 30/05/2011.
2A Monografia de Marey: Movement (1895; Le Movement, 1894) é particularmente esclarecedora para compreender as intenções subjacentes em seus estudos do movimento.
3O método científico é reducionista a certos valores e dimensões humanas como uma condição necessária da sua eficaz especialização e quantificação e isto não é considerado um problema – somente é problema se esta redução estiver ultrapassando a perspectiva do todo e, consequentemente, a especialização se mostra como a totalidade, o que não só ocorre nas Ciências mas também nas Artes e Humanidades.
4 A contextualização do trabalho de Marey e Bergson com as ideias de Goethe e Turner, da percepção da luz, é mais plenamente elaborada no artigo: The Delightful (1) Mind and a Case for Aesthetic Intuition: Marey and Bergson in the Company of Goehte’s and Turner’s Conceptions of Light. In: Light, Image, Imagination: The Spectrum Beyond Reality and Illusion. Blassing, M. (ed.) Amsterdan: Amsterdan University Press.
Martha Blassnigg
Universidade de Plymouth