Resumo: A proposta deste artigo é compreender as contribuições da emergência como paradigma aos processos comunicacionais, entendendo a emergência, nos dizeres de Steven Johnson, como “processos organizados de baixo para cima e de forma adaptativa”, que assumem características compatíveis com as demandas comunicacionais no cenário contemporâneo. A emergência será compreendida aqui à luz dos esforços da sociedade civil em relação à afirmação dos direitos humanos à comunicação e da apropriação social das tecnologias de informação e comunicação a partir de articulações que promovam comunidades de compartilhamento social com base em processos emergentes. Com base numa pesquisa descritiva, a partir de levantamento bibliográfico e documental, este trabalho evidencia iniciativas e experiências relevantes, demonstrando a sua atualidade e a necessidade de incorporar outras temáticas sociais.
Palavras-chave: emergência; políticas de comunicação; apropriação social das TICs; comunicação comunitária.
Até o momento os filósofos da emergência
lutaram para interpretar o mundo,
mas agora estão começando a modificá-lo.
Steven Johnson, 2003, p. 16
A ideia de emergência como paradigma foi trazida recentemente ao Brasil, por intermédio do livro homônimo de Steven Johnson, que estudou o fenômeno em organizações sociais aparentemente díspares, tratando de compreender e verificar um evento que se caracteriza por “processos organizados de baixo para cima e de forma adaptativa”,[1] relacionado à compreensão de mecanismos de complexidade observados em estruturas diferenciadas, mas que atuam de modo semelhante em relação ao aprendizado de experiências próximas e à escolha de melhores caminhos e alternativas para a execução de funções nos mais diferentes setores, transmitidas a seus pares de modo mais imediato.
Cabe analisar, diante do entendimento desse modelo organizativo, suas possibilidades de funcionamento em relação à comunicação, compreendendo-a em seus aspectos tecnológicos e políticos, bem como em seus aspectos socioculturais, no contexto da apropriação das tecnologias de informação e comunicação (TICs) por parte da sociedade. São consideradas nesse contexto as devidas imbricações que caracterizam a comunicação como atividade produtiva, constituída em escala global por mercados estruturados a partir de monopólios e oligopólios fundados na propriedade cruzada, e também como um bem público universal que vem recentemente sendo tratada à condição de direito humano fundamental.
1. Para compreender a emergência
Steven Johnson compreende as organizações baseadas no paradigma da emergência como um contraponto àquelas historicamente associadas a um modelo baseado em hierarquias de cima para baixo, nos quais o processo decisório se dá de modo centralizado e se desmembra para uma coletividade mais ampla a partir da assimilação dos comandos. Ele vai encontrar, a partir de pesquisadores que seguem trilhas comuns em ciências díspares como a biologia, a informática, a arquitetura e demais ciências, pistas para a compreensão do que o autor chama de mito da formiga-rainha, em torno do qual se acredita que trabalhariam as formigas operárias, constituindo uma forma de observação da realidade naturalmente compreendida e assimilada, mas dotada de uma ideologia inerente e cômoda para a explicação do funcionamento desses processos.
Alguns fatores apresentados por Johnson permitem a melhor identificação desses processos: somente pela observação de todo o sistema em ação é que o comportamento global se manifesta, não pelo estudo de elementos isolados de um grupo; “é melhor construir um sistema com elementos simples densamente interconectados e deixar que comportamentos mais sofisticados ocorram aos poucos”;[2] sistemas descentralizados se baseiam fortemente nas interações aleatórias de indivíduos explorando determinado espaço sem qualquer ordem predefinida; identificar padrões nos sinais fornece informação significativa sobre o estado global de determinado conjunto e, por fim, informação local pode levar à sabedoria global, gerando maior interação entre vizinhos e permitindo a resolução de problemas e o ajuste com mais eficiência.
Ao longo de seu trabalho, esses processos foram observados em formigas, cérebros, cidades e softwares, possibilitando a compreensão desse comportamento em diferentes situações e contextos: nas colônias de formigas, seus integrantes se desenvolviam não a partir da orientação de formigas-rainha, mas da constante observação e seleção de padrões eficientes por parte de membros de determinado coletivo, organizado de baixo para cima e de forma adaptativa. Neurônios assimilam funções corporais visando certas tarefas dentro do organismo, cidadãos definem lugares nas cidades a partir de padrões socioculturais que facilitam sua ambientação numa localidade. Softwares que se alimentam do reconhecimento de inputs por parte de seus usuários qualificam a informação que fornecem e, em comum, todos os “agentes que residem em uma escala começam a produzir comportamento que reside em uma escala acima deles”. É o que Johnson chama de emergência, definindo-a como o “movimento das regras de nível baixo para a sofisticação do nível mais alto”.[3]
O autor não afirma categoricamente que esse é o modelo ideal de organização, mas busca reconfigurar o modo de observar esses fenômenos, contribuindo com a síntese de uma nova perspectiva e uma aposta numa maneira mais eficiente de alcançar resultados. Dessa forma, oscila entre a observação dos fenômenos que estuda e a própria confiança no comportamento que observa. Sua intenção é identificar comportamentos emergentes em organizações que vinham sendo identificadas como hierarquizadas, tentando evidenciar a emergência como um modo mais eficiente de organização, já que baseada na descentralização, na horizontalidade e em outras características aqui abordadas. Em certos momentos, sua postura se carrega de cores fortes, limitando a compreensão dos fatos e a capacidade de identificar quando sistemas centralizam seu funcionamento.
Se se trata de reconhecer a importância de uma reflexão que parte de uma perspectiva ideológica, tendo como base a crença na emergência como conduta coletiva, cabe também analisar a complexidade inerente a um organismo, no contexto de determinado setor, para identificar em quais contextos a emergência se aplica e para quais situações ela contribuiria de modo contundente. Ou, ainda, trata-se, portanto, de buscar saber como politizar a emergência, compreendendo estratégias de baixo para cima como a construção política capaz de colocar em evidência a expressão popular nas coletividades.
Cabe diferenciar a complexidade tal como historicamente compreendida – um tecido de constituintes heterogêneas inseparavelmente associadas, no qual o conhecimento atua para rechaçar a desordem e afastar o incerto, selecionando os elementos da ordem e da certeza[4] – da prática da emergência propriamente dita, que pode ser assimilada como forma de gerar organicidade para o fenômeno capaz de ser observado e replicável em diferentes situações. Além disso, é importante compreender se o caminho da emergência é inevitavelmente mais funcional em qualquer situação, já que resulta numa característica aleatória em relação à complexidade da comunicação, seja como atividade produtiva, seja como direito humano fundamental.
Ao assumir a emergência como estratégia organizativa a ser afirmada e observada, não se faz necessariamente a apologia da ideia tradicional de que o pequeno é bonito, numa linhagem schumacheriana. No que se refere a meios, processos e sistemas comunicacionais, seria equivalente a afirmar as experiências populares e comunitárias de comunicação em detrimento da abrangência e da penetração dos meios e sistemas de comunicação de massa.
Uma das premissas que fundamenta a emergência se baseia na capacidade de gerar comportamentos complexos em escalas maiores a partir da integração de escalas menores. Trata-se, portanto, de um modelo que consolidaria meios e processos massivos de comunicação a partir de estruturas comunitárias e populares alternativas às práticas de concentração da propriedade atualmente observadas no setor de comunicação.
O fortalecimento de organizações a partir do local, bem como a aprendizagem com boas experiências e a capacidade de replicá-las em ambientes próximos e em maior escala fazem da emergência uma referência em termos de metodologia e estratégia, com características assimiláveis aos processos democráticos de comunicação, que a reivindicam como direito humano em diversos aspectos que abrangem desde o envolvimento da sociedade em sua pluralidade e diversidade de culturas, como a apropriação das tecnologias de informação e comunicação, até a necessidade de marcos regulatórios e legislações que estimulem não só o acesso e a produção, mas também a posse e o controle, gerando, inclusive, alternativas de renda para comunidades e produtores de pequeno porte.
Para Johnson,[5] vivemos atualmente um terceiro momento da história da emergência: a princípio buscou-se compreender o fenômeno como um todo, distinto da compreensão tradicional dos sistemas de cima para baixo, em seguida a emergência passou a ser vista como um problema a ser investigado em áreas distintas de conhecimento e hoje ela é criada, seja através de softwares baseados em sistemas de auto-organização com várias aplicações (como a recomendação de livros ou o encontro de parceiros), seja por meio de jogos como o SimCity, baseados em algoritmos de inteligência artificial, a partir dos quais se organizam suas próprias estruturas.
Mais recentemente, a Web 2.0 vem concebendo – e transformando – a internet não mais como uma rede de redes, mas como uma plataforma de plataformas,[6] a partir das quais diversos programas são gerados, disponibilizados e podem ser utilizados em tempo real. Seus usuários se apropriam de seus recursos, gerando informações que podem ou não ser compartilhadas pela coletividade – no caso, usuários da internet em geral ou de programas em particular –, possibilitando caminhos para novas criações e, consequentemente, aprendizado coletivo em estruturas horizontalizadas de rede.
Partindo de comunidades e tecnologias que se redefinem e se reorganizam diante de novas demandas e tendências, a comunicação torna-se uma atividade passível de ser retrabalhada diante de uma estrutura que se organiza, do ponto de vista econômico, de modo extremamente centralizado, apesar de contar com aberturas, brechas e contrafluxos dos mais diversos, no tocante às relações que se estabelecem entre produtores e receptores, estudadas há algumas décadas, em torno do binômio recepção-mediação.
No entanto, para compreender a comunicação numa perspectiva de radicalização de sua democracia e de efetivação de seu entendimento como direito humano fundamental, cabe compreender outras estruturas capazes de descentralizar processos de produção ou de se apropriar deles, em escalas mais restritas, e crescer a partir de suas redes. A emergência oferece pistas para a efetivação de tais estruturas de modo mais seguro e consolidado, bem como a identificação de processos de apropriação das tecnologias para o fortalecimento de comunidades e a consolidação de indicadores de efetivação de outros direitos humanos, como educação e saúde, entre outros.
2. Comunicação em processos de emergência
Para pensar a comunicação a partir da emergência, é preciso compreender como se dá o envolvimento de pessoas, grupos e organizações em seus processos constitutivos, como as diversas vertentes de reivindicação dos direitos humanos à comunicação, de apropriação social das TICs e da consolidação de comunidades de compartilhamento social.
A ideia de lutar pelo direito humano à comunicação está diretamente relacionada à mobilização tanto daqueles que buscam exercê-la mais diretamente na prática – ativistas e jornalistas, por exemplo – como daqueles que têm competência para tanto, ou seja, a sociedade como um todo.
Nos debates internacionais, mesmo no campo da sociedade civil, a conceituação do direito humano à comunicação provoca entendimentos diversos: pode se referir à reivindicação dos meios de comunicação não disponíveis – como se se restringisse apenas a ampliar sua dimensão – ou, ainda, como a amplitude do direito à comunicação tal como é atualmente disponibilizada, com foco na dimensão do consumo de produtos e veículos por parte da população em geral. Entretanto, esse conceito diz respeito ao direito à comunicação em sua essência, tal como ela nunca deveria ter deixado de se afirmar e disseminar.
Sua origem se dá a partir do artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que afirma: “Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras.”[7]
Comentando a afirmação de Jean d’Arcy, para quem o direito do homem a comunicar deveria ser contemplado na própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, Cees Hamelink mostra que, desde sua introdução pela Unesco, em 1994, “o direito a comunicar é percebido por seus protagonistas como mais fundamental do que o direito à informação, como atualmente disposto pelas leis internacionais”.[8] O redimensionamento do artigo 19, a partir dos diversos debates que se seguiram, proporcionou o surgimento da Plataforma para os Direitos da Comunicação, um agrupamento de ONGs formado em 1996, em Londres, que, por sua vez, em 2001 fundou a Campanha Cris, sigla que significa, em português, Direitos à Comunicação na Sociedade da Informação.
O amadurecimento das articulações promovidas levou à necessidade de entender o próprio direito à comunicação como um direito humano, atualmente reivindicado por organizações como a Amarc e que se manifesta na Carta de Princípios da Campanha Cris como suporte aos direitos humanos: “Nossa visão de Sociedade da Informação se fundamenta no Direito a Comunicar como um meio de enfatizar os direitos humanos e fortalecer a vida social, econômica e cultural das pessoas e das comunidades.”[9] Também o texto de apresentação da Plataforma busca assegurar a concordância em
trabalhar para que o direito à comunicação seja reconhecido e garantido como fundamental para assegurar os direitos humanos, com base nos princípios de participação genuína, justiça social, pluralidade e diversidade e que reflita perspectivas de gênero, culturais e regionais.[10]
Já na Carta de las Radios Comunitarias y Ciudadanas, deliberada pela Amarc em 1998, durante a VII Assembleia Regional da Amarc 7 – europeia –, seus signatários afirmam que a “comunicação é um direito humano universal e fundamental” em todas as suas implicações, que são mais bem explicitadas em outros documentos disponibilizados pela seção latino-americana da Amarc, em especial a Carta de Comunicação dos Povos.
De modo geral, o desenvolvimento da percepção da importância da comunicação para a transformação social contribuiu para o resgate do direito à comunicação de todos, para todos e por todos, nas dimensões de conceber, produzir, veicular, disseminar e incrementar a participação de mais atores. Tal sentido é traduzido de maneira mais forte nesse contexto do que simplesmente na ideia de democratizar a atividade, englobando outras noções como a liberdade de expressão e de imprensa, o direito à informação, o direito de se comunicar, bem como também a própria democratização da comunicação, a diversidade cultural e as questões relacionadas à propriedade do conhecimento.
A formulação atual do direito à comunicação está, portanto, relacionada à definição de políticas públicas e marcos regulatórios, na forma de princípios a serem estabelecidos e reivindicados pelas diversas organizações participantes da Campanha Cris, bem como de outras iniciativas mais recentes, mais do que de leis democratizantes a serem efetivadas nos diversos países. Ou seja, a mobilização pela democratização da comunicação, que se processava de outras formas em outros países, agora se torna globalizada, buscando uma agenda comum a partir de realidades que cada vez mais se entendem como semelhantes.
No entanto, não é por ser globalizada que ela se torna consensual. A proximidade com aspectos relacionados à emergência diz respeito, nesse contexto, à constante troca de informações entre os participantes desses processos, que atuam em conjunto nas situações em que há acordo comum, mas guardam suas particularidades no desenvolvimento de ações específicas. Dessa forma, movimentos de rádios comunitárias e rádios livres estão juntos em questões gerais, embora tenham fóruns específicos em relação a seus projetos de rádio.
Do mesmo modo, não é por ser globalizada que a mobilização desses atores não se deixa determinar, também, por aspectos locais. Ao contrário, é o local que reconfigura o global, por meio das articulações de diversas redes que buscam soluções a partir de seus países e regiões, para se encontrar em fóruns mais amplos e compartilhar melhores práticas. A solidez da organização das estruturas locais é que determina um melhor envolvimento em escalas superiores. Assim é que a participação da sociedade civil em processos como o das cúpulas e conferências multilaterais da ONU se consolida e gera frutos na formulação de propostas, reivindicações e protestos, bem como no monitoramento de políticas públicas.
Se a partir dos anos 1970, com o desenvolvimento do movimento ambientalista, seus militantes começaram a tecer a ideia de pensar globalmente e agir localmente, ao final dos anos 1990, com o fortalecimento das organizações da sociedade civil em redes globais, essa perspectiva veio se construindo com base no ideário do pensamento e da ação globais. No entanto, o crescimento das articulações nos mais diferentes níveis e a necessidade de contar com pessoas das mais diversas comunidades, dos níveis mais simples aos mais complexos, a partir de consensos em torno de melhores práticas e estratégias, reforçou demandas relacionadas ao pensar e agir globais, mas com os pés no local. Um local que gera movimentos em escala nacional e que recebe de volta os frutos das articulações regionais e globais geradas a partir daí, tal como nos debates em torno da comunicação como interesse público.
3. A apropriação social das TICs
Por ser uma atividade de grupo ou mesmo coletiva, a apropriação social das TICs não se relaciona à propriedade ou à ideia de sua apropriação em benefício próprio, para levar vantagem ou se diferenciar do restante do coletivo, tornando-se especial ou mais capaz, mas sim para não ser dominado ou explorado – política ou economicamente – e compartilhar com seus iguais.
Esse entendimento autorreferente do processo de aprendizagem, bem como do acesso ao conhecimento necessário para um melhor aproveitamento das tecnologias disponibilizadas, se contrapõe à própria ideia de um trabalho não alienado e colaborativo que, nos dizeres de Holloway,[11] exprime nossa capacidade de fazer como um entrelaçamento de nossa atividade com a atividade anterior ou atual de outros, ou ainda como resultado do fazer dos outros, numa prática que, apesar de se associar à ação direta dos anarquistas tradicionais, não dispensa o entendimento do campo institucional como espaço de luta, ainda que não necessariamente com fins partidários.
Tal iniciativa tem origem nas próprias experiências de comunicação popular dos anos 1970 e 1980, e também na comunicação comunitária dos anos 1990, responsáveis por originar diversos grupos que proporcionaram olhares sobre um Brasil que se rearticulava e se repensava na descoberta do uso dos meios e no desenvolvimento de histórias de sua própria gente, cujos enredos não tinham espaço para exibição na mídia corporativa, revelando o que para Barbero representa “o mundo da cotidianidade, da subjetividade, da sexualidade, (…) o mundo das práticas culturais do povo: narrativas, religiosas ou de conhecimento”,[12] manifestado por iniciativas que, ao longo desse tempo, giravam em torno da Associação Brasileira de Vídeo Popular (ABVP) e das primeiras associações municipais de rádios livres ou comunitárias, em especial no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Outro aspecto relevante da apropriação social é vital para esclarecer esse contexto: a efetiva apropriação social dos meios, veículos e produtos de comunicação comunitária é inversamente proporcional à capacidade de serem desenvolvidas novas concentrações no âmbito da sociedade civil. Para Holloway, que conduz sua obra como denúncia de uma prática equivocada ou mesmo oportunista por parte das forças de esquerda (no sentido de perpetuar ou ter acesso ao poder tal como ele se configura) ao longo da história, a luta a ser travada não é “para fazer nossa a propriedade dos meios de produção, mas para dissolver tanto a propriedade como os meios de produção: recuperar ou, melhor ainda, criar a sociabilidade consciente e segura do fluxo social do fazer”.[13]
Para além do conhecimento produzido, sedimentado e que necessita também ser compartilhado, outros campos do conhecimento relacionados às TICs podem ser tomados como possíveis desdobramentos, contemplando atores dos mais diversos: o recente processo de digitalização de rádio e TV no Brasil, visando o acesso e o controle democráticos; a adoção do software livre em larga escala, como garantia de socialização do conhecimento; e o desenvolvimento de experiências em telecentros e pontos públicos de acesso, em conexão com rádios e canais comunitários de TV a cabo, além dos pontos de cultura e de mídia livre, a partir das iniciativas de cultura digital no âmbito das gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira no Ministério da Cultura ao longo do governo Lula.
Apropriar-se socialmente das possibilidades de uso das TICs representa também, portanto, assumir outras dimensões que não apenas aquelas relacionadas à assimilação de funções e aplicações de programas de computador, a saber: a disponibilidade de infraestrutura (hardware, software e serviços de energia e telecomunicações); a capacitação para utilização de recursos (formação de monitores/facilitadores e pessoas das comunidades em geral); e as soluções a partir do aproveitamento de recursos (produção de conteúdos próprios e utilização de conteúdos já existentes e disponíveis).
As experiências de rádios comunitárias, canais comunitários de TV a cabo, os mais recentes telecentros e pontos de cultura e mídia livre são espaços fundamentais de articulação de setores da sociedade, nos quais o debate sobre aspectos relacionados à lei de comunicação social precisa circular, para que surjam propostas e manifestações a partir do encontro desses atores. A sociedade civil organizada assume, nesse processo, um papel determinante na formulação de suas políticas públicas, a serem tanto reivindicadas quanto afirmadas em seu fazer cotidiano. Seu lugar é muito menos o de afirmar a composição de uma estrutura tripartite, na qual ela se identifica a partir da restritiva concepção de terceiro setor, mas o de, não ignorando a existência de momentos de necessárias concertações junto com o Estado e o mercado, tecer sua autonomia a partir de atividades distintas, capazes de atribuir-lhe identidade junto à população em geral.
Há de se compreender também a complexidade desses papéis, uma vez que o Estado também é composto por atores hegemônicos oriundos da sociedade civil e de suas forças de sustentação, afirmando e se prevalecendo do poder regulador, que cria, julga e executa regulações diversas. A apropriação social aparece não só como estratégia de uso das TICs disponíveis ou a se reivindicar, mas como eixo central de articulação dos atores, no contexto das organizações da sociedade civil, para a elaboração de novas regulações.
No campo da comunicação, cabe compreender de quais formas se torna possível a promoção do interesse público a partir da perspectiva da emergência, bem como relacionar essa comunicação com o sistema vigente. Iniciativas que fomentam a articulação em rede e a aprendizagem de forma compartilhada contribuem para constituir modelos de referência para uma democratização da comunicação que a afirme como direito humano a partir do próprio poder-fazer comunicacional, ou ainda, conforme Holloway, da capacidade de mudar o mundo sem mudar o poder.
4. Para uma comunicação emergente
O ideário da emergência nos fenômenos culturais, nos quais o aprendizado coletivo a partir de escalas locais permite o desenvolvimento de processos sociais amplos e consolidados, reivindica os discursos de autonomia relacionados às propostas autogestionárias anarquistas, incrementando valores que afirmam a emergência para consolidar forças e consciências coletivas, determinantes nos processos comunicacionais.
A comunicação neste início de século passa a ser incorporada como componente central dos movimentos sociais, constituída a partir de valores como a pluralidade no cotidiano das ações dos movimentos, a participação na capacidade real de envolvimento das pessoas no processo de produção, a horizontalidade, visando a eliminação de níveis hierárquicos, de concentração de poder ou mesmo de conhecimento, a dialogicidade, pela promoção do conhecimento a partir da informação compartilhada, a que todos têm acesso e, por fim, a interatividade, na preocupação com o nivelamento de informações e capacidades de atuação, compreendendo a capacidade de sustentação de bandeiras de luta a se reivindicar e de novas e diferentes experiências a serem implementadas, dada a plena consciência do papel dos atores sociais nesse contexto. A emergência se apresenta aqui como condição de visibilidade de suas próprias conquistas, bem como estratégia para voos futuros, até porque a contribuição de seus preceitos às formas de organização complexas se dá justamente devido aos processos comunicacionais estabelecidos pelos elementos de seus coletivos, na consolidação de suas ações.
* Professor do curso de Comunicação Social e do Programa de Estudos Pós-graduados em Política Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutor e mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp). E-mail: acabral@comunicacao.pro.br.
[1] JOHNSON, 2003, p. 54.
[2] Ibid., p. 56-58.
[3] Ibid., p. 14.
[4] MORIN, 2005, p. 13.
[5] JOHNSON, 2003, p. 16.
[6] ALVES JR., 2006.
[7] DECLARAÇÃO UNIVERSAL…, 2004.
[8] HAMELINK apud MELO; SATHLER, 2005, p. 144.
[9] LA CARTA…, 2005.
[10] PLATFORM…, 2005.
[11] HOLLOWAY, 2003, p. 48.
[12] BARBERO, 1997, p. 244.
[13] HOLLOWAY, op. cit., p. 307.
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