Resumo: Neste texto, abordo outras aprendizagens relevantes da formação intercultural que emergiram das narrativas de professores/as indígenas, participantes da primeira turma do Fiei (Formação Intercultural de Educadores Indígenas), curso oferecido pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Os dados foram coletados por meio de entrevistas narrativas, realizadas com professores/as atuantes na escola indígena da aldeia Muã Mimatxi, localizada em Itapecerica, Minas Gerais, em maio de 2012. Entre as aprendizagens mencionadas, destaco as trocas de experiências entre grupos de etnias diversas e o aspecto prático do conhecimento escolar, que, com outros aspectos articulados com os princípios educativos da pesquisa e da interculturalidade sugerem muitas reflexões sobre a potência criativa e transformadora da formação intercultural, não apenas de educadores indígenas, mas de todos os educadores.
Palavras-chave: Formação de educadores; interculturalidade; aprendizagens docentes; narrativas indígenas; professores/as Pataxó.
Abstract: This paper deals with other relevant learnings that emerged from the narratives of the first group of indigenous teachers who attended the FIEI (Intercultural Formation Course for Indigenous Educators) offered by the Federal University of Minas Gerais State. Data was collected through narrative interviews made with those teachers involved in the indigenous school of the Muã Mimati village located in Itapecerica, in Minas Gerais, during May 2012. Among the kinds of learning mentioned, this study focuses the exchange of experiences between groups of different ethnical backgrounds and the practical aspects of the schooling knowledge. These and other aspects, articulated with the educational principles of research and interculturality, suggest many reflections on the creative and transformative potential of the intercultural formation which can benefit not only indigenous educators but also all educators.
Keywords: Teachers’ formation, interculturality; teachers’ learnings; indigenous narratives; Pataxó teachers.
Introdução
As discussões aqui apresentadas resultam de uma pesquisa cujo objetivo foi analisar as repercussões da formação intercultural nas práticas escolares de professores/as indígenas que participaram da primeira turma do Fiei (Formação Intercultural de Educadores Indígenas), oferecido na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Iniciada em 2006, essa turma foi ofertada como curso especial de graduação e com financiamento do Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas (Prolind)[1], encerrando-se em maio de 2011 e diplomando 132 indígenas das etnias Xacriabá, Pataxó, Maxacali, Krenak, Aranã e Caxixó (UFMG, 2011).
No meu doutorado, entrevistei participantes de diversas etnias desse curso (Pádua, 2009) e, em uma nova proposta de pesquisa, após o encerramento do Fiei, pretendia visitar as aldeias para conhecer as reverberações dessa formação na vida dos/as professores/as. Comecei por uma pequena aldeia da etnia Pataxó, a Muã Mimatxi, localizada no município de Itapecerica, na região do Centro-Oeste mineiro.
Os dados empíricos foram coletados por meio de entrevistas narrativas, realizadas em 2012, com quatro professores/as que participaram do Fiei e atuavam[2] na escola dessa aldeia: Duteran, Sarah, Siwê e Kanatyo. Na entrevista narrativa, o/a pesquisador/a apresenta aos/às entrevistados/as uma única questão gerativa, formulada com um foco específico e de modo a produzir, como resposta, uma história do início ao fim, tendo, como uma de suas vantagens, o adiamento das intervenções do/a pesquisador/a para as etapas finais da entrevista (Flick, 2004; Teixeira e Pádua, 2006; Silva e Pádua, 2010).
Como o Fiei se organizou em três áreas de concentração, esses/as professores/as da aldeia se dividiram de modo que cada um escolhesse uma das áreas e o grupo pudesse contemplar todas as áreas ofertadas pelo curso. Dessa forma, Duteran e Sarah cursaram a área Línguas, Artes e Literaturas; Siwê optou pela Matemática e Ciências da Natureza, e Kanatyo escolheu Ciências Sociais e Humanidades. Em 2009 foi criada uma nova licenciatura – o Fiei/Reuni – que, diferentemente da primeira turma acima mencionada, oferece, para cada entrada anual de estudantes, habilitação em apenas uma das áreas do conhecimento (Silva, 2012). Esta definição prévia de apenas uma área do conhecimento nem sempre atende aos interesses e demandas dos estudantes, conforme apontaram Gomes e Miranda (2004, p. 463).
No processo de análise das entrevistas, utilizei o método hermenêutico-dialético (Minayo, 1996), que permitiu maior liberdade na interpretação dos dados. Após a leitura e releitura do material, foram identificados, em cada entrevista, temas ou palavras-chave que, após serem inseridas em um quadro sinóptico e comparativo, permitiram a identificação das principais categorias de análise. Duas dessas categorias adquiriram centralidade e se revelaram como princípios que orientam a relação desse grupo indígena com a educação e a escola: a pesquisa e a interculturalidade. Tais concepções, construídas em diálogo com os diversos atores envolvidos na formação do Fiei, desdobraram-se em muitas e ricas práticas desenvolvidas atualmente na escola.
Na proposta curricular do Fiei, a pesquisa se apresentava como um princípio educativo e orientava os Percursos Acadêmicos diferenciados, de acordo com os interesses de pesquisa e as demandas das comunidades. Nesse sentido, os projetos desenvolvidos pelos estudantes, definidos com base nas reivindicações de cada comunidade, norteavam a sua vinculação às áreas e aos três eixos temáticos do curso: a realidade socioambiental; a escola indígena e seus sujeitos e as múltiplas linguagens, e aos conteúdos e atividades a eles relacionados (UFMG, s/d; Pádua, 2009). Tais projetos culminavam, no final do curso, com a apresentação de um trabalho, e se destacaram, nas narrativas dos/as entrevistados/as, como um dos aspectos mais relevantes da formação intercultural (Pádua, 2017).
Essa proposta curricular do Fiei foi muito bem recebida por esse grupo de docentes, à medida que ofereceu oportunidades para investigar aspectos relevantes da vida coletiva e buscar respostas para questões da sua realidade social. Por sua afinidade com um modo próprio e peculiar de investigação, a pesquisa na formação foi apropriada, ressignificada e aplicada nas práticas escolares e nas atividades cotidianas da aldeia. Assim, esses/as professores/as tornaram-se pesquisadores permanentes da sua prática social, em busca de soluções para os problemas da comunidade e de recuperação de seus saberes e tradições, envolvendo toda a escola nesse processo (Pádua e Veas, 2013).
O princípio da pesquisa se conectou muito bem com outro princípio da formação que receberam no Fiei, o da interculturalidade, também apropriado, ressignificado e aplicado na vida cotidiana da escola e da aldeia, por meio do qual buscam interligar diversas dimensões da vida social e escolar, seja no modo de abordar os temas nas “aulas interculturais” ou nas “aulas normais”, seja na busca incessante por ampliar as conexões com outros grupos e etnias. O termo se reveste do sentido de relações, entre disciplinas, entre professores/as, entre turmas, entre conhecimentos próprios e conhecimentos de outros grupos. Nas aulas, o desencadeador é sempre um tema gerador de interesse coletivo, o que nos aponta a influência das ideias de Paulo Freire nessas concepções de interculturalidade que vigoram em toda a América Latina, conforme ressaltou Candau (2010).
Esta autora reconhece a influência das experiências de educação popular dos anos 1960 e a contribuição fundamental de Paulo Freire nos debates da educação intercultural, destacando dois aspectos: a articulação intrínseca entre os processos educativos e os contextos socioculturais em que se desenvolvem, e o trazer o universo cultural dos atores para o centro das ações pedagógicas. No rastro dessas influências, observamos concepções próprias de interculturalidade que muito se assemelham à Pedagogia de Projetos, remetendo aos diálogos estabelecidos com coordenadores/as, professores/as e monitores/as do Fiei, e que influenciaram a própria concepção do curso, como demonstrei em Pádua (2014).
Como esses aspectos foram abordados em outras oportunidades, vimos − nesta proposta de Dossiê − uma oportunidade para trabalhar dados ainda não explorados em artigos anteriores e que revelem outros aspectos da potência criativa e transformadora da formação intercultural de educadores indígenas. Dessa forma, abordo reflexões acerca de outras aprendizagens apontadas pelos /as entrevistados/as, a saber, a troca de experiências entre os “parentes” de outras etnias e a relação dos conhecimentos com a prática, assim como outros aspectos que também apareceram nas narrativas. Em seguida, também apresentarei algumas questões mais críticas sobre o curso, que emergiram nas entrevistas, e que podem nos ajudar a avançar nas proposições e debates acerca da formação intercultural de educadores.
Outras aprendizagens relevantes na formação intercultural
As concepções dos/as professores/as da aldeia Muã Mimatxi acerca da educação e da escola remetem-nos a uma filosofia de socialidade voltada para as relações (Viegas, 2002; Pádua, 2015), o que nos ajuda a compreender a grande valorização das trocas de experiências com os “parentes” de outras etnias que, muitas vezes, ocorriam informalmente, independentemente da intenção pedagógicado Fiei. É o que nos conta Sarah:
Também, o que eu achei que foi muito importante lá no curso, [foram] as horas que a gente encontrava na hora do almoço, depois do almoço. A gente ficava lá e a gente ia conversar com outros parentes, das outras escolas, dos outros povos. A gente contava experiência também. Também eles traziam. Ah, porque na minha escola aconteceu isso, foi bom, aconteceu isso com a experiência que não deu certo. (…) Então, esse contato assim com os outros parentes, eu acho que foi uma parte muito boa, de aprendizado para mim e para os professores de lá também, os professores não índios.
Sarah menciona esses encontros e convívio com “muitos indígenas das diferentes etnias”, ocorridos nos intervalos das aulas do Fiei, como momentos ricos de trocas, potencializados pela reunião de 146 indígenas, das etnias Aranã (1), Caxixó (7), Krenak (2), Maxacali (7), Pataxó (11), cento e dez Xacriabá (110) e Xucuru-Kariri (2), matriculados no curso (Pádua, 2009, p. 32).
Fonte: Arquivo pessoal
Contudo, esses diálogos interétnicos foram também potencializados nas oficinas denominadas “Laboratórios Interculturais”, previstas na organização curricular do Fiei, que promoviam o intercâmbio com povos indígenas de outros estados, geralmente, na primeira semana dos módulos presenciais[3] do curso.
Então, assim, lá a gente teve contato com os outros povos aqui de Minas: tinha Xacriabá, tinha Krenak, Xucuru, tinha oito etnias envolvidas nesse curso. Também, a gente teve outras experiências, com outros povos, de outros lugares aqui de Minas e do Brasil. Vinha gente do Acre, vinha gente lá do Rio Grande do Sul. Vinham trazer suas experiências também. [Foi um] tempo muito bom aquele tempo do curso (Sarah).
Acerca das trocas de experiências realizadas com índios procedentes de outros estados para socializar experiências nas oficinas interculturais, Sarah lembra-se de povos como os Kaxinawá, do Acre, que trouxeram suas experiências e projetos de vida e de escola para compartilhar com eles durante o curso.
Vieram os Kaxinawá, vieram vários povos lá do Norte, trazendo as experiências de projetos (…). Muitos já eram quase igual aos da nossa escola, [mas] tinha algumas coisas que eram incomuns. Então, eles traziam essas experiências para a gente e muita coisa assim a gente pegava para ver se dava certo. Algumas a gente conseguiu desenvolver, outras já era quase igual. (…) Essa experiência dos outros povos foi muito boa também (Sarah).
Esses encontros e trocas com os índios de outros estados foram mencionados, também, por outros professores/as da aldeia, inclusive, considerados como um dos aspectos da interculturalidade, conforme nas falas de Duteran:
(…) A interculturalidade igual a que gente teve com os outros parentes, com o pessoal do norte, o pessoal do sul que andou lá, alguns Kaingangcá do sul, os Guaranis do sul e do litoral. Então, a gente vê assim que eles passaram pra gente vários conhecimentos de vida deles, que eles conseguem driblar várias dificuldades, e incentivo também.
(…) A Universidade abriu as portas pra gente e trouxe um benefício muito grande, que pra mim foi a interculturalidade maior ainda, os conhecimentos que eu tive com os outros companheiros, os outros indígenas de Minas, indígenas de outros lugares do Brasil também, por que vieram de vários lugares. Então, eu achei muito importante isso, essa interculturalidade.
Podemos pensar essa valorização das trocas de experiências com indígenas de outras etnias, oportunizadas pelo Fiei, como parte de um “extraordinário apetite pelo Outro” que ativa relações e possibilita que a diferença seja absorvida, assimilada e recriada, produzindo novos conhecimentos. Nesse processo, contudo, “algumas coisas se encaixam e outras não são compatíveis” com as lógicas culturais do grupo (Carneiro da Cunha, 2009, p. 361).
As narrativas acerca da importância dos diálogos e trocas ocorridos durante todo o processo de formação apontam, como ressaltou Lave (2015), que a aprendizagem acontece em meio a esses engajamentos, movimentos e relações, sendo a atividade escolarizada apenas um dos contextos em que ela ocorre. Daí a necessidade de levarmos em consideração o sentido cotidiano de relacionalidade das pessoas, conforme nos alerta Strathern (2016), assim como o dinamismo dos processos, outro aspecto apontado por Kanatyo:
Claro que a gente foi também tendo outras experiências, de outros povos que passavam ali, que a gente ia trocando experiências (…) e construindo aos poucos essa formação. Porque não tinha assim um modelo de formação, então, a gente foi construindo, de acordo com a permanência da gente, a nossa própria formação dentro desse curso. E assim a gente foi também aprendendo a trocar experiências e conhecimentos.
(…) Teve a chegada, a permanência durante o curso e o desenvolvimento da experiência aqui dentro da aldeia. Então, assim, dessa formação lá, que eu me lembre, que mais ficou guardado na minha cabeça foram essas coisas mesmo: essa troca de experiências que eu tive no curso. Eu acho, assim, que sempre foi interessante essa forma de como a gente trabalhou, porque não tinha um modelo pronto, a gente foi construindo. Cada povo, cada escola, ia tentando fazer sua pedagogia, sua própria forma de ensinar.
Podemos perceber, nessas narrativas de Kanatyo, uma concepção de formação como Percurso, presente na proposta do Fiei, uma construção permanente que acontece em diálogo com as diferenças. Ao oportunizar muitos encontros e relações – formais e informais − com uma diversidade de culturas, não só indígenas (Pádua, 2014), tornando inclusive os intervalos das aulas verdadeiros laboratórios interculturais, o Fiei permitiu experiências muito valorizadas na perspectiva cultural desse grupo Pataxó. Nesses encontros e trocas, muitas ideias foram incorporadas e ressignificadas, criando novas possibilidades para os projetos de vida e para a escola.
Então, assim, o curso ajudou a gente dessa forma. A gente amadureceu nossa experiência de como trocar experiência educacional. A gente viu que é muito importante, que a gente também teve mais reconhecimento, porque a gente antes desse projeto de educação ia cada um para seu canto. Foi uma forma também de aproximar das comunidades indígenas, de aproximar um do outro, para dialogar os projetos de vida, da situação de vida (Kanatyo).
A gente aprendeu muita coisa até com outros parentes, com os que vinham da Amazônia, do Acre. […] E também a respeito das ideias que a gente ia trocando com os outros meninos aí, das outras aldeias. A gente ia vendo as dificuldades, os avanços que cada um tinha (Siwê).
Outro elemento que se se articulou bem com a perspectiva cultural desse grupo Pataxó, também bastante enfatizado nas narrativas desses professores/as, foi a relação dos conhecimentos com a prática. Para Sarah, esse aspecto prático da formação está entre as principais aprendizagens do curso, ao lado dos projetos desenvolvidos no Percurso Acadêmico e as trocas de experiências com outros povos indígenas. Ela ressalta a importância das oficinas desenvolvidas pelos/as professores/as do Fiei, nas etapas intermediárias, realizadas em articulação com os estágios, e que envolviam os professores e os alunos da escola indígena. Essas falas reforçam o que disse Rezende (2009) a respeito do curso, ao mencionar que as práticas pedagógicas da sala de aula e a vida cotidiana da aldeia se tornavam objetos de pesquisa e de reflexão dos/as professores/as em formação.
Sarah aponta que essas orientações para trabalhar com os alunos foi um aspecto muito positivo do Fiei, e cita, como exemplo, a produção de material didático-pedagógico: “É um produto para estar trabalhando com os alunos também. E isso eu acho que foi muito bom, assim pra mim foi uma das coisas boas que aconteceu.” Além disso, ressalta que essas aprendizagens− relacionadas ao trabalho com os alunos na sala de aula− permitiram a sua continuidade, após a conclusão do curso: “a segunda coisa boa foi esse trabalho que a gente fez com os alunos, que a gente vem desenvolvendo. Não ficou parado, foi através do curso que deu o caminho pra estar trabalhando com os alunos.”
(…) igual ao trabalho de estágio que a gente levou, apresentou lá, aí isso tudo foi material que veio de volta para a escolinha aqui, os meninos viram e ficaram empolgados. Anima qualquer trabalho que a gente tem pra desenvolver. Eles trabalham, se tiver que fazer desenho, se tiver que filmar, se tiver que fazer uma pintura ou fazer uma oficina, eles já estão preparados, já sabem como fazer. Então, isso também foi bom para os alunos, esse tipo de trabalho novo que a gente traz pra eles fazerem (Sarah).
Ao mencionar o estágio, a narrativa de Sarah dialoga com autores como Esteves (2014), que defendem a centralidade da prática pedagógica supervisionada na formação de docentes. Nessa perspectiva, a prática profissional oferece os problemas a serem investigados e é o espaço fundamental de diálogo com as disciplinas em busca de resposta a esses problemas. Mas, a narrativa de Sarah também destaca a produção de material-didático como fruto desse trabalho, mostrando a valorização da investigação que desemboca em um produto que a sistematiza, registra e apoia o trabalho com os alunos na escola. Afirma que, antes do Fiei, os/as professores/as da aldeia já produziam livros e cartilhas com os alunos, mas enfatiza que, após o curso, ficaram mais estimulados a desenvolver esse trabalho no cotidiano da escola.
Para a gente estar desenvolvendo esse trabalho, a gente desenvolveu alguns materiais para os alunos na escola, material didático que foi desenvolvido. Acho que isso foi um ponto muito bom, essa construção do material e também a construção de projetos para os alunos, junto com os outros professores de lá, não índios. Eles traziam experiências pra gente ir trabalhando e a gente também já fazia o que estava no pensamento da gente, da nossa escolinha, dos outros professores, o que a gente pensava de estar organizando. Vamos fazer esse trabalho, vamos fazer esse calendário, vamos fazer essa apostila, aí a gente já tinha também um apoio das pessoas de lá da faculdade, dos professores. Aí a gente desenvolvia também, ou eles vinham para cá e faziam oficina aqui para a gente e a gente ia construindo esse material. Então, aconteceu isso também e eu acho que foi muito bom, porque desenvolveu esse trabalho com os alunos. [A gente] também trabalhava quando eles vinham para cá desenvolver com a gente. A gente trabalhava aqui junto com os alunos. Os alunos é que são os autores desses livros, desses calendários, que vão estar saindo aí (Sarah).
A professora se refere a muitos materiais produzidos nesse processo, muitos deles, atualmente, já publicados, enfatizando a valorização de aprendizagens voltadas para a escola e os/as alunos/as. Siwê também mencionou que o curso ampliou as possibilidades de diálogo com os/as alunos/as, em especial, com aqueles que apresentavam mais dificuldades de aprendizagem.
Outro domínio, no qual podemos observar essa valorização do aspecto prático do conhecimento, refere-se às tecnologias, como destacou Siwê: “a gente teve esse contato com computador, com a internet, com pesquisa na internet, com a pesquisa na biblioteca com os livros”; com o gravador para realização de entrevistas, e com a produção de filmes. “Lá a gente aprendeu algumas coisas, alguns macetes de edição de imagens”, diz, e menciona que, durante o curso, começou a produzir um filme, mas teve de abandonar para se dedicar ao seu projeto de pesquisa.
Esse professor ressaltou a importância da aprendizagem das ferramentas de informática, especialmente daquelas ligadas aos registros audiovisuais (fotografia e vídeo), digitalização de imagens e manejo de arquivos digitais, que, posteriormente, foram levadas para a escola: “inclusive, esses dias, a gente tem um computador que a gente leva para eles brincarem lá de refazer o desenho deles, digitalizado no próprio computador, e ir melhorando a imagem, para eles irem tendo esse conhecimento”.
E a gente também buscou fazer esse registro de tudo que a gente fazia, as oficinas aqui, fotografando, fazendo muita coisa assim. O curso ensinou bastante coisa assim pra gente, que a gente não tinha conhecimento. Essas coisas de informática também a gente aprendeu um bocadinho, a gente não tinha conhecimento e a gente precisa (Siwê).
Muitas das aprendizagens mencionadas estão relacionadas aos projetos de pesquisa que os estudantes desenvolveram nos percursos acadêmicos do Fiei, e as tecnologias se inserem nesse movimento de busca por registrar processos e tradições culturais em risco de desaparecimento, para que sejam transmitidos às novas gerações, tendo a escola lugar central nesse processo (Pádua, 2014).
Sarah enfatizou outro aspecto prático dos conhecimentos, agora ligados ao território e destacando o envolvimento dos alunos na produção de materiais.
Igual assim, trabalhar a terra, o trabalho que a gente faz com a terra, a gente vai transformar isso em uma cartilha ou em um vídeo ou em livrinho. A gente (…) tira uma semana só para trabalhar nisso, ou três dias da semana, a gente organiza todos os professores, todos os alunos, aluno que não sabe escrever já desenha e depois monta todo mundo junto. Assim também com os conhecimentos que vem aí, a gente trabalha a escrita e nessa hora que a gente vai ver também os alunos, se eles estão escrevendo bem, se estão sabendo escrever nessas horas. E tem as outras aulas também que a gente trabalha o conhecimento de fora (Sarah).
Como se pode ver, a procura por conhecimentos práticos ultrapassa a vida escolar e se expressa em um desejo coletivo de envolver os alunos e a escola na resolução de problemas e questões ligadas ao território que habitam. Na época, recém-chegados em uma nova aldeia, esse grupo Pataxó encontrou uma terra degradada e pouco produtiva (Pádua, 2015), o que parece explicar a busca de envolvimento da escola com essa temática tão importante para a sua reprodução coletiva e para a sustentabilidade das novas gerações.
Siwê e Duteran também mencionaram alguns conhecimentos práticos relacionados a esse tema, tais como técnicas ambientais de manejo da terra; cuidado e reciclagem do lixo; preparo do solo e adubação; combate a incêndio, que foram disponibilizados nas disciplinas do eixo socioambiental do Fiei.
Até com os professores não indígenas mesmo, a gente aprendeu muita coisa que foi de grande valia. Algumas oficinas que a gente fez, (…) algumas técnicas (…) que a gente aplicou na nossa aldeia, por exemplo, de reciclagem ou de montar um adubo. Então, a gente foi observando essas coisas que o curso disponibilizava pra gente. (…) Então, muita coisa foi boa (Siwê).
O que eu já consegui, junto com os companheiros aqui da escola, a gente vê que teve um grande avanço nesse tempo. Teve um grande avanço (…) com outras atividades também, outras ideias que trouxemos de lá. A questão da nossa terra aqui, ela é bem machucada, porque quando chegamos era “largado” isso aqui. Tinha muito lixo, muito lixo espalhado nessas matas por aqui, vidro, essas coisas. Então, a primeira coisa que [fizemos] quando chegamos por aqui foi começar a fazer a limpeza. (…) Depois dessa limpeza, a gente foi trabalhar no nosso espaço lá embaixo, no nosso espaço ali, e depois nós fomos pensar em outras coisas. Mas até hoje ainda tem muito problema com a queimada, [que] tem todo ano na época de seca, a gente tem de ficar atento, tem que sair correndo, tem pouco homem, tem que sair e ir para o mato tentar apagar o fogo (Duteran).
Com isso também a Universidade trouxe alguns conhecimentos. Alguns não, vários. De como é que podemos estar preservando, tem muito foco de incêndio. Aos poucos nós vamos pegando alguma coisa, alguma brechinha que a gente vai colocando nisso aí também, na preparação de solo, no solo cansado como é aqui. Vocês podem olhar que isso aqui era só braquiária. Isso aqui era cana de fazendeiro, então, hoje em dia a gente plantando alguma coisa não dá nada. Então, a gente aprendeu a manejar essa terra de forma diferente, não usando esses remédios que a gente não usa mesmo, veneno e essas coisas (Duteran).
Esse tipo de relação prática com o conhecimento parece articular pressupostos culturais e práticas, conforme ressaltaram Carneiro da Cunha e Almeida (2002) a respeito de características do conhecimento tradicional. Segundo esses autores, concepções de mundo se ajustam a modos de fazer, não existindo um saber desvinculado da prática, pois é por meio dela que o conhecimento se transmite e se amplia. E para os professores/as entrevistados/as, as práticas são o trabalho com os alunos e os projetos de vida comunitária. Envolvem a escola e vão, também, além dela.
Esse aspecto da relação com a prática, apontado nas narrativas, mostra-nos que, como afirma Lave (2015, p. 40), “produção cultural é aprendizagem”, e que a aquisição de conhecimentos depende de sua implicação na prática. Da mesma forma, aprendizagem “é produção cultural” e “aprender também produz cultura” (p. 41).
Além dessas questões até aqui apontadas, podemos mencionar, ainda, aspectos mais periféricos da formação, também relatados em algumas narrativas como parte das aprendizagens do Fiei. Siwê, por exemplo, destacou a abertura para novos pensamentos e horizontes − “esse mundo de visão que a gente trouxe”, inclusive, no seu caso, uma desenvoltura maior no “jeito de falar” e de se expressar. Tendo iniciado o curso muito jovem, esse professor traz à tona domínios indiretos de aprendizagem, tais como: o amadurecimento, a transformação pessoal e o desenvolvimento da expressão oral. Ele declarou, também, a sua experiência de participação política no colegiado do Fiei, “composto por representantes da coordenação, do Movimento Indígena, do corpo docente, do corpo discente e dos monitores” (UFMG, s/d, p. 5), como “uma coisa muito importante que aconteceu”.
Duteran, também, ressaltou em sua narrativa que a participação no curso resultou em “um grande crescimento como professor e como pessoa mesmo”, tanto que afirma: “eu gostei muito de fazer o curso e pretendo voltar novamente pra poder fazer faculdade, porque tem muita coisa que eu quero fazer ainda pelo meu povo.” Essa mesma expectativa de continuidade dos estudos, também, foi expressa por Siwê.
Além desses aspectos até aqui apontados, outras questões emergiram nas narrativas dos/as professores/as da aldeia Muã Mimatxi, que nos conduzem a aprofundar reflexões sobre o lugar dos conhecimentos acadêmico-científicos e da pesquisa na formação intercultural de educadores.
Aspectos da formação intercultural que poderiam melhorar
Um dos sentidos atribuídos à interculturalidade por esse grupo de professsores/as indígenas é a relação entre conhecimentos próprios e conhecimentos “dos brancos”. Isso nos ajuda a compreender algumas reivindicações apresentadas por eles por mais conhecimentos científicos e acadêmicos, como na seguinte fala do Siwê: “Então, nesse ponto, assim, do conhecimento lá da academia, deixou a desejar nesse sentido, talvez eles pudessem pôr mais coisa difícil”. Esse professor relata que, na sua área (Matemática e Ciências da Natureza), havia “uma turma grande” de estudantes no Fiei, que demandava conhecimentos mais aprofundados nessa área. Afirma que fizeram críticas a esse respeito durante o curso, mas não obtiveram retorno das suas reivindicações.
Teve um momento que a gente falou: não, nós queremos que você nos ensine mais essas coisas suas aí, porque vocês querem pegar só coisas nossas e não trazem as suas também. Então, chegou esse momento da gente apertar eles lá também, mas quando eles foram aplicar essas coisas pra nós já era final do curso, então, quase não adiantou de nada, hoje a gente tem que pesquisar novamente essas coisas (Siwê).
Esse professor ainda reforça: “na minha área, eu peguei muito pouca coisa, devido a essas faltas de matéria”, “se [tiver que] iniciar um Ensino Médio da vida, no caso, tenho que estudar tudo novamente pra eu rever isso, e até buscar mais, porque eu não encontrei na Universidade”, mostrando que sentiu falta de aprofundamento em determinadas disciplinas da sua área de conhecimento.
Muita coisa foi boa, mas muita coisa deixou muito a desejar. Por exemplo, como minha habilitação é a Matemática, isso deixou um pouco a desejar porque a gente trabalhou tanta coisa, muitas matérias ao mesmo tempo, que talvez o foco que era aquilo ali, pra gente sair com uma capacidade a mais, uma carga horária muito maior, deixou um pouco a desejar. Porque, por exemplo, você cumpria determinada matéria, outro grupo, no outro módulo, tinha que fazer aquelas aulas e ia misturando. Você não fazia no outro módulo e isso foi prejudicando um pouco.
Podemos interpretar essas falas como uma demanda – já tão citada na literatura – pelos chamados “conhecimentos ocidentais”, que, ao menos em algumas áreas do curso, parece não ter sido muito atendida. Para muitos povos indígenas, o conhecimento dos brancos se apresenta como um símbolo poderoso de poder, e a escola, como para os Kaxinawá até o final da década de 90, valorizada por permitir o acesso a esses conhecimentos (Weber, 2006). Também Lasmar (2005) ressaltou que, para os índios do rio Uaupés, o branco era visto como portador de conhecimentos desejados, que poderiam ser apropriados por meio da escola. Parece ser esse tipo de expectativas que orienta as significações de Siwê.
Já Sarah afirmou que, na sua área (Línguas, Artes e Literaturas), “muita coisa deu para desenvolver”, principalmente no aspecto que mais valoriza: a prática da sala de aula:
(…) conhecimentos de português, por exemplo, leitura de muitos livros, que a gente trabalhou, aquelas disciplinas (…) do eixo e as outras que a gente podia optar. E aí para mim foram muito boas essas disciplinas que a gente teve lá, os conhecimentos que foram passados para mim. (…) porque eu tava trabalhando com os alunos de oitava série que depois já vão pra fora, deu para poder atender os alunos daqui (Sarah).
Contudo, essa professora assinalou que “[no curso] teve muita disciplina lá também que a gente fazia, mas não agradava muito não, não era muito o que a gente queria, então teve isso também um pouco. O pessoal comentava: esse negócio está muito fora”. E Siwê completa: “teve também muito professor ruim”, “tinha professor que a gente assistia aula dele porque tinha que assistir mesmo”. Aqui, a crítica parece estar relacionada principalmente aos aspectos didático-metodológicos. Mas Duteran relativiza, afirmando que mesmo aquelas disciplinas do curso que não tiveram muita “serventia” − “[porque] talvez aquele jeito lá não é o nosso jeito” − continuam guardadas no arquivo de elementos que poderão ser utilizados em um outro momento.
(…) Muitas vezes, teve algumas matérias assim que a gente trabalhou que talvez não vão ter serventia pra gente por agora, não estão tendo serventia pra gente por agora, mas talvez pra frente vão ter. Talvez eu não possa falar dessas matérias que tão paradinhas lá, porque eu ainda não mexi nelas. Então, depois que a gente começar a precisar é que a gente vai buscar isso, a gente vai voltar atrás, era assim e assim e tentar fazer a mesma coisa ou tentar fazer igual ou fazer diferente. (Duteran)
Podemos perceber, nessas narrativas, uma perspectiva de interculturalidade que nos sugere a importância de equilibrar conhecimentos indígenas e conhecimentos acadêmicos nas propostas de formação intercultural. Isso porque, como já relatamos, na filosofia de socialidade que orienta esse grupo, os conhecimentos trazidos pelo Outro alimentam um movimento constante de assimilação e recriação. Ou seja, o movimento de construção do próprio depende dos processos imprescindíveis de colaboração intercultural, sejam aqueles que acontecem dentro das Universidades ou aqueles que se desenvolvem em outros marcos institucionais e sociais (Mato, 2007).
Outra questão relevante que contribui para aprofundar as reflexões − acerca da formação intercultural apontada nas narrativas − é relativa ao processo de pesquisa, que acompanhou todo o Percurso Acadêmico dos estudantes do Fiei e que começava já nos primeiros módulos do curso. Contudo, apesar de prazeroso e um dos aspectos mais relevantes da formação (Pádua, 2017), Siwê e Duteran ressaltaram dificuldades enfrentadas, relacionadas à escolha do tema e à elaboração do projeto, que nos remetem às dinâmicas pedagógicas do próprio curso.
(…) Eu comecei voando um bocado, porque era o primeiro momento que eu estava tendo com a Universidade. (…) Nos primeiros dois módulos, a dificuldade foi um pouquinho grande para adaptar a esse conhecimento. Você já entrar e ter que escrever seu projeto, [escolher] o que você vai fazer de pesquisa. Isso foi uma grande dificuldade que a gente teve. (…) Eu não tinha muito tempo de professor, ia fazer um ano, não tinha nem um ano. […] E aí isso dificultou um pouco, porque não sabia muito montar [um projeto de pesquisa], mas tinha outros que sabiam, como meu pai, o Kanatyo, ele já tinha mais ou menos essa ideia. (…) Eu conversava muito com ele. Foi uma pessoa que me formou muito dentro lá desse curso (Siwê).
Então, no início foi um pouco difícil, porque a gente, principalmente eu, não estava muito bem com o foco no que eu queria fazer, [com] aquela chance que eu estava tendo. O que eu queria aprimorar no conhecimento, sobre o que, então, eu fiquei meio indeciso um pouco, um tempo. E aí, com a ajuda de alguns professores e de alguns parentes também, que estavam estudando lá, a gente começou a trilhar nosso caminho ali. Depois disso, a gente foi afunilando a coisa, pra pegar o que a gente exatamente queria. No caso, eu queria mesmo, o meu foco no trabalho lá foi trabalhar um pouco a questão da língua Pataxó. Então, o meu foi esse: a língua Pataxó (Duteran).
Como podemos ver, essas falas nos remetem às dificuldades na escolha da temática de pesquisa. Por sua posição central na proposta curricular do Fiei, a escolha da temática determinava o percurso dentro do curso, a posição do estudante em relação aos eixos temáticos e às áreas de concentração, assim como aos conteúdos e atividades a elas relacionados. Além disso, por estar vinculada aos projetos sociais demandados pela comunidade, tal escolha temática envolvia maior compromisso e responsabilidade. E, como em toda pesquisa, a iniciação ao processo exige interesse e envolvimento do estudante, mas também tempos e espaços mais alargados dentro da formação, como destacaram Grupioni (2013) e Pádua (2014) que, no caso do Fiei, ficavam restritos aos módulos presenciais de um mês, durante os quais, os estudantes tinham que se dedicar a muitas outras atividades e disciplinas.
Além dessas dificuldades iniciais, Duteran também mencionou outras relacionadas ao próprio desenvolvimento da pesquisa durante o processo de formação, algumas ligadas a limitações de financiamento, outras, à própria complexidade de algumas temáticas − como a língua Pataxó escolhida por Duteran, ou ainda, àquelas intrínsecas a todo processo de pesquisa[4]. Apesar das dificuldades, Duteran nos aponta o quanto esse processo de pesquisar foi, para eles, prazeroso, envolvendo descobertas inesperadas.
E para chegar no que eu fiz, passei por cinco processos diferentes. Porque eu entrei lá com um pensamento de fazer um tipo de trabalho, mas no decorrer do curso não dava, porque (…) não tinha como investir, não tinha dinheiro pra poder fazer o que eu queria. Então eu mudei novamente meu foco, fui fazer outra coisa. Aí, a mesma coisa. Na quinta mudança que eu fiz eu falei assim: não eu tenho que encontrar alguma coisa pra mim fazer e eu tenho que seguir esse caminho. E comecei a trabalhar a questão da língua (Duteran).
E como eu falei, meu trabalho foi a questão da língua, e foi um trabalho muito difícil porque tive que viajar, tive que ir pra Bahia, tive que ir para o Rio, fui em São Paulo também. Fui na Bahia duas vezes, passando nas aldeias [de] lá pegando, conversando, vendo o que alguns daqueles mais velhos tinham sobre a língua, qual era o conhecimento que eles tinham ainda, o que conseguiam relembrar ainda daquilo. (…) Foi um trabalho que eu gostei de fazer, mas que foi um pouco difícil, até eu chegar no ponto que eu queria (Duteran).
Então, essa caminhada que nós começamos, foi uma caminhada um pouco “demorosa” pra pegar o caminho certo. Como eu estava conversando com meu cunhado, é a mesma coisa de você chegar a um lugar e você ter várias trilhas e você tentar identificar aquilo que você quer mesmo. Às vezes, tem um que tem a mesma coisa que você quer, só que não é aquilo mesmo. Igual o Kanatyo falou, atrás da neblina você vê a natureza, atrás daquilo que você vê primeiro existe outra coisa melhor ainda, então, você vai atrás daquilo melhor ainda (Duteran).
Essas questões apontadas pelos entrevistados nos remetem, de um lado, às riquezas dos processos desencadeados pela aplicação do princípio da pesquisa na formação intercultural de educadores e, por outro, dada a sua importância, à necessidade de cuidar mais desse elemento curricular, desde a escolha da temática e a construção do projeto até a formatação do produto final, como resultado prático dos conhecimentos adquiridos no curso.
Considerações finais
Os temas aqui abordados, no conjunto, apontam questões que, interrelacionadas, indicam caminhos fecundos para a formação de educadores, não apenas de indígenas. Uma delas é a fecundidade da pesquisa como princípio formativo, o qual, como sugerem as narrativas, pode ser aperfeiçoado, especialmente, com a ampliação dos tempos e espaços a ela dedicados dentro da proposta curricular e pedagógica, e interrelacionado a outros aspectos também valorizados pelos/as professores/as indígenas.
Outra questão que se destacou foi a potencialidade das relações e da interculturalidade na aprendizagem, sugerindo que as trocas entre os próprios estudantes e entre eles/as e os/as formadores/as podem ser ainda mais estimuladas na formação. As narrativas revelaram que o diálogo com a diversidade de modos de vida e visões de mundo potencializa a aprendizagem e enriquece a formação, assim como sugeriram a importância dos conhecimentos acadêmico-científicos na formação intercultural.
Algumas críticas mencionadas pelos/as professores/as nos remetem ao tema da seleção de conteúdos das áreas disciplinares como um aspecto da formação que exige a nossa atenção. A esse respeito, Sarah indiretamente nos indica uma alternativa: “trabalhar vários tipos de conhecimento, não só o nosso conhecimento, mas o conhecimento de fora também.” Essa professora acredita que essa é uma necessidade da escola hoje, no contexto da contemporaneidade. Assim, ela nos sugere uma concepção de interculturalidade que equilibra “os [conhecimentos] de cá e os [conhecimentos] de lá”, ou seja, da aldeia e da universidade. Como já mencionado, a busca pelos conhecimentos dos não índios pode ser interpretada como um movimento no sentido de aumentar o estoque de novos elementos para serem incorporados e ressignificados (Pádua, 2009).
Na visão de Sarah, dessa forma, “a gente foi adquirindo mais conhecimentos, porque se não tivesse tido esse curso a gente ia ficar com o conhecimento bem pouco.” No entanto, ela ressalta o fato de que já dominavam uma forma própria de trabalhar na escola, mas a enriqueceram com os novos saberes que foram incorporando ao longo do processo de formação.
Quanto aos aspectos práticos do conhecimento escolar, a valorização de atividades que produzam resultados práticos, entrelaçadas às práticas escolares e comunitárias, aponta para a potencialidade de trabalhos articulados com a pesquisa e em diálogo com as tecnologias da informação e da comunicação, propostos e realizados durante a formação. Nessa perspectiva, o uso das tecnologias pode contribuir com a coleta, o registro e a análise de dados, assim como com a sistematização e a divulgação dos resultados, gerando produtos tão valorizados por eles/as, como mapas, vídeos, textos, poemas, livros, entre muitas outras possibilidades.
Vimos que, em diálogo com a escola, o processo de formação intercultural pode resultar em muitas e ricas possibilidades, inclusive, como pontuou Siwê, para a construção de “parâmetros de matriz formadora” que orienta todo o trabalho escolar, contando com o protagonismo dos/as professores/as, alunos/as e comunidade no planejamento coletivo das atividades.
* Karla Cunha Pádua é doutora em Educação pela UFMG; pós-doutora em Antropologia pelo Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa (UL) e em Educação pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop); professora na Faculdade de Educação e no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade do Estado Minas Gerais (Uemg).
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Notas
[1] A partir de 2009, como parte do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), o Fiei se tornou um curso regular, com entrada anual de 35 alunos.
[2] Um desses professores − Duteran − atualmente não reside mais nessa aldeia. No decorrer da pesquisa, foi entrevistada também a professora Liça, da disciplina Uso do Território, embora ela não tenha cursado o Fiei.
[3] O curso se organizou em módulos ou etapas presenciais, que ocorriam duas vezes por ano na UFMG, geralmente, em maio e setembro, e em módulos intermediários, que aconteciam, preferencialmente, nas aldeias.
[4] Acerca dos projetos desenvolvidos por esses/as professores/as, ver Pádua (2017).