Daniel Reis* entrevista Daniel Bitter **
DR: O livro que acaba de lançar é resultado de sua tese de doutoramento em Antropologia, agraciada com um prêmio importante na área de estudos sobre cultura popular. Gostaria que começasse falando sobre sua trajetória profissional e seu envolvimento com as folias de reis e outros campos da cultura popular.
DB: Talvez eu deva começar dizendo que minha trajetória foi muito tortuosa e olhando-a à distância, tenho a impressão que isso me trouxe mais vantagens do que desvantagens. Uma forte curiosidade me levou a diversificados caminhos que me permitem hoje transitar, com certa desenvoltura, por fronteiras entre algumas áreas. Estive desde muito cedo ligado às artes. Por muito pouco, não me profissionalizei em música erudita ou em artes plásticas e, então, quando ingressei no curso de Comunicação Visual da PUC-Rio, no final dos anos 80, me aproximei de um carismático professor e artista plástico chamado Urian Agria de Souza. Suas preocupações políticas, aguçadas pela experiência do movimento estudantil e dos acalorados debates dos anos 60, e, sobretudo, sua visão poética do mundo, me influenciaram muito, reorientando meu caminho profissional e pessoal. Ao lado de Urian e dos muitos outros alunos que se juntavam ao seu redor, quase sempre na mesa de um bar, descobri meu interesse pela cultura brasileira e pela cultura popular. Para mim que vinha de um referencial erudito, era um mundo que se abria. Numa tentativa de realizar uma síntese entre o que eu entendia como o “erudito” e “popular”, submeti ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA/UFRJ, um projeto de pesquisa sobre Ariano Suassuna e o Movimento Armorial. Uma importante interlocutora nesse momento, foi minha orientadora, a profa. Rosza W. Vel Zoladz, que me apontou caminhos conceituais, fomentando meu interesse pela teoria social e pela etnografia. Defendi a dissertação em 2000 e àquela altura, já estava claro para mim que a compartimentação do mundo da cultura em níveis ou esferas era um produto historicamente situado. Tudo isso acabou por me levar a interessar-me cada vez mais pelas práticas e saberes populares, de modo que, como desdobramento das discussões desenvolvidas no mestrado, criei, juntamente com amigos com quem compartilhava gostos semelhantes, o grupo Gesta, um grupo instrumental dedicado à pesquisa e recriação de música tradicional brasileira, ainda nos anos 90. Nessa época havia descoberto a “rabeca”, um instrumento de arco semelhante ao violino, mas de artesania popular. Esse artefato sonoro tornou-se meu instrumento e assim dediquei-me a descobrir também suas sonoridades e seus múltiplos contextos de uso.
Trabalhando no magistério superior, já há alguns anos, resolvi, então, continuar minha progressão acadêmica, decidindo-me pela Antropologia. Minha aproximação às folias de reis foi um movimento quase circunstancial, mas a proposta de abordar objetos rituais como a “bandeira” e a “máscara” num projeto de pesquisa em nível de doutorado, já se encontrava bem nítida no meu horizonte e foi recepcionada com interesse por meu orientador, o prof. José Reginaldo S. Gonçalves. Acho que o que me levou a este tema foi, principalmente, a atração estética que as folias de reis produzem e sua ligação com a arte popular brasileira.
Tenho me envolvido com outros temas relacionados à cultura popular, por meio de minha participação nos trabalhos desenvolvidos pela Associação Cultural Caburé, da qual sou membro fundador. A Caburé tem implementado projetos de pesquisa e difusão de práticas culturais com uma preocupação acentuada em engajar efetivamente pessoas, grupos e comunidades. São projetos que se alinham com uma preocupação ética, política e social. Temos, muito modestamente, procurado contribuir para a valorização dos saberes e modos de vida populares e para o desenvolvimento social dessas coletividades.
DR: Sua pesquisa tem como norte dois elementos significativos no universo das folias de reis: a bandeira e a máscara. Poderia falar sobre a escolha deste recorte, bem como da importância dos objetos em contextos rituais e suas ressonâncias na vida cotidiana?
DB: Há nas últimas décadas um renovado interesse da teoria social pelos objetos materiais. A Antropologia teve sua gênese fortemente ligada aos artefatos e aos museus, onde esses objetos eram depositados, ainda no século XIX. No início do século XX houve um gradual afastamento desse tema em favor de estudos sobre sistemas de pensamento e relações sociais, mas os objetos sempre estiveram de algum modo presentes nas etnografias clássicas e chegaram a ser pensados a partir da perspectiva funcionalista ou estruturalista. A escolha do recorte que conduzi na pesquisa converge com as preocupações que tem norteado o campo da Antropologia dos objetos partindo de perspectivas atualizadas que gostaria de comentar.
Quando falamos de objetos, tais como a bandeira e a máscara, estamos, na verdade, falando sobre as pessoas que os produzem e os manipulam coletivamente. Isso é verdadeiro tanto para os objetos cerimoniais, dos quais eu trato, quanto dos objetos de uso cotidiano. Sem os objetos, a vida social seria simplesmente impossível. Não podemos falar sobre a pesca sem mencionarmos a rede, os anzóis, os molinetes. Há todo um conhecimento envolvendo o uso desses objetos, bem como, sistemas de valores que os resignificam permanentemente. Os objetos podem ser vendidos, trocados, destruídos, idolatrados, restaurados, alcançarem valores incomensuráveis no mercado, serem destinados a um museu ou tornarem-se bens inalienáveis, adquirindo uma história, uma biografia. Nessa direção, procuro incorporar na pesquisa a instigante sugestão de A. Appadurai, organizador de The social life of things (1986), de seguir os objetos para chegar às pessoas.
Em meu trabalho exploro precisamente os usos sociais e simbólicos de certos objetos e procuro mostrar como eles realizam medições entre diversos domínios da ordem cosmológica entre foliões de reis. A bandeira, por exemplo, é um artefato que ostenta imagens relacionadas a certas divindades. Ela também cumpre a função de identificar o grupo de cantores e instrumentistas que a conduz, de modo similar às antigas corporações de ofício medievais que levavam seus estandartes com suas insígnias. Durante os cortejos realizados pelas folias, a bandeira é transportada pelo bandeireiro,o que exige conhecimentos específicos. Um dos argumentos importantes que apresento no livro é que quando uma folia adentra a casa de devotos, naquele momento ritual, a bandeira, não é propriamente uma representação da divindade, mas sua própria presença. Além de mediar a relação com as divindades, a bandeira também relaciona os vivos e os mortos, trazendo, ocasionalmente, um antepassado à presença dos vivos. A bandeira se insere, portanto, num contexto de relações generalizadas de trocas permanentes entre os homens, deuses e antepassados. Por meio dela circulam dádivas, contra-dádivas, bênçãos, graças, promessas e sacrifícios. Tudo isso ganha uma visibilidade particularmente dramática e eficaz, uma vez que, na cosmologia de foliões, o mundo dos vivos, dos antepassados e dos deuses mantém forte e contínua relação entre si. Foliões e devotos ordenam o mundo e lidam com os acontecimentos imprevisíveis, articulando esses múltiplos agenciamentos.
A máscara, por outro lado, é um artefato usado por um personagem das folias, conhecido como palhaço ou bastião. Trata-se de um tipo caracterizado pela ambiguidade e sua máscara, de aparência grotesca, opera importantes transformações na convergência entre mito e rito. Partindo da ideia de que os objetos são categorias materializadas, percebi que a “máscara” opera sistemicamente em relação à bandeira. Se por um lado a bandeira é alvo de intensos contatos corporais (as pessoas conversam com ela, a beijam e a tocam), por outro, a máscara usada pelo palhaço é, de modo geral, evitada, por estar associada a significados negativos, ou melhor dizendo, ambíguos. Há uma relação
hierárquica entre a bandeira e a máscara, que se configura menos como uma relação entre o sagrado e o profano, e mais como uma relação entre o “sagrado puro” e o “sagrado impuro”. É preciso, entretanto,enfatizar que quando trato dos objetos, não estou lidando simplesmente com um sistema de representações, partindo de uma concepção estritamente idealista de cultura. A bandeira e a máscara operam num campo de ação e transformação extremamente dinâmico, onde os significados estão em processo e sujeitos, inclusive, a mudanças. Como bem sugeriu C. Geertz, em seu já clássico Interpretação das Culturas (1973), culturas são sistemas simbólicos que fornecem modelos de e para a realidade. Em outras palavras, os símbolos não apenas representam, mas transformam o mundo.
Uma outra ideia importante é a noção de que os objetos produzem efeitos sobre as pessoas e sobre suas relações. Essa perspectiva é fundamental, pois permite deslocar o foco da funcionalidade prática ou utilitária na direção de uma razão simbólica ou cultural, para usar uma expressão de M. Sahlins desenvolvida em seu Culture and pratical reason (1976). É, aliás, o próprio Sahlins que sustentou que as necessidades são culturalmente constituídas e que o que as pessoas consomem não são propriamente objetos úteis, mas símbolos, imagens de identidades.
Esses, eu diria, são os pressupostos básicos, a partir dos quais formulei o recorte desenvolvido no livro.
DR: Recentemente pude acompanhar o Encontro de Folias de Reis de Duas Barras no interior do estado do Rio de Janeiro. Ao apresentar um dos grupos, o locutor ressaltou o fato de que aquele era o mais “autêntico” do estado, uma vez que era o único que ainda utilizava pele de couro animal em seus instrumentos percussivos. De que modo os grupos de folia vêm incorporando elementos contemporâneos e quais as receptividades e/ou eventuais tensões que desencadeiam?
DB: Uma modalidade importante de participação das folias de reis são os encontros e festivais que ocorrem com alguma regularidade e grande vitalidade em muitas regiões do Brasil. São práticas que se desenvolvem complementarmente às ações rituais mais restritas ao ciclo festivo natalino. Normalmente organizados por instâncias de poder público ou mesmo por associações de folias de reis, esses eventos têm sua dimensão espetacular muito acentuada. Realizam-se geralmente em praças centrais de cidades interioranas. Numerosos grupos chegam das mais diversas localidades para se apresentarem num palco por um tempo estabelecido previamente, usualmente em torno de 20 a 30 minutos. O sucesso do evento depende em grande medida da habilidade do locutor, pois, como num grande espetáculo de auditório, espera-se que ele faça comentários sobre as folias, sua história ou estilo, enaltecendo suas qualidades, comparando-as etc. O público interage animadamente com os grupos e as manifestações de devoção costumam ser frequentes.
As festividades de reis são práticas cíclicas que guardam um sentido de renovação do mundo, das relações sociais e cósmicas e das benesses da natureza. Por essa razão, as folias de reis tendem a se manter de forma mais ou menos estável por longos períodos. Sua temporalidade pode, inclusive, assumir um caráter mítico, como na comum expressão de foliões de que a sua folia “vem do princípio do mundo”. Os grupos se estendem ao longo do tempo, e evidentemente se modificam, mesmo que a percepção de foliões seja, muitas vezes, contrária a esse fato. De modo geral, os foliões criam a imagem de que o que eles fazem é uma reprodução do que aprenderam dos mais velhos e dos antepassados e essa concepção parece ser internalizada na forma de uma consciência moral. Isso não significa que não haja espaço para as recriações e devo ressaltar que, muitos foliões expressam concretamente seu interesse em inovar, como uma forma de se diferenciar. Não penso que haja aqui uma contradição. O que acontece é que na práxis as coisas não se reproduzem exatamente de acordo com as prescrições do roteiro e certamente há um largo espaço para a invenção. Por essa razão, inclusive, as folias de reis diferem umas das outras, em estilo, música, indumentária, embora seu “fundamento” seja supostamente o mesmo. As inovações e incorporações de elementos contemporâneos se dão numa diversidade de direções. Os instrumentos de couro têm sido substituídos pelos industriais, muitas vezes, em razão da maior facilidade de sua obtenção. A bandeira, embora seja considerada um objeto de culto, é alvo de inúmeras modificações. Um dos artifícios atualmente mais procurados no comércio, para este fim, são as lâmpadas coloridas tipo pisca-pisca de fabricação chinesa que são anexadas à bandeira. Hermano Vianna notou que entre palhaços de Valença-RJ é comum a incorporação de signos da cultura de massa em suas vestimentas. Os versos improvisados dos palhaços atualizam as práticas de foliões permanentemente e assim por diante.
Dentro desse contexto, o caso que você menciona é muito interessante para pensarmos a ideia de “tradição”. Herdamos uma concepção reificada da noção de “tradição” como alguma coisa que se encontra orgânica e genuinamente ligada ao passado e que deve permanecer como sempre foi na origem. Como bem mostrou J. R. Gonçalves em seu livro A retórica da perda (1996), a categoria da “autenticidade” é uma noção que ocupa um lugar central no pensamento moderno ocidental, cujos reflexos ainda podem ser sentidos hoje, em uma diversidade de situações Diante desse referencial, as práticas culturais são classificadas como autênticas ou inautênticas, sem que se perceba que há um sistema de valores operando nos bastidores.
Certamente, o locutor mencionado atribuiu uma autenticidade a um determinado grupo, como forma de enaltecer suas qualidades, baseando-se numa representação talvez um pouco “romântica” e mesmo primitivista. Os encontros de folias de reis são contextos de aproximação e colaboração entre os grupos, mas são também lugares onde as rivalidades costumam emergir com grande força. Ocasionalmente, os próprios grupos podem reivindicar o status de “tradicional” ou “autêntico”, de forma a impor uma superioridade em relação a outros grupos. Outros, ao contrário, classificam-se como inovadores e pensam que dessa forma conseguem projetar uma determinada imagem, ganhando com isso algum prestígio. Há, portanto, muitas formas de apropriação da ideia de autenticidade e de seu uso e aqui chamo a atenção para a dimensão política das diferenciações num contexto de interação.
Posso dizer, inclusive, que meu interesse em estudar um grupo de foliões de reis no Complexo da Mangueira, na cidade do Rio de Janeiro, converge exatamente para essas questões. Desejava entender como uma prática originalmente associada a contextos rurais, interioranos é resignificada em contextos metropolitanos. Interessava-me entender as mudanças e a ideia de tradição formulada por homens mulheres, crianças e idosos enredados em teias de reciprocidade. Essa foi a minha aventura. O grupo veio para a Mangueira, da zona da mata mineira, nos anos 40 e haja mudanças de lá para cá. Hoje, o mestre da folia se comunica com foliões de outros grupos através das redes sociais virtuais e esse é apenas um pequeno indício de mudanças e incorporações futuras, que talvez nem possamos imaginar.
DR: A figura do palhaço aparece na folia de reis ocupando uma posição liminar, ora associado a elementos negativos, ora positivos. Gostaria que falasse sobre essa ambiguidade e os aspectos performativos dos palhaços nos giros de folia.
DB: O palhaço, com sua máscara assustadora e seus gestos irreverentes, é um personagem fascinante e não há quem permaneça indiferente a sua presença. Conforme testemunhei inúmeras vezes, sua performance se desenrola da seguinte forma: uma extensa roda de espectadores se forma e ao sinal do toque acelerado da sanfona e dos instrumentos de percussão, o palhaço pede licença ao dono da casa para iniciar sua apresentação, na qual realiza acrobacias virtuosísticas e declama versos memorizados ou improvisados de acentuado caráter cômico. Há uma forte interação entre o público e o palhaço e seu jogo está em tirar proveito do dinheiro ofertado pela assistência em troca de entretenimento. A chamada “brincadeira” do palhaço é, entretanto, apenas uma parte das ações das folias de reis, que se mostra bastante contrastante com a atitude dos demais foliões, por sua vez marcada pelo caráter solene.
Os significados do palhaço podem variar dependendo da localidade em que se manifesta, mas um aspecto que lhe é inerente é sua forte ambiguidade. Penso que o palhaço retira sua força exatamente de sua ambivalência e que o que o torna atraente é o fato de ser simultaneamente perigoso e criativo. O antropólogo V. Turner (1920-1983) explorou a ideia de liminaridade, que caracteriza os ritos de passagem, como, por exemplo, os de mudança de status. Turner sugeriu que o indivíduo que experiencia esse rito é investido de características ambíguas, tornando-se perigosamente antissocial. Por essa razão, frequentemente usa algum tipo de máscara e é isolado do grupo.
O palhaço é muitas vezes alvo de tabu, e por isso, é cercado de obrigações e restrições. Quando mascarado, é impedido de entrar em igrejas ou outros lugares de culto, de se aproximar da bandeira ou mesmo de comer junto aos demais foliões. No estado do Rio de Janeiro, o palhaço é reconhecido como a encarnação da figura mítica de Herodes ou de seus soldados que teriam perseguido o menino Jesus, com o propósito de matá-lo. Nessa perspectiva, o palhaço é associado a significados negativos, mas isso não é tudo. Argumento no livro que o palhaço é um importante operador ritual, permitindo uma reflexão do grupo sobre a ordem cósmica, perpetuando-a e atualizando-a, uma vez que ele tem o poder de transitar por diferentes domínios e de estar sujeito a uma reversibilidade simbólica. No conjunto das atividades de foliões e devotos, há um momento particularmente relevante no qual se despede da bandeira e do ciclo festivo anual. Na ocasião, os palhaços são solenemente chamados pelo mestre da folia para retirarem suas máscaras e se aproximarem de joelhos da bandeira, quando então são benzidos. Diz-se que os palhaços estão pedindo perdão pela perseguição ao menino Jesus, declarando-se arrependidos. Trata-se, efetivamente, de uma conversão simbólica, que vem reforçar valores associados à coesão do grupo.
Turner foi o grande teórico da ambiguidade e sua sugestão de que a liminaridade é particularmente propícia à emergência de novos padrões, modelos e paradigmas, tem aqui uma ressonância realmente notável.
DR: Em seu livro as imagens são um elemento de destacada importância. Qual a sua relação com o universo visual e qual o espaço da fotografia na construção etnográfica de sua tese?
DB: Como disse anteriormente, sempre estive ligado às artes visuais e musicais. Uma aproximação minha a qualquer objeto de estudo vem inevitavelmente acompanhada de uma aguçada sensibilidade estética e creio que isso revela como os aspectos biográficos influem no modo como conduzimos o trabalho de pesquisa. Procuro, contudo, ter o cuidado de não me levar ingenuamente a enfatizar essa dimensão, quando ela realmente não é proeminente no contexto estudado. As imagens, a fotografia e também a teoria estão a serviço do trabalho de campo e não o contrário. É o campo quem aponta as direções. O caso aqui em particular é que entre folias de reis, a dimensão estética é, de fato, muito pronunciada e isso potencializa a produção de imagens e os sentidos que elas ganham no conjunto da pesquisa. Em suma, é um assunto que pede imagens.
O lugar das imagens na produção etnográfica não é o de ilustrar um determinado evento, mas o de precipitar dados para a análise. No meu caso, penso que as imagens me auxiliaram muito no estudo dos rituais, permitindo fixar enquadramentos, sequências etc. Um outro aspecto importante sobre o lugar da fotografia na produção etnográfica diz respeito à mediação que ela exerce na construção das relações do pesquisador em campo. Isso me ajudou muito a fortalecer laços de confiança e reciprocidade. Forneço sempre toda a produção imagética, sonora e textual para os meus interlocutores e me coloco sempre à disposição para ouvi-los.
Penso que ainda não nos demos conta do potencial que as imagens contêm para a análise social e cultural de contextos diversos em função da supremacia histórica da escrita. Isso é um paradoxo diante de um mundo que se tornou, sobremaneira, imagem. A antropologia visual está em franca expansão, fornecendo instrumentos analíticos e metodológicos relevantes e propondo novos paradigmas para a teoria social. O uso que faço de imagens no trabalho de pesquisa é uma modesta aproximação a esse campo.
DR: Logo na introdução de seu livro, você ressalta a dificuldade de realização de pesquisa de campo em grandes centros urbanos, dada a crescente violência. Como essa questão perpassou sua pesquisa e de que modo se faz presente no cotidiano dos grupos de folias de reis?
Não dá para tratar esse assunto com romantismo. As favelas são cenários de profunda desigualdade social, duplamente marcadas pela segregação da sociedade abrangente e pela opressão de traficantes e policiais. Mas as favelas também são lugares onde se desenvolvem expressões culturais singulares e teias poderosas de solidariedade, e esse foi o assunto sobre o qual me detive. Não obstante, não pude simplesmente fechar os olhos para o problema da violência e de sua influência na vida das pessoas com quem me relacionei ao longo do trabalho de campo. Cruzar o caminho de soldados do tráfico pesadamente armados, não foi uma experiência agradável, nem se apresentou sem algum risco. Adentrar um complexo como o da Mangueira, implica em transitar por territórios delimitados por regras e códigos onde se desenvolve uma atividade que, como bem sinalizou A. Zaluar, envolve diversos setores da sociedade, atravessando fronteiras transnacionais. A favela é a ponta de um iceberg, a sua parte visível, a qual se atribuiu uma imagem negativa.
No livro, inicio um dos capítulos narrando o episódio em que os “soldados” do tráfico apontam suas armas para os foliões, tendo como alvo, em particular, os palhaços. Na sequência deste evento, uma saraivada de tiros é disparada para o alto O fato, em questão, me levou a discutir a liminaridade, que caracterizaria ambas as partes. Os palhaços tornaram-se alvo da mira dos soldados, precisamente por sua ambiguidade. Abordo também a ideia de “enquadramento” interativo, na forma de um “jogo” envolvendo foliões e traficantes. Evidentemente, tudo não passou de uma “brincadeira”, mas o meu argumento é que nem todos os foliões compartilharam os códigos dessa moldura e muitos a interpretaram como um desrespeito à prática devocional da folia. A notícia desse episódio acabou por chegar ao chefe do tráfico que teria efetivamente afastado os envolvidos, num gesto de reprovação de suas ações.
O que gostaria de chamar atenção é para a imbricação desses mundos. Foliões e traficantes não vivem em universos completamente apartados. Está tudo muito misturado. Sabemos que muitos dos que estão envolvidos no tráfico mantém relações de parentesco com foliões e que traficantes podem, inclusive, receber a visita da folia em sua residência. Há casos de foliões que migraram para o tráfico e vice-versa. Entretanto, a natureza das relações que fundamentam essas atividades, parece ser bem distinta. Entre foliões, predomina a relação de troca, de solidariedade, de parentesco e vizinhança, assentada numa forte moral. Já as relações de consanguinidade ou de compadrio não necessariamente são importantes no fortalecimento de laços de confiança entre agentes do tráfico.
De modo geral, percebe-se que a violência influi decididamente na vida cotidiana das pessoas que ali vivem e para isso basta constatar as histórias dramáticas nas quais parentes, amigos e vizinhos estão envolvidos. Creio que as práticas de foliões de reis são uma forma de as pessoas suportarem essa situação e de verem o mundo de um modo menos brutal.
DR: Ao lermos a publicação ficamos sabendo que você integrou, por certo período, o grupo de foliões da Mangueira. Como se deu essa sua entrada e que repercussão isso tem para as observações etnográficas que você faz?
DB: Minha entrada no grupo se deu de forma bastante tranquila, sem mediações. Fui convidado pelo mestre a assumir uma posição ritual e isso só se tornou possível, em função dos conhecimentos musicais que detenho. A música foi, portanto, um instrumento fundamental de interação, uma língua, por assim dizer, comum. Por meio dela, compartilhei sensibilidades, emoções e saberes.
Assumir uma função dentro do grupo teve consequências importantes para o trabalho. A primeira delas é que o grupo foi encontrando um lugar para mim, um sentido para a minha presença. Primeiro, fui classificado como jornalista, depois como professor. Tenho a impressão que até certo ponto, tornei-me invisível, misturando-me aos demais, embora uma ambiguidade de fundo sempre tenha permanecido.
Em segundo lugar, julguei que entrar para o grupo e realizar efetivamente uma observação participante, me renderia boas informações para uma etnografia cuidadosa. Na condição que assumi, tive a oportunidade de aprender as regras de conduta, os cantos e toques e mais do que isso, de vivenciar uma experiência particularmente intensa e profunda. Evidentemente, passei muitos momentos agradáveis na Mangueira, mas ao lado disso, tive de passar noites em claro, participar de caminhadas intermináveis sob o sol escaldante dos verões cariocas, cumprir regras rígidas, levar broncas e tudo o mais. Todas essas penosas experiências me ajudaram a compreender melhor uma noção que, para foliões, guarda um sentido profundo: “sacrifício”. No livro, esclareço que para mim a experiência também foi vivida como um tipo de sacrifício, com um sentido particularizado. Na perspectiva de foliões, o significado parece estar associado às obrigações e ao compromisso estabelecido com as divindades, um compromisso que tende a se perpetuar, em função de graças alcançadas, para as quais, muitas vezes, não há pagamento que baste. Nessa direção, o sacrifício corporal (e sua dramatização pública) juntamente com o sentimento de cumprimento da obrigação têm uma centralidade notável nas práticas de foliões. É preciso ainda dizer que, na visão de mundo de foliões e devotos, as divindades são vistas também como sendo vingativas diante do descumprimento de certas obrigações. Tenho pensado que no fundo, essas pessoas se embrenham num empreendimento muito perigoso.
Finalmente, penso que ter participado das atividades, ajudou-me a tornar a famigerada relação pesquisador/pesquisado; eu/eles, talvez um pouco menos assimétrica. Foi uma tentativa de deslocar o olhar sobre a diferença, a descontinuidade para a continuidade, a interlocução, abrindo espaço para a troca de perspectivas. Uma consequência importante disso é que me vi enredado na teia de reciprocidades e afetividades juntamente com os demais. Todos os meus gestos foram, todo o tempo, enquadrados nessa trama interativa. Minha maior dificuldade, em tudo isso, foi sair do campo. Não participo mais das atividades do grupo, mas, de certo modo, até hoje continuo atrelado a esta rede onde fiz amigos duradouros. De resto, foi um encontro com pessoas verdadeiras, dotadas de um senso de humanidade muito aguçado. Agradeço pela oportunidade de ter vivido essa experiência e pelo cuidado a mim dispensado.
** Daniel Bitter é mestre em História da Arte pela EBA/UFRJ, doutor em Antropologia pelo IFCS/UFRJ e professor adjunto do departamento de Antropologia da UFF. Sua tese de doutorado recebeu o primeiro lugar no prêmio Sílvio Romero, CNFCP-Iphan, 2008 e foi publicada sob o título A bandeira e a máscara. A circulação de objetos rituais nas folias de reis, pela 7 Letras/CNFCP-Iphan, 2010. É membro fundador da Associação Cultural Caburé.
* Daniel Reis é doutorando em Antropologia pelo IFCS/UFRJ e antropólogo do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular-Iphan. Tem realizado pesquisas sobre patrimônio, museus, objetos e coleções e cultura popular.