Os Termos do Mundo
A arte e suas instituições não escapam ao fenômeno da globalização, que coincide com o redirecionamento neoliberal da economia e o conseqüente recuo da presença do Estado como empreendedor de políticas compensatórias, a partir da década de 1970. O avanço acelerado da mercantilização dos processos políticos, sociais e culturais é uma das marcas desse momento que chega até os dias atuais. Se o homem unidimensional que a cultura pessimista de esquerda de Herbert Marcuse[1] projetava para as sociedades industriais avançadas não se efetivou, o que se verifica é a tendência à sociedade tornar-se unidimensional tendo suas camadas, antes coordenadas por relativa autonomia, achatadas em um único plano governado pela lógica do mercado no qual a cultura aparece no posto privilegiado da commodity por excelência. Estes são os termos do mundo em que vivemos.
Mesmo em contextos como o norte-americano, nos quais o capital privado sempre foi ativo e hegemônico na construção dessas instituições, a começar pelos museus, a retração dos recursos públicos ditados pelo neoliberalismo fez-se sentir. A diminuição expressiva dos recursos do National Edowment for the Arts e seus congêneres, a partir do governo Reagan, torna-se visível quando museus tradicionalmente mais vetustos e discretos na sua relação com o universo do shopping são levados a multiplicar os quiosques de vendas de produtos por todos os seus andares para angariar recursos extras, ainda que estes representem uma parte pouco significativa de suas receitas. A relação entre arte e consumo, antes estranha ou pelo menos mediada simbólica e fisicamente, agora ganha naturalidade: o valor de troca da gravata ou do chaveiro e o valor artístico das obras habitam lado a lado. O consumo de mercadorias e a fruição estética de obras de arte, agora íntimos, confundem-se.
Momento particularmente sintomático dessa nova conjuntura foi a decisão do British Museum, em 1986, em pleno governo Thatcher, de alugar a Sala Egípcia para festas como casamentos e banquetes corporativos, devido à carência de recursos para a sua manutenção. O ponto culminante desse processo recente é a política de Thomas Krens à frente do Guggenheim, no qual a arte pode ser subsumida tranqüilamente para calçar a operação publicitária de grifes famosas e a própria marca do museu torna-se uma espécie de franchising cultural em seu processo de internacionalização. Ali está realizada de modo efetivo a identidade final entre arte/cultura/economia de mercado em uma totalidade sem fronteiras internas, na qual as mesmas leis pretendem governar as – antes – diferentes esferas.
Embora mais visíveis para o visitante do museu, esses sintomas são apenas a cereja do bolo. Quando observamos as incorporações de obras contemporâneas nas coleções de museus bastante conhecidos, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, manifesta-se um outro quadro mais contundente. Desprovidos de recursos significativos para traçar uma política de aquisição, principalmente de obras estrangeiras, a começar por aquelas de artistas dos países emergentes, os curadores ficam à mercê das doações por parte de mecenas e/ou marchands. Estes não são uma novidade, mas estavam orientados pelas listas de obras traçadas pelas equipes de curadores e previamente aprovadas pela instituição. Enfraquecidos na sua posição institucional de virtuais compradores, os curadores de museus invertem os papéis: são os mecenas que apresentam as obras a serem doadas.
Assim, no lugar do valor histórico, estão presentes obras de artistas cujos marchands têm uma política agressiva de oferta às instituições. Importantes museus ostentam no catálogo de suas coleções contemporâneas artistas de algumas poucas galerias, enquanto outros de indubitável valor estão ausentes por não estarem articulados com esses marchands combativos. Muitos curadores de museus estão conscientes desse fato; contudo, na ausência de fundos que lhes dêem a necessária autonomia na execução de uma política de aquisições, são levados a aceitar essa posição subalterna ao mercado para “não perder oportunidades”. Há toda uma construção de valores de bens simbólicos que é subvertida. O papel institucional do museu, no que diz respeito à arte contemporânea, fica afetado. Em muitos museus, o mapa da produção contemporânea está em boa parte determinado diretamente, sem mediações, pelos termos do mundo.
É apressado, em um mundo em transição acelerada, apontar mais do que tendências e passar a construir teorias definitivas. A situação acima descrita não pode ser generalizada. Para nos mantermos no estrito exemplo americano, instituições como o MOMA e o Dia Center, entre outras, parecem não subordinar estratégias culturais à pressão de mercado. O processo de consumação dos termos do mundo ainda não está inteiramente realizado e os focos de resistência, quando existem no interior do capitalismo avançado, devem-se nitidamente à separação do mundo administrativo e do dinheiro do mundo dos valores estéticos. Isso ocorre graças à existência de poderosos fundos financeiros bem administrados por especialistas que não se orientam nem se confundem com aqueles que dirigem as estratégias culturais das instituições – os administradores e os gerentes dos recursos contentam-se em ser instrumentos para a realização dos objetivos culturais.
A ocorrência em elevada freqüência da relação promíscua entre o mercado e a consagração de valores artísticos é um dado novo no campo da arte. Esse nervo fica mais exposto nos países de liberalismo neófito, como o Brasil. Curadores ligados ao mercado e a interesses privados ocupam postos institucionais duplicando-se em tarefas incompatíveis entre si, ao menos do ponto de vista ético; aqui, porém, não é o lugar para descer a esses detalhes. O mapa da produção contemporânea está determinado pela mercantilização generalizada dos processos políticos, sociais e culturais. E toda uma interessante teoria sobre a diferença das funções do museu de arte contemporânea e das bienais torna-se frágil quando confrontada com a realidade e suas práticas. Entre o que deveriam ser e o que efetivamente são existe a distância de um abismo.
Curadores, Bienalização e Produção Artística
Já se sabe, não é de hoje, que a realidade também existe na produção dos discursos que a ela se refere. As narrativas tomam o aspecto da realidade e superpõem-se ao Real. A abordagem crítica do problema das construções discursivas por Jacques Derrida em sua filosofia desconstrucionista foi deslocada de seus contextos rigorosos para permitir, em nome de um relativismo generalizado, um mundo sem alfândega de idéias. No campo da teoria da arte tudo passa; é o verdadeiro vale-tudo.
A produção artística, desde meados dos anos 1960 e durante a década de 1970, abriu frentes críticas em diferentes direções. A land art e obras públicas in situ colocavam em xeque os espaços tradicionalmente ocupados pelas obras: galerias, museus, bases e pedestais em praças. A arte conceitual com freqüência se tornava agudo instrumento crítico do próprio sistema da arte, de seus agentes e instituições. Explorando outro veio, de cunho mais sociológico, a arte incorporava a seus temas e narrativas as lutas étnicas e dos direitos civis, de libertação sexual – tanto das mulheres quanto dos homossexuais – e a crítica a múltiplos aspectos da sociedade industrial avançada. Essa conjuntura, que redefinia profundamente o conceito de identidade – antes simploriamente associado à nacionalidade e às posições políticas de esquerda e de direita -, foi, então, submetida a uma matriz complexa envolvendo múltiplas variáveis. Essa descoberta de uma formidável diversidade foi definida como multiculturalismo. Resultado da reflexão sobre importantes lutas políticas e sociais em diferentes territórios, o multiculturalismo tornou-se um laissez-faire teórico no campo da arte.
Ao novo liberalismo econômico corresponde, na arte, a ascensão de um território teórico que denega a história e elege temas no balaio pós-moderno, temas fartos à luz do multiculturalismo e das teorias psicanalíticas. As instituições, sejam museus, salões, bienais, galerias comerciais, passam a existir em um limbo teórico impermeável aos termos do mundo. Tudo seria como deveria ser, segundo uma teoria desligada da realidade concreta na qual as instituições são compartimentos tão estanques quanto as seções de uma loja de departamentos – uma espécie de Bloomingdale’s ou Galeries Lafayette – que recebem os conteúdos eleitos pelos curadores.
Os temas e as linguagens das obras, por sua vez, seriam os responsáveis pela definição de sentido. Se no alto modernismo as obras seriam mônadas privilegiadas, vacinadas contra o mundo, que exalavam significados formais independentes dos circuitos nos quais se inscreviam, agora retornamos a um primitivismo de vanguarda que não fica nada a dever ao substancialismo da física medieval: um trabalho é feminista porque utiliza como matéria-prima absorventes internos para compor um imenso lustre; outro, na mesma linha, é um vídeo científico de cirurgia plástica de restauração de um hímen, uma espécie deready made didático extraído de uma aula de Medicina, mas a ele é atribuído elevada voltagem, posto que não está sendo apresentado no anfiteatro da faculdade para futuros doutores, e sim em uma bienal de arte.[2] Ao exagero da busca do sentido pura e exclusivamente nos elementos ópticos da obra de arte que ocorria no formalismo moderno, o mundo contemporâneo assiste à simples exibição de conteúdos aos quais não se coloca nenhuma exigência de reorganização formal. A festa é aparentemente progressista; dados os conteúdos, o método é seguramente conservador. A obra teria o poder de se autocontextualizar a partir de seus próprios temas. Por mais absurdo que pareça, a um neoliberalismo econômico corresponde, ou ao menos coincide, um neoliberalismo teórico que constrói e vende a teoria de um sistema da arte. E não lhe faltam consumidores, a começar pelos próprios pares que a produzem e a reproduzem.
Essa conjuntura teórica tem início no final dos anos 1970, quando emergem, entre os sérios profissionais da crítica e dos museus, as vedetes curadoras. A situação é um prato feito. O terreno está aberto e qualquer exigência de potência poética é imediatamente tachada de formalismo. Travestidos de teóricos ou inventores originais, investem nesse novo star-system. Nenhum deles propõe mudanças no processo institucional falido; ao contrário, trabalham na preservação de suas reservas de mercado de trabalho. Surge, então, o novo curador, diferente daquele profissional mergulhado nas pesquisas, nos arquivos e nas reservas técnicas dos museus que de vez em quando dá o ar de sua graça na prestação de contas dos resultados de sua pesquisa em publicações acadêmicas ou nos catálogos das exposições que resultaram de muitos anos de trabalho. O novo curador é independente; mesmo que esteja vinculado a uma instituição. Além disso, suas investidas autorais são atrevidas e sobretudo personalizadas. Apresenta teses de consistência duvidosa em exposições cujos custos alcançam a ordem dois milhões de dólares. As obras de arte – e, com elas, a história da arte – serão manipuladas para servir ao roteiro autoral à luz de uma das muitas teorias pós-modernas, talvez alguma que ele mesmo tenha acabado de inventar.
Já na década de 1970, vários críticos apontavam a impotência de salões e bienais de arte para cumprir sua função de detectar e mostrar a produção contemporânea mais instigante ou, se quiserem, instável. Entretanto, o mundo foi palco de um fenômeno na direção inversa dessas avaliações. Em lugar de serem estudadas as transformações necessárias na instituição bienal para que pudesse incorporar no seu processo, além da mostra periódica, o instrumento de rastreamento da produção e de sua difusão permanente em trabalhos de pesquisa e educativos no sentido mais amplo do termo, a década de 1990 assistiu à banalização das bienais: surgiram pelo mundo mais de cinqüenta instituições desse tipo. Esse fenômeno já tem um termo para designá-lo – bienalização – e é estudado a partir de seus sintomas: os mesmos curadores, os mesmos artistas, os mesmos marchands circulam em todas as bienais. É uma espécie de revezamento programado de um “sistema da arte” que se distancia da produção que não foi incluída entre os eleitos.
Em 2005, na 51ª Bienal de Veneza, diante do projeto curatorial de Rosa Martinez de romper limites e ir “Sempre um Pouco mais Longe”[3], a crítica e curadora turca Beral Madra, que coordenou a 1ª e a 2ª Bienal de Istambul, em 1987 e 1989, observa que “To go always a little further should be the motto for many art scenes which are not discovered yet. The institution biennale has become too heavy, too expensive and too sophisticated to catch the spirit of the art of these out-of-the-way territories”.[4] É isso que não é enfrentado por essas mostras. As mostras bienais devem ser transformadas, e a Bienal do Mercosul, entre as mais de cinqüenta existentes no mundo, pode contribuir para essa mudança. Por estar inscrita em condições bastante particulares, ela pode propor mudanças na instituição para não ser apenas mais uma entre as dezenas de bienais.
A Bienal do Mercosul é a Bienal de Porto Alegre. Toda bienal age sobre a cidade que a produz e a ela pertence. A cidade de Porto Alegre e o estado do Rio Grande do Sul, pela sua economia e pela sua produção artística, literária, teatral, musical e cinematográfica, já contribuíram para deslocar o monopólio do eixo Rio-São Paulo, que há muitos anos centraliza a eficácia cultural e dita rumos da produção contemporânea. A densidade e a qualidade da produção cultural local permitem identificar um pólo seguro para efetivamente irmos “um pouco mais longe”, não nos conteúdos, e sim nos processos. Por seu recorte regional, a Bienal do Mercosul pode construir o tema de cada edição em um seminário no qual participariam curadores de todos os países envolvidos na mostra. Exposições e debates em cada país deveriam preceder a preparação da mostra final em Porto Alegre. Finalmente, encerrada a mostra, uma programação especialmente traçada para a região metropolitana de Porto Alegre capitalizaria o evento por meio de um programa educativo amplo, envolvendo desde a capacitação de professores até estudos avançados, trabalhando de modo permanente as grandes questões da arte contemporânea. Não há impasse, mas escolhas: ou agimos para apontar e traçar novos caminhos, rompendo com a “lengalenga” das bienais, ou aceitamos passivamente o avanço da mercantilização generalizada dos processos enfeitados pelos teatros curatoriais.
A 5ª Bienal do Mercosul: Histórias da Arte e do Espaço
Ao escolher como tema as transformações das noções de espaço e suas relações com a arte contemporânea, sob o título Histórias da Arte e do Espaço, a 5ª Bienal do Mercosul toma uma posição: um investimento dessa natureza e dessa dimensão, em um país no qual parte significativa de sua população sequer completa os estudos básicos, não deve ser o lugar para a apresentação de teses pessoais do curador. Para isso existem exposições de menor porte e seus respectivos catálogos, projetos locais e revistas acadêmicas, cujo lugar não é a maior mostra de arte latino-americana. Procura-se, então, um fio condutor que possa estar presente tanto na experiência das obras quanto no cotidiano do visitante, seja leigo, seja especializado.
Esse fio, por suas características conceituais, não fecha a mostra em torno de uma particularidade; ao contrário, as transformações da noção de espaço abrem-se de tal forma que os curadores dos países participantes não têm seu trabalho subsumido pelo tema proposto pelo curador geral do Brasil. A questão do espaço em sua relação com a arte goza de tal amplitude que a torna mais um quadro de referência a ser levado em consideração na análise das obras do que um roteiro ou uma receita a serem seguidos. A força do projeto não se encontra na autoria pessoal, mas na autoridade e no peso de sua própria questão.
E mais: no interior do pandemônio de teorias do balaio pós-moderno, no qual “conceitos” circulam livremente pelo planeta, como o capital financeiro, sem barreiras ou controle, investe-se em um assunto mais que clássico, um tema que se confunde com a própria questão da arte. Pierre Francastel já lembrava no fim da primeira metade do século passado: “Todas as artes plásticas são artes do espaço. A noção da Forma não lhes é exclusiva e freqüentemente se comete, ao falar delas, o erro de empregar esse termo sem suficientes reservas. (…) não existe arte plástica fora do espaço e quando o pensamento humano se exprime no espaço toma necessariamente Forma plástica”. E prossegue: “É, portanto, capital estudar a Forma plástica em função da noção de espaço. Tanto mais que essa noção é variável segundo países e épocas”. [5]
Em que pesem as revisões inevitáveis nos aspectos genéticos do método de Francastel, ainda fundamentados nas pesquisas de Piaget, depois das contribuições de Lévi-Strauss na antropologia, de Georges Canguilhem e de Alexandre Koyré nas suas respectivas histórias da ciência, de Jacques Lacan na psicanálise e dos estudos de Foucault sobre as descontinuidades estruturais nas histórias e na construção de seus discursos[6], a afirmação do espaço como um território comum a todo fenômeno plástico não somente resiste, como as transformações dessa noção podem ser claramente detectadas nas mais vigorosas obras contemporâneas. Esse território comum pode ser tomado como o eixo de uma rosa-dos-ventos, a partir do qual podemos examinar diferentes posições e direções da arte contemporânea. As transformações da noção de espaço funcionariam, desse modo, como uma espécie de sistema de referência global, tal como as coordenadas geográficas, sobredeterminante, no qual podemos identificar os sistemas narrativos locais determinados por seus objetos específicos, como aqueles movidos em torno de estratégias particulares: políticas do corpo, referências étnicas, crítica sociológica, políticas de gênero e de sexualidades, crítica ao sistema da arte – às suas instituições e aos seus agentes -, investigações que mobilizam novos recursos tecnológicos, poéticas idiossincráticas, pesquisas formais de linguagem, bem como retomadas puramente conceituais. A hipótese seria a de que, sobre o território teórico da noção de espaço e suas variantes históricas e culturais, seria possível, a partir de um paradigma mais resistente ao relativismo generalizado pelo desconstrucionismo, examinar as interações entre essas microrregiões narrativas e suas estratégias em determinadas obras e explorar seu alcance poético. Em torno desses sistemas locais, de suas estratégias e táticas, enfim, das diferenças ditadas pelo multiculturalismo, é que se movem as diversas pós-modernidades na arte.
O sistema referencial ditado pelas transformações da noção de espaço forneceria uma dupla âncora: a sincrônica, cuja função seria a mesma de uma invariante estrutural – o elemento comum a todas as microrregiões do continente espacial, independentemente de suas estratégias narrativas particulares; a diacrônica, que permitiria estabelecer os índices de ruptura e/ou de continuidade das narrativas específicas com o recente passado moderno. Permita-se um truísmo: a dimensão histórica do fenômeno artístico, se uma visão genealógica for aceita – necessariamente dissociada da noção evolutiva de progresso, isto é, uma visão não-genética -, encontra-se não somente nas continuidades e infiltrações do passado, nas negações e rupturas com esse passado, mas também nas experiências artísticas que, por razões socioculturais, desenvolvem-se à margem do chamado sistema da arte. Retomado o eixo histórico, trata-se de incluí-lo no repertório de referências combinado com os demais, tal como as diversas noções e camadas de espaço que estão em jogo na produção contemporânea. Poderia surgir uma teoria da arte conjugando-se as transformações da noção de espaço e história que não eclipse, em nome de valores paradigmáticos, a diversidade da produção contemporânea.
A dispersão e a diversidade contemporâneas assumem a figura do fragmento, sobretudo quando desconectadas de um território comum. Assim, sem prejuízo dos contextos específicos e das dinâmicas particulares a cada estratégia narrativa ou formal, a dimensão histórica seria restaurada tanto na distribuição espacial dos diferentes territórios quanto em suas relações com a herança moderna. O fragmento é elevado ao estatuto efetivo de diferença. A denegação ou mesmo o recalque da história advém de se tomar a História como acervo de valores do passado, espécie de unidade de medida e bússola que inibiria a leitura do presente. A ênfase na transformação histórica e cultural da noção de espaço neutralizaria a função de superego da história, ao mesmo tempo em que colaboraria para pensar com mais rigor a produção contemporânea que se apresenta com freqüência, principalmente em megaeventos, como um verdadeiro bricabraque fazendo a festa de indigências teóricas.
*Paulo Sergio Duarte é crítico de arte e professor. Pesquisador do Centro de Estudos Sociais Aplicados da Pró – Reitoria de Pós Graduação e Pesquisa da Universidade Cândido Mendes. Projetou e implantou o programa Espaço Arte Brasileira Contemporânea – Espaço ABC – da FUNARTE (1980-1982). Foi Diretor do Instituto Nacional de Artes Plásticas da FUNARTE (1981-1983) e Diretor Geral do Paço Imperial (1986-1990). Possui textos publicados em diversos catálogos de exposição e revistas especializadas, no Brasil e no exterior. Publicou diversos estudos e artigos sobre arte moderna e contemporânea, dentre os quais destacam-se os livros Anos 60 – Transformações da Arte no Brasil(Campos Gerais, 1998), Waltércio Caldas (Cosac & Naify, 2001), Carlos Vergara (Santander Cultural, 2003) e a Trilha da Trama e outros estudos (Funarte, 2004), organizado por Luiza Duarte.
[1] MARCUSE, Herbert. One-Dimensional Man: Studies in the ideology of advanced industrial society. Boston: Beacon Press, 1964. (Publicado em português sob o título Ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.)
[2] Refiro-me explicitamente às obras de Joana Vasconcelos (A Noiva, 2001. Aço inoxidável e absorventes internos. 470 x 220 x 220 cm. Coleção de Antonio Cachola, Campo Maior) e de Regina José Galindo (Himenoplastia, 2004. Performance para a mostra coletiva Cinismo all Espacio Contexto). Ambos os trabalhos foram exibidos na exposição Sempre um pouco mais longe. C, com curadoria de Rosa Martinez, na 51ª Bienal de Veneza, de 2005. O trabalho de Galindo recebeu o prêmio para Jovem Artista da Bienal.
[3] Rosa Martinez tomou para o título de sua mostra uma frase de Corto Maltese: Sempre um pouco mais longe(Sempre un pó più lontano).
[4] MADRA, Beral. The Last Bi-Entertainment, Jul 2005.Disponível em: <http://www.europist.net/?sayfa=makale_detay&id=56>. Acesso em 08/07/2005. Beral Madra coordenou a 1ª (1987) e a 2ª (1989) Bienal de Istambul. Foi curadora da representação turca em três edições da Bienal de Veneza (43ª, 45ª e 49ª) e já organizou 20 exposições internacionais na Turquia e na Alemanha. Desde 1990, dirige o BM Contemporary Art Center.
[5] FRANCASTEL, Pierre. “Espaço genético e espaço plástico”. In: A realidade figurativa. Coleção Estudos. 2.ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993. p. 123. O texto foi originalmente publicado na Revue d’esthétique, t. 1, fasc. 4, oct.-déc. Paris: 1948, p. 349-380. Posteriormente foi incluído em La réalité figurative. Paris: Denoël-Gonthier, 1965.
[6] Para esses autores cf.: LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora da Universidade de São Paulo, Editora Vozes, 1976. Particularmente o capítulo 7: A ilusão arcaica [Primeira edição em francês: 1949]. Ibidem. O Pensamento Selvagem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1983. Particularmente os dois primeiros capítulos: A ciência do concreto e A lógica das classificações totêmicas [Primeira edição em francês: 1962]. CANGUILHEM, Georges. Le normal et le pathologique. Paris: Presses Universitaires de France, 1966. [Trata-se da edição da tese de doutorado em Medicina de Canguilhem, defendida em 1943 – O normal e o patológico – acrescentada do estudo Novas resflexões a respeito do normal e o patológico]. Ibidem. Études d’histoire et de philosophie des sciences. Paris: Vrin, 1968. KOYRE, Alexandre.Études Galiléennes. Paris: Hermann, 1940. [Estudo pioneiro sobre a descontinuidade entre a noção medieval deimpectus (impulso) e o conceito de inércia na explicação do movimento na física moderna, tendo como conseqüência a demonstração da primazia de um racionalismo complexo, que introduz o pensamento estruturado como a linguagem, sobre um empirismo ingênuo que acredita na repetição da experiência crua como geradora de conhecimento]. LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998 [Primeira edição em francês: 1966]. FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2002 [Primeira edição em francês: 1961]. Ibidem. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984 [Primeira edição em francês: 1963]. Ibidem. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1990 [Primeira edição em francês: 1966].