Resumo: Jean-Luc Nancy começa o livro À escuta, perguntando-se se “é a escuta uma coisa de que a filosofia seja capaz?”. A resposta a essa pergunta vem sendo desenvolvida por alguns pensadores. Para Paul Zumthor e Adriana Cavarero, o ensurdecimento da filosofia, isto é, da reflexão sobre os poderes da voz, é tema central e precisa ser efetivamente compreendido por quem pesquisa a palavra cantada, a palavra vocalizada, a vocoperformance. Este trabalho enfrenta a questão, a partir da mitologia vocalizada na voz da cantora Juçara Marçal. Posto que nessa revocalização do mito e do logos, Juçara cria um mundo sonoro constituidor e contestador da realidade: “devolve o hematoma”.
Palavras-chave: Juçara Marçal; vocoperformance; mito.
Abstract: Jean-Luc Nancy begins the book À l’écoute, wondering if “l’écoute, est-ce une affaire dont la philosophie soit capable?”. The answer to this question has been developed by some thinkers. For Paul Zumthor and Adriana Cavarero, the deafening of philosophy, that is, reflection on the powers of the voice, is a central theme and must be effectively understood by those who search for the word sung, the word vocalized, vocoperformance. This work faces the question, from the voiced mythology in the voice of the singer Juçara Marçal. Since in this revocation of the myth and the logos, Juçara creates a sonorous world that constitutes and contests reality: “it returns the hematoma”.
Keywords: Juçara Marçal; vocoperformance; myth.
1. Pro mensageiro passar. Para Augusto de Campos (1978),
segundo ensina Moles, a informação é função direta de sua imprevisibilidade, mas o receptor, o ouvinte, é um organismo que possui um conjunto de conhecimentos, formando o que se chama de ‘código’, geralmente de natureza probabilista, em relação à mensagem a ser recebida. É, pois, o conjunto de conhecimento a priori que determina, em grande parte, a previsibilidade global da mensagem.
E completa que
assim, a mensagem transmite uma informação que é função inversa dos conhecimentos que o ouvinte possui sobre ela. O rendimento máximo da mensagem seria atingido se ela fosse perfeitamente original, totalmente imprevisível, isto é, se ela não obedecesse a nenhuma regra conhecida do ouvinte. Lamentavelmente, nessas condições, a densidade de informação ultrapassaria a ‘capacidade de apreensão’ do receptor.
Conclui:
nenhuma mensagem pode, portanto, transmitir uma ‘informação máxima’, ou seja, possuir uma originalidade perfeita, no sentido da teoria das probabilidades, e, mais precisamente ainda, a mensagem estética deve possuir uma certa ‘redundância’ (o inverso da ‘informação’) que a torne acessível ao ouvinte. Reciprocamente, a transmissão de elementos demasiados previsíveis é ‘banal’ aos ouvidos do receptor, que não encontra neles um coeficiente de variedade capaz de interessá-lo.
Assim, “para que haja informação estética, deve haver sempre alguma ruptura com o código apriorístico do ouvinte, ou pelo menos, um alargamento imprevisto do repertório desse código” (p. 180-181). Por sua vez, Jean-Luc Nancy começa o livro À escuta (2014), perguntando-se se “é a escuta uma coisa de que a filosofia seja capaz?” (p. 11). A resposta a essa pergunta vem sendo desenvolvida por alguns pensadores. Nancy, inclusive. Para Paul Zumthor (2007) e Adriana Cavarero (2011), o ensurdecimento da filosofia, isto é, da reflexão sobre os poderes da voz, é tema central e precisa ser efetivamente compreendido por quem pesquisa a palavra cantada, a palavra vocalizada, a vocoperformance. O pesquisador dessas poéticas já percebeu que escutar é saber. Ou que “só podemos atender ao mundo orecular”, como Oswald de Andrade anota no Manifesto Antropófago. Ao neutralizar a escuta, o filósofo deixa de perceber que “o sonoro arrebata a forma”. Isso porque o sonoro “não dissolve [a forma], alarga-a antes, dá-lhe uma amplidão, uma espessura e uma vibração ou uma ondulação que o desenho mais não faz do que aproximar” (Nancy, 2014, p. 12). Por isso mesmo, ao justapor as palavras de Augusto de Campos sobre a transmissão de uma mensagem estética e as de Jean-Luc Nancy sobre a escuta, estranhamos quando este sugere que podemos escutar o que vemos, mas não podemos ver o que escutamos. Ora, o que faz o sujeito cancional, aquele que canta por trás da voz audível, aquilo que antigamente chamávamos de alma [da canção], senão plasmar imagens?
2. Pesar a consciência do plantão. Ao dizer que “quer-se aqui apurar o ouvido filosófico: puxar a orelha do filósofo para a inclinar para aquilo que solicitou ou representou sempre menos o saber filosófico do que o que se apresenta à vista e que se eleva antes no sotaque, no tom, no timbre, na ressonância e no barulho”, Nancy (2014, p. 13) aponta em direção àquilo que temos chamado de sujeito cancional. A saber: a entidade que só se permite ouvir no instante-já da canção e que amalgama a voz do compositor, a voz do sujeito da canção (a voz que “fala” a mensagem da letra da canção) e a voz do desejo do ouvinte. E, importante destacar, descola-se de todos estes quando permite a fruição, bem como a possível significação, pessoal e intransferível. Mais do que a confissão auricular, o sujeito cancional é a alma do sujeito da canção, daquilo que em teoria da literatura chamou-se de eu-lírico. O barulho visual engendrado por esse sujeito foi peremptoriamente silenciado. Isso porque, grosso modo, esse barulho é mais sonoridade e menos mensagem, mais experiência e menos decodificação. É estar e ser à escuta, como defende Nancy. Ou seja, para um ser dado à escuta, formado pelo e no orecular (ouvinte, ouvidor, auditor, auscultador, escutador), caberia “uma intensificação e um cuidado, uma curiosidade ou uma inquietude” (Nancy, 2014, p. 16), já que “escutar é estar inclinado para um sentido possível, e consequentemente não imediatamente acessível” (p. 17). Essa abertura é trabalhada, por exemplo, em “Padê onã”, de Douglas Germano, na voz de Juçara Marçal. É a preparação do encerramento dos trabalhos do disco Convoque seu Buda, de Criolo (2014). A canção é saudação e canto a Exu, mensageiro da travessia e do destino, orixá da comunicação, dos contatos. Junto à canção “Fio de prumo” – instrumento da construção civil e bastão de Exu –, “Padê onã” canta que a ideia não substitui o sensível. Se “a poesia existe nos fatos”, como Oswald de Andrade escreveu, é o sujeito cancional em Juçara Marçal que, coincidido com o estado do ouvinte naquele momento de execução da canção, quem faz o convite para o canto compartilhado. “O modo como o leitor ou ouvinte pode fundamentalmente contribuir para a inspiração poética ou para o desvelamento do Ser acontecer é por meio de sua abertura atenta para o Ser e para a imaginação quando eles ainda não mostraram (e pode ser que nunca se mostrem)”, escreve Gumbrecht (2016, p. 101). O ouvinte não conhece o sujeito, mas tem nele um cúmplice. Há re-conhecimento e há presentificação. O sujeito cancional apresenta em som (tensão entre corpo e alma – “Aço , peito, flecha, caminho / Magma, lava, inveja, vizinho”) algo que até então o ouvinte e o próprio compositor só tinham uma vaga ideia do que seria: a coisa em si – tão fluida e fugidia quanto a própria canção que (não) morre no ar. E aqui está o drama do sujeito cancional: “voa tão leve / mas tem a vida breve / precisa que haja vento sem parar”, como cantou Vinicius de Moraes.
3. Sua boca, seu dente e o encarnado. Encarnar é tirar sarro, é avermelhar (sangrar – vermelho de Matisse), é ter um corpo, é ser no mundo. É sagrar um eu. A raiz da palmeira juçara (Euterpe edulis), típica da Mata Atlântica, é grossa e vermelha. “Uma esperança morta”, “uma ferida aberta”, “um carnaval onírico”. Elementos da alquimia (instalação) sonora engendrada pelos três amigos (para matar): Juçara Marçal, Thiago França e Kiko Dinucci – a alma tríplice do Metá Metá: “um carmim, um fim, um dó / um agogô, um pus, um som”. Esses e outros versos do disco MM3 (2016) refazem os caminhos do trio, de “um canto perdido na voz incomum”, canto que é “marca da felina sonsa que tem asa”. Felina que é orixá sirênico urbano, é “escultura quebrada, falo partido, presságio infeliz”. É ainda Paul Zumthor quem observa que é preciso se concentrar “nos efeitos da voz humana, independentemente dos condicionamentos culturais particulares” (Zumthor, 2007, p. 12). E reclama do silêncio profundo que nos cerca quando lidamos com as canções hoje trabalhadas “apenas” como escrita. Ao mesmo tempo, Zumthor anota que os meios eletrônicos “abolem a presença de quem traz a voz” e que “os media tendem a apagar as referências espaciais da voz viva”. Por sua vez, como temos defendido, o sujeito cancional chama para si a responsabilidade de sustentar o mito, o arcaico vocal (entroncamento do rural e do urbano) em tempos de reprodução técnica da voz. Prismático, o sujeito cancional é permanência (da certeza de que uma voz de alguém de carne e osso emitiu algo) e fluidez (instante de compartilhamento de experiências). Assim, “a experiência, a percepção, não se torna possível a partir da imediatez do real, mas sim a partir da relação de contiguidade com esse lugar ou espaço intermediário onde o real se torna sensível, perceptível”, diz Coccia (2010, p. 20). Por nossa vez, acreditamos que a intertextualidade entre as letras das canções de MM3 – versos, expressões e temas des-dobrados – afirma a permanência de um canto trágico e lírico da vida nua, crua, épica singular que sobrevive à finalidade comercial da canção. “Meu amor, eu acho que se a gente for pensar / de repente nem dá tempo de se imaginar”, canta a tríade Metá Metá. Nesse sentido, pensar MM3 como uma instalação não será um erro grave. A autonomia da obra é estabelecida nas dobras dos elementos que retornam. Esses retornos não deixam o pensamento travar e fazem o ouvinte pensar a obra a partir da obra. Além de permitirem a experiência de um mundo criado, inventado, cantado. Ou seja, esse re-tornar (sinônimo de sonar, tonar e ecoar) restaura o desconhecimento de mundo do ouvinte. E presentifica um mundo novo, cujo saber vem do embate com a obra-tribo de “uma beleza disforme, sem rosto, sem nome, sem moderação”. Se “de repente nem dá tempo de imaginar”, o disco MM3 é “circular dentro de si”: esculturaliza o corpo vão, faz o certo virar errado e o vazio virar semente, pó. Assim, engolir o mundo e regurgitar é gesto próprio dessa “boca funil” in-carnada por Juçara Marçal que “faz o torto voltar a ser regra”. Boca cujo som danado – da calunga ao calundu – é a amálgama da voz humana demasiado humana, da guitarra e do sax da trindade artística. Lembremos que “a cor do pecado é rouge carmim”, no canto de Alceu Valença; “eu não consigo evitar / desejo esse seu corpo / cheiro de carmim”, canta Benito di Paula; “me suja de carmim / me põe na boca o mel”, pede Wando; “uma ponta de cigarro / manchada de carmim / foi a única lembrança / que ficou pra mim”, canta Ary Barroso; “guardo o lencinho branco / que esqueceste ao me abandonar / manchado assim pelo carmim que / tirei dos meus lábios quando te beijei”, canta Dalva de Oliveira; “Eu quero, quero, quero, é claro que sim / iluminar o escuro com meu bustiê carmim / mesmo quando choro e adivinho que é esse o meu fim”, afirma Maria Bethânia; “mamã mamãe, eu quero sim / quero ser mandarim / cheirando gasolina / na fina flor do meu jardim / assim como carmim / da boca das meninas / que a vida arrasa e contamina / o gás que embala o balancê” canta Moraes Moreira. E os exemplos continuam e se condensam no tom da “esperança morta”, da “ferida aberta”, do “carnaval onírico” do Metá Metá. Vermelho, vermelhaço, vermelhusco, vermelhante, vermelhão. Se, como diz Riobaldo, “o sertão está em toda parte, o sertão está dentro da gente. Levo o sertão dentro de mim e o mundo no qual vivo é também o sertão”, a cor vermelha [o encarnado] tinge a escultura sonora erguida no tripé Metá Metá. E evoca os sertões narradores, da “barra do dia foi avermelhando o céu” (O quinze, de Rachel de Queiroz), à “catinga [que] estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas” (Vidas secas, de Graciliano Ramos).
4. Na pele moura ela ferve em foco invertido. A canção “A imagem do amor”, de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, oferece matéria para a reflexão sobre a questão trans: trans-sexual, trans-e, trans-formar, trans-piração. O canto do nascimento de “uma menina tardia dos guias de luz” é ambíguo e metafórico (como toda linguagem artística deveria ser) e tematiza um corpo trans-formado, uma “escultura quebrada” a ferir os “olhos desleais”. “O sonoro arrebata a forma” (Nancy, 2014, p. 12). Sendo a dissonância a única possibilidade de acesso à verdade, o som do Metá Metá se rebela contra as aparências da arte que se declara insuficiente para si mesma. Daí que, se a obra é autônoma, ela não é independente. No caso, os arquétipos e seus ensinamentos ancestrais – a afirmação da desterritorialidade (antropofágica?) da potência afro. O mito da democracia racial aparece em contraponto à histórica distorção doméstica da ancestralidade. A razão canônica versus a filosofia orecular. A antropofagia é anterior ao conceito. A coerência de um mundo antes de nós é ilusória. Daí o pedido-motriz: “me diz de onde é que vem a sede de cantar, a seiva da canção no sangue tom carmim?”, da canção “Angolana”, assinada pelo trio. Todo o trabalho da voz de Juçara Marçal, da voz e da guitarra de Kiko Dinucci, do sax de Thiago França, do baixo de Marcelo Cabral e da bateria de Sergio Machado é uma investigação disso. A Angolana do título é musa evocada e cujo canto tríplice é traduzido no som dado ao ouvinte. A Angolana é anterior à antropofagia. “Só podemos atender ao mundo orecular”, lembremos. Orecular é fazer do ouvido oráculo, é estar e ser à escuta. E aqui a Angolana é o oráculo a ser consultado, é “Angoulême” – bússola e desorientação, que “grita um verso a quem passar”. O enigma é mantido, pois os caracteres enigmáticos da Angolana provem do gesto de produzi-la na efemeridade do canto, da canção. Contra o messianismo sem messias do capitalismo, a Angolana está preservada em sua indeterminação matriarcal, no esforço artificialmente frustrado de cantar sua forma. Sua questão é apontar que o cuidado de si corre o risco de ser tão negativamente disciplinar e controlador quanto o sistema da ética somática e do biopoder. Sobre o matriarcado, Roberta Barros (2016) observa que “no Manifesto [antropófago] a antropofagia é arquetípica, relacionada a uma imagem do homem primitivo que vive em meio ao sol, cobra grande, jaboti, Jacy e Guaracy, desfrutando do mito de pleno ócio, festa e livre comunhão amorosa, longe da dimensão abjetual daquela mulher-mãe que lambuza o peito de sangue” (p. 56). Isso reforça a positividade da ideia de miscigenação e escamoteia o mito da tolerância racial e sexual. Angolana fala como as sereias nas mitologias: uma fala em ruidoso silêncio e que se aproxima do ouvinte através da circularidade do ordinário: “Pra o onde quer que eu vá / vou ao redor de mim”, diz o sujeito. “O silêncio deve entender-se aqui não como uma privação mas como uma disposição de ressonância: um pouco como, numa condição de silêncio perfeito, se ouve ressoar o próprio corpo, a sua respiração, o seu coração e toda a sua caverna ressonante” (Nancy, 2014, p. 41). Tomemos como exemplo desses retornos (dramáticos) internos que miram “a sina de correr ao redor de mim (de si)” a cor vermelha, o encarnado, a carnação da canção que a Angolana é, o carmim espraiado em todo o disco. “Tem um carmim, um fim, um dó”; “pele tatuada, carne mutilada, o seu dente sangra”, “o bisturi, a toalha”; “no sangue tom carmim”; “o vermelho do vinho”; “o be ri omon”. “(Quem dera) respirar / no peito um novo ar / me perder por um caminho enfim”, canta o sujeito de “Angolana”. Localizamo-nos na platibanda de onde o sentinela Mano Légua mira e nos ensina a caminhar na trinca e pede: vamos lá, meu bem, experimente a terceira margem. Desse modo, os versos “a imagem do amor / não é pra qualquer / fere os olhos desleais / impele os imortais” são a síntese dos tempos de hoje, quando experimentar ainda é a única trans-perspectiva possível para quem deseja o axé das folhas (“l’ase ewe o”) e “se embrenhar no oco do vulcão / e acender o fogo do estopim: explodir, cantarolar”.
5. Yia omo ejá. No poema “Iemanjá” (1943), Maria Martins escreve que
Iemanjá poderia ter vivido no Mediterrâneo, no Oceano Índico, em qualquer lugar de que gostasse, mas escolheu o Brasil. Ela passa os seus dias oscilando da Bahia ao Amazonas. (…) O vagaroso subir e descer das ondas é a sutil cadência do corpo sensual de Iemanjá, a sua magia poderosa. O despertar prateado das águas sob os raios da lua é o cabelo brilhante de Iemanjá, a alga de todos os oceanos. Para possuí-la, para chegar até ela mais rápido, para tocar os seus seios, pesados com o amor proibido, quantos pescadores, quantos marinheiros atiraram-se ao mar, excitados por um desejo inimaginável!
No poema “Mãe dos filhos peixes” (1996), Waly Salomão escreve que Iemanjá é “mãe sexualizada / mãe gozosa / mãe incestuosa // que reina no mar revolto e na maré mansa / e se adona do remanso e do abissal”. No discurso “Do ler e escrever” do livro Assim falou Zaratustra, Nietzsche (2011, p. 41) escreve:
(…) parece-me que borboletas e bolhas de sabão, e o que há de sua espécie entre os homens, são quem mais entende de felicidade. / Ver esvoejar essas alminhas ligeiras, tolas, encantadoras e volúveis leva Zaratustra às lágrimas e ao canto. / Eu acreditaria somente num deus que soubesse dançar. / (…) / Aprendi a andar: desde então corro. Aprendi a voar: desde então, não quero ser empurrado para sair do lugar. / Agora sou leve, agora voo, agora me vejo abaixo de mim, agora dança um deus através de mim.
Despreocupado com as noções canônicas de identidade, ou tentando expandi-las num gesto arquevocálico, assim como a Iracema alencariana, o Zarastustra nietzschiano refere-se a si em terceira pessoa. Muito citado, o trecho oferece importantes recursos para se pensar sobre canção e sobre as corporalidades sonoras brasileiras que tem no canto mítico de Iemanjá bonita síntese. Poderíamos divagar sobre a simbologia da mutante-frágil-volátil borboleta, mas queremos nos ater à bolha de sabão – metáfora reutilizada por outros filósofos no que se refere ao viver como uma constante configuração de esferas sutis e complexas. Obviamente, estamos falando da Teoria das Esferas de Peter Sloterdijk. Entre outras questões, Sloterdijk (2016) escreve sobre a polivalência do mundo, a experiência primária do espaço (cita o útero materno como ponto de partida), as relações de dependência e apresenta uma teoria da intimidade. Para ele, viver é criar esferas imunológicas. É por viver – sentir-se – ameaçado pelo mundo ao redor, que o indivíduo desenvolve a busca do luxo individual, objetivando a abundância perdida desde a saída do útero. E é aqui que ajustamos nosso foco: na necessidade humana de canção, do canto da fama (re-conhecimento). A arte apresenta um outro mundo possível, aplaca a saudade das esferas explodidas, muito embora exploda outras: as canções induzem o indivíduo a sair para o mundo. O indivíduo moderno-contemporâneo fora do quarto cheio d’água (materno) está solto. Ele é bolha de sabão. E são muitos os motivos que levam à arrebentação das esferas: a morte de Deus, o fim da verdade e o fato do homem não estar pronto para não ser o centro do universo, por exemplo. Resguardadas dos conceitos de bem e de mal, as culturas africanas embaçam a visão cristã do indivíduo essencialmente bom ou essencialmente mal. “Na verdade, os maus impulsos são tão apropriados ao fim, conservadores da espécie e indispensáveis quanto os bons: – apenas é diferente a sua função”. “A decisão cristã de achar o mundo feio e ruim tornou o mundo feio e ruim”, escreve ainda Nietzsche em A gaia ciência (2001, p. 57 e p. 151). Além do bem e do mal, há os elementos da natureza, cujos guardiões na mitologia Iorubá são os orixás. Essa mitologia não é inventora de fábulas, pois não conhece a diferença entre história e ficção. É com o sincretismo entre África e Europa, por imposição e tirania cultural desta, no Brasil e em outras colônias europeias, que teremos representações em imagens dos orixás, até então cultuados como forças da natureza. Nesse sentido, Metal Metal (2012), disco do Metá Metá é uma tempestade solar que explode qualquer tentativa de imunização. Porque tropical e universal (tradição e cosmopolitismo), através das misturas engendradas no turbilhão das camadas de histórias, o trio formado por Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Thiago França faz a matriz africana ganhar novos vetores de apreciação: grávidos de riscos, sem concessões. Um singular exemplo do modo como a tribo bebe o sangue (a poética) de uma língua do Brasil matriarcal está disposta em “Rainha das cabeças”, canção de Douglas Germano e Kiko Dinucci. O vigor vocal contestador punk, os rituais de terreiro e os miasmas urbanos compõem uma vibração para além de quaisquer pré-teses: tudo soa íntimo, mas estranho, porque imbricado de forma inovadora. A letra da canção em si já detona o incômodo estético: repleta de palavras e/ou expressões íntimas culturalmente e estranhas ao nosso cotidiano urbano. A letra presentifica signos em rotação no imaginário do ouvinte: “Awoió ori dori re / Iyemanjá cuidou / Ade, ala, beijou / E encheu o ori de mar”. A primeira estrofe cantada com a nervura já destacada aqui indicia que não estamos – nós, ouvintes comuns, não iniciados – em lugar cômodo. A força sonora e rítmica, aliada ao timbre – essa comunicação do incomunicável –, o estilo e a assinatura de Juçara Marçal, por vezes não deixa o ouvinte entender, de pronto, a mensagem da canção. Mais partilha e menos transmissão. Pescamos retalhos. Para entrar nela mesmo, precisamos ouvir com o texto sob os olhos. Mas isso não impede de sermos arrebatados pela potência ali dançante, já que “o ritmo é uma coação; ele gera um invencível desejo de aderir, de ceder; não somente os pés, a própria alma segue o compasso” (Nietzsche, 2001, p. 112): ritmo “que não é outra coisa senão o tempo do tempo, a desestabilização do próprio tempo no batimento de um presente que o apresenta disjuntando-o dele mesmo, desembaraçando-o da sua simples estância para a fazer escansão e cadência” (Nancy, 2014, p. 34). Há que se atentar sobre isso, aliás: várias canções interpretadas por Juçara Marçal apresentam textos muito densos e bonitos, mas também, por vezes, difíceis de captar só pelo ouvido, principalmente quando articulados com uma melodia muito recortada ou acelerada. Seria este objeto, plenamente, uma canção? Ou seria uma forma híbrida de poesia-para-ser-cantada (diferente da canção-para-ser-ouvida)?. Seja como for, “Rainha das cabeças” promove a dança da intuição do ouvinte. Através do Ori (Orixá pessoal) em contato com o som da canção, o ouvinte entra em estado-de-poesia, de lugar sonoro, na medida em que o som aí ressoa: não importa muito decodificar as palavras, mas entrar no movimento de pertencimento que elas, ditas daquele modo e com aquele ritmo, promovem – com o objetivo de reorganizar o sistema pessoal do ouvinte: a bolha de sabão e seu alfinete altamente explosivo. Iemanjá-Awoió cuida do cantor-ouvinte, enche a cabeça (ori) dele de mar (no horizonte do infinito) e faz dele ouvinte-cantor: dança nele. E o tabu vira totem: “tupi or not tupi”, é a pergunta. “Iya olori / Mojuba Olodumaré // Ela é filha de Olokun / É iya kekerê”, diz o refrão. Se, como Nietzsche anotou, “o grau do senso histórico de uma época pode ser avaliado pela maneira como ela faz traduções e procura absorver épocas e livros do passado” (2001, p. 110), o Metá Metá orienta-nos na direção de que, como canta Gilberto Gil:
quando, hoje, alguns preferem condenar / o sincretismo e a miscigenação / parece que o fazem por ignorar / os modos caprichosos da paixão // paixão, que habita o coração da natureza-mãe / e que desloca a história em suas mutações / que explica o fato da Branca de Neve amar / não a um, mas a todos os sete anões.
Voltamos à discussão de Nancy sobre o ser e estar à escuta. Ou melhor, como escrever sobre o canto de uma artista que é muito mais escuta e menos escrita? Eis a encruzilhada posta na voz de Juçara Marçal.
O desafio de um trabalho sobre os sentidos e sobre as qualidades sensíveis é necessariamente o de um empirismo pelo qual se tenta uma conversão da experiência em condição a priori de possibilidade… da própria experiência, correndo embora o risco de um relativismo cultural e individual, se todos os ‘sentidos’ e todas as ‘artes’ não têm sempre e por todo o lado as mesmas distribuições nem as mesmas qualidades,
responderia Nancy (2014, p. 25-26).
6. Cobre o amor na mortalha. O horror fisiológico de um filho abortado tem muito em comum com o risco de viver. Seja a vida urbana, ou a do interior de nossa sociedade feia e desencantada. Partimos dessa afirmação radical para pensar o plano interditado, a esperança morta, a violência de estar vivo e ser obrigados a se defender sorrindo de nossas frustradas revoluções individuais e coletivas presentes [em imanência] no disco Encarnado (2014), de Juçara Marçal.
Dos primeiros versos – “Não diga que estamos morrendo / hoje não / pois tenho essa chaga comendo a razão” – até os derradeiros – “E o que era belo / agora espanta / e nome dele hoje é João Carranca”, a performance vocal de Juçara Marçal confirma que Encarnado é um disco fundador, que rompe com o conforto dominical, que diz ao ouvinte que este não tem mais o direito de ser ingênuo num mundo violado e violento. A isso, uma cama sonora composta de rock sujo, ruídos, zumbidos de um mundo interno dilacerado conjuga conteúdo de verdade. Não é à toa que “Ciranda do aborto”, de Kiko Dinucci, aparece plugada sonoramente à anterior “Odoya”, de Juçara Marçal. A tópica da maternidade conecta as duas canções. Se nesta o sujeito da canção pede a bença à “mãe cujos filhos são peixes”, naquela temos a mãe cobrindo o amor na mortalha. O sujeito cancional passa de filho à mãe. “A ferida se abriu / Nunca mais estancou / Pra você se espalhar / Laceado”, canta o sujeito cancional criado por Juçara – cuja voz dá visibilidade à pulsão de morte – ninando o agouro. A plasticidade destrutiva está em jogo aqui. Após “Ciranda do aborto” temos “Canção pra ninar Oxum”, de Douglas Germano. Afinal, depois da tragédia narrada, só resta ao sujeito cancional pedir: “Chora não, Oxum / De que chorar? / Sonha viu, Oxum / Sem lágrima”. Este percurso – de filha à mãe, de mãe à cantora da mãe – é singularmente percebido nas gestualidades vocais – sangue, água e sal – encarnadas e deslocadas por Juçara. Cada sujeito-personagem tem alma própria, almas vindas de uma mesma voz urdida na experiência de quem tem uma carreira de mais de vinte anos, desde o grupo Vésper até o Metá Metá, passando pelo grupo A BARCA. Em todos, desenvolvendo trabalhos de pesquisa e experimentação no campo vocal, investigando formas de interditar a violência existencial. O quinteto Vésper Vocal – Ilka Cintra, Nenê Cintra, Mazé Cintra, Juçara Marçal e Mônica Thiele – desde 1992 se dedica à interpretação da música brasileira – Chiquinha Gonzaga, Adoniran Barbosa, Itamar Assumpção, Luiz Tatit, Rita Lee – no formato a capela. Os arranjos feitos somente para vozes é espaço profícuo de experimentação da voz humana. Já o grupo A BARCA desde 1998 pesquisa e documenta a cultura sonora e vocal do Brasil, tendo Mário de Andrade, o autor de “O turista aprendiz” como guia de viagem. Aliás, com o projeto intitulado Turista Aprendiz o grupo registrou cerca de 40 comunidades e/ou artistas da tradição popular, em quilombos, aldeias indígenas, periferias de grandes capitais, pequenas cidades ribeirinhas, litorâneas e sertanejas. Professora de canto e de língua portuguesa, formada em Jornalismo e em Letras, com dissertação de mestrado defendida em 2000 sobre o autor de Baú de ossos – com o título Morte e Memória. Elementos para uma análise do ponto de vista narrativo em Pedro Nava – vemos, portanto, que a voz de Juçara se alimenta de raízes profundas e áreas. Sem esquecer sua participação como integrante na percussão do Ilu Oba de Min, desde 2004. Por tudo isso, a performance vocal de Juçara restitui conscientemente certa fealdade arcaica. Recriam-se as máscaras mítico-canibais que foram despotencializadas no despertar do sujeito romântico e na hegemonia da escrita (do logos científico e filosófico desvocalizado). O sujeito em Juçara Marçal não tem medo de cantar aquilo que Adorno (2012) chamou de “excedente grosseiro da materialidade”, ao defender que o belo vem do feio. No feio encarnado no belo, Juçara denuncia o mundo. Essa pseuda contradição é posta sem filtros na canção “Ciranda do aborto”. O belo guarda e expõe o feio. Cabe ao ouvinte desembaraçar a memória historiográfica individual e coletiva para fruir e entender a cantada e girar na ciranda. Poderíamos ouvir “Ciranda do aborto” como uma “Canção desnaturada n.º 2”. Aquilo que na canção de Chico Buarque aparece como recusa – “Tornar azeite o leite do peito que mirraste / no chão que engatinhaste, salpicar mil cacos de vidro” –, na canção de Dinucci cantada por Juçara aparece como afirmação: “Vem despedaçado / vem, meu bem querer / vem aqui pra fora / vem me conhecer”. Nas duas canções identificamos a renúncia ao conhecimento racional e um elogio ao canto do sensível. A ênfase na objetividade das emoções psicológicas do instante abortivo confere a “Ciranda do aborto” outra zona sociologicamente crítica: o compadecimento do ouvinte. Não mais a mãe tirana, e sim a mãe saudosa do filho que ainda não veio. “Ciranda do aborto” gera um sentimento não excitado. E vem daí a sua beleza inquietante: espantamo-nos diante daquilo que até então intuíamos como sendo terrível. “Eu tiro da dor um benefício: sem parar ela me chama a atenção. (…) A dor me assedia e eu devo pensar para me distrair. É o inverso de Descartes. Eu existo, logo penso. Sem a dor eu não existiria”, escreve Jean Cocteau, em A dificuldade de ser (2015, p. 100-101) A aparição do abortado que conhece a não-mãe – a cantora cuja voz não soa, como no livro O natimorto, de Lourenço Mutarelli – promove uma ciranda de sensações (todas) torturantes. “Assim / saudades sim / simples / como um brinco tupiniquim / um coco de roda / cirandas voltas de tu em mim”, como aparece no poema “Saudades”, de Amador Ribeiro Neto. No caso do sujeito cancional criado por Juçara, saudades de um não-filho: “O agouro da morte / a se revelar / a vida sem endereço / e sem lugar pra ficar”. Essa desterritorialidade da dor, do luto, do trauma é marca dos sujeitos cancionais criados por Juçara Marçal – autora vocal consciente de que não há obra de arte que não mutile o vivo; a arte crítica é o reflexo da possibilidade do existente violentado epistemologicamente; a obra de arte recorta o vivo e encontra o inumano para mostrar o humano perdido: “sua boca, seu dente / e o encarnado / que corta e desmente / meu samba armado”.
7. Colho os prantos sem deixar nenhum. Juntemos aqui uma imagem comentada ao de leve: gravura de Kiko Dinucci, Osun 28 cm x 35.5 cm. É dado a ver uma sereia mirando-se, ou usando o espelho para ver o ouvinte? Essa visão ambígua – aliás, o rabo de peixe completa o corpo humano ou a cabeça de peixe? – desdobra a metáfora poética. O ouvinte ressoa na boca/espelho da sereia. E não é igualmente da ressonância do seu instrumento que a sereia – felina sonsa que tem asa – está à escuta? Cantora e ouvinte abrem-se um ao outro no espelho – esse paradigma da medialidade, do encontrarmo-nos sendo uma pura imagem: algo que não vive, mas é perfeitamente cognoscível, sensível. Nessa gravura de Dinucci, o berço dourado é a habitação: colo e útero – a voz de Juçara Marçal. Chuva que só troveja, mas não cai.
8. Respondeu-me como assombração. Se ouvir é compreender, escutar é sensibilizar-se num sentido presente para além do som. “Estar à escuta é sempre estar à beira do sentido, ou num sentido de borda e de extremidade, como se o som não fosse precisamente nada de outro que não este bordo, esta franja ou esta margem”, escreve Nancy (2014, p. 19). Por isso falamos do estado de reciprocidade sonora necessário ao surgimento do sujeito cancional. É preciso que haja um reenvio da mensagem ouvida, pois é nesse retorno – como um tambor que ressoa – que o sujeito cancional se apresenta em imagem. O sujeito cancional é sentido ressoante, é sentir-se-sentir do ouvinte no mundo. Nancy (2014, p. 22-23) escreve que
um sujeito sente-se: é a propriedade e a sua definição. Quer dizer que ele se ouve, se vê, se toca, se saboreia, etc., e que se pensa ou se representa, se aproxima e se afasta de si, e sempre assim se sente sentir um ‘si’ que se escapa ou que se entrincheira, tanto quanto retine algures como um si, num mundo e noutrem.
Ouvir Juçara Marçal é estar-se à espreita desses sujeitos imaginários mais empíricos e menos teóricos. Sujeitos que nos convidam à participação, à acusma, à “escuta fabuladora”, como tem pensado o pesquisador Fred Coelho. A presença de si imposta nos sujeitos cantados por Juçara é convite ao enfretamento do risco do elemento vivencial direto. Não se trata de um ente-presente, ou de um em vista de, mas de um ente-imaginado-presente: ressoante. Em presença da voz de Juçara o ouvinte se conecta ao tempo sonoro, que é diferente do tempo presente datado. O Tempo se ergue como Orixá: ramifica, contamina, espraia: “não enxergo o final/ interrompo o tempo aqui / em você”. Escutar é entrar nesta espacialidade onde penetro e sou penetrado, posto que escuto ao mesmo tempo que o evento sonoro ocorre. Não há tempo a perder. Esse som antro-entre, essa arqui-sonoridade convoca à vida sensível. Para Coccia: “a vida sensível é a capacidade de fazer as imagens viverem fora de si e, de algum modo, liberar-se delas, de perdê-las sem receio. Na medida em que somos capazes de experiência, já vivemos sempre em outro lugar em relação a nosso corpo orgânico. (…). A experiência confere um corpo puramente mundano ao vivente. Ela é aquilo que dá concretude ao vivente, como também o que o liga ao mundo, a esse mundo, tal qual ele é aqui e agora, mas também a um mundo tal qual ele poderia ser em outro lugar e em outro tempo” (2010, p. 69-70). Por exemplo, avessa à docilidade dos corpos, Iemanjá é som corporificado, carnação de timbres que experimenta novas tecnologias da carne – do corpo não simbolizado.
9. Grita e berra como louca. No aforismo 216 de A gaia ciência, Nietzsche anota sobre o Perigo na voz: – “com uma voz muito alta na garganta, quase não temos condições de pensar coisas sutis” (Nietzsche, 2001, p. 175). Há uma vitalidade intrínseca que diferencia a palavra falada da palavra cantada. E essa vitalidade está manifesta na voz: é representada pelo sopro de ar que atravessa o corpo e se encorpa na garganta. Obviamente, os níveis de aproximação entre um ponto e outro são tênues e frágeis. Ou seja, pode haver, e muitas vezes há, conteúdo no canto, assim como pode haver expressão na leitura. É fincado na paixão que o leitor e/ou o cantor investem mais ou menos vitalidade à palavra que seus pulmões lançam no ar depois de tocar (e ser tocada por) sua garganta, úvula e impregnar-se de saliva, na boca. A voz imprime unicidade à pessoa. Há aqui uma constatação da voz e sua autoafirmação – aquilo que nos resgata do abandono profundo. Por trás da voz (ficcional) do sujeito da canção há a voz de uma pessoa: uma garganta. “Uma voz significa isto: existe uma pessoa viva, garganta, tórax, sentimentos, que pressiona no ar essa voz diferente de todas as outras vozes. Uma voz que põe em jogo a úvula, a saliva” (Calvino, 1995 apud Cavarero, 2011, p. 18). E assim, “a função despersonalizante do pronome eu (…) é anulada pela unicidade inconfundível da voz. O som vence a generalidade do pronome” (Cavarero, 2011 p. 205). Posto que “a voz pertence ao vivente, comunica a presença de um existente em carne e osso, assinala uma garganta, um corpo particular” (p. 207). “É com nosso sopro que nos dirigimos a tudo, com a voz que o frágil fole da garganta emite, com o hálito que carrega nossas enzimas, é com o pequeno vento de nossa língua que chamamos o vento verdadeiro”, escreve o narrador de Ó (Ramos, 2008, p. 20). EXERCÍCIO: Escutar o disco Anganga (2015) de Juçara Marçal e Cadu Tenório até perceber que “a escuta está à escuta de outra coisa que não do sentido no seu sentido significante” (Nancy, 2014, p. 56).
10. Como uma boca com fome. Ser e estar à escuta é abrir-se em direção à potência-ó do humano trans-escrito (coincidindo bios e ethos), tendo em vista que “a filosofia frequentemente esqueceu que todo homem vive no meio da experiência sensível e que pode sobreviver apenas graças às sensações” (Coccia, 2010, p. 9) e que “o primeiro passo para liberar a voz de seu gendarme noético, o primeiro gesto contra os cânones desvocalizantes da filosofia, passa por uma tematização privilegiada do falar” (Cavarero, 2011, p. 203). “A partilha do sensível faz ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce”, diz Rancière (2014, p. 16). “O sensível (o ser daquilo que chamamos aqui de imagem em sentido amplo) é aquilo pelo qual vivemos indiferentemente à nossa diferença específica de animais racionais”, diz Coccia (2010, p.10). O sujeito cancional é essa imagem plasmada por trás dos olhos de quem ouve. A voz que canta passa a carregar a mitologia do ouvinte, que, por sua vez, se reconhece plasmado no modo sirênico (das Sereias) de dizer do cancionista. É graças a este que o ouvinte pode ouvir-se, perceber-se e interagir com outras imagens de si. O cancionista é o meio que fabrica a relação de continuidade entre alma e corpo, espírito e realidade, ficção e real. Portanto, o cancionista é eficaz em sua função quando engendra o sujeito cancional, a entidade imagética que nos possibilita vivenciar nas coisas e nos outros. O cancionista transforma as coisas em espírito ao mesmo tempo em que torna as coisas mundanas, isto é, mais próximas da percepção e da apropriação criativa do ouvinte. Mundana, a existência se expande. “O sensível, o contato com o sensível, faz o homem viver em um corpo ulterior, no qual não somos mais separáveis de tudo aquilo que vivemos, nem do fato de ver ou sentir” (Coccia, 2010, p. 68).
11. Queimando em silêncio. No aforismo 196, de A gaia ciência, Nietzsche escreve sobre os Limites de nossa escuta: – “Ouvimos apenas as questões para as quais somos capazes de encontrar resposta” (Nietzsche, 2001, p. 171). E é Octavio Paz quem escreve sobre o caráter de revelação da poesia. Paz, para quem “a sociedade revolucionária é inseparável da sociedade baseada na palavra poética” (2012, p. 242), observa que “a missão do poeta é restabelecer a palavra original, distorcida pelos sacerdotes e pelos filósofos” (p. 243). Se concordamos com o autor de O arco e a lira, e acreditamos que “a experiência poética, como a religiosa, é um salto-mortal: uma mudança de natureza que é também uma volta à nossa natureza original” (p. 144), somos levamos a pensar que os sujeitos cancionais criados por Juçara Marçal revelam, por serem vozes de uma religiosidade que não casou com o capital e por não precisarem de autoridade divina, esse isso que somos: seres à margem da linguagem. Duvidar das construções discursivas e afirmar uma falta que esteticamente se revelação e se preenche na presença imagética do sujeito cancional mitificado é o projeto da felina sonsa que tem asa assinada por Juçara Marçal. Aquilo que na palavra religiosa é interpretação, na palavra poética vocoperformativizada por Juçara é possibilidade. “Vida e morte num único instante de incandescência”, na bela expressão de Octavio Paz (2012, p. 163). Aquilo que Catherine Malabou (2014) chama de “plasticidade destrutiva” é o motor da vida sensível (ser das imagens) erguida na voz danada de Juçara Marçal, em seus mais diversos e variados trabalhos: seja em projetos individuais, seja em coletivos: “um personagem irreconhecível, cujo presente não provém de nenhum passado, cujo futuro não tem porvir, uma improvisação existencial absoluta” (Malabou, 2014, p. 11). Esse desengate com o antes só é possível porque Juçara Marçal é uma pesquisadora de sonoridades. Para atentar contra o passado é preciso conhecê-lo, re-visitá-lo. “A destruição tem seus cinzéis de escultor”, afirma Malabou (p. 13).
12. Apenas uma navalha. No atual momento de descentralização das produções culturais, paralelo às reconstruções de fronteiras, os complexos mecanismos de legitimação do artístico não passam mais pelos caducos sistemas. E os sistemas se ressentem disso. Dar conta da criação em torno da canção brasileira é tarefa sisífica. É bem mais fácil negar tudo e dizer que a música chegou ao fim. Assim faz a TV, por exemplo, com suas trilhas sonoras repletas de “roupas novas” para “canções velhas”, canções já devidamente testadas e aprovadas pelo consumidor. O rádio segue o mesmo ritmo – é somente requentar e usar. A questão é que não há mais UMA ideologia a ser musicada. Se é que já existiu. As ideias de horizontalidade e polifonia (finalmente) caracterizam nossa nacionalidade. E a canção popular mediatizada continua a ser a linha de frente do debate cultural. Porém, encontrando-se com parceiras de outras linguagens, agregadas a ela pelo menos desde a Tropicália, passando pelo Manguebeat, pelo Funk carioca e Rap paulista, além do Tecnobrega paraense (para ficar no exemplo de alguns dos grandes movimentos), a música não é mais (apenas) grito de alerta: “o grito nascendo, a nascença do grito – apelo ou queixa, canto, fricção de si, e até ao último murmúrio” (Nancy, 2014, p. 48). A música é coletivizada, é colaborativa. Basta ir a qualquer atividade “de rua” para ver e ouvir: a música está lá – quente, ritmando, forjando-se. “Ouça como canta louve como conta prove como dança”, sugeriu Haroldo de Campos em suas Galáxias. A música aceitou o desafio. E a canção também. Querer uma música (ou uma canção) que represente o nacional no atual estado das subjetividades é uma atitude ingênua e/ou fascista. “O pressuposto substancialista é o companheiro de estrada da metamorfose ocidental. A forma se transforma, a substância permanece” (Malabou, 2014, p. 15). Então: como distinguir a margem do centro hoje? Margem é quem vende pouco? É quem não aparece na TV? Centro é quem vende muito? Quem é privilegiado pelo mercado e pela crítica? Quem lota estádios? Portanto, mantemos a perspectiva do mercado para pensar a arte e os afetos? É por aí que passa a construção do espaço social hoje. Parece que a música entendeu muito bem que uma reconciliação das populações como uma “identidade nacional” é inviável. “Brasil, braseiro de rosas”, escreveu Sousândrade. Passamos de povo à multidão. E a multidão é a aglomeração (barulhenta) de individualidades que resistem ao mercado. A voz de Juçara Marçal é parte significativa daquilo que Flora Sussekind (2013) chamou de “coros dissonantes”:
Antes mesmo da eclosão das jornadas de junho, e das manifestações ainda em curso no país, um conjunto significativo de textos parece ter posto em primeiro plano uma série de experiências corais, marcadas por operações de escuta, e pela constituição de uma espécie de câmara de ecos na qual ressoa o rumor (à primeira vista inclassificável, simultâneo) de uma multiplicidade de vozes, elementos não verbais, e de uma sobreposição de registros e de modos expressivos diversos. Coralidades nas quais se observa, igualmente, um tensionamento propositado de gêneros, repertório e categorias basilares à inclusão textual em terreno reconhecidamente literário [e sonoro], fazendo dessas encruzilhadas meio desfocadas de falas e ruídos uma forma de interrogação simultânea tanto da hora histórica, quanto do campo mesmo da literatura. E que não à toa conectam este campo a outras áreas da produção cultural.
Nega-se a ideia de massa e do apagamento das diferentes em benefício de uma insustentável ideia de univocidade. A rua é espaço do cartaz pessoal e intransferível e do choque multicolorido das diferenças. Ao preservar as especificidades micro-coletivas internas à multidão, a atual música brasileira dá vigor à diversidade macro-coletiva do povo novo. Bem como à nossa imagem de país, de sociedade e de afetos. Grande parte dos cancionistas contemporâneos é ouvinte-leitora dos mestres da questão de nacionalidade. Cabe lembrar que o próprio Mário de Andrade preferia trabalhar o termo “entidade”, no lugar de “identidade”, para pensar o país das vozes polimorfas inclassificáveis. Ouça quem tiver ouvidos para ouvir. Estão lá, na música atual: as culturas marginais (folclóricas?) e a pesquisa instrumental. Coralidades presentes na fratria – de manos, manas, minas, monas – do rap nacional. Reconheço semelhante gesto em alguns rappers brasileiros, a saber, entre outros: Sabotage, Mano Brown, Criolo, Emicida, Rico Dalasam,… Karol Conká. Mas está tudo tão devidamente e esteticamente (antropofagicamente?) trabalhado e disseminado que dá mesmo muito trabalho perceber, exige esforço desajuizado. E a crítica que se pretende ouvinte limita-se ao hegemônico. Dos jogos sonoros aos elementos da sociedade do espetáculo, passando por referências religiosas e pelas formas coreográficas da vida comum, nos exemplos a seguir, podemos identificar os alicerces contraditórios, e, por isso, brasileiros, da cultura – aforismática, compilada, revisitada, coral – trabalhada por Criolo no disco Convoque seu Buda: “Nin-Jitsu, Oxalá, Capoeira, Jiu-Jitsu / Shiva, Ganesh, Zé Pilintra e Equilíbrio” (“Convoque seu Buda”); “Rap é forte, pode crer, Oui monsieur / Perrenoud, Piaget, Sabotá, enchanted” (“Esquiva da esgrima”) “Temos de galão Dom Perignon / Veuve Clicquot pra lavar suas mãos / E pra seu cachorro de estimação / Garantimos um potinho com pouco de Chandon” (“Cartão de visita”); “Alô, Foucault, cê quer saber o que é loucura? / É ver Hobsbawm na mão dos boy, Maquiavel nessa leitura” (“Duas de cinco”); “Fetiche de playboy é colar com Barrabás” (“Fio de prumo”). “Dobra a força dos braços que eu vou só”, canta Juçara Marçal, fazendo a síntese.
13. A ferida secou. Como ser e estar no mundo da gentrificação do ouvido, sendo um intelectual orecular? E fazer da obra um arquivativista de mundivivências? Reterritorializando o tempo? Manifestando-se contra o fascismo da linguagem sonora e diluindo fronteiras? Produzindo presença e reinventando as noções de autoria? Rompendo com a tradição tirânica do mercado? Inventando uma sonoridade exigente? “O mais simples é se voltar para a lógica dos povos primitivos, das crianças e dos loucos, essa lógica que supera as oposições, a lógica da semelhença, da magia simpatética”, escreve Öyvind Fahlström (2016, p. 19-20), em seu Manifesto para a poesia concreta, de 1953. A mitologia vocalizada na voz de Juçara Marçal é um ato político: “mira no meio da cara / dá com pé, com pau, com vara / bate até virar a cara da nação”. Nessa revocalização do mito, cria-se um mundo sonoro constituidor e contestador da realidade: “e devolve o hematoma”. Se nega a interpretação científica e o consolo dominical é porque foca a compreensão auricular e o risco: “desvio teu riso e me antecipo”. Assim como o quadro (a pintura) não esquadra mais o mundo, a canção (o cantar) não canta mais o mundo. A canção quer ser o mundo, não representante, nem representado. Urge liberar a voz das fáceis frequências do conhecimento. “Inspiração poética como desvelamento do Ser, então, é um potencial existencialmente agressivo, ao qual expomos a nós mesmos e as nossas atenções, porque apreciamos a intensidade que pode produzir – com a atenção para o perigo, e com o entendimento de ser essa a precondição para sua intensidade” (Gumbrecht, 2016, p. 102). Por isso é preciso insistir na unidade (de contrários) forma e conteúdo. A forma (a plasticidade) é o antibárbaro da arte, sua transfiguração, livrando-se da utilidade – “sai de pau no bate boca / rasga a roupa / grita e berra como louca”. A obra evoca a liberdade: “quero morrer num dia breve / quero morrer num dia azul / quero morrer na América do Sul”. Malabou observa que “a única saída possível para a impossibilidade de fugir parece ser a constituição de uma forma de fuga. (…) A plasticidade destrutiva torna possível a aparição ou a formação da alteridade lá o outro fala absolutamente. A plasticidade é a forma da alteridade lá onde não há nenhuma transcendência, de fuga ou de evasão” (2014, p. 17). Por sua vez, Nancy escreve que “o começo do sentido, a sua possibilidade e a sua enviadela, o seu endereçamento, não tem talvez lugar em nenhum outro lugar senão num ataque sonoro” (2014, p. 48). A forma de cantar, as escolhas da cancionista, os malabarismos vocálicos, o controle da melodia e das alturas timbrísticas, a concentração de tensividade, a reiteração dos temas, a narratividade quebrada, a gesticulação das maneiras de dizer sempre declinam para evitar o idêntico, o reconhecível vulgar, a identidade: “tenho essa chaga comendo a razão”. A arte é o mundo uma vez mais tanto semelhante, quanto diferente. E o canto de Juçara exige saber. Quem não sabe o que é dissonância não escuta sua música, por exemplo. Sua arte dispensa a ingenuidade: “de quase isso / de quase nada / é séria é bruta / dissimulada / de nada serve / sem ombro amigo / com febre e confusa / e um precipício”. A canção não quer ser canção, quer a superação dos gêneros, o limite da experiência e a trans-identificação de um mundo livre de ditaduras e injustiças: “Sangue e suor pelo vão / sentir mais a dor, vingar / ver respingar o pavor / quem bateu, levar”. Entre a subjetividade universal e a objetividade particular, toda obra é uma crítica, uma compreensão. E é isso que Juçara Marçal nos oferece: seu entendimento de mundo – “eu que falo / aquela é minha voz / que fala sobre nós / a voz ali é”.
Bônus. Essa chaga comendo a razão. – O que é canção para você? De onde vem a canção? Para que cantar? Juçara Marçal: Juro que tentei, mas não tenho respostas pras suas perguntas. Pra todas elas só me vem o verbo VIVER. É pouco e é tudo o que tenho pra dizer sobre isso aqui. – Cite 3 artistas que são referências para o seu trabalho. Por que estes? A das referências é a mais difícil de todas. São muitas. Música brasileira, música africana, música norte-americana, música latina… E por aí vai. Referência é algo que nos alimenta artisticamente e tudo que me chega de todos os lados serve de referência pra mim. Citar alguém reduziria o caminho, reduziria a própria referência, portanto, é tudo isso aí e mais um pouco.
* Leonardo Davino de Oliveira é professor adjunto de Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É doutor em Literatura Comparada, especialista e mestre em Literatura Brasileira. É autor do blog Lendo canção (lendocancao.blogspot.com) e dos livros Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso (Ibis Libris, 2012); Palavra cantada: estudos e Poesia contemporânea: crítica e transdisciplinaridade.
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