O autor
Em seu Ecce Homo, Nietzsche afirma: “parece-me indispensável dizer quem sou” (2008, p. 15). Não que a obra explique a vida ou o contrário, mas parece impossível ler um livro sem perceber nele os traços, as letras do que foi vivido por seu autor, a articulação de tudo, pedaços daqui e dali na composição da escrita, como se vê no trecho de Graciliano Ramos:
O açude apojado, a roça verde, amarela e vermelha, os caminhos estreitos mudados em riachos ficaram-me na alma. (…) a escuridão se ia dissipando, vagarosa. (…) reuni pedaços de pessoas e de coisas, pedaços de mim mesmo que boiavam no passado confuso, articulei tudo. (1945, p. 20).
Luciano Bedin da Costa parte de seu doutorado em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul — onde defendeu a tese Biografema como estratégia biográfica: escrever uma vida com Nietzsche, Deleuze, Barthes e Henry Miller — para a docência na Faculdade de Educação e no Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Escreve e publica com a Educação, a Literatura, a Filosofia e a Psicologia. Parece articular tudo, com a riqueza da mistura que não dá a ver os limites de áreas ou de leituras específicas de cada matéria e produz um conhecimento — por tudo isso — inovador e capaz de abrir horizontes que marcam sua diferença e originalidade. Experimenta perspectivas, nas combinações do escritor-professor, que impulsionam a curiosidade e instigam a sensibilidade de seus estudantes-leitores.
Ainda escrever
O livro Ainda escrever. 58 combates para uma política do Texto nos localiza no inferno de hoje — de dores coletivas e singulares; com seus grandes escândalos políticos, com direitos subtraídos e violências de todo tipo — em que nos percebemos enfraquecidos, cansados e anêmicos. “Zanzamos pelo espaço restrito de nossos sofás e diante das telas de alta definição” (Costa, 2017, p.13), e buscamos uma voz para poder dizer do que afeta nossos corpos e nossa lida.
Semelhante a este inferno, encontro a peste no primeiro capítulo do Teatro e seu duplo (Artaud, 1964): Artaud conta seus efeitos em diferentes lugares e momentos históricos, destacando o impacto do flagelo nos organismos. O doente é tomado por uma fadiga e sua cabeça se torna gigantesca pelo peso, seu estômago se embrulha, seu pulso ora diminui, ora parece galopar, olhos vermelhos, a língua sufoca. “Os últimos vivos se exasperam” (p. 20): o herói queima as habitações da cidade pela qual havia entregado sua vida, o filho virtuoso mata o próprio pai, o libertino torna-se puro. O estado pestífero da cidade provoca ações inusitadas de seus habitantes, sem que ninguém permaneça imune. “Como em um pesadelo kafkiano parecemos ter perdido o fio de nossas garras” (Costa, 2017, p. 12). Tragicamente, tentamos segurar o que flui entre os dedos. O livro de Luciano Bedin da Costa pergunta, nesse contexto, o porquê de ainda escrevermos. E propõe — como um sopro, réstia de fôlego e fuga à peste — uma política. Propõe que tomemos em mãos o que temos (ou podemos ter) o Texto (com letra maiúscula) e que o façamos funcionar politicamente. Texto que parece abrir possibilidade à ocupação de espaços ou mesmo de brechas por vir; uma tomada de forças nobres que se apresentem por resistência.
Por política do Texto, o autor propõe o exercício de resistir a formas constituídas por relações de forças, inaugurando pensamentos que nos tornem capazes de escrever novas leis em novas tábuas (Nietzsche, 2011): criar dispositivos próprios de acolhimento e recusa. Nesse sentido, o Texto aponta para o acontecimento que envolve o encontro com o corpo do outro (leitor e escritor) e com os regimes de liberdade e sujeição envolvidos nesses encontros. Como num duplo gesto, a ideia de uma política do Texto e o imperativo ético de se colocar em sua defesa apresenta 58 combates que se circunscrevem em 4 trincheiras vazadas e penetrantes: no sujeito, na linguagem, nas instituições e no tempo.
Dos 58 indícios sobre o corpo aos 58 combates para uma política do Texto
Com inspiração em Jean-Luc Nancy, em seu 58 indícios sobre o corpo (2011), tem-se que o corpo é material e denso, também imaterial, um contorno, uma ideia. O corpo aprisiona — os dentes são grades — e se estende por toda parte; compõe-se de pedaços, peças, anéis e outros corpos. Estes são diferenças, e um corpo é uma diferença que nunca termina de diferir. Sento em cima do meu corpo e quase não suporto o peso de tê-lo sentado sobre mim. Ao mesmo tempo, o vinho tem corpo e não se contenta em deslizar até o estômago: espalha-se e eletriza, ao que se pode dizer que um corpo tem vinho. Corpo tocado, tocante, vivo e morto. Corpo que carrega em si a escrita e traça no texto, o vivido.
A produção do texto envolve a dor e o prazer do autor, que escreve com sangue entrelaçando, necessariamente, vida e obra. É como “um duplo ou um ventríloquo” (Corazza, 2008, p. 20): é escrito com o texto do outro e a mesma vida e é sempre vida dobrada em obra. Esse movimento que imprime a vida no texto simultaneamente traça no viver a tinta do que se escreve, o que nos permite dizer que tanto o Texto quanto a vida seguem em movimento de tornar-se e se envolvem num contínuo vir a ser.
Nesse sentido, uma política do Texto abre mão da ocupação de um lugar fixo — precisamente no texto ou no corpo — tornando-os indissociáveis na composição do duplo corpo-texto e furtando-se “ao exercício de posse ou propriedade” (Costa, 2017, p. 19). Portanto, os indícios sobre o corpo se articulam aos indícios sobre o texto, ao que se unem em seus combates. Para Derrida (2013), o texto se compõe em camadas enxertadas sob as quais não se fixam elementos. Logo, não possui essência, não está apegado ao que aparentemente lhe é próprio. Não possui uma verdade a ser desvelada mas esconde segredos que escapam tanto ao autor quanto ao leitor.
Destarte, os combates do Texto parecem estar na impossibilidade de desvelá-lo, no fato de que este não se mostra: deixa lacunas, espaços e abre um jogo de múltiplas significações, o que Costa chama de “campo de improváveis” (2017, p. 21), no qual cada elemento textual se deixa escavar pelo outro.
Das trincheiras
1) Sujeito
Escrever envolve “o outro”, que assume a posição de destinatário, mesmo que não o saiba: “é mister que eu o procure” (Barthes, 1987, p. 8). Assim, o Texto entrelaça o diferente de mim, nos rumores das palavras que eu escrevo. Dessa maneira, o entrelaçamento se faz com cordas frouxas, puídas, roídas, uma vez que o texto é movente como uma travessia, o que torna impossível dizer: ei-lo ali.
O Texto escapa ao escritor e pertence ao outro/aos outros, ao tempo, às trincheiras, e escapa desses também. Dedica-se ao leitor desocupado e não ao decifrador. Como uma rede, pesca os ouvidos atentos, aproximando olhos que leem do que recebem das mãos que escrevem em gestos compartilhados.
Por um lado, o Texto tem um envio para o outro, como no movimento nietzschiano de escolher seus leitores: destina seus escritos e toma aqueles que têm ouvidos como seus destinatários. Ainda assim ele não sabe de antemão. Quem envia um texto não sabe qual será seu percurso, não tem certeza de que ele chegará a seu destinatário e não sabe se suas impressões e pretensões seguirão sem desvios.
Vivemos desse modo numa “sociedade de emissores”, como nos diz Barthes (2003, p. 94) e o destinatário nos inspira, quase nos “entrega as palavras” (Derrida, 2007, p. 19). E ao remetente (autor) envia rastros de suas sensações, de seus sentimentos e de suas próprias vivências.
2) Instituições
Acerca da Declaração de Independência dos Estados Unidos, Derrida (2009) afirma que atos declarativos fundam instituições e esses atos declarativos levam um nome supostamente próprio, com o qual se assina um documento, legitimando o texto. Instituições, por princípio, seriam despersonalizadas, coletivas e de todos que a ela pertencem. De fato, alguém, assumindo por todos, pode muito bem levar-lhes os anseios, os pedidos, as marcas do ajuntamento, caracterizando o coletivo na instituição. Mas alguém assina, num gesto performático, em nome de um personagem criado, levando seus traços. Está fundada a instituição.
Ainda assim, o autor/personagem/assinante perde o controle do Texto porque nunca o teve: persiste, luta com ele, briga e tenta acolhê-lo para que ele diga o que se propôs a dizer. No entanto, depois de inaugurada, a instituição pode ganhar caráter restritivo, dizendo muito pouco de cada um que a compõe. “Escreve-se em meio a farpas de ordens institucionais” (Costa, 2017, p. 31). As farpas se apresentam justamente quando as instituições se importam em silenciar instintos singulares e coletivamente acertados, em nome de categoricamente estabelecer imperativos. De pouco valor e sentido para cada componente da instituição, os imperativos se efetivam de forma a mascarar enormes vazios[1] nos quais se apoiam os automatismos e os padrões.
Na escola nota-se condutas generalistas em atividades que perpetuam o mesmo script. Hierarquicamente, mantemos, em nossas práticas, aulas dadas, universalizadas, prescritas. Ao que podemos nos perguntar: produzimos nesses espaços uma política do Texto? Colocar-se na trincheira das instituições parece ganhar relevância na necessária retomada das condutas naturalizadas para revê-las em território novo, ainda que movediço.
3) Linguagem
Ao ocupar a trincheira da Linguagem, o autor nos chama a dar o braço à adrenalina que paira no negro da tinta, na folha em branco e no verde do quadro, e que recupera em nós o prazer de escrever. É como o caos de ideias conflitantes e desorganizadas que permite ao professor, estudante, escritor e pesquisador fazerem nascer o conhecimento novo, a experiência do pensamento e o inusitado. É essa linguagem que nos parece surrupiada pelos excessos cometidos pelas normas, pelos formatos que restringem o que é aceito e pela covardia que nos toma diante dos números a serem alcançados na produtividade acadêmica.
Assim, ao tomarmos a decisão pela escrita que resiste, caberá ao leitor realizar a “excursão pelos hieróglifos de recusa de que o Texto é feito” (Costa, 2017, p. 51). Hieróglifos que nos permitem voltar à pré-história da linguagem escrita, atribuindo sentidos às palavras conhecidas e desconhecidas, de acordo com a criatividade e a intensidade que o momento requer.
4) Tempo
O Texto se apresenta como a eternidade que não tem pressa em dar respostas imediatas ao que se vive hoje, mas extrapola seu tempo referindo-se a desígnios do que virá depois de amanhã. Ele oferece, portanto, a vertigem de olhar para o que aparece hoje com a sensação de estar à frente de seu tempo e com isso estabelece ao escritor e ao leitor a situação de inacabamento: das letras que deixam espaçamentos e temporalidades, do enfraquecimento de qualquer condição a priori e do desejo de escrever que se associa à leitura.
Assim, Costa aborda o combate do “eterno retorno do Texto” (Costa, 2017, p. 28): não que o Texto seja reproduzido ou imitado, mas em sua combinação de forças afirma a vida de seu autor e de seu leitor como vontade de potência (Nietzsche, 2006); não exerce dominação ou restrições, mas permite a pluralidade de sentidos a ele atribuídos, resultante da fragilidade dos elos com que se ligam e religam as forças que o compõem.
Diante da ampulheta, dos grãos de areia que correm afunilados, colocar-se na trincheira do tempo funciona como o “dizer que sim” (Colli, 2000, p. 80) ao combate, assumir e assinar o Texto, no seu tempo e para além dele.
Para ler escrevendo
Ainda escrever: 58 combates para uma política do Texto é desses livros que — como o próprio autor cita — “se lê levantando a cabeça”, pelo correr de ideias, conexões e vozes (Costa, 2017, p. 33). Comparece num momento histórico em que a Educação que é se distancia dos nossos ritmos e conquistas, com os quais já estávamos contando e que por pequenos que fossem, eram nossos — praticados na escola e na universidade, praticados nos nossos dizeres e pensamentos. Esse livro chega para abrir trincheiras, para nos fazer enxergá-las e ocupá-las por reconhecer que os combates são improrrogáveis. Nas minúcias da rotina de quem ensina e aprende sempre, o Texto se apresenta como potência, como afirmação e vez.
* Emília Carvalho Leitão Biato é doutora em Educação pela UFMT; professora adjunta do Departamento de Odontologia da UnB; publicou Suplementos de escrituras. De errâncias e destinos, na Revista Pólis e Psique e Processos de criação na atenção e na educação em saúde. Um exercício de “timpanização”, na Revista Physis, entre outros.
Referências
ARTAUD, Antonin. Le théâtre et son double. Paris: Éditions Gallimard, 1964 (Collection Folio/Essais).
BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1987.
BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
COLLI, Giorgio. Escritos sobre Nietzsche. Lisboa: Relógio d’água, 2000.
COSTA, Luciano Bedin da. Ainda escrever: 58 combates para uma política do Texto. São Paulo: Lumme Editor, 2017 (Móbile – Coleção de mini-ensaios).
CORAZZA, S.M. Os cantos de fouror. Porto Alegre: UFRGS Editora e Editora Sulina, 2008.
DERRIDA, Jacques. O cartão postal: de Sócrates a Freud e além. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2007.
DERRIDA, Jacques. Otobiografías. La enseñanza de Nietzsche y la política del nombre propio. Buenos Aires: Amorrortu, 2009.
DERRIDA, Jacques. Esporas. Tradução: Rafael Haddock-Lobo e Carla Rodrigues. Rio de Janeiro: Nau, 2013.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. — São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Crepúsculo dos ídolos. Trad. Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das letras, 2006.
NANCY, Jean-Luc. 58 indícios sobre o corpo. Tradução de Sérgio Alcides rev. ufmg, belo horizonte, v.19, n.1 e 2, p.42-57, jan./dez. 2012.
RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1945.
Nota
[1] Não os vazios a serem preenchidos pela criatividade e pela invenção.
Recebido em: 30 de março de 2018
Aprovado em: 10 de abril de 2018