Resumo: Este artigo[1] tem como intuito analisar como duas figuras paradigmáticas do rock no Brasil – Cazuza e Arnaldo Antunes – constroem suas identidades artísticas em consonância com certas categorias simbólicas do assim chamado “rock brasileiro”. Tendo como pano de fundo a discussão da canção popular em contexto brasileiro pós-moderno, pretendemos observar como, no caso do “rock brasileiro”, também a canção popular tende a articular e mediar as culturas letrada e oral em uma perspectiva crítica de assimilação e reflexão da arte e da cultura.
Palavras-chave: Antropologia; música; arte; Cazuza; Arnaldo Antunes.
Abstract: This study aims to analize how two paradigmatic rock-and-roll Brazilian characters – Cazuza and Arnaldo Antunes – have built their artistic identities based on some symbolic categories of the “Brazilian rock”. Relating this “brazilian rock”, we also intend to observe how the urban popular songs tend to articulate and mediate literary and oral cultures in a critical perspective of assimilation and reflection of art and culture.
Keywords: Anthropology, music; art; Cazuza; Arnaldo Antunes.
O rock and roll não é somente um estilo de música, como também uma forma ativa que solicita de seus ouvintes certas formas de ser, estar e enxergar o mundo. Catarse urbana a expulsar, irremediavelmente, toda previsibilidade cotidiana, o rock transmuta seus berros primitivos em uma língua própria compartilhada por alguma multidão eletrificada. Por ser um gênero musical urbano e um ritmo universal, em sua construção, o rock trabalha com o amálgama de ritmos, gêneros e meios. Nesse sentido, muito da miscelânea do rock and roll vem da miscigenação do blues, das músicas de trabalho (a kind of blue), do beebop, do hardbop, do cooljazz, do rockabilly até chegar a esta música urbana capaz de expandir e ampliar novos elementos numa forma nova de perspectivar o mundo. O folclore urbano do rock se comunica com as cidades e suas tecnologias modernas, impondo sua estranheza em qualquer lugar por onde ressoe; nos espaços por onde os homens dialogam com os deuses e constroem seus destinos.
Devido ao seu alcance mundial, gerado “quase sem origem” e conquistado através de uma gíria universal, o rock pode ser referido como uma música do planeta Terra. Nesse sentido, Augusto de Campos (1968, p. 142) realça a intercomunicabilidade universal do rock and roll como a representação de um movimento artístico internacional. Como exemplo de tal incorporação, Campos afirma que, no caso do rock, foram os Beatles os primeiros a realizar a fusão entre o erudito e o popular, sendo que, ao mesmo tempo em que estavam nos meios de massa, também se comunicavam com músicos de vanguarda (como John Cage e Stockhausen), através das orquestrações de Georges Martin, unindo produção e consumo, laboratório e auditório, numa espécie própria de produssumo. Corroborando com leitura tal, o rock, fenômeno cosmopolita e mundial, deveria ser incorporado de maneira crítica à cultura brasileira, de modo estratégico contra a estreiteza dos exclusivismos nacionais.
Em vista disso, possivelmente uma leitura mais potencializadora do rock seja a que consiga vislumbrar nesta música um campo de trocas simbólicas não cristalizáveis por representações monológicas. Partindo de tal perspectiva crítica, este artigo tem como objeto de estudo a análise de certas narrativas remetentes ao universo brasileiro do rock and roll no século XX. Tendo como pano de fundo a discussão da canção popular em contexto brasileiro moderno e pós-moderno, pretendemos analisar certas narrativas paradigmáticas do rock and roll no Brasil até os anos de 1980. Sendo uma particularidade brasileira o amálgama entre alta e baixa culturas, no caso do rock brasileiro, também a canção popular tende a articular e mediar culturas letrada e oral.
Com suas blue notes, o rock and roll surge do blues rural adaptado pelas guitarras das cidades, fruto da decadência da canção popular norte-americana dos anos de 1950. O termo “rock and roll” foi utilizado pela primeira vez no blues “My baby she rocks me with a steady roll”, cantada por Big Joe Turner em 1922. Todavia, somente nomeado como gênero em 1952 (pelo disc-jóquei Alan Freed, em um programa radiofônico de Cleveland), o rock and roll principalmente se popularizou a partir de Elvis Presley que, com sua dança dionisíaca, sua voz negra e sua aparência branca, reuniu em suas primeiras apresentações o rythm and blues e o country and western, consolidando midiaticamente o estilo musical. Em sua primeira aparição televisiva, os pés e quadris de Elvis chocaram tanto o puritanismo norte-americano que as câmeras só focalizaram a parte de cima de seu corpo durante apresentação no programa de auditório de Ed Sulivan, em Nova Iorque, no dia 9 de setembro de 1956.
Tendo sido a trilha sonora da contracultura, o rock and roll dialoga com um novo tipo de dicção universal. Como observa Eric Hobsbawn (1996, p. 15), uma distinção crucial entre o jazz e o rock and roll é que o rock jamais foi uma música de minorias. Pelo seu caráter potencialmente internacional, ao ser assimilado por cada contexto cultural específico, o universo simbólico do rock tem por predisposição o diálogo entre meios culturais diversos. Multiplicado pela oralidade do blues, o rock pode ser lido como uma poética apropriativa de identidades que se fixam e se desfazem:
Rather than a cycle of authentic and coopted music, rock and roll exists as a fractured unity within differences of authenticity and cooptation that are defined in the construction of affective alliances and networks of affiliation. These alliances are always multiple and contradictory. […]. the history of rock and roll is read as a cycle of cooptation and renaissance in which rock and roll constantly protests against its own cooptation (Grossberg, 1997, p. 486-493).
Tendo isso em vista, levando em conta as múltiplas variações do termo rock and roll apontadas por Lawrence Grossberg (1997), parece inverossímil discorrer sobre uma sóideologia do rock. Mais auspicioso alude ser o caminho indicado por Júlio Barroso (1991) ao narrar o rock como uma música capaz de reunir fragmentos dispersos do cotidiano, antropofagizando-os em novas estratégias de reinvenção da liberdade:
Matriz da cultura e da arte, do samba e do rock, a árvore África não cessa de dar frutos. Lá se faz, hoje, um som violento e único, multifacetado e uno, raiz eterna projetada no futuro. […] Elvis, na verdade, era uma encarnação televisiva de Chuck Berry, que adentrou a sala de jantar da cultura ocidental, com seu gingado insolente que mudou os costumes de todas as futuras gerações. […] Suas raízes cada vez mais fincadas no solo compelem a humanidade em direção ao espaço interior e o exterior na busca dos arquétipos fundamentais, de onde a cultura viva emana, como um ato de testemunho da eternidade, a arte do agora. […] O rock é uma proposição de liberdade. Ele é a trilha sonora de uma época de mudanças globais, contestação a todo um sistema de valores, etc. Lógico: tudo sobre a década de 70 já foi dito, dez anos nos quais toda a experiência da humanidade foi repensada, da postura do corpo à alimentação, ideologia, religião, ciência. E tudo sobre o saudável signo da antropofagia e seu rebento máximo, o rock (Barroso, 1991, p. 92-135).
No Brasil, Nora Ney foi a primeira intérprete de “Rock around the clock”, mas o primeiro rock composto originalmente em português foi “Rock and roll em Copacabana”, cantado por Cauby Peixoto, em 1957. A seguir, surgiram os irmãos Tony e Celly Campello, com suas versões em português de rocks italianos. Por sua vez, os roqueiros da jovem guarda (também conhecida como iê-iê-iê), liderados por Wanderléia, Erasmo e Roberto Carlos, primeiramente cantaram versões traduzidas do inglês, até começarem a escrever músicas próprias para o gênero, apresentando-as no programa da TV Record com o nome homônimo de Jovem Guarda. Em tal época, as canções jovem-guardistas tratavam de temáticas juvenis. Será somente no fim dos anos 60 que, a partir de Raul Seixas, Os Mutantes e Secos e Molhados, surge uma tradição especificamente roqueira no Brasil. Tais manifestações do rock no Brasil serão potencializadas nos anos de 1980 através de um diálogo ampliado entre a literatura e a música popular. Como observado por Arthur Dapieve (em entrevista que me concedeu em 2004), o rock que se desenvolveu no país ao longo da década de 80 foi catalisador de diversas linguagens – entre elas, marcadamente a literária:
Assim como afirma Cazuza, o rock só deixou de ser subproduto quando outros públicos perceberam que o rock dos anos 80 não era um decalque do rock inglês e americano. Não se tratava de uma música feita por adolescentes inconsequentes, mas sim de um movimento que possuía identidade própria. Quem ouvia Arnaldo Antunes e Renato Russo, podia notar ali um grande interesse pelo trabalho da palavra escrita. Que mesmo sem misturar com samba, este rock era música brasileira, devido às letras em português. […]. O BRock foi um movimento político e intelectual. Essa injeção de intelectualidade permitiu que o rock de qualidade não mais fosse feito isoladamente, como era o caso do Raul Seixas e Mutantes, mas que possuísse uma integridade. Foi excludente de um lado, mas positivo do outro. Positivo porque possuía conteúdo intelectual, como o concretismo de Arnaldo Antunes, as influências beatniks de Cazuza, ou a admiração que Renato Russo possuía por Carlos Drummond. E virou popular ao atingir veiculação nos meios de massa. […]. Quando eu primeiro me utilizei da sigla em matéria, no Jornal do Brasil, não pensava em Mutantes ou Raul Seixas. Mas sim, no rock que começou a ser feito a partir do Júlio Barroso e a Gang 90, e depois com a Blitz. Essas foram as duas bandas que iniciaram o BRock. […]. Quando utilizei esse termo, tinha em mente uma afeição gráfica, em que o BRock significaria: ‘O rock é nosso’. Assim como a Petrobrás possui o slogan: ‘O petróleo é nosso’ (Dapieve apud Cavalcanti, 2010, p. 10).
Para Arthur Dapieve (1995), o rock brasileiro (ou BRock), enquanto movimento estético, terminou no dia da morte de seu maior protagonista, Cazuza:
Cazuza reunia todos os principais traços do roqueiro brasileiro da década de 80, os traços que definiram o próprio movimento […]. O que era então esse tal de BRock personificado em Agenor de Miranda Araújo Neto? Era o reflexo retardado no Brasil menos da música do que da atitude do movimento punk anglo-americano: do-it-yourself, faça-você-mesmo, ainda que não saiba tocar, ainda que não saiba cantar, pois o rock não é virtuoso. Era um novo rock brasileiro, curado da purple-haze psicodélica-progressiva dos anos 70, livre de letras metafóricas e do instrumental state-of-the-art, falando em português claro de coisas comuns ao pessoal de sua própria geração (Dapieve, 1995, p. 195).
Tendo no rock and roll um meio de dinamismo vital e existencial, Cazuza considerava esta expressão musical como um afluente de manifestações culturais de sentido ritualístico e transgressor:
O rock é a ideia da eterna juventude. Quando descobri o rock, descobri também que podia desbundar. O rock foi a maneira de eu me impor às pessoas sem ser o ‘gauche’ […]. O rock para mim não é só música, é atitude mesmo, é o novo! Quer coisa mais nova que o rock? O rock fervilha é uma coisa que nunca pode parar. O rock não é uma lagoa, é um rio. O rock é a vingança dos escravos. É porque não é para ser ouvido, é para ser dançado, é uma coisa tribal (Cazuza apud Araújo, 1997, p. 361).
Por outro lado, para Arnaldo Antunes (outro protagonista do BRock), o rock pode ser lido como uma presentidade que beira as margens do inclassificável:
É muito difícil definir o rock hoje. Qualquer generalização classificatória parece insuficiente. O rock é um rio de muitos afluentes. Heavy rockabilly punk tecno hardcore pop rhythm and blues progressivo new wave psicodélico ye ye ye black metal and roll. Muitos grupos que se formam e/ou se extinguem diariamente. Fusões com reggae funk blues soul samba jazz. Nada disso satisfaz. Só uma coisa permanece e permite que continuemos chamando-o de. Uma coisa que não está no som. Está na sede. O rock tem urgência de agora. Presentidade. Vitalidade que assassina a memória. Por isso é tão difícil catalogar. Dicionarizar. Compartimentar. Ao mesmo tempo em que essa impossibilidade se exibe, sentimos que há uma tradição a não passar impune. Onde o passado vale por manter vivo o eterno presente. Só queremos que se faça uma cultura de rock no Brasil se for assim. Não para sedimentar, mas para clarear. Uma cultura que se mova com a mesma agilidade do seu objeto. […]. Não pelo poder paralisador da história, mas pela diversidade simultânea de seus agoras. Não pelo caminho em linha reta, mas pelo registro de seus desvios e fragmentos. Tentativa de fazer o possível, uma vez que o impossível é responsabilidade do som (Antunes, 2000, p. 40).
Utilizando linguagens heterogêneas, entre elas a roqueira, Arnaldo Antunes e Cazuza atuam como intérpretes que se distanciam de um modelo usual de compositor popular, remetendo à um diálogo intertextual entre poesia e música produzido no Brasil, especialmente a partir do disco-manifesto Tropicália ou Panis et circensis (1968). De modo experimental e difuso, os integrantes da Tropicália eram divergentes à oposição entre o rock e a moderna música popular brasileira, operando em ambas as frentes. Enquanto coletivo programático, o tropicalismo foi enterrado simbolicamente pela banda Os Mutantes no programa televisivo Divino Maravilhoso, da TV Tupi, apresentado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, na véspera do natal de 1968. Todavia, seus procedimentos continuaram influenciando certas representações da música popular brasileira e do rock produzidono Brasil.
Como aponta Celso Favaretto (1979, p. 18), o tropicalismo foi responsável por efetuar na cultura brasileira a autonomia da canção, realizando a síntese de música e poesia, relação que vinha se fazendo desde o modernismo, embora raramente conseguida, pois a ênfase recaía ora sobre o texto, ora sobre a melodia. Rompendo com certa noção tradicional de canção, os tropicalistas passaram a incorporar o happening e a performance dentro do formato cancioneiro através da inserção corporal do artista como uma espécie de escultura viva capaz de assumir radicalmente o palco através de máscaras diversas. Por ser inseparavelmente musical e verbal – como não é poema musicado, o texto não pode ser examinado em si, independente da melodia –, a canção tropicalista pode ser referida como uma espécie arquetípica de intertextualidade extrema.
Como observa Santuza Cambraia Naves (2001, p. 51), os tropicalistas levam a intertextualidade – a prática de aludir em suas canções a outros textos poéticos ou musicais – às últimas consequências, transformando-a em fundamento de um projeto estético. Nas letras fragmentadas e polifônicas tropicalistas, a ausência de um discurso principal e linear é substituído por impressões e colagens que filtram o país em fragmentos alegóricos e simultâneos. Com indumentária roqueira, os tropicalistas buscam ressignificar termos como “autêntico” e “nacional”, indo contra uma busca por raízes populares de uma arte militante representada pela sigla MMPB (“Moderna Música Popular Brasileira”).Transitando da paródia ao pastiche, certa atitude tropicalista passa a permear o universo da música popular brasileira desde 1968. Como sugere Luiz Tatit (2007, p. 131), através de uma visão de mundo tropicalista, o modo de ser do cantor e do compositor e sua circunstância de produção passam a ter tanta ou mais importância que a própria canção.
Em paralelo, no âmbito do rock, cada música é irredutível à sua melodia e à sua letra. Potencialmente performático e intertextual, o rock trabalha com amálgamas de estranhamentos, mesclando outras linguagens à sua. Partindo dos Estados Unidos dos anos de 1960, através do folk eletrificado de Bob Dylan, a música popular passa a articular e mediar o erudito e o letrado na cultura de massa. Apropriando-se do nome do poeta gaulês Dylan Thomas, Bob Dylan se inscreve numa tradição trovadoresca de ênfase na palavra cantada e entoada. Nutrindo-se da indústria cultural, ao mesmo tempo em que sorri sobre o cadáver desta, o canto dylanesco pode ser aludido como uma espécie de reconquista da poesia para além dos significados estritos de suas letras. Não por acaso, o poeta beat Lawrence Ferlinghetti tenha certa vez comparado as canções dylanescas com extensas colagens surrealistas (Sounes, 2006, p. 140).
Contra a ideia de um público imparcial e de uma plateia desinteressada, o universo simbólico do rock and roll é marcado por uma premissa basilar de estranhamento ritual. Invariavelmente performativo, o universo roqueiro pode ser aproximado de uma esfera provocativa teatral análoga ao Teatro da Crueldade de Antonin Artaud, como propõe Arnaldo Antunes numa entrevista:
Eu acho que tem uma coisa do Artaud do Teatro da Crueldade de uma certa potência associada a você provocar o público, de certa forma procurar empatia com uma postura invocada, eu acho que o rock and roll tem um pouco a ver com isso. Bob Dylan fez muito isso, tem aquela coisa de ele fazer canções com violão em uma linha mais folk de música de protesto e de repente ele pegou a guitarra, aquilo era uma agressão. Tinha um show dele em que ele tocava metade do show no violão e depois pegava a guitarra e o público antigo que gostava das canções no violão vaiava no meio do show a segunda parte, era uma provocação. […]. Acho que o rock é uma linguagem de muita urgência, muita intensidade… (Abujamra, 2008).
A propósito da ligação entre o rock e o teatro, é relevante observar que Jim Morrison, antes do The Doors, teve formação teatral em sua graduação na UCLA, concluída em 1965. Através de afãs dionisíacos e selvagens, Morrison construiu seu personagem agressivo e libertário dentro do palco através de releituras e reapropriações das adaptações do grupo Living Theatre do Teatro da Crueldade de Antonin Artaud. Sobre a ligação entre o universo da poesia e a linguagem roqueira, sendo a esfera performática que permeia o rock convergente com um teatro artaudiano da crueldade, é interessante observar que significação a crueldadetem para Artaud e como tal termo pode ser relacionado com o universo performático e corpóreo do rock:
Não se trata, nessa Crueldade, nem de sadismo, nem de sangue, pelo menos de modo exclusivo. Não cultivo sistematicamente o horror. A palavra crueldade deve ser considerada num sentido amplo e não no sentido material e rapace que geralmente lhe é atribuído. […]. Do ponto de vista do espírito, a crueldade significa rigor, aplicação e decisão implacáveis, determinação irreversível, absoluta. […]. crueldade não é sinônimo de sangue derramado, de carne martirizada, de inimigo crucificado […]. A crueldade é antes de mais nada lúcida, é uma espécie de direção rígida, submissão à necessidade. Não há crueldade sem consciência, sem uma espécie de consciência aplicada. É a consciência que dá ao exercício de todo ato da vida sua cor de sangue, sua nuance cruel, pois está claro que a vida é sempre a morte de alguém. […]. Uso a palavra crueldade no sentido de apetite de vida, de rigor cósmico e de necessidade implacável, no sentido gnóstico de turbilhão de vida que devora as trevas (Artaud, 2006, p.117-119).
Nesse sentido, em acepção próxima à idealizado por Artaud, é possível pensar numa relação de inevitabilidade performática do rock and roll com certa urgência de mundo. Idealizador da crueldade como técnica teatral, o que Artaud propõe é um tipo de teatro plástico capaz de buscar sua própria magia através da participação ativa do espectador na cena que observa. Diante de desafio tal, Artaud visa construir um teatro primitivo que contenha o drama essencial da linguagem e questione, assim, o lugar poético do homem moderno na realidade que o circunda. Propondo a continuidade entre a vida e o teatro, sua definição vital passa por uma concepção antiformalista capaz de reunir espírito e corpo, exigindo que o homem moderno assuma uma posição de ator, não mais sendo mero objeto de sua cultura. Seguindo perspectiva tal, Arnaldo Antunes aponta a importância de uma simbologia ágil roqueira capaz de por sempre reivindicar novas definições. Tal simbologia pode ser aludida através de Jimi Hendrix colocando fogo em sua guitarra:
O rock (considerado no sentido mais amplo do termo) não é música para ser apenas ouvida. É música associada à dança, cena, atitude, performance, comportamento. Hendrix punha fogo na guitarra. […]. O rock assim como as manifestações artísticas que efetivam a interação de códigos, parece nos remeter, dentro do mundo tecnologizado, a um estado mais primitivo. Como nas tribos, onde a música, associada à dança, cumpre sempre uma função vital-religiosa, curativa, guerreira, de iniciação ou para chamar chuva. Essa inocência já foi perdida (o tempo do homem criou a música para ser ouvida, as artes plásticas para serem vistas, a arte para representar a vida). Mas temos outras. Hendrix punha fogo na guitarra. Esse fogo está solto (Antunes, 2006, p. 46-47).
Tal provocação de Arnaldo Antunes possui referências intertextuais com certa leitura do artista plástico Hélio Oiticica sobre o rock como uma linguagem de seu tempo que, mais do que um gênero musical, pode ser associada à um ritmo de vida e uma forma sempre atual e corpórea de percepção do mundo:
A meu ver só existe rock. Tudo é o ritmo, a música. Eu acho que a música não é uma das artes. A música é a maneira de você ver o mundo, de você abordá-lo. É a única maneira que eu entendo, e isso diz respeito a toda uma fase de descobertas minhas […] o ROCK p. ex. se tornou o mais importante para minha posta em xeque dos problemas-chave da criação […] o ROCK é a síntese planetário-fenomenal dessa descoberta do corpo q se sintetiza no novo conceito de MÚSICA como totalidade-mundo criativa em emergência hoje: JIMI HENDRIX DYLAN e os STONES são mais importantes para a compreensão plástica da criação do q qualquer pintor depois de POLLOCK! (Hollanda, 1980, p. 68).
NÃO SERIA ESSA SÍNTESE MÚSICA TOTALIDADE PLÁSTICA A Q TERIAM CONDUZIDO EXPERIÊNCIAS TÃO DIVERSAS E RADICALMENTE RICAS NA ARTE DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO QUANTO AS DE MALEVITCH KLEE MONDRIAN BRANCUSI?: e porque é q a experiência de HENDRIX é tão próxima e faz pensar tanto em ARTAUD? (Braga, 2007, p. 193).
De modo análogo ao sugerido por Oiticica, também é possível pensar que o teatro universal do rock and roll visa a sensibilidade fisiológica de seu público. Sendo o rocktão norte-americano quanto africano, é possível pensar numa estranheza selvagem e bárbara que perpassa a simbologia universal roqueira. Se a África pode ser aludida como o berço de toda cultura do rock, a transculturalidade é o seu princípio condutor de aproximação com uma linguagem dimensionada para além das línguas e dos conceitos. Não por força ideológica, mas por razão de vida, para Paul Gilroy (2001), a África pode ser referida como um manancial de ficções, uma figura de linguagem capaz de convocar todos os povos desprivilegiados da terra e todos os malditos do planeta. Partindo da noção de que a música negra não pode ser reduzida a uma comunidade racial imutável, a África de Gilroy é ficcional – disposta como uma questão, mas não uma questão em si – e simbolicamente reconstruída em embate com os mercados das conveniências ontológicas. Entendida não como uma identidade fixa e essencialista, mas, antes, como um conceito sempre em reconstrução, passa a ser possível pensar numa analogia da África distante da imutabilidade de uma essência.
De modo análogo, também o etnógrafo e o poeta surrealista Michel Leiris, em África fantasma (2007 [1934]), produz uma leitura espectral da África como um continente ficcional e fantasma, potencialmente avesso a qualquer território ontológico. Em paralelo, próxima da África de Leris e Gilroy, propomos neste artigo pensar, através de Cazuza e Arnaldo Antunes, numa perspectiva crítica de leitura do rock and roll não como um conceito essencialista, mas, antes, como um novo método de vitalidade sobre a cultura. Nesse sentido, propomos dimensionar o universo simbólico do rock brasileiro como uma espécie própria de bricolagem, ampliando, assim, a discussão proposta por Lawrence Grossberg (1997) ao argumentar que o rock n’ roll em muito se aproxima de uma bricolagem pós-moderna descontínua e fragmentária:
Rock and roll is a particular form of bricolage, a uniquely capitalist and post-modern practice. It functions in a constant play of incorporation and excorporation (both always occurring simultaneously), a contradictory cultural practice… […]. It plays with the very practice that the dominant culture uses to resist its resistance: incorporation and excorporation in a continuous dialectic that reproduces the very boundary of existence. […]. It celebrates the life of the refugee, the immigrant with no roots except those they can construct for themselves at the moment, constructions which will inevitably collapse around them. Rock and roll celebrates play – even despairing play – as the only possibility for survival […]. Both the future and the past appear increasingly irrelevant; history has collapsed into the present. […]. Rock and roll’s resistance – its politics – is neither a direct rejection of the dominant culture nor a utopian negation (fantasy) of structure of power. […]. Rock and roll emerges from and functions within the lives of those generations that have grown up in this post-war, post-modern context. It does not simply represent and respond to the experience of teenagers, not those of a particular class. It is not merely a music of the generation gap. It draws a line through that context by marking one particular historical appearance of the generation gap as a permanent one. […]. Unlike other forms of popular culture, the ‘post-modern politics’ of rock and roll undermines its claims to produce a stable affective formation. Rather, it participates in the production of temporary ‘affective alliances’ which celebrate their own instability (Grossberg, 1997, p. 478-486).
Tendo em vista tal potencialidade crítica do rock and roll como uma forma intrínseca e extrínseca de bricolagem inventiva, é importante dimensionar a etimologia do termo que nos interessa incorporar à esta discussão. O pensamento selvagem do bricoleur foi primeiramente caracterizado por Claude Lévi-Strauss (1989) como aquele que trabalha com a colagem de tradições já existentes. Em confrontação ao engenheiro moderno que articula percepção e conceito de modo a criar a partir de uma nova ideia um novo mundo (qual um demiurgo que erguesse algo a partir de um marco zero), o bricoleur opera com signos não subordinados a um só projeto de base. Como propõe Lévi-Strauss:
…a arte se insere a meio caminho entre o conhecimento científico e o pensamento mítico ou mágico, pois todo mundo sabe que o artista tem, ao mesmo tempo, algo do cientista e do bricoleur: com meios artesanais, ele elabora um objeto material que é também um objeto de conhecimento. O cientista cria fatos através de estruturas e o bricoleur cria estruturas através de fatos (Lévi-Strauss, 1989, p. 38).
Aproximada de tal perspectiva crítica, em analogia a tal paradigma de pensamento selvagem narrado por Lévis-Strauss através da figura do bricoleur, é possível observar em Cazuza e em Arnaldo Antunes uma predominância do pensamento nômade do bricoleur ao engenheiro moderno que controla todos os seus meios expressivos de produção; embora, em ambos, experimentalidade e apuro formal estejam presentes. Neles e através deles, o rock no Brasil ressoa como uma ebulição poética e selvática de contornos narrativos performáticos efetuados nas entrelinhas da cultura. Ambos suscitados pela dessacralização da obra de arte em época pós-moderna, Cazuza e Antunes, cada um à sua maneira, ampliam as tradições vivas do rock.
Tendo em vista que, para Merleau Ponty (2002), cada corpo representa um projeto sobre o mundo e cada movimento é imediatamente um conhecimento prático – uma teoria viva aberta para o mundo –, é relevante observar que o corpo de Arnaldo Antunes no palco se constrói como um catalisador de vários códigos, tais como poesia visual, prosa, letras de canções, performances e ensaios. Cantor, compositor, poeta e artista plástico, o condutor de sua obra é a palavra, muitas vezes sob um caráter primitivo e aproximativo de um olhar selvagem e iniciático. Buscando restituir as palavras às coisas, sua produção poética possui algo de um passado pré-babélico, primitivo e tribal que parte de uma relação que foi perdida pela civilização ocidental de um mundo dicionarizado.
Graduado em Linguística pela USP, músico, poeta e artista visual, Arnaldo Antunes integrou a banda Titãs de 1982 a 1992. Com uma formação atípica para uma banda de rock, com a maioria dos integrantes se revezando nos vocais, o Titãs trouxe para o rock no Brasil uma concepção de grupo que mais remete a um coletivo teatral do que a uma banda de rock. Em vista disso, não por acaso, o guitarrista Marcelo Fromer chegou a se referir ao Titãs não como um grupo de rock, mas como um “fenômeno de outra ordem sociológica” (Trotta, 1995, p. 5). A gênese formal do Titãs do Iê-Iê deu-se através das intersecções musicais provenientes da união de integrantes de três bandas distintas: Trio Mamão, Aguilar e Banda Performática e Os Camarões.[2]
Assumindo uma atitude que poderíamos designar de tropicalista, no sentido de confundir registros e incorporar os meios de massa em seus discursos, em sua formação inicial, o Titãs do Iê-Iê assumia para si a importância dos programas televisivos de auditório, bem como a valorização do kitsch em sua formação cultural. Sobre um prisma tropicalista, seus integrantes dialogam com a indústria televisiva no sentido de atrelar certas vinhetas de humor paródico à certa agressividade do punk. Potencializando a relação do rock brasileiro com o teatro, em seus primeiros álbuns, Titãs [1984] e Televisão [1985], o Titãs conciliava artifícios tropicalistas aos da new wave, indo do punk até o iê-iê-iê. Tal miscelânea de gêneros, somada à formação atípica para uma banda de rock, trazia ao grupo um senso de performance no palco que articulava métodos/procedimentos tropicalistas de incorporação de elementos estrangeiros com o Manifesto Antropófago (1928) de Oswald de Andrade,no sentido de pensar o “popularesco” e o “estrangeiro” como elementos constitutivos da cultura brasileira. Sendo a antropofagia defendida no manifesto oswaldiano como um método ameríndio de ingerir e devorar somente os inimigos mais inteligentes e os melhores combatentes, a fim de obter seus poderes em um processamento cultural que canibaliza o elemento estranho, Oswald sugere a ideia da identidade brasileira como fruto do amálgama de uma “boa” digestão, tal como a ocorrida através do ato inaugural de deglutição do Bispo Sardinha pelos índios.
Com o vigor vital de quem questiona todas as oposições lógicas de uma tradição, no terceiro disco da banda – Cabeça Dinossauro [1986] –, há uma combinação do elemento primitivo ao tecnológico, a começar, pela mistura de um elemento técnico da modernidade presente na palavra “Cabeça”, com um elemento pré-histórico e bárbaro presente em “Dinossauro”. Partindo de uma mistura do primitivo com o tecnológico à maneira anunciada por Oswald de Andrade (1978) no Manifesto da Poesia Pau-Brasil [1924] – principalmente na afirmação: “A poesia existe nos fatos” –, o Titãs realiza uma espécie própria de bricolagem sonoro-semântica de letras inconformistas e iconoclastas alusivas ao universo de despretensão estética do punk, mas que não rejeitam o apuro formal da canção.[3]
Por sua vez, no penúltimo álbum do Titãs com a participação de Arnaldo Antunes, Õ Blesq Blom [1989], o grupo retornou à aproximação tropicalista de narrativas fragmentárias relativas à incorporação da cultura popular ao universo estrangeiro do rock. A começar pela sua capa, Õ Blesq Blom foi composto através de bricolagens sonoras e urbanas, com a inclusão de vinhetas do casal de repentistas pernambucanos Mauro e Quitéria, descobertos pela banda na praia de Boa Viagem, em Recife, nos anos 1980; mesma cidade em que em menos de meia década depois ocorreriam as fusões rítmicas do Manguebeat (movimento musical recifense idealizado por Chico Science, Fred 04 e Jorge do Peixe no manifesto “Caranguejos sem cérebro” [1992], a partir de referência ao romance de Josué de Castro, Homens e Caranguejos [1967]).
Vinculada ao álbum Õ Blesq Blom,a música “O pulso” (composição de Arnaldo Antunes) trabalha com a quebra atonal de um círculo e de uma repetição propagada, estabelecendo o isomorfismo[4] entre música e letra, fundo e forma, dentro da esfera de uma canção roqueira produzida no Brasil. Tendo por busca desenvolver os conteúdos potenciais de uma dimensão verbivocovisual[5] da linguagem, “O pulso” faz alusão ao poema “Pulsar” de Augusto de Campos, musicado por Caetano Veloso no álbum Velô [1984]. Ao combinar certas doenças do corpo com certas doenças da alma, a letra de Arnaldo Antunes acaba por produzir um espaço sonoro em que o batimento interior de um corpo se correlaciona com o pulsar exterior de uma matéria.
De modo análogo, no mesmo Õ Blesq Blom, a letra da faixa “Palavras” (creditada a Sérgio Britto e Marcelo Fromer) foi construída a partir de outra referência concretista: os versos “palavras são sombras / as sombras viram jogos”, que remetem à certa técnica combinatória elogiada por Haroldo de Campos, do livro Constelações [1953] de Eugen Gomringer: “palavras são sombras/ sombras tornam-se palavras. // palavras são jogos/ palavras tornam-se sombras. palavras são sombras / jogos tornam-se palavras. palavras são jogos/ sombras tornam-se palavras” (Campos & Pignatari, 2006, p. 203).
Operando com o artesanato da canção e pensando a cultura em termos de consumo midiático, é possível observar em certas letras de Arnaldo Antunes uma associação tropicalista de dissolução das fronteiras hierárquicas presentes em distinções culturais de termos como o erudito e opopular:
Tem essas diferentes vertentes que no caso de muitas pessoas se opõem, mas na minha formação elas se conjugaram e se atritaram de modo a criar curtos-circuitos que para mim são férteis. Um poeta que talvez fosse claro nesse sentido foi o Paulo Leminski, que chegava a minha casa de casaco de couro para ouvir um disco de rock do The Clash, mas era um sujeito que tinha uma cultura dos clássicos enorme. Era leitor de Homero, Dante, Camões, tinha um conhecimento da cultura oriental impressionante, dos poetas da antiguidade chinesa, dos haikais, da tradição da cultura zen ao mesmo tempo em que era faixa preta de judô. Ao mesmo tempo essa cultura clássica convivia e excitava nele o convívio com toda a contracultura, com toda a atitude comportamental irreverente, com a paixão pelo rock e tudo que cercava o universo do rock and roll, eu me sinto muito identificado com ele, nesse sentido (Antunes, 2008).
Para Antunes (2008), a seleção entre o fino e o grosso da cultura representa mais um ato de escolha do que somente uma mistura estratégica de fortalecimento identitário:
Isso de estudar literatura e fazer música, essas coisas andaram juntas desde muito cedo, de forma que essa divisão entre alta e baixa cultura não faz sentido para mim. […]. Claro, que eu não compactuo, nem um pouco, com a ideia de que poesia é diferente de letra de música por uma questão de valor estético. Que é como as pessoas mais preconceituosas querem separar as duas: uma linguagem mais pobre, ligada à cultura de massas; e outras de uma área mais intelectualizada, que é a área literária. Ao mesmo tempo, eu acho que são diferentes, sim. […] acho que existe essa questão da adequação a cada linguagem. Você criar uma peça para ser ouvida no rádio é uma coisa, para ser lida num livro é outra. É outro tempo, outra forma de absorção. […]. Há tempos atrás a poesia era mais veiculada ao cotidiano das pessoas e de certa forma a música popular herdou um pouco da tradição que a poesia tinha na antiguidade. Os poetas gregos e provençais, por exemplo, cantavam seus versos, aquilo era música também. Era uma poesia cantada, que hoje em dia a gente tem essas poesias nos livros e perde um pouco essa noção. De certa forma a canção popular passou a ser uma veiculação da palavra cantada e tomou esse papel de popularizar o convívio de algum trabalho poético cantado, mas a poesia dos livros foi se tornando muito minoritária no sentido de ter um público muito reduzido. Isso acho que não só no Brasil, mas em qualquer lugar do mundo. Tiveram aí vários fatores como a entrada avassaladora dos meios audiovisuais e inclusive a poesia se vale às vezes deles também.
Por sua vez, Cazuza não se considerava um poeta no sentido tradicional do termo, uma vez que sua aproximação com a literatura se dava principalmente através dos escritores beats, que buscavam promover a reintegração da poesia à fala. Crescendo em um contexto de efervescência cultural carioca, Cazuza teve como sua primeira atividade artística a prática de ator de uma oficina no Parque Lage do grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone[6], e, depois, no Circo Voador sob a direção de Perfeito Fortuna. O canto de Cazuza começa, portanto, incorporado à técnica teatral.
Primeiro cantor integrante da banda Barão Vermelho, Cazuza assume certa postura combativa do rock em suas performances vocais. Combinando rebeldia com boemia, nas narrativas de suas letras, o cantor propõe observar os bares do Baixo Leblon como um cronista faria em sua tribo. Inscrevendo-se, de certa forma, em certas tradições culturais subversivas, tais como a beat e a do rock and roll, Cazuzatoma de empréstimo certa noção romântica de um artista à margem do mundo, noturno e noir, para quem a noite conflui com a hora do artista:
Acho que o poeta é um insatisfeito. Então a noite, a vida noturna, a vida boêmia, da farra, são geralmente frequentadas por pessoas insatisfeitas… Acho que é a própria insatisfação do artista que o leva a ter uma vida desregrada… Você diz que eu sou poeta, mas eu me considero um letrista, gosto de falar que sou letrista, porque eu acho que tem uma distância entre poesia e música popular… […]. Eu tenho vários lados. O lado escuro é um lado muito forte, porque sou muito boêmio, vivo muito de noite. Gosto muito da noite, acho que ela é um espaço, um território livre para tudo. Não sei… a noite é muito dramática, muito bonita. As pessoas que saem na noite, procuram algo que na verdade não vão encontrar, mas elas curtem a procura […]. Tudo de noite é mais interessante. […]. Os marginais estão mais perto de Deus. Toda ovelha desgarrada ama mais, odeia mais, sente tudo mais intensamente, embora eu mesmo não me sinta assim. Talvez eu seja mais burguês do que transmito em minhas músicas. Eu convivo com essas pessoas e o que faço é uma espécie de defesa deles. Quando a Brasiliense começou a lançar as obras de Kerouac, Ginsberg, Burroughs, eu quase fiquei pirado, porque eu fazia algo ligado a eles e não sabia. Penso que os anos 50 têm muito a ver com os anos 80. Era uma época de repressão que se soltou lá pela década de 60 como agora (Cazuza apud Araújo, 2007, p. 363-96).
Misturando Lupicínio Rodrigues com a melancolia do blues, Cazuza se apropria do kitsch e associa os conteúdos passionais das letras com interpretações viscerais e muitas vezes irônicas daquilo que canta. Para Cazuza construir sua persona na esfera, a influência de Dolores Duran é tão importante, por exemplo, quanto ade Allen Ginsberg. Em algumas das letras de Cazuza (como “Vem comigo”, “Completamente blue”, “Ponto fraco”, “Dolorosa” e “Meu cúmplice”), o bar é tratado como lugar do trânsito e da alta madrugada, espaço em que o poeta espera resgatar algum amor perdido.
Como descreve Benedito Nunes, os românticos são homens do mundo com uma sensibilidade capaz de reunir pensamento e sentimento em seu agir (Guinsburg, 1978). Insatisfeitos com a impessoalidade de uma razão positivista e com a clareza iluminista do dia, a sensibilidade romântica alemã elege a noite e a sombra como extensões de seus pensamentos errantes. Se, a partir do romantismo, passa a ser possível pensar na figura dramática do artista moderno como um herói noturno e incompreendido, as fronteiras identitárias dos poetas beats são construídas por meio de certo elogio neorromântico dos marginais e dos drop-outs da sociedade. A sensibilidade beat[7] radicaliza tal proposição romântica, transformando a noite em um valor positivo da vida e da arte. Para o poeta beat, “pessoa” e persona são indissociáveis.
Em paralelo aos poetas beats, a temática do artista transgressor é estabelecida singularmente por Cazuza, por exemplo, em “Só as mães são felizes”, penúltima música do álbum Exagerado [1985]. Composta a partir de frase homônima do escritor norte-americano Jack Kerouac (do livro Scattered Poems [1971]), a sua letra é desenvolvida a partir de citações imaginativas de poetas e músicos malditos que percorrem um submundo ficcional carioca. Na letra de Cazuza são mencionados Arthur Rimbaud, Lou Reed, Allen Ginsberg e Luiz Melodia, vagando pela noite do Rio de Janeiro e atualizando a categoria do poeta maldito através de autores que o cantor admira, como exemplificou Cazuza numa entrevista, em fevereiro de 1986, para o Jornal da Bahia:
Essa música foi feita a partir de um verso do Jack Kerouac, uma frase de um poema dele que me deixou muito intrigado. A frase é muito radical: ‘Só as mães são felizes’. Dita desse modo parece que ninguém mais é. Eu usei a frase como brincadeira porque na verdade a música é uma homenagem a todos os poetas malditos. As pessoas que, de certa forma, vivem o lado escuro da vida, o outro lado da meia-noite. Eu quis fazer uma homenagem a esse tipo de poeta, de cantor, aos loucos da vida. Gente que barbariza, que é santo e demônio ao mesmo tempo. Então ficou como uma homenagem a esses caras. Minha citação de Kerouac é igual como quando cito Allen Ginsberg, Melodia, Lou Reed e outros […]. Mostrar esses poetas é sofisticado, o grande público talvez nem entenda, mas quem curte esse tipo de poesia vai sacar (Araújo, 1997, p. 203-204).
Mais do que uma homenagem, em “Só as mães felizes”, tal sugere ser o curta-metragem de Cazuza no submundo carioca: “Rimbaud traficando escravas brancas”, “Lou Reed walking on the wild side”, Allen Ginsberg fazendo “michê na (galeria) Alaska” [8]. Em tal supracitada canção, Cazuza transita pelo submundo da noite com auxílio de seus “poetas”, tal como fez Dante Alighieri na Divina Comédia [1321], ao ser guiado no “Inferno” e no “Purgatório” pelo poeta Virgílio. Também, ao invocar tais artistas transgressores em algumas de suas imagens, Cazuza aciona certos traços arquetípicos do rock and roll como música potencialmente subversiva, maldita e marginal.[9]
Em analogia, sobre o artista que interliga intrinsecamente vida e arte, é possível traçar uma linha de diálogo entre as personas do poeta maldito Arthur Rimbaud e de certos roqueiros como Jim Morrison. Com o interesse pelo lado escuro e trágico da vida, a inquietude, a inadequação e a embriaguez dionisíaca, ambos encarnam um mito do artista boêmio, vagante e exilado como um anti-herói moderno[10]. Nesse sentido, Wallace Fowlie (2005) discorre sobre a atração que Rimbaud exerce sobre o universo do rock:
O uso que Rimbaud faz da palavra ‘anjo’ em toda sua obra após o poema de 1870 caiu no gosto dos cantores de rock e dos jovens que cercavam os músicos, a quem chamávamos de flower children. Eles viam em Rimbaud um homem (na verdade, um adolescente) purificado da corrupção do mundo. Esse é o significado da palavra ‘rebelde’ que eles atribuíam a Rimbaud, e mais tarde, a Morrison. Bob Dylan foi um dos primeiros cantores a falar de Rimbaud em suas músicas, a recomendá-lo e a exaltá-lo. Na primeira canção de seu álbum Blood on the Tracks [1975], ele canta: ‘Relationships have all been bad, / Mine’ve been like Verlaine’s an Rimbaud’. A Rolling Stone recentemente reeditou uma entrevista que Bob Dylan concedeu a Allen Ginsberg. Depois de algumas indagações bastante relevantes, Ginsberg finalmente pergunta: ‘Tem algum poeta pelo qual você se interesse de verdade?’. ‘Só dois’, foi a resposta de Dylan: ‘Emily Dickinson e Arthur Rimbaud’ (Fowlie, 2005, p. 30).
Leitura análoga tem Paulo Leminski (2001) na crônica intitulada “Poeta roqueiro”, em que compara Rimbaud a um roqueiro marginal e transgressor:
Aí vem o primeiro marginal. Vivesse hoje, Rimbaud seria músico de rock. Drogado como o guitarrista Jimi Hendrix, bissexual como Mick Jagger, dos Rolling Stones. ‘Na estrada’, como toda uma geração de roqueiros. Nenhum poeta francês do século passado teve vida tão ‘contemporânea’ quanto o gatão e ‘vidente’ Arthur Rimbaud. Pasmou os contemporâneos com uma precocidade poética extraordinária – obras-primas entre os 15 e 18 anos. De repente largou tudo, Europa, civilização ocidental-cristã, literatura, e cometa se mandou para a Abissínia na África. Lá, longe da Europa branca e burguesa que odiava, levou a vida do mercador árabe, traficando armas, virando desertos nunca antes pisados, vivendo a grande aventura infantil, pré figurada em nome de seu rei lendário. […]. Enfim, como diz o próprio poeta: ‘Eu é um outro’. A melhor poesia de Rimbaud esteve, porém, em seu gesto final: a recusa do ‘sucesso’, a escolha do ‘fracasso’, a derrota da literatura, inimiga da poesia, para que esta triunfasse (Leminski, 2001, p. 110-111).
Por sua vez, em Uma temporada no inferno [1873], Arthur Rimbaud afirmou não ser o poeta prisioneiro de sua razão, sendo somente através de um extenso desregramento dos sentidos que o poeta poderia se tornar vidente[11]. Sobre Rimbaud e o universo do rock, é ainda importante mencionar uma litografia do poeta de antepassados gauleses feita por Pablo Picasso, em 1960, em que a figura do poeta foi representada com uma juventude vigorosa, com seu cabelo assumindo o aspecto boêmio e inconformista dos punks.
Dessa forma, como procuramos discutir neste artigo, Cazuza e Arnaldo Antunes articulam, cada um à sua maneira, o constructo do rock and roll dentro da cultura brasileira, realizando, assim, certa renovação formal do rock no Brasil. Ampliam, assim, certa aptidão brasileira moderna de íntima articulação entre a canção popular e a linguagem literária, que, além de um modo particular de expressão, vem a ser, também, umas das formas próprias de reflexão da arte e da cultura. Tal é, segundo José Miguel Wisnik (2004), a perspectiva relacional brasileira de correlação entre a canção popular e a literatura, a partir do disco Tropicália: não uma aproximação exterior pela qual as melodias servem de suporte às inquietações cultas e letradas, mas, antes, a demanda interior de uma canção aproximada a um estado musical da palavra, perguntando à língua o que ela pode, e o que ela quer. Partindo de uma multiplicidade tropicalista catalisadora de novas dicções, nos anos de 1980, certo rock produzido no Brasil seguiu certa tradição intertextual da música popular brasileira e a potencializou, como é possível observar particularmente no caso de Arnaldo Antunes e Cazuza.
* Augusto de Guimaraens Cavalcanti é doutor pelo Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio e, atualmente, pós-doutorando no programa do PACC-Letras da UFRJ, sob orientação de Beatriz Resende. Em 2015 defendeu a tese “Surrealismo no Brasil: a origem animal de deus, O púcaro búlgaro e Invenção de Orfeu: Flávio de Carvalho, Campos de Carvalho e Jorge de Lima” sob orientação de Maria Isabel Mendes de Almeida e Paulo Henriques Britto.
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Notas
[1] Este artigo é um desdobramento da dissertação Arte e vida: Lobão, Arnaldo Antunes e Cazuza, por mim defendida em 30 de abril de 2010, sob orientação de Santuza Cambraia Naves, sendo, também, uma homenagem à memória de Santuza, que veio a falecer em 2012.
[2] A formação inicial da banda paulistana tinha nove integrantes: Arnaldo Antunes, Branco Mello, Marcelo Fromer, Nando Reis, Paulo Miklos, Sérgio Britto, Tony Bellotto, Ciro Pessoa e André Jung, contando também com participações do artista plástico Nuno Ramos nas primeiras apresentações da banda. Do Trio Mamão faziam parte Tony Bellotto, Marcelo Fromer e Branco Mello. Tal coletivo musical chegou a abrir alguns shows de Jorge Mautner em São Paulo e se inspirava numa certa visão de mundo tropicalista, com roupas multicoloridas e araras decorando o palco. O grupo Os Camarões, por sua vez, do qual participava Nando Reis, tinha um som próximo ao de Bob Marley e Jorge Ben Jor. Já da Banda Performática do Aguilar faziam parte Arnaldo Antunes e Paulo Miklos. Influenciados pelas experimentações de John Cage, este coletivo performático acompanhava o artista plástico José Roberto Aguilar, realizando apresentações teatrais e criando paródias que remetiam às artes visuais, como a música “Monsieur Duchamp” (de Paulo Miklos e Aguilar), que relatava a chegada do dadaísta francês ao aeroporto do Galeão.
[3] Todavia, tal leitura não é aceita da mesma maneira por todos os integrantes da banda. Nando Reis, por exemplo, opõe-se à associação oswaldiana que fazem com suas músicas, afirmando ser “muito mais barroco” do que Arnaldo Antunes e, também, declarando, a propósito: “Eu não sou um manifesto Pau-Brasil. A carnavalização esconde a eterna visão do colonizador” (Reis apud Trotta, 1995, p. 100 & Reis apud Leoni, 1995, p. 261).
[4] O isomorfismo é um termo matemático utilizado para designar o caso de abstração em que duas classes apresentam as mesmas propriedades. Tal termo foi utilizado pelos poetas concretos primeiramente no Manifesto da Poesia Concreta [1958].
[5] Como explicita Augusto de Campos no manifesto Poesia Concreta [1955], verbivocovisual é um termo criado por James Joyce para designar “palavras dúcteis, moldáveis, amalgamáveis, à disposição do poema”. (Campos & Pignatari 2006, p.56).
[6] Dirigido por Hamilton Vaz Pereira, o Asdrúbal Trouxe o Trombone influenciou, de certa forma, a linguagem do rock carioca do início dos anos de 1980, uma vez que também Evandro Mesquita foi ator da companhia teatral antes de formar a Blitz. Não por acaso, Nelson Motta (2000, p. 328) descreve o grupo performático como mais se assemelhando a uma banda de rock do que a uma companhia teatral. Em contexto carioca do início dos anos 80, contribuiu também para o entrelaçamento entre música e teatro o espaço físico da lona cultural do Circo Voador, onde peças de teatro eram intercaladas por apresentações de bandas e happenings de poesia.
[7] O próprio termo beat, em inglês, provém de beated, isto é: “golpeado”, “derrotado” e “batido”. Por seu turno, o termo beatnik foi criado pela mídia norte-americana no final da década de 1950 para designar um fenômeno coletivo de uma geração derrotista que rimava com Sputnik. Indo contra tal acepção, Jack Kerouac, em entrevista de 1959, propôs que o termo beat fosse ressignificado como “beatitude” de uma poesia à margem da literatura. (Willer, 2009, p. 81).
[8] Nome em referência à Galeria Alaska, ponto gay famoso da Copacabana dos anos 80. Na letra de “Só as mães são felizes”, há ainda uma menção à discoteca Barbarella, casa de strip-tease na zona de prostituição da rua Prado Júnior, também em Copacabana. Ainda, na letra de “Só as mães são felizes”, Cazuza afirma, ironicamente, que já bebeu cicuta (veneno que Sócrates tomou para morrer) misturada com champanhe. No ano de 1986, “Só as mães são felizes” chegou a ter sua execução pública proibida pela Censura Federal, devido a alguns versos considerados escatológicos e alusivos ao incesto.
[9] Sobre as categorias marginal e maldito, é importante ressaltar suas diferenças. O termo maldito foi criado por Paul Verlaine em ocasião da antologia Poètes maudits [1884],em resposta ao ato de Anatole France ter recusado um poema de Stéphane Mallarmé e um soneto do próprio Verlaine para uma antologia publicada no terceiro volume da revista Parnasse contemporain [1876]. De outra maneira, o termo marginal remete a uma geração poética brasileira dos anos de 1970 que visou trabalhar a linguagem coloquial na literatura, postulando uma proximidade entre poesia e vida, e incorporando, assim, as conversas do dia-a-dia ao poema. Em período militar, a poesia marginal buscou sobreviver distante do mundo institucionalizado, politizando o cotidiano e misturando certa marginalidade de conteúdo com certa marginalidade ideológica naquilo que versava (Hollanda, 1998 & Pereira, 1981).
[10] Como aponta Wallace Fowlie (2005, p. 134), Arthur Rimbaud teria influenciado de tal maneira Jim Morrison que este teria passado a declarar em seus dois últimos anos de vida que, quando morresse, preferia ser lembrado como poeta e não como cantor de rock. Quatro meses antes de sua morte, o cantor norte-americano se mudou para Paris com o intuito de virar escritor e morar na mesma área em que Baudelaire vivera como um dândi. Através de uma trajetória de vida extremada e transgressora, Morrison se vestia de preto e era contra o flower power dos hippies.
[11] De outra forma, através do eu lírico do poema “O homem justo”, Arthur Rimbaud (1994, p. 173-175) expõe: “Sabes que sou maldito! E louco, e ébrio, e lívido. (…) Ventos noturnos, vinde ao maldito!”. Já nos versos de “A orgia Parisiense (ou) Paris se repovoa”, o poeta de ancestrais gauleses realiza um outro tipo de elegia dos malditos como motivo de poesia: “Eis que o Poeta vos diz: ‘Covardes, sede loucos!’ (…). Sifilíticos, reis, loucos, bufões, ventríloquos, / Que lhe importa, a Paris-puta, os vossos corpos, / Vossas almas, e mais vosso veneno e andrajos? (…). O Poeta irá tomar o pranto dos Infames, / Os ódios do Forçado, as queixas dos Malditos:/ E as Mulheres serão flageladas de amor. / Seus versos saltarão: Ei-los! Ei-los! Bandidos! (p. 157-159).