Ano XIII 0201
2º semestre de 2018
entrevista
Tempo de leitura estimado: 10 minutos

AS RAINHAS DO TRÁFICO NA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA

Desde o início de meus estudos acadêmicos, venho pesquisando literatura contemporânea, com foco na literatura brasileira, especialmente os temas que tratam da violência, das tramas criminosas e das escritas de si. Meu foco está mais nas narrativas-depoimento de escritoras mulheres que traçam relatos da vida na marginalidade. Ou seja, mulheres que viveram à margem do acesso e usufruto das riquezas e benefícios disponíveis, o que lhes confere o status de subalternas. Através da escrita, essas mulheres invocam a periferia, relatando em seus livros as memórias de como elas sobreviveram ao mundo do tráfico.

É marginal quem está do lado oprimido, excluído e desvalido. As escritoras entrevistadas Raquel de Oliveira e Fabiana Escobar relatam suas experiências de dentro do seu território: a favela da Rocinha. Traços comuns entre os romances A número um, de Oliveira, e Perigosa, de Escobar, são identificados pela problemática da violência, da resistência, da condição feminina em espaços urbanos, especificamente, a rua e a favela.

Raquel de Oliveira nasceu no Rio de Janeiro em 1961. Vive na Favela da Rocinha. Descobriu-se poeta dentro de uma clínica para recuperação de dependentes químicos. É pedagoga, professora e romancista. Aos 54 anos, em 2015, publicou pela FLUPP seu primeiro romance, A número um. O livro nos indica desde a apresentação que se trata de uma história baseada em fatos reais, ou seja, uma obra autobiográfica. Como observam Aline Deyques e Beatriz Resende, trata-se de um romance que dá voz a uma mulher que vive na periferia, sendo ex-traficante[1]. Raquel de Oliveira foi mulher de Naldo, chefe do tráfico da Rocinha. A escritora herdou o comando quando Naldo foi morto pela polícia.

Fabiana Escobar, atualmente com 36 anos, foi nascida e criada no bairro Rio Comprido, Zona Norte do Rio de Janeiro. Cursou Serviço Social na UFRJ. Atualmente, com três obras publicadas é blogueira e escreve artigos para sites e notícias da favela da Rocinha. No romance Perigosa, lançamento exclusivo da Novo Século, Fabiana Escobar narra o dia a dia do mundo do crime nas favelas do Rio de Janeiro, refletindo sobre os motivos que levam muitas pessoas a fazer parte dessa triste realidade, sobretudo mulheres e meninas. Em seus relatos, Fabiana Escobar vai descrevendo em detalhes a sua inserção no mundo do tráfico. Descreve as ações empreendidas por ela, o avanço das sofisticações das armas, estratégias de comando e as suas variadas formas de defesa e sobrevivência. Fabiana conta em seu livro sobre seu envolvimento com o traficante Saulo de Sá da Silva, com quem foi casada por 11 anos.

Como Raquel de Oliveira, Fabiana Escobar também conseguiu mudar e reconstruir sua vida após o envolvimento com o crime.

Entrevista com Raquel de Oliveira

Rachel Nunes: Partindo da constatação de que você escreveu um livro com base em suas memórias e vivências, é possível afirmar que você construiu uma personagem literária a partir de si mesma? Quem é a “Bonitona”?

Raquel de Oliveira: Contar essa história foi muito difícil e eu achei no romance literário um jeito de sofrer menos revivendo a Bonitona. Encontrei no estilo “Colcha de Retalhos’ eternizado e contemporizado por Mário de Andrade, do qual sou fã, a ferramenta necessária para criar literatura a partir de mim mesma. Mostrar-me como personagem através de um estilo literário foi vital para essa realização. Em sendo assim, pude manter uma certa distância e executar com êxito o livro, pude pegar imagens de mim mesma, partir de mim mesma, encontrar comigo mesma 30 anos mais nova e realçar os traços de personalidade mais fortes e dignos de uma obra literária de qualidade que a história merecia, centralizando no caso de amor e paixão dos protagonistas. A Bonitona sou eu! Em verdade e de verdade! Eu construí uma obra literária dessa época da minha vida, e reviver a Bonitona me fez aceitar, perdoar e deixar o passado no passado, pois sofria muito com essas lembranças. Foi como uma terapia. Tirei alguns fantasmas do armário! Concentrei no A Número Um minha eterna gratidão à literatura e à minha paixão pelo gênero romance.

RN: Se a personagem é criada pela autora, mas é ao mesmo tempo invenção, você acha que a personagem mostra algum traço que na vida real a autora esconde? O que a Bonitona faz que você não faria?

Raquel de Oliveira: A personagem não é uma invenção. A ficção se deu em reproduzir diálogos e falas ditas há muito tempo e não seria possível reproduzi-las, de fato. Também optei por escrever um romance e não uma autobiografia porque não seria ético para minha carreira como escritora nem recomendável para o mercado literário, já que não sou uma celebridade ou uma pessoa famosa. Além disso, há a questão dos nomes que são todos fictícios. Tudo o que a Bonitona fez foi o que ela sabia fazer. Foi o que aprendeu ao longo de uma vida dentro da criminalidade. Foi o que aprendeu sendo criada no meio do crime. Foi o que aprendeu sendo brutalizada e violentada desde muito criança. Em verdade ela só reproduziu o sistema em que viveu desde os seis anos de idade. Hoje sou outra pessoa. Com pensamento e sentimentos diferentes. Mais louváveis e mais humanizados, mas guardo dentro de mim essa mulher que, criança ainda, muito novinha mesmo, aprendeu a se defender e a sobreviver em um mundo tão cruel, sem possibilidades e oportunidades legais e favoráveis para se desenvolver como pessoa. Em verdade, até hoje, a força e a vontade dessa mulher de viver intensamente o seu amor me ajudam a superar as minhas misérias pessoais.

RN: Olhando pelo retrovisor da sua própria história de vida, você acha que essa vida teria sido diferente sem a literatura, sem a escrita do livro? O que representa a literatura para você, hoje?

Raquel de Oliveira: Sempre digo que a literatura me salvou! Me deu um fôlego de vida que eu desconhecia e foi na Poesia que descobri que poderia sobreviver à minha dependência química, uma doença progressiva, incurável e de determinação fatal, e prosseguir. Foi através da escrita sobre mim mesma, e meus dias confinada para a recuperação das drogas, que eu me descobri como pessoa, com sonhos e vontade de vencer as minhas próprias limitações, tão destrutivas. Não conseguia falar de mim, nem chorar ou sentir culpa, ou dizer não às minhas compulsões e obsessões, às substâncias psicoativas ilícitas, e por isso as terapias não funcionavam. Não sentia nada! Vivia anestesiada! Então passei a escrever sobre o dia e tudo o que se passava comigo, e foi assim que achei meu dom como poetisa. Então, sem a escrita não teria conseguido superar a doença e foi através dessa poesia que fui parar na Festa Literária das Periferias (FLUPP), fui reconhecida e publicada como poetisa, voltei à escola, fiz o ENEM, ganhei a bolsa para a faculdade de Pedagogia, e várias publicações como contista; e também publiquei um livro solo de poemas. Por fim, mas não o final, escrevi o romance A Número Um. Sem a literatura, acho que eu estaria morta; talvez como um zumbi, vazia por dentro e inutilizada para uma vida útil, com certeza! E, hoje, a literatura é minha melhor parte! A mais forte, e o que me move em relação a todos os aspectos de minha vida. Sou escritora! Amo escrever! E tenho ainda muito a dizer!

RN: Quais são seus planos de futuro? Vai escrever outros livros?

Raquel de Oliveira: Sim. Estou nas publicações desse ano nos livros da FLUPP. Em Poesia, com quatro dos meus poemas, e em Narrativas Curtas, com dois contos. Também estou terminando um segundo romance, o Vozes da noite. Tenho planos de publicar mais um livro solo de poemas e um de poemas para crianças. Quero fazer um mestrado e depois um doutorado em Educação e Saúde. Quero trabalhar com pesquisas em torno da Síndrome Alcoólica Fetal (SAF).

Entrevista com Fabiana Escobar

Rachel Nunes: O que você escreveu antes de escrever este livro? E o que a literatura representa para você?

Fabiana Escobar: Em 2001 eu comecei a escrever uma história que eu definia como sendo uma novela, mas só a minha família que lia. Já em 2011, escrevi a minha história em um blogue e, posteriormente, aquilo que eu havia escrito em 2001, eu atualizei no formato web novela. Depois publiquei os dois em formato de livro. A literatura inicialmente foi uma forma encontrada para mostrar para o mundo toda a minha verdade e, de certa forma, era também uma defesa. Depois percebi que tinha muita importância, tendo em vista que as pessoas se reconheciam no que eu escrevia.

RN: Você pode contar um pouco do que você leu desde sua infância? Que livros marcaram sua trajetória?

Fabiana Escobar: Na infância eu lia os livros tradicionais que recomendavam na escola. Não teve nenhum supermarcante dessa época. Mas sempre fui curiosa. Lia livro de São Cipriano, livros espíritas, e muito gibi. Mas não tenho nenhum livro para falar que esse marcou a minha vida.

RN: Como foi para você a experiência de preparar e publicar Perigosa? Ele foi importante para você no que diz respeito ao seu destino?

Fabiana Escobar: Apesar de ter sido pessoalmente muito angustiante relembrar algumas coisas para escrever o livro Perigosa, essa foi a parte mais fácil. Quando comecei a preparar o livro, me vi sozinha sem nenhum tipo de suporte que não estivesse ligado a dinheiro. Eu não tinha dinheiro, então tive que fazer tudo sem nenhum aporte material. O livro começou a ser vendido de forma independente por 47 reais, mas desses eu só recebia 5. Extremamente caro, pois no fim eu mesma não ganhava quase nada. O mercado literário brasileiro é muito cruel com os escritores. Me parece que escrever não é valorizado. Foi muito difícil chegar a uma editora, após anos com meu livro sendo vendido somente pela internet e tendo meu trabalho totalmente desvalorizado. O livro foi importante, sim, no que diz respeito à visibilidade do conteúdo que ele tem, mas escrever no blogue foi determinante no momento que fui vista e reconhecida por pessoas que poderiam me ajudar nessa caminhada.

RN: Que planos você tem para o futuro em relação à literatura? Pretende escrever mais livros?

Fabiana Escobar: Eu já tenho três obras: Perigosa (biografia), Linha cruzada (web novela) e Um gatinho chamado Flocos (infantil). Estou escrevendo outro livro, um romance de ficção científica. Eu também escrevo roteiros para o grupo de CINEMA que tenho na Rocinha: Rocywood. Já tenho o “Anjos não falam” – premiado em Atibaia, e “A bala perdida”. E estou produzindo um filme de terror chamado Vale dos espíritos. Também escrevi uma peça teatral chamada Se beber não tire selfie.


*Rachel Fátima dos Santos Nunes é pesquisadora do PACC da UFRJ, com Pós-Doutorado em andamento. E-mail: rachelnunes144@gmail.com.

Nota

[1] “Territorialidade e a questão de gênero na obra A número um, de Raquel de Oliveira”, artigo publicado nos anais do XV Encontro da ABRALIC em 2016.