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Capacitar para desenvolver: que constrangimentos? | de Manoel Ribeiro

Introdução

O objetivo deste texto é discutir, no contexto do mundo globalizado, uma alternativa metodológica de elaboração e implementação de programas de empowerment em comunidades carentes.

Como referência para essa discussão, são apresentados dois exemplos de programas para/comestruturas populares praticantes de expressões culturais.

Neles, é abordado o papel da capacitação, enquanto instrumento de empowerment.

É também destacada a dificuldade dos poderes públicos em perceber as diversas realidades locais, na elaboração de seus programas.

 

Contexto global

No correr da modernização, profundas transformações foram operadas nas estruturas sociais.

No século XX, com o apogeu da industrialização, as migrações campo/cidade produziram segmentos populares que eram chamados de “marginalizados”, integrantes do exército de reserva de mão-de-obra, das teorias marxistas.

Em nossos dias, com a diminuição do Estado, a desregulamentação do trabalho, o avanço tecnológico e a informação em tempo real, elementos básicos da globalização, deparamo-nos com um decréscimo no número de postos de trabalho e novas exigências de qualificação. Agora, os mais pobres são chamados de “excluídos”, objetivamente supérfluos para a movimentação da economia.

O quadro é complexo e requer um entendimento mais detalhado do que é exclusão, do ponto de vista dos excluídos.

 

O que é exclusão

O quadro a seguir permite uma análise do que é “exclusão”, para os moradores das favelas do Rio de Janeiro.

 

Iniciativas de combate à exclusão

A atuação dos governos sobre a exclusão ainda é tímida e muitas vezes paternalista. Por deterem o saber formal, definem e implementam os programas que acham que as populações mais pobres precisam. Em geral, tais programas, por motivos operacionais, são padronizados e aplicados indiscriminadamente, sem considerar peculiaridades locais. Os resultados não têm sido satisfatórios.

Por outro lado, os “programas” e invenções de mercado que as classes populares vêm praticando estão funcionando e resolvendo alguns de seus problemas e carências mais imediatas.

 

Um novo papel para a cultura

Vou apresentar brevemente dois desses programas, dois raros casos de entendimento positivo entre o Poder Público e uma “organização” popular.

Foi minha primeira experiência em programas para/com populações faveladas, identificando sua sócio-geografia e suas lideranças, discutindo idéias, pegando “boléia” em suas iniciativas e práticas, utilizando suas estruturas organizacionais.

Foi realmente uma experiência enriquecedora, onde aprendi muitas coisas, sobre a cultura dos mais pobres.

Hoje, estou convencido que, no mundo globalizado onde impera a mesmice dos padrões de produção e consumo, o que for específico e particular vai ser valorizado. Será o embate, na arena do mercado, entre a coca-cola e o vinho regional de qualidade; entre o hambúrguer e os doces de ovos tradicionais; entre ohaloween e as festas de São João; entre a assepsia estética dos condomínios fechados e o convívio proporcionado pela arquitetura coloquial das ladeiras de Alfama.

A cultura é um patrimônio guardado por grupos específicos e, como tal deve ser preservado.

Roda de samba
Culto Afro
Terreiro de Jongo
Forrá nordestino

Por isso, deve-se dar particular atenção à cultura popular, rica em manifestações peculiares e estratégias de sobrevivência criativas que podem ser aperfeiçoadas e apoiadas.

Alguns discordaram dessas idéias sob a alegação de que interferências externas poderiam tirar a autenticidade de algumas manifestações e “transformar cultura em um produto”. Acredito que a própria necessidade de manter sua atratividade em mercado manterá a expressão cultural preservada e específica.

Assim sendo, no caso das favelas e periferias, premido pela urgência que a situação dos excluídos inspira, centro minhas reflexões nas possibilidades de gerar renda para esse segmento social e de obter um maior equilíbrio na hierarquia de valoração entre a cultura popular e a cultura dominante.

As idéias abordadas adiante baseiam-se na crença que a “cultura própria” é um valor. Tanto aquela que gera produtos materiais, mais ligada à moradia e aos circuitos da produção e do consumo, quanto a cultura que produz bens imateriais, mais ligada às tradições e manifestações artísticas.

Nesse contexto, o emporwerment em assentamentos populares, além da democratização da educação formal e cursos técnicos de qualidade, pode se dar pela valorização da “cultura disponível” em cada localidade.

 

O espírito da coisa

O cineasta brasileiro – Cacá Diegues, que oferece oficinas de cinema na favela Cidade de Deus (cenário do filme homônimo), formando diretores, roteiristas, iluminadores e câmeras, deu um recado definitivo para seus alunos: “Queiram ser aplaudidos, não porque são pobres, mas porque são ótimos”.

Para que um objetivo ambicioso como esse possa ser alcançado, a “capacitação” deve ser entendida como abrangendo: a formação adequada para o aprimoramento técnico ou artístico de tradições e aptidões disponíveis; a assistência técnica na gestão das “organizações” locais e na elaboração de projetos, captação de recursos e coordenação executiva de programas; o acesso facilitado ao crédito e o apoio nas articulações com o mercado e com a mídia. As bem sucedidas experiências com “microcrédito” se constituem num bom indicador das possibilidades de sucesso dessa estratégia no combate à pobreza.

 

Experiências enriquecedoras

Para ilustrar essas colocações, vou apresentar dois exemplos. Dois casos promissores, infelizmente, ambos desmobilizados por problemas de gestão local e de insensibilidade do Poder Público.

Nesses exemplos, vou destacar a participação da “sociedade civil” do “andar de baixo”, deslocando-a para o centro do palco, e comentar a capacidade de iniciativa de certos grupos populares e sua facilidade em ter acesso às instituições.

Também vou apontar a dificuldade das instituições públicas em reconhecer problemas e recursos locais, na implementação de programas sociais em comunidades carentes, bem como sua tendência em enrijecer suas rotinas operacionais, sem considerar o contexto de atuação.

Nossos dois casos passaram-se na Serrinha, uma favela do subúrbio do Rio, originalmente conhecida por suas tradições ligadas ao samba e aos cultos afro-brasileiros. Mais recentemente, as migrações nordestinas trouxeram novas tradições para a Serrinha, fortalecendo sua posição de, segundo o dizer de seus moradores, “centro de resistência de cultura popular”.

Por cinco anos, durante a elaboração do Plano Participativo de Desenvolvimento Urbanístico e Social da Serrinha e implantação das obras correspondentes, tive a oportunidade de conviver intensamente com os moradores e aprendi a reconhecer os seus territórios, físicos e imateriais.

No processo de conhecimento mútuo desenvolvido, também aprendi a respeitar a cultura popular e a incrível criatividade e eficácia de suas estratégias de sobrevivência, inclusive nas relações com a mídia.

 

Dois casos

Na Serrinha, foram desenvolvidos dois programas com/para a cultura local, no caso detida pelas populações pioneiras, de ascendência afro, mas com potencial para atrair os outros grupamentos identificados.


Como previsto, a oficina atraiu os filhos dos nordestinos e dos outros grupos componentes do assentamento. A surpresa ficou por conta da presença de garotos das franjas da cidade formal vizinha, atraídos pela oportunidade.

O primeiro, o programa – “Tocando a Vida” – ensinava música instrumental por pauta, aos garotos e garotas da favela, envolvidos com ritmo e melodia desde a tenra infância. Esse Programa foi implementado pela Prefeitura, com apoio financeiro do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID – e a participação do Conservatório de Música do Rio de Janeiro.

A Escola de Samba Mirim Império do Futuro, localizada na Serrinha, foi credenciada como gestora local do Programa, dispensando a presença de organizações “de fora” na favela.

Ao final de um ano de curso, os instrumentos utilizados foram doados aos formandos.

Isso gerou a criação de diversos “grupos de pagode”, que ganham dinheiro em apresentações em festas e churrascarias. Alguns garotos que se destacaram, ganharam bolsa do Conservatório e um deles é solista de bandolim, na Orquestra de Cordas da Prefeitura.

O segundo caso é outro extraordinário exemplo de participação da sociedade civil popular (Escola de Samba Mirim Império do Futuro), apoiada por instituições públicas (Prefeitura e Conservatório de Música) e uma agência internacional de desenvolvimento (BID) – a oficina de “Técnicas do Arame”.

Nos desfiles das escolas de samba, no Rio de Janeiro, os esplendores e adereços dos passistas e os improváveis sutiãs das modelos são produtos do artesanato de arame. Por baixo das plumas, das pedrarias e dos plásticos coloridos estão estruturas de arame, confeccionadas pelos artesãos de cada escola.

A idéia era preparar mão-de-obra técnica para produzir para a Escola de Samba Império Serrano, destacada entidade do carnaval carioca, que teve origem na Serrinha em 1947.

Para montar as oficinas, as medidas práticas foram muito simples. O espaço foi cedido pela Escola de Samba Mirim Império do Futuro, localizada nos fundo da residência da família fundadora. Uma máquina de soldar, arame e solda, bem como umas poucas ferramentas foram comprados com recursos do BID. A Escola de Samba Império Serrano indicou um experiente artesão/instrutor e estava tudo pronto para começar.

Além dos produtos para o carnaval, os alunos começaram a criar objetos decorativos, ao estilo dos desenhos do Cocteau, ou mini-esculturas do Calder, compondo as figuras por linhas ininterruptas. Esses objetos eles mandaram cromar fora, com custos adicionais, para oferecer aos visitantes.

No correr do curso, a gestora local percebeu que a sazonalidade do carnaval limitava drasticamente a possibilidade de auto-sustentabilidade do programa.

Assim, os garotos passaram a produzir troféus para a Prefeitura e para as homenagens a personalidades, ofertados pela Escola de Samba Império Serrano.

Mais tarde, na busca de uma ampliação de seus mercados nas vizinhanças, eles vinham fabricando enfeites para festas de aniversário e casamento, num estilo pós-kitsch, utilizando os mesmos materiais dos adereços dos desfiles das escolas de samba.

Nesse sentido, pensando em atingir toda a cidade, cheguei a fazer contatos com professores da Escola Superior de Desenho Industrial – ESDI para articular o design acadêmico ao know-how popular, viabilizando a criação de “produtos” que atraíssem faixas superiores de mercado.

 

Constrangimentos

Infelizmente, assim como o Tocando a Vida, esse programa foi interrompido, por problemas de gestão local.

Na decisão de interromper dois programas com tamanho potencial de empowerment revelaram-se os constrangimentos, recheados pela falta de diálogo.

A precariedade e a irregularidade na entrega de relatórios e das prestações de contas redundaram em pareceres técnicos desabonatórios que acionaram o nível decisório.

Na realidade, os sinais emitidos pelos gestores locais, em seu desempenho, foram mal interpretados pela burocracia estatal.

Depois de um ano de trabalho, ao invés de perceber a necessidade de capacitação local em gestão de programas socais e de exercer uma supervisão mais próxima, o Poder Público preferiu acabar com o Programa.

 

Conclusões

Dessas duas experiências, podemos concluir que:

– O empowerment de marginalizados ou excluídos pode ser buscado através de programas para/com essas populações, com o apoio dos recursos organizacionais e culturais existentes nas favelas.

– Na viabilidade operacional desses programas, a capacitação, a assistência técnica e o crédito têm papel fundamental, fortalecendo tradições e aptidões disponíveis e sua articulação com o mercado e a mídia.

*Manoel Ribeiro é arquiteto e urbanista