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Diários públicos: jornais e esquecimento | de Leila Danziger

O que passa?
Tua fala se turvou de vermelho.
Hölderlin/ H. de Campos

No ponto de ônibus, atrás de um casal sem atributos, havia uma mulher de vermelho. Não era a sua roupa, mas a própria pele. Ela vestia bermuda e camiseta sem mangas; seus braços e pernas tinham o tom vermelho escuro. Perturbada, tentei ignorar sua presença (magnífica, fascinante, trágica). Virei-lhe as costas e busquei a certeza do céu naquela tarde ensolarada de Ipanema.

Com alívio, logo identifiquei o ônibus que se aproximava. Fiz-lhe sinal, mas o motorista não atendeu meu chamado e seguiu em frente. Reclamei, suspirei, disse irritada qualquer coisa em voz alta. Acho que foi essa a senha, pois como que pontuando minha indignação, ouvi uma voz feminina e educada, que acreditei dirigir-se a mim: “Moça, você quer mercúrio?” Virei-me em direção àquela que perguntava e, polidamente, tentando controlar meu embaraço, recusei: “Não, obrigada”. De relance, percebi que no alto da cabeça, faltava-lhe cabelo e que o couro cabeludo estava à mostra. Por alguns instantes, a vi por inteiro: parecia uma imensa ferida, tão brutal quanto um astro visto de perto. Ela parecia um daqueles desenhos anatômicos de esfolados, mas era demasiado humana, vigorosa, ainda jovem, quase bela. Ela era um retrato de Artaud, um daqueles desenhos em que o lápis duro sulca repetidamente o papel, lacerando-o, perfurando-o.

Não sei se a moça estava realmente ferida. Talvez fosse apenas o efeito do mercúrio-cromo, sinalizando na pele o que lhe atravessava a alma. Mas creio que ela se esfola, brandamente, de modo calculado, hoje, agora. Cultiva as feridas como uma espécie de plantação delicada. Em vez de tatuagens, ostenta a carne viva.

Fiquei intrigada com seu oferecimento atencioso. Dirigia-se casualmente a qualquer um ou percebeu em mim alguém que, como ela, inspirava cuidados? Desconfiei de certa cumplicidade entre nós. Um outro ônibus atendeu meu sinal e segui meu caminho, nem sei mais para onde. Afastei-me da Esfolada, mas sua voz solidária, oferecendo-me generosamente seu ungüento, continuou em meus ouvidos, turvando a cidade com as cores de sua aparição.

Alguns dias depois, fui à farmácia e pedi mercúrio-cromo, esperando o tradicional frasco com o líquido vermelho. O vendedor interpretou meu pedido à luz da atualidade e colocou em minhas mãos uma caixinha branca, de design corretíssimo, um spray anti-séptico, ‘com agente anestésico’, sem cor e sem cheiro. Insisti que queria o mercúrio-cromo tradicional, aquele que é vermelho, mancha a pele e costuma arder quando em contato com o machucado. Espantado, respondeu-me que não estava mais a venda. “Mercúrio-cromo não tem, há muito tempo saiu do mercado; foi proibido pela Vigilância Sanitária”. Entendi então que a moça vista no ponto de ônibus utilizava algum pigmento vermelho, uma tintura qualquer que chamava de mercúrio, como o planeta mais perto do sol. Mesmo que não se pinte com mercúrio-cromo – substância de efeito cumulativo que se deposita no organismo e nunca mais é expelida – seu desejo é saturar-se de cor, cobrir-se de croma, grau mais intenso de um determinado matiz. Na intensidade da cor ela vê a possibilidade de tratar-se, curar-se, exibindo-se como uma gravura – ou de fato um cromo – cuja matéria e suporte é sua pele e seu corpo.

Na verdade, esse encontro me levou, mais uma vez, a pensar no desenho e na escrita, e me fez compreender que eu sempre desenhava como se escalavrasse o papel, que sempre via o papel como a superfície da pele.

Passei alguns anos perfurando papéis, verso e reverso. Queria penetrar em sua substância opaca, ir além da pele, virá-la pelo avesso, buscar a área ínfima entre as camadas da pele. Acho que buscava a interioridade da superfície. Perfurar o papel era uma forma de escrita: constelações de signos construídos pelos vazios que iam aparecendo no papel. A escrita era pensada não como deposição de tinta sobre uma superfície, mas como falta, subtração de matéria, ou como reação do tecido (lesão, cicatriz). “A escrita manual é sempre a marca de um corpo”, já disse Barthes sobre a pintura de Twombly.2A escrita solicita o corpo em sua integridade, não um corpo sublimado, mas o corpo que arranha, roça, desgasta-se. Esse princípio vale também para os trabalhos que desenvolvo com jornais. Vejo-os como uma forma de escrita por supressão. Se antes furava os papéis, agora descasco os jornais, milimetricamente, em operações quase cirúrgicas, que devem ser precisas, exatas ou tudo se perde.

Desfaço os jornais. As informações são transformadas num emaranhado sem fim e suspeito que seja essa a sua forma mais verdadeira. A leitura é um processo de extração, que remove o texto lido e é vivida numa série de operações efetivamente materiais: folhear, selecionar, extrair, dobrar ou estender, passar a ferro, relacionar, acumular, empilhar, fixar. Se a escrita manual é um trabalho que exige o corpo, o mesmo é válido para leitura: ler com todo o corpo, ler e emaranhar, ler e esquecer. Leitura ruminante e distraída; leitura defensiva que quer se proteger da brutalidade do real. O vetor do trabalho é a página impressa rarefeita, apagada, sabotada em sua função de documento, mas onde o texto jornalístico ainda pulsa na informação residual da imagem selecionada ou pelo avesso da folha. A integridade da folha de jornal é mantida, e o que permanece é uma pele fina e transparente, uma matéria frágil, fugaz, sensível à ação da luz, desafiadoramente mundana. Como a pele da Esfolada à espera da cor-curativa, também o jornal – superfície sensível do mundo – está à espera da operação poética que o regenere, que lhe confira sentido (mesmo que frágil e provisório).
Nome = Poiesis

Todos conhecemos a hostilidade de Mallarmé aos jornais. Sua recusa não se dirigia apenas à linguagem jornalística, mas à própria materialidade da página impressa: aberta, exposta como mercadoria, simples maculatura. Lembra Lyotard, as obras de Mallarmé e Joyce são reações ao desenvolvimento do jornalismo, insurgindo-se contra a instrumentalização da linguagem.3 Em Mallarmé, o desejo de pureza corresponde à figura poética de Hérodiade – sonho de partenogênese, de uma palavra nascida na recusa do outro, fascinada pela própria virgindade.4 Importa lembrar que, em sua poesia, há também uma força oposta à Hérodiade: é o Fauno, figura exemplar de Eros, do desejo “pelo estatuto ontológico dessa coisa desconhecida que perturbava Hérodiade”5 – o Outro, o Real.

Creio que meu trabalho com os jornais se faz com Mallarmé e contra Mallarmé. Parto da necessidade de reverter a instrumentalização da linguagem jornalística, voltada para o consumo e para o esquecimento, justamente por aí reconhecer um meio privilegiado de tensionar/ tecer/ tramar palavras e imagens.

Vejo os jornais diários como paisagens e procuro sempre aquilo que interroga, que fere e fascina. No início, era o Nome, o substantivo próprio “nome” ou simplesmente um nome próprio, como se sua presença significasse resistência ao caráter informativo do texto; ali residia a estranheza, a obscuridade. Essa atenção ao nome foi motivada por um roteiro de experiências e leituras que inclui Walter Benjamin (em Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana em particular), para quem o nome detém a dimensão criadora da linguagem, jamais se tornando palavra finita ou conhecimento; e também os fragmentos dos românticos alemães, em que é concedido privilégio a poïesis, a prática da produção. Contudo, isolado na página rarefeita do jornal esvaziado das informações, o Nome não chegava a fazer sentido. Passei então a relacioná-los com fragmentos de poemas em que a questão era o nome próprio. Drummond: “Ouço teu nome, única parte de ti que não se dissolve”; Cecília Meireles: “de dura inconstância é teu nome feito”; Celan: “Todos os nomes incinerados juntos”; e aquela que considero a fórmula mais perfeita, extraída de Orides Fontela: “A escolha do nome, eis tudo”. Passei então a relacionar as páginas dos jornais, que continham nomes impressos, com os versos que falavam do Nome e articulá-las em camadas, dobras, superposições que constroem outros textos. A fórmula Nome = Poiesis continua válida e atuante, buscando relações, associações, sentidos.
Diários públicos

A partir da observação dos jornais, continuo a procura do Nome ou do Witz romântico, de estranhamentos que escapem ao que é meramente informativo, e estes podem ser imagens ou mesmo restos de cor. A dupla conotação da palavra journal – em francês, imprensa cotidiana e diário pessoal – é fundamental na compreensão do que se está construindo. Diários públicos querem evitar as tagarelices do Eu que se derrama e se consola, como escreveu Blanchot sobre o diário íntimo como uma forma de autoproteção contra os perigos da escrita.6 Na verdade, apesar do que sugere o título, a série não se submete ao calendário, e permanece insubordinada à regularidade dos dias que passam. Embora a cada dia a paisagem jornalística ressurja em novos blocos de textos e imagens, nem sempre encontro aquilo que confere potência estética à sucessão amorfa dos dias.

Embora não haja propriamente desenho, no sentido mais estrito do termo, a escrita aqui praticada procura algo próximo ao que realizam os desenhos de Artaud, em que o papel é sulcado e ferido; desenhos em que as palavras fazem parte integrante da imagem, constituindo o que chama de “massa palavra-e-imagem”, e falam sempre de um combate entre vida e pensamento. Guardadas as proporções, os gestos construtivos de Diários públicos possuem afinidades com a violência dos desenhos de Artaud. Uma violência controlada, é certo, mas em que as páginas dos jornais, esvaziadas pelo ato extrativo de retirar a massa de informação, revela aquelas páginas como uma espécie de pele, superfícies em carne viva, marcadas pelo real.

 

 

Além dos poemas citados em que há menção ao nome próprio, outros fragmentos de textos são carimbados sobre as páginas dos jornais esvaziados. O verso de Paul Celan Para-ninguém-e-nada-estar é deslocado de seu contexto de testemunho de Auschwitz e informa nossas pequenas e grandes catástrofes de cada dia: a solidão extrema, a vida nua, o estado de bando, como bem definiu Giorgio Agamben.7

 

 

Mas nem só vestígios de catástrofes integram estes diários. A frase Para-alguém-que-nasce-hoje reúne as páginas selecionadas pela leveza e pelo encanto banal, pelo que me parece passível de constituir um legado. A série pode ser vista como uma arca, um pequeno bricabraque afetivo, que reúne miudezas marcadas pela fragilidade (por exemplo: um grupo de crianças que pula durante alguns minutos, tentando provocar um terremoto; a graciosidade dos gestos de uma menina no trapézio; Catherine Deneuve, no filme Pele de Asno). Contudo, não é possível isolar a delicadeza dessas imagens dos resíduos da violência e de tragédias tão próximas, que aparecem de forma espectral no verso das páginas. Cabe ressaltar que essa série só adquire sentido pleno como contraponto ao lastro das séries anteriores. Na forma da dedicatória, o título sugere uma espécie de “fuga-adiante” (fuite-en-avant), uma aposta num futuro sempre adiado.

Esquecer

Não me parece exagero afirmar que um pacto de esquecimento orienta os jornais, o que não se altera nem mesmo pela construção de arquivos. Borges está entre os que nos falam desses “museus de minúcias efêmeras”. Em Utopia de um homem que está cansado, ele descreve o encontro do narrador com um homem de quatro séculos – ‘um homem vestido de cinza’, cor que envolve os mensageiros da estranheza em vários de seus contos – e que faz assustadoras revelações. Uma delas é a extinção da imprensa, “um dos piores males do homem, já que tendia a multiplicar até a vertigem textos desnecessários”.8 Em seus contos, Borges sugere que a multiplicação vazia da realidade – tarefa dos espelhos e dos jornais – deve ceder lugar ao mundo compreendido como imenso labirinto literário, mais real e mais rico do que a mera proliferação de fatos e imagens desqualificadas que pretendem constituir o real. À revelação do desaparecimento da imprensa no mundo do futuro, o narrador responde com um longo e belo discurso:

Em meu curioso ontem (…) prevalecia a superstição que entre cada tarde e cada manhã acontecem fatos que é uma vergonha ignorar. (…)

Tudo se lia para o esquecimento, porque em poucas horas o apagariam outras trivialidades. (…) As imagens e a letra impressa eram mais reais do que as coisas. Só o publicado era verdadeiro.9

A consciência do caráter efêmero dos jornais é decisiva em Diários públicos. Uma série, constituída a partir da publicidade abundante, é dedicada a Irineu Funes, personagem de outro conto de Borges que, ao sofrer um acidente, perde os movimentos, e, no mesmo golpe, adquire uma hipermemória: “Mais recordações tenho eu sozinho que as tiveram todos os homens desde que o mundo é mundo”.10 Funes é incapaz de dormir, pois dormir é esquecer, é distrair-se do mundo. “Dezenove anos havia vivido como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo”. Ao acordar após a queda, o presente lhe parece intolerável de tão rico e tão nítido, e também as lembranças mais antigas e mais triviais. Mas sua hipermemória é incompatível com o fluxo da vida, condenando-o a um estado de vigília permanente e em seguida à morte.

Ao concordarmos com Nietzsche, que em sua Genealogia da Moral afirmou que somente aquilo que não cessa de doer permanece na memória, podemos imaginar o sofrimento de Funes, incapaz de esquecer. Suas lembranças eram dolorosas de nitidez e intransmissíveis pelo excesso. O personagem de Borges realiza uma ‘experiência do inexperienciável’ – a proximidade da morte -, de onde ressurge transformado, dotado de uma extraordinária capacidade mnemônica, que não pode ser compartilhada ou transmitida.

 

A série Para Irineu Funes lida com o que é impossível para o personagem de Borges: o esquecimento. Dispostos em colunas verticais, os jornais são selecionados e agrupados por tonalidades. As cores impressas são instáveis, sedutoras e mundanas. Mais uma vez, trata-se de materializar a operação seletiva da leitura, que repele o texto informativo, transformando os jornais num murmúrio de informações cromáticas. Corroído pelo atrito da raspagem, o texto-cor afirma-se num tempo sempre-já-passado. Carimbos com fragmentos do conto de Borges são impressos sobre as cores semi-apagadas: “Mis sueños son como la vigilia de ustedes”. “Mi memoria, señor, es como vacidero de basuras”.11 Os verbosesquecerlembrar intercalam-se a estes textos, mas não se trata aqui de nenhum elogio ao esquecimento, muito ao contrário. Memória e esquecimento são indissociáveis e relacionam-se sempre de modo tenso e imprevisível. Mas é certo que esquecer pode ser uma medida higiênica e saudável diante da massa informativa, e tantas vezes inútil, dos meios de comunicação. Cabe rejeitá-la de forma crítica, buscando com vigor a experiência e o sentido, sempre tão precários, provisórios e ameaçados pelo esquecimento.

 

*Leila Danziger é artista plástica e professora adjunta do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/ UERJ. Graduou-se em Artes pelo Institut d´Arts Visuels, Orléans, França, e fez doutorado em História Social da Cultura, pela Puc-Rio, tendo permanecido 12 meses na Universidade de Oldenburg, Alemanha. Publicações recentes: Monumento íntimo (conto), Revista Musas, nº. 3, IPHAN, 2007; Holocausto ou Shoah? A aporia dos nomes, Arquivo Maaravi: Revista de Estudos Judaicos, nº. 1, NEJ/UFMG, 2007; destroços (poema), Revista Inimigo Rumor nº. 20, Sette Letras/ Cosac Naify, 2007; A língua paterna, in: Finazzi-Agró, E.; Vecchi, R. (orgs.), Formas e mediações do trágico moderno, São Paulo: Unimarco, 2004.

NOTAS


1 Este texto foi apresentado no Colóquio Entre-lugares: Arte e Pensamento (Literatura e Artes Plásticas), do Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, em outubro de 2005, organizado pelo Prof. Alberto Pucheu. A série Diários públicos é resultado de projeto de pesquisa contemplado pelo 7º Programa de Bolsas RioArte (2001/ 02), do Instituto Municipal de Cultura do Rio de Janeiro. Foi apresentada em duas mostras individuais: Espaço Cultural Sérgio Porto, Rio de Janeiro, 2004 e Casa da Cultura da América Latina, Brasília, novembro de 2007; e em diversas exposições coletivas, entre as quais destacam-se: Imagens da Lembrança e do Desaparecimento (IFA-Galerie, Berlim, 2003); Lugar Plano (Espaço ECCO, Brasília, 2006); Achados e Perdidos(Sesc-Pinheiros, São Paulo, 2007).

2 BARTHES, 1990, pp. 154 -157

3 LYOTARD, 1988, p. 131

4 JACKSON, 1978, p. 33

5 Idem, p.35

6 BLANCHOT, 2005, p. 273

7 AGAMBEN, 2002, p.116

8 BORGES, 2001, p.102

9 Idem, p. 84

10 BORGES, op.cit, p.113

11 BORGES, 1999, p. 121

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua, tradução Henrique Burigo, Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.

BARTHES, Roland. Cy Twombly ou Non multa sed multum. In: O óbvio e o obtuso, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

BLANCHOT, Maurice. O livro a vir, tradução Leyla Perrone-Moyses, São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BORGES, Jorge Luis. O Livro de areia, tradução Lygia Morrone, São Paulo: Globo, 2001.

__________. Ficções, tradução Carlos Nejar, São Paulo: Globo, 1995.

__________. Narraciones, Madrid: Cátedra, 1999.

JACKSON, John. La Question du moi, Neuchâtel: Ed. De la Baconnière, 1978.

LYOTARD, Jean-François. L’Inhumain. Causeries sur le temps, Paris: Galilée, 1988.

 

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Um certo Oriente: imagem e anamnese | de Susana Scramim

Inelutável modalidade do visível (ineluctable modality of the visible): pelo menos isso se não mais, pensado através dos meus olhos. Assinaturas de todas as coisas estou aqui para ler, marissêmen e maribodelha, a maré montante, esta votinas carcomidas. Verdemuco, azulargênteo, carcoma: signos coloridos. Limites do diáfano. Mas ele acrescenta: nos corpos. Então ele se compenetrava deles corpos antes deles coloridos. Como? Batendo sua cachola contra eles, com os diabos. Devagar. Calvo ele era e milionário, maestro di color che sanno. Limite do diáfano em. Por que em? Diáfano, adiáfano. Se se pode pôr os cinco dedos através, é porque é uma grade, se não uma porta. Fecha os olhos e vê.1

Fechar os olhos para ver ou buscar em apenas alguns vestígios o esboço de uma história são movimentos em direção ao limite do diáfano nos objetos. O limiar desse estado diáfano transforma os volumes do campo de visão em objetos-relação, em objetos visuais. Em Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, ocorre o trânsito entre a materialidade lingüística e a imaterialidade visual de uma coleção de objetos e, para perceber o que essa coleção pode significar, adentra-se numa zona limítrofe entre o ver e o falar: “os limites do diáfano”. Stephen Dedalus, personagem principal do Ulysses de James Joyce ultrapassou esse limite e quis ver com algo mais do que aquilo que seus olhos mostravam. Em Relato de um certo Oriente, os objetos colecionados sinalizam uma perda, a destruição de um mundo, o desaparecimento dos próprios objetos ou dos corpos que encenaram uma história. Essa é a história de uma família de imigrantes árabes na Amazônia brasileira ou a tentativa de sua reconstrução, cuja matriarca, Emilie, desencadeia o movimento entre os parentes, inclusive o da reconstituição da história familiar, já que a narradora que orquestra as vozes narrativas é a filha adotiva de Emilie. A jovem narradora esteve ausente durante muitos anos do convívio da família por ter estado internada numa clínica de tratamento psiquiátrico. Desde a primeira página do romance a narradora se prepara para o reencontro com sua mãe, que no fim ela não encontra, ou melhor, a reencontra morta, assim, efetivamente, perdendo sua mãe. Com base na formulação de Julia Kristeva que o estrangeiro é aquele que perdeu sua mãe2 seria possível pensar que o ponto de vista da narrativa no Relato de um certo Oriente é fundado num exílio conceitual dado pela consangüinidade negativa, pelos anos de ausência do convívio da mãe à perda efetiva da mãe. Nesse sentido, o que se reconstrói não é uma história de estrangeiros, mais do que isso, essa é uma história de exilados, de homens e mulheres que perderam uma cultura, uma língua, uma religião, e buscam desesperadamen reencontrá-la, nos objetos, nos rabiscos, nas marcas de café deixadas no fundo das xícaras, nos desenhos de crianças estampados nas paredes da casa e nos depoimentos baseados na memória de pessoas que ainda trazem consigo os vestígios dessa cultura. Essa história estará marcada por uma espécie de anacronismo porque, além de narrar o que já é passado, obedecerá a um procedimento de reconstituir esse passado com base em imagens, em vestígios, em traços de sentimento e caráter de pessoas que já não são mais as mesmas. Essa é uma história que foi reconstruída com base em sua própria ruína. Alegoria maior disso materializa-se na descrição, feita no presente da narrativa, do jardim e da casa da família em ruínas. Dessa forma, não seria demasiado dizer que o Relato de um certo Oriente é ele mesmo, em sua materialidade narrativa, um objeto que fala da perda, da destruição e do desaparecimento de um mundo com seus objetos e corpos.

Os volumes que aparecem no texto são portadores de um vazio existencial uma vez que eles já não são mais o que eram, foram esvaziados de seus conteúdos anteriores. Contudo, esse vazio se mostra relacional, ele não é cínico, pois a perda não é tratada como um ato definitivo, e sim como um movimento em que o objeto perdido desaparece e volta a reaparecer intermitentemente proporcionando surpresa e espanto por parte de quem o executa. Esse movimento encerra uma teoria da história como repetição, no entanto, uma história que nunca será a mesma. Nietzsche enxergou esse movimento através da perspectiva histórica do eterno retorno. Ao estudar os problemas da diferença, do sentido, do desejo e da multiplicidade Gilles Deleuze reivindica o eterno retorno como aquilo que sobra, aquilo que se “seleciona”, a forma extrema, a diferença, no movimento da história.

O extremo não é a identidade dos contrários, mas, antes, a univocidade do diferente, a forma superior não é a forma infinita, mas, antes, o eterno informal do próprio eterno retorno através das metamorfoses e das transformações. […] O gênio do eterno retorno não está na memória, mas no desperdício, no esquecimento tornado ativo.3

Walter Benjamin, num sentido paralelo, articulou uma teoria da história como impossibilidade de transmissão da tradição, quer seja, como impossibilidade de repetição na repetição, quando correlaciona sua teoria da história com a teoria da experiência. Giorgio Agamben, lendo a teoria da história de Benjamim, soube evidenciar essa relação interna quando observou a importância da categoria de infância como produtora de significantes instáveisperviventes na relação entre experiência e história na obra do filósofo alemão.

De modo que se observamos ahora nuestra cultura, que cree haberse librado de esos problemas y haber resuelto de manera racional la transmisión de los significantes del pasado al presente, no tardaremos mucho en reconocer las ‘larvas’ en los Nachleben y en las supervivencias de los significantes del pasado, despojados de su significado original.4

Desse modo, continua Agamben,

la verdadera continuidad histórica no es la que cree que se puede desembarazar de los significantes de la discontinuidad relegándolos en un país de los juguetes o en un museo de larvas: (que a menudo coinciden actualmente en un solo lugar: la institución universitaria), sino la que los acepta y los asume, ‘jugando’ con ellos, para restituirlos al pasado y transmitirlos al futuro.5

Nesse sentido, Raul Antelo, em Genealogia do Vazio, sublinhou a respeito do Relato de um certo Orienteque “a ficção moderna é intraduzível, mas ainda assim se ensaiam intercâmbios vãos ante a impossibilidade de uma transferência efetiva, de uma equivalência necessária, mas ao mesmo tempo impossível”. No mesmo diapasão, a narradora do Relato, perto do fim de sua saga, que poderia ser definida como a de traduzir/transferir a experiência de uma tradição acumulada pela família, conclui que “remar era um gesto inútil: era permanecer indefinidamente no meio do rio”6. Essa maneira de refletir sobre a transmissão da experiência encena uma teoria da história que pode igualmente ser encontrada em outro texto de Milton Hatoum, num verso de um poema: “remar tornou-se um verbo estático”7. Vale ressaltar que se passeia sem meta para captar e registrar o que está a sua volta, contudo há uma constatação de um vazio que é paralisante somente em seu primeiro momento, uma vez que ele é percebido a partir de imagens em movimento. Dessa forma, esse passear é gerador de uma passividade ativa, daí que um jogo é praticado cujos movimentos acontecem justamente onde eles não são esperados.

A via de mão dupla do visual, ou o jogo do esvaziamento

Todo jogo obedece a uma estrutura. Flora Süssekind chamou a atenção para um certo ritmo, uma certa regularidade nos movimentos narrativos, alternância nos focos narrativos ou na “multiplicação de monólogos” no livro Relato de um certo Oriente, ao que a crítica carioca denominou de “jogo de paciência”8. Esse jogo implica em suas próprias regras uma perda iminente. Quando o baralho for reconstituído na sua totalidade, o objeto reconstituído, o baralho com todos os seus naipes, com todas suas imagens, será apenas mais um baralho, mais um objeto, mais uma história, ao final perderá sua complexidade, tornando-se um objeto banal, vazio de sentido, completo. No entanto, esse não parece ser o jogo que o movimento da narrativa em Relato de um certo Oriente executa. Esse outro jogo estaria ainda baseado no ocultamento e desocultamento de detalhes significativos para a organização do resultado final, mas as missivas que a narradora reúne, juntamente com outros objetos tão importantes quanto as cartas, para compor sua história, não são a evidência de que se trata de um jogo de cartas de baralho ou de um jogo de paciência. Os objetos, inclusive alguns mais significativos que as cartas – o desenho de criança na parede, as marcas do café deixadas na xícara, o relógio, as fotografias, encontram-se ligados por um fio condutor desse jogo que funciona como um carretel que uma criança vê, toma-o nas mãos e, ao tocá-lo, não quer mais vê-lo. Atira-o longe: o carretel desaparece atrás da cortina. O jogo escolhido como estratégia narrativa em Relato de um certo Oriente não é uma malfadada partida de paciência e, dessa forma, não há os constrangimentos por parte do jogador que teria sido “obrigado a interromper [o jogo], não sem uma explicação envergonhada, já que havia gente olhando”9. Trata-se de um outro jogo marcado pela alternância entre uma ausência e uma presença, por uma perda e, logo após, por um ganho. Os movimentos do jogador constituem uma série. Série essa na qual se reconhece a cena paradigmática descrita por Freud em Além do princípio do prazer, em que seu neto de 18 meses de vida, é observado a brincar de puxar e rolar um carretel que desaparecia e que quando reaparecia era saudado com um alegre Da (Eis aí !). Georges Didi-Hubermann, ao comentar essa análise de Freud, chama a atenção para o movimento de retorno do carretel ao campo de visão do jogador. Um retorno de carretel que, como um peixe surgido do mar puxado pelo anzol, cria um outro ponto de vista porque já não se sabe quem olha, se a criança que puxou o carretel ou se o carretel que olha, carregado de outros sentidos que está depois de sua reaparição. Esse movimento, sublinha ainda Didi-Huberman, “abre na criança algo como uma cisão ritmicamente repetida. Torna-se por isso mesmo o necessário instrumento de sua capacidade de existir, entre a ausência e a presença, entre o impulso e a surpresa”, e completa mais adiante, apontando já para uma caracterização dialética das imagens, “quando o que vemos é suportado por uma obra de perda, e quando disto alguma coisa resta.”10

Em Relato de um certo Oriente, há, de um lado, a estrutura do texto que se caracteriza pela série, ou seja, a história da família de Emilie é composta por uma seqüência de relatos para cada um dos quais há uma voz narrativa particular. E de outro, há um modo de operar essa estrutura que ultrapassa a mera alternância de focos narrativos das histórias, ou melhor, a alternância de perspectiva acontece também entre o leitor do relato e o leitor do tecido interno de cada uma das histórias relatadas porque se inscreve, no processo de rememoração da história, uma outra série: a das imagens. Anamnese aqui se desvincula das abordagens puramente historicistas bem como das puramente subjetivas. A imagem recebe um tratamento crítico no melhor estilo benjaminiano. As imagens são tratadas como documentos pessoais de cultura que marcam a passagem de ida e de retorno de um tempo através das ruínas de vidas humanas. As vidas foram perdidas. Como já se disse aqui, se trata do Relato de uma perda ou de várias. Há neste romance o relato de várias mortes. A morte ali é uma presença forte, quase um personagem a constituir ausências. A mais significante dessas mortes com certeza será a de Soraya Ângela, personagem para quem Milton Hatoum escreveu um poema em separado do livro e que ainda permanece inédito. É um poema da morte que, sintomaticamente, foi intitulado como “Olhos da memória”. O luto pela morte da menina desencadeia um processo de anamnese para o qual o olho se torna o elemento irradiador de sentido. Nesse processo, a menina era somente olho, porque era um ser inacabado, muda e surda, aquele ser era um olho, era pura imagem. Um olho para o qual convergiam todos os olhos, para o qual convergiam todos os desejos. Não obstante, a peça de Schubert, Der Tod und das Mädchen, A morte e a menina, é introduzida como mais um elemento de estrutura do texto no relato da saga familiar. A peça é citada pela narradora enquanto conversava com Dorner depois de um reencontro casual na beira do rio. Reencontro que desencadeia mais anamneses marcadas por imagens críticas, imagens em movimento, no entanto, imagens marcadas pela singularidade. No ir e vir das imagens configura-se o movimento de presenças e de ausências, o jogo de carretel. No “Lieder” de Matthias Claudius, que foi posteriormente adaptado para a peça para quatro cordas de Schubert, pode-se perceber claramente o movimento de recusa e aceitação, de vai e vem do discurso da morte que deseja levar a menina e desta que se esquiva, mas ao final acaba sendo levada pela morte. O diálogo da menina com a morte e o luto pela morte da menina são geradores de mais rememorações. Assim, aquilo que se perde estrutura o relato, a história.

Nesse sentido, poderia ainda dizer que a morte é uma figura no Relato de um certo Oriente, figura essa que também se constitui em imagem, ou melhor, em ausência de imagem. O leitor não encontrará, configurada na materialidade do texto, nenhuma das cenas da morte, apenas sua ausência. A cena da morte da menina é apenas descrita no seu entorno, da mesma forma o suicídio de Emir, descrito pela fotografia que Donner tirou dele pouco antes de seu suicídio no rio Negro, a morte de Emilie também não será enfocada diretamente. No fim das contas, será preciso convir que para além da morte como figura iconográfica, é de fato a sua ausência que rege esse balé desconcertante de imagens sempre interditas. A ausência é considerada aqui como motor tanto do desejo – da própria vida – quanto do luto – que não é a morte mesma (isso não teria sentido). A morte não importa, ela nada produz, contudo, o luto desencadeia um trabalho psíquico naquele que se confronta com a morte e movimenta o olhar com esse confronto. Dessa forma, o relato da perda, os seus volumes vazios – os túmulos vazios – transformam-se em figuras, em objetos doadores de sentidos. Sendo assim, quando se opera a leitura desses volumes, encontra-se neles uma fenda por onde algo olha para o leitor.

No Relato de um certo Oriente as imagens desencadeiam, mais do que o verbo, a anamnese em homens e mulheres que se ausentaram de sua casa, de sua família, de sua mãe. São exilados, estrangeiros. Interessa lembrar novamente da bela imagem que Julia Kristeva articula para falar do estranhamento intrinsecamente familiar que o sentimento de exílio pode provocar: uma espécie de estranhamento para aquilo que seria mais íntimo em nós mesmos. “O estrangeiro, portanto, é aquele que perdeu a mãe.” A teórica francesa faz essa afirmação baseada no entendimento de que há uma ferida secreta, mas familiar, que o próprio estrangeiro desconhece, arremessando-o em um vagar constante. Essa ferida, segundo Kristeva, é um sentimento de não-estar à vontade ou mesmo um sentimento de ser mal-amado. Entretanto, “o desafio emudece a queixa”, ressalta ainda a autora, e,

fixado a esse outro lugar, tão seguro quanto inabordável, o estrangeiro está pronto para fugir. Nenhum obstáculo o retém e todos sofrimentos, todos os insultos, todas as rejeições lhes são indiferentes na busca desse território invisível e prometido, desse país que não existe mas que ele traz no seu sonho e que deve realmente ser chamado de um além. O estrangeiro, portanto, é aquele que perdeu a mãe.11

A figura do exílio é bastante recorrente no Relato. Emilie e Emir remontam o fraterno exílio, ambos violentaram um ao outro quando Emir a arrancou do convento em Ebrim e quando Emilie o arrancou de Marselha; tio Hanna e seu sobrinho, o marido de Emilie, do Líbano para um eterno exílio na floresta úmida. Samara Délia, o interno exílio no coração da família; a filha adotiva de Emilie passa 20 anos numa clínica para tratamento psiquiátrico; Hakim, o filho amado de Emilie, o ser de exceção, o mais significativo exílio da família, um exílio permitido e sofrido pela mãe, mas que ganhou conotações do espírito trágico, quando a própria mãe admite que morrera um pouco para que o filho pudesse sobreviver. São personagens desencantados em função de sua incompletude, estão longe da mãe, da mátria, da língua, mas possuidores de um desejo imenso de restituir o lócus uterino. Eles executam um tipo de movimento reacionário em direção à plenitude. Essa busca, entretanto, revela-se inglória, eles não conseguem ser nem europeus, nem americanos; nem ocidentais, nem orientais: isto porque são puramente desejo. O desejo, neste caso, é matéria e movimento, mater e crisis, vida e luto em tensão contínua. A figura do alemão exilado na Amazônia, Gustav Dorner, é emblemática desse puro desejo que impede a restauração conservadora. A forma pela qual Dorner rejeita e se esquiva do Ocidente, da Europa, não é nem violenta nem política nem tão ascética como a narradora do Relato afirma, “Dorner, esse morador-asceta”. A forma da sua rejeição é exatamente uma deriva, um movimento do desejo. Ao assumir Manaus como sua residência, o turista alemão aprendiz não tem a irresponsabilidade ética característica do turista comum, mas também não possui a responsabilidade civil e política do cidadão. Ele se coloca entre dois estatutos fortes numa posição intermediária, mas dura. Mistura de precariedade e eternidade. O residente é, em suma, um turista que repete seu desejo de ficar. Ao residente que possui um bom conhecimento do lugar, dos costumes e da língua é permitido satisfazer o desejo que o moveu até lá: o desejo de reencontrar a mãe. No entanto, Dorner não se completa na Amazônia, seu vagar no presente da narrativa ainda é uma deriva, visto que a narradora o reencontra andando perto do rio e não o reconhece à primeira vista, mas a figura de Dorner lhe desperta o olhar: “alguém que visivelmente não era turista nem da terra, uma figura vestida de branco, altíssima, caminhando de uma forma meio desengonçada como se procurasse algum apoio.”12

Essas figuras do exílio instauram um jogo entre o esquecer e o lembrar de coisas que foram obliteradas tanto pelo tempo como pela moral burguesa familiar do final século XIX num Líbano colonial, ponto de partida da história da família de imigrantes e sua vinda para a Amazônia. Hakim descreve as fotografias nas quais sua mãe, Emilie, substitui o relato verbal da vida da família pela linguagem icônica. Um outro jogo se estabelece na relação amorosa dos dois, em vez de metáforas e hipérboles, luz e sombra; ausência e presença. Emilie narra silenciosamente 25 anos da vida da família para Hakim. O silêncio da mãe presentifica para o filho uma profusão de significados. A ausência de um discurso verbal não anula o processo de significação. Ao contrário, é essa ausência que, paradoxalmente, engendra o discurso, afirmando-se, assim, o caráter de incompletude de toda linguagem. As fotografias são um discurso aparentemente neutro, entretanto ele está implicitamente carregado de pontos de vista, de focos determinados racionalmente por seu autor, Emilie. Mais luz, menos luz, fios de cabelos prateados ou pretos e, depois de alguns anos, prateados e pretos; menos sombras, mais sombras, rugas nascendo na lisa face; poltronas desocupadas, trajes negros, duas alianças no mesmo dedo, tudo disturba. Giorgio Agamben, analisando cinco fotografias e um daguerreótipo de Mario Dondero, dirá que

la fotografia è per me in qualche modo il luogo de Giudizio Universale, essa rappresenta el mondo como appare nell´ultimo giorno, nel Giorno della Collera. Non è certamente una questione di soggetto, non intendo dire che le fotografie che amo sono quelle che rapprasentano qualcosa di grave, di serio o perfino tragico. No, la foto può mostrare un volto, un oggetto, un evento qualunque. […] quella che se potrebbe chiamare la flanerie (o la “deriva”) fotografica: si passeggia senza mete e si fotografa tutto quello che capita. Ma “quello che capita” – il volto di un pellegrino arabo in viaggio, la vetrina di un negozio a Parigi – è convocato, è citato a comparire nel Giorno del Giudizio.

A fotografia no Relato de um certo Oriente, no lugar de fazer os personagens reinstituírem suas origens substantivas perdidas, os impele a mais derivas, é como se cada imagem dos objetos do cotidiano familiar gravada nas fotografias enviadas por Emilie para Hakim o fizesse ficar estático para então passear pela vida inteira de lembranças que daquelas imagens saíssem. Estaria então como no dia do Juízo Final, o ser humano frente a frente, olho no olho com sua vida. Num certo sentido, seria esse um dos sentidos para a imagem: “remar se tornou um verbo estático”.

O anacronismo da luz, o negativo fotográfico e a teoria da história

A leitura que Hakim faz das fotos enviadas por Emilie é marcada pela reflexão moderna sobre a história, quer dizer, nela está presente o diálogo entre cultura e a natureza, entre técnica e magia. O mesmo princípio que estrutura a leitura da narradora constrói também a relação do Relato com a história. Tal relação pode ser encontrada na forma a partir da qual o narrado é revelado. O tempo no romance, que é uma maneira de estabelecer algum tipo de relação com a história, concretiza-se na própria constituição da narração. A narradora encontra-se materialmente em outro tempo que não é o do narrado, contudo há um imenso desejo de recuperar aquilo que, a princípio, se encontra perdido. Para realizar esse desejo ela utiliza-se, entre outros recursos, do procedimento de descrever as imagens registradas nas fotografias. Há uma transcodificação de linguagens, passa-se da imagem para a palavra.

No texto Uma pequena história da fotografia, Walter Benjamin alerta para uma combinação de opostos inerente à arte de fotografar. Diz Benjamin, “a técnica mais exata pode conferir aos seus produtos um valor mágico”13. A diferença entre técnica e magia, segundo o autor, passa, a partir da fotografia, a ser uma variável histórica. A foto, espaço conscientemente elaborado pelo homem, atua num outro de natureza bastante diversa : o espaço do inconsciente. Com a técnica fotográfica surge a possibilidade de controle da consciência da história através do tempo, bem como dos aspectos subjetivos dessa mesma consciência histórica. Dessa outra percepção do tempo brotam as imagens, os aspectos “fisionômicos”, termo caro a Benjamin. Trata-se de imagens de outros mundos. Na análise dos aspectos fisionômicos do passado o autor pôde prever a popularização do ato de bater fotos, comparando-o ao ato de “a-bater” animais. Entretanto, ressalta a diferença existente entre a fotografia enquanto mero suvenir de caçador e a arte da fotografia. Nesse ponto as visões de Roland Barthes e Walter Benjamin sobre a fotografia confluem. Para ambos a fotografia como arte possui um estatuto particular, sendo detentora de um outro código conotativo, o qual se distinguiria do código meramente verbal. O ensaísta francês sublinha justamente o caráter histórico, precisamente cultural, do código fotográfico14. Porém, porque a linguagem da fotografia é cultural, a ambigüidade que advém de uma foto arranca-lhe a imposição instrumental de simplesmente ratificar o que ela representa. Há na fotografia uma certa dissolução da linha limítrofe entre a certeza e o esquecimento. Certeza essa, segundo Barthes, que nenhum escrito pode dar, uma vez que toda linguagem é, por natureza, ficcional.

Este é um paradoxo que supõe a coexistência de substâncias, a princípio opostas, mas que não se anulam: a certeza e o esquecimento. Elaborar um relato no qual a certeza e o esquecimento não devem ser tornados nulos, é uma tarefa que se impõe aos narradores do Relato de um certo Oriente. É possível encontrar nas palavras de Hakim ecos dessa concepção de fotografia, quando narra a experiência de receber notícias da mãe por meio de imagens registradas num cartão.

Porque era a revelação de um momento real e de uma situação palpável o que mais me impressionava na fotografia. Sentia-me ali, juntinho de Emilie, ocupando a outra cadeira de vime, atento ao seu olhar, à sua voz que não me interrogava (…) A voz e a imagem me fazem recordar um mundo de desilusões.15

Nessas fotos encontram-se juntos os aspectos analisados por Walter Benjamin na arte de fotografar: técnica e magia. A imagem desenlaça um instante da memória, inclusive a voz de Emilie que se ouvia na ausência da própria voz. Encontram-se em conjunção verbo e o ícone no movimento de criação da figura. O objeto que é visto pelo personagem Hakim, a fotografia, parece não pertencer à mesma natureza do objeto meticulosamente preparado pelo fotógrafo ao registrar a cena. De alguma maneira um mesmo objeto é constituído por duas naturezas discursivas que, se não são adversas, por certo seriam diversas: o discurso do real e o do imaginário. Um é constituído conscientemente, a cena registrada pelo fotógrafo. O outro é fruto da leitura do primeiro, da fotografia. No entanto, o que era uma imagem captada pela lente objetiva desencadeou todo um processo de construção de imagens de um mundo subjetivo. Roland Barthes, no livro A câmara clara, diz que há uma identificação entre a fotografia e a vida, entre espaço e tempo, que as fotos criam instantes feitos a golpes de pequenas solidões. As fotos que estão no Relato de um certo Oriente são utilizadas também como recurso do narrador na criação dos instantes talhados no enclausuramento de um sujeito à busca de uma língua liberta do sentido referencial. Instaura-se a possibilidade de conhecer os aspectos fisionômicos de um mundo figurado, repleto de cheiros, cores e sons, que passa a ter existência somente quando é autorizado pelo discurso de um personagem que implicitamente assume a sua fala como apropriação particular desse mesmo universo. Barthes frisa que a fotografia não é “animada”, contudo, ela produz animação no leitor, e é isso o que toda aventura produz. Esse processo anímico desencadeia em um dos personagens-narrador, Hakim, a visão de todo um mundo paralisado à espera de movimento estático. “Remar era permanecer indefinidamente no meio do rio.” Essa frase que não foi proferida por Hakim ecoa nas frases construídas por ele mesmo.

Se eu não tivesse olhado para aquela fotografia, poderia abstrair todas as outras, fechar os olhos a todos os retratos enviados para mim ao longo de tantos anos, ou simplesmente recordar através das imagens algo fugidio, que escapa da realidade e contraria uma verdade, uma evidência.16

No Relato de um certo Oriente das imagens formula-se o verbo. Logo no início da narrativa há uma descrição, feita pela filha adotiva de Emilie, de um desenho. Aquilo que seria apenas um ajuntamento de traços feitos pelas mãos primitivas de uma criança remete o leitor a uma gravura de Paul Klee, como bem observou Flora Sussekind17. Era o desenho de um homem remando indefinidamente numa malha de água. Essa imagem passa a ser uma das imagens mais recorrentes do romance. Num outro momento da narrativa, Hakim recorda de um costume de Emilie de ler o destino das pessoas a partir dos traços — os quais formavam desenhos — deixados pelos resíduos de café numa xícara emborcada na bandeja. Nesse procedimento há uma evocação, não da técnica, que está na superfície do ato de fotografar, mas das longínquas forças da magia de que fala Walter Benjamin. No ensaio Sobre la faculdad mimética, Benjamin analisa o processo de descrever imagens, criar significação, a partir da leitura das linhas traçadas na palma de uma mão. Esse procedimento suporia que a língua seria um estágio superior do comportamento mimético e o mais perfeito arquivo de semelhanças não materiais: um meio para o qual emigram sem resíduos as mais antigas forças de produção e recepção mimética, até eliminar as forças da magia18.

Descrever a imagem é mudar de código. Tal procedimento tem suas implicações estéticas. Roland Barthes no ensaio Le message photographique19 propõe a descrição de fotografias como uma escrita impossível, tendo em vista que a fotografia por ela mesma possui um princípio analógico com o real, e de que maneira se aplicaria ao mesmo objeto um outro princípio analógico: a descrição? Na descrição de uma fotografia passa-se da denotação para a conotação para chegar-se novamente à denotação. Nesse sentido descrever uma foto resultaria em algo incompleto. Contudo, Barthes chama atenção para um tipo de fotografia que não se coloca no nível da denotação. Estas conteriam em si uma tensa relação de coexistência. Não uma mera confluência de códigos, isto é, o analógico e o retórico, mas sim uma relação dialógica que dá origem à escritura, o que quer dizer que de uma mensagem sem código hegemônico se desenvolve uma história.

Sendo assim, como se deve ler no Relato de um certo Oriente a intensa recorrência à descrição de fotografias e de seus aparatos técnicos? São muitos os momentos do texto em que podem ser observados esses procedimentos mágicos dos narradores. A cada compasso da narração, seja lá quem for o narrador, há uma compulsão em rever, organizar, classificar o fluxo ininterrupto de imagens vindas da memória involuntária. Dorner, o fotógrafo que passeia sem metas e fotografa tudo a sua volta, acaba por catalogar e classificar com sua Hasselblad tudo e todos e documenta a realidade circundante. Contudo, inversamente, a realidade não constitui o seu maior interesse. O que mais parece seduzi-lo é a combinação de documentário e ficção, a concretização de estados interiores. Ele compreendeu, a partir desse outro modo de olhar, que todos os seus trabalhos fotográficos eram histórias e que, mesmo sendo histórias verdadeiras, também eram inventadas. Ou então, mesmo que fossem inventadas, também eram verdadeiras. Fotografando, Dorner tinha uma permissão racional para viver outros papéis em sua vida. Na sua atitude de um narrador silencioso, fotografava os rostos da gente da província, chegando bem perto do sentimento dos povos do interior da floresta ou, por acaso, captando o estado de alma de um suicida.

A imagem fotográfica possibilita um outro olhar sobre o já visto, apresenta um outro olho que compara. Daqui poderia surgir uma teoria da metáfora não como substituição e sim como sobrevivência e, por extensão, poder-se-ia articular assim uma teoria da história como multidimensionalidade. Com base na técnica do registro negativo de uma imagem estão dadas as múltiplas condições de leitura de um objeto. Tal leitura resultará não na visão daquele objeto, mas num vislumbramento que emerge da relação deste com o olho de quem o olha. Georges Didi-Huberman, a propósito de uma teoria da imagem como serpente histórica, afirma que “o que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável porém é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha. Seria preciso assim partir de novo desse paradoxo em que o ato de ver só se manifesta ao abrir-se em dois.” Quando lançamos nosso olhar de leitores sobre uma foto, percebendo, a partir desse olhar, que algo resta ali que não pode ser reduzido ao silêncio, estamos diante da permanência de alguma coisa que devolve o olhar. Isso seria a infinita possibilidade do objeto, e, naquela possibilidade, se pode vislumbrar uma obra. É nesse sentido que a imagem ultrapassa o caráter do retrato para encontrar um lugar incerto onde o leitor torna-se apto a descobrir inusitados significantes num instante situado no passado. O retrato adquire, dessa forma, um estatuto de figura. Apesar de estar inserida no já vivido, Roland Barthes20 fala da figura como algo caracterizado por uma certa impessoalidade, por um não pertencimento patriótico nem civil e por um anacronismo, cujo efeito é um movimento de desapropriação e de deslocamento dos referentes.

Existe algo dessa passagem do retrato à figura, do retrato à obra no Relato de um certo Oriente. Essa passagem acontece por uma recorrente presença de fotografias no relato verbal da narradora, regente do modo singular de ver de cada um dos personagens que assumem o foco narrativo da história que ela quer recuperar. No romance de Milton Hatoum, o que se vê através da recorrência à figura não é a substituição do retrato pelo relato, e vice-versa, no lugar dessa substituição, o que se encontra é a sobrevivência de dois modos de construir uma história não linear e antievolutiva. A utilização recorrente de imagens anuncia este procedimento já que imagem é luz, portanto, imagem é anacronismo, tempo serpenteante, encavalgado e descontínuo.

*Susana Scramim é doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada e professora adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina, Foi uma das fundadoras da revista Babel e editora, de 2003 a 2006, da revista outra travessia, do curso de pós-graduação em Literatura da UFSC e dela organizou as edições especiais: De Cunha, Euclides da Cunha e Excesso e Exceção sobre Giorgio Agamben e Georges Bataille.

NOTAS


1 J. Joyce. Ulysses (1922), cf. tradução de Antônio Houaiss, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p. 41- 42.

2 Julia Kristeva, Estrangeiros para nós mesmos, trad. Maria Carlota Gomes, Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

3 Gilles Deleuze, Diferença e repetição, trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p.104-105.

4 Giorgio Agamben. Infancia e Historia, trad. do italiano de Silvio Mattoni. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2001, p. 126.

5 Idem, p. 127.

6 Milton Hatoum, Relato de um certo Oriente. 1ª Edição 1989. São Paulo: Companhia da Letras, 1994, p.124.

7 Milton Hatoum, Amazonas: palavras e imagens de um rio entre ruínas. São Paulo: Diadorim, 1979.

8 Flora Süssekind. “Livro de Hatoum lembra jogo de paciência”. Caderno Letras: Folha de S. Paulo, 29/04/89, p. 6.

9 Conforme a análise de Flora Süssekind em “Livro de Hatoum lembra jogo de paciência”, op. cit.

10 Georges Didi-Huberman. O que vemos, o que nos olha, tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998. p.79-80

11 Julia Kristeva, Estrangeiros para nós mesmos, op. cit., p. 12-13.

12 Milton Hatoum. Relato de um certo Oriente, op. cit., p. 129.

13 “Uma pequena história da fotografia”, em Walter Benjamin, org. e trad. Flávio Kothe. São Paulo: Ática, 1991, p. 219.

14 “Ou a vu que le code de connotation n’était vraisemblablement ni ‘naturel’ ni ‘artificiel’, mais historique, ou si l’on préfrère: ‘culturel’; les signes y sont des gestes, des atitudes, des expressions, des couleurs ou des effets, doués de certains sens en vertu de l’usage d’une certaine société: la liaison entre le signifiant et le signifié, c’est-a-dire à proprement parler la signification, reste, sinon immotivée, du moins entièrement historique. On se peut donc dire que l’homme moderne projette dans la lecture de la photographie des sentiments et des valeurs caractériels ou ‘éternels’, c’est-à-dire infra-ou transhistoriques, que si l’on précise bien que la signification, elle, est toujours élaborée par une société et une historie définies; la signification est en somme le mouvement dialectique que résout la contradiction entre l’homme culturel et l’homme naturel.” Roland Barthes. “Le message photographique”, em OEUVRES COMPLÈTES. Tome 1, 1942-1965, op. cit., p. 946.

15 Milton Hatoum. Relato de um certo Oriente, op. cit., p.105.

16 Idem.

17 Flora Süssekind. “Livro de Hatoum lembra jogo de paciência”, op. cit.

18 “Sobre la faculdad mimética”, em Ensayos Escogidos, trad. H. Murena, Buenos Aires: Sur, 1967.

19 Roland Barthes. “Le message photographique”, em OEUVRES COMPLÈTES, op. cit.

20 Roland Barthes. S/Z, em OEUVRES COMPLÈTES, op. cit. , p. 600.


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Os fatos e suas fotos: dispositivos modernos na produção do acontecimento na contemporaneidade | de Ana Maria Mauad

As revistas ilustradas, a partir de 1900, passam a integrar nas suas páginas fotografias que ilustram, complementam e permitem a visualização de uma cultura urbana que se moderniza. Ao longo do século XX, a imprensa ilustrada assume um papel central na conformação de um espaço social que agencia as versões de acontecimentos e processos. Os semanários ilustrados foram, durante boa parte do século XX, as principais fontes de informação para o público urbano, compondo com demais modalidades de veiculação de imagens técnicas, dentre os quais o cinema e posteriormente a televisão, a base de sustentação da chamada cultura da mídia.

Pretende-se nesse texto discutir as diferentes modalidades de uso da imagem fotográfica na construção do acontecimento na imprensa contemporânea, apontando-lhe as estratégias narrativas, bem como o redimensionamento do tempo histórico pelo instantâneo fotográfico. Para tanto, recorre-se à noção de foto-ícone, fotografias que ganham expressões públicas, associadas, ao mundo da política e a noção de acontecimento histórico.

O fundamental é ultrapassar a idéia simplista da história por detrás da foto, apontando para o argumento da foto que faz a história. Nesse sentido escolhi três fotografias em três tempos distintos, 1958, 1961 e 1984, inscritos na historicidade contemporânea, que exibem imagens de políticos, em situações diversas. Associadas a tais imagens, os depoimentos dos fotógrafos recolhidos em entrevistas, Flávio Damm, Erno Scheneider e Milton Guran, representantes de gerações de fotojornalistas que participaram ativamente da redefinição do uso da imagem na imprensa brasileira.

Da foto-ícone para a série ou o corpus fotográfico, o que se propõe é analisar a intertextualidade fotográfica, como processo de mediação entre os meios de produzir cultura e de fornecer racionalidade ao universo da experiência histórica concreta. No caso do fotojornalismo, pensar a mediação como o resultado da definição de um campo fotográfico para o novecentos, que envolve uma estreita relação com o campo político. Neste caso, o fotojornalismo concorre com as demais formas visuais, narrativas e discursos, na elaboração da cultura política de uma época histórica.

Assim, discuto essas três imagens relacionando os tempos, nelas inscritos, e as narrativas por esses tramadas. Vou começar por colocar o problema da condensação do acontecimento no tempo da foto – a síntese do momento, o que daria sentido a noção de foto-ícone. É fundamental aqui, pensar que o tempo histórico se inscreve na foto como um tempo externo, como uma espessura, que o expectador qualificado lhe concede. Essa temporalidade inscreve a foto-ícone no passado estático e como num flash recupera o fato, sendo a ponta de um iceberg – a presentificação do vivido. O tempo atribuído.

Na seqüência, abordo a relação entre fotografia e política, tanto do ponto de vista da imagem representada, quanto da pragmática que funda a própria representação. Merecem especial atenção as trajetórias dos fotógrafos, sua relação com a prática profissional e com a cultura política, com a qual troca olhares – o tempo incorporado. Finalizo com a reflexão sobre o tempo do instante, projetado na prática fotográfica da imprensa do século XX e o seu impacto no regime de historicidade, que se define ao longo desse século. Ressalta-se aqui as considerações de Mauricio Lissovsky sobre a imanência do instante, a noção do tempo como duração, do fotógrafo como expectante, da espera como o diferencial da fotografia moderna e, por fim, da imagem como devir – o tempo vivenciado

 

As datas como índices – o tempo atribuído.

1958, 1961, 1984, três datas demarcadoras de um período recente da história do Brasil, no qual a vida política foi marcada por golpes, resistências, crises, planos, possibilidades e frustrações. As datas, como índices, revelam muito mais do que os vestígios que deixaram no rastro do tempo. Das versões comprometidas, aos testemunhos presenciais, passando pelo registro técnico do vivido, a experiência factual deixa inúmeros vestígios tomados pelos historiadores como testemunhos cuja crítica deve ser aprofundada, na trilha de Le Goff, segundo o qual, toda a experiência social, da mais corriqueira à mais ritualizada, produz uma auto-imagem que se processa no tempo como documento/monumento, daí todo o testemunho ser ao mesmo tempo verdade e mentira. Uma projeção que o passado transfere para o futuro, uma ilusão de verdade absoluta que merece sempre ser relativizada. As datas como índices de referências temporais, como balizas de organização do fluxo do tempo, como delimitação de experiências compartilhadas, também são resultado de um jogo de sentidos atribuídos, fazem parte de uma operação que fornece sentido e espessura histórica aos fatos memoráveis.

Da mesma forma que as datas, as imagens tomadas como ícones, como sínteses semelhantes ao acontecimento, presentificam-no sugerindo que o que se vê, é o acontecimento tal qual. Não vale sugerir uma verdade por trás da foto, concebida sempre como falsa consciência, numa concepção de ideologia ultrapassada. Há de se pensar a imagem fotográfica como uma representação, como suporte de relações sociais cujas narrativas definem a historicidade do próprio ato que a funda. É interessante compreender, na narrativa dos fotógrafos, a sua versão do vivido1.


Foto-ícones, a História por detrás das imagens?

 

1º Flash: 1958

O ano de 1958, no qual a foto foi produzida, dava continuidade ao mandato presidencial de Juscelino Kubitschek, então conhecido como o “Presidente Voador”, pelas inúmeras viagens que fez durante os anos de governo. Aliás, seguindo a tradição inaugurada por Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek soube, através da imagem técnica, construir uma imagem pública, suas viagens eram acompanhadas de perto pela imprensa ilustrada, notadamente as revistas O Cruzeiro e Manchete, registrando de perto o dia-a-dia do presidente.

JK em viagem divide o espaço das revistas com o JK em acordos políticos para a composição do ministério. Ao presidente eleito e que vai à Europa e Estados Unidos e vemos nas páginas cumprimentando presidentes, primeiros-ministros, reis e rainhas contrapõe-se o presidente eleito, de rosto sério e tenso, conversando com políticos e prováveis ministros. Manchete faz uma ampla cobertura dessa viagem enquanto que em O Cruzeiro há a preocupação com a política em torno da escolha de ministros e JK aparece nesse sentido, no âmbito da política nacional e não das relações que começa a estabelecer no exterior.2

A presença do presidente no mundo projetava o Brasil no âmbito das relações intencionais do capitalismo avançado, associando-o com a modernidade e a modernização, cujo projeto de governo propunha. Negociava com potências capitalistas, buscando um caminho que efetivamente viabilizasse seu projeto de aceleração do tempo histórico: 50 anos em 5 era afinal seu slogan de governo.

Internacionalmente os anos 1950 foram marcados pelo recrudescimento da guerra fria, pelas lutas de descolonização, pela crescente mobilização pelos direitos civis, pelo surgimento da noção de Terceiro Mundo e de não alinhamento na Conferência de Bandung (1955). O mundo se orientava em blocos geopolíticos e as relações internacionais assumem um papel fundamental na hierarquia dos continentes e no alinhamento das nações. Por isso o presidente tinha asas.

 

2º Flash: 1961

1961, um ano e tanto! Os Estados Unidos rompem com Cuba revolucionária; Iuri Gagárin, da URSS, é o primeiro homem a fazer uma viagem espacial; crise da Baía dos Porcos (Playa Girón). Mercenários financiados pelos Estados Unidos tentam invadir Cuba a partir de Miami. Fracassam em dois dias face às milícias cubanas; Brizola, governador do Rio Grande do Sul, é dos mais duros na denúncia dos Estados Unidos; nasce a OUA (Organização de Unidade Africana), combatendo o colonialismo e o racismo; criada em Londres a Anistia Internacional visando à defesa dos presos por motivos políticos, religiosos, étnicos, ideológicos ou raciais; Jango viaja à China em visita oficial; Conferência Interamericana de Punta Del Este, Uruguai. Os Estados Unidos tentam conter a influência cubana (representada por Che); a Alemanha Oriental ergue o Muro de Berlim, símbolo da Guerra Fria; Jânio Quadros condecora Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro e abre crise política, vários militares devolvem suas condecorações em protesto. Conservador em todos os sentidos, o governo Jânio Quadros reserva para a política externa posturas de desafio aos Estados Unidos e à reação; Jânio Quadros renuncia na ausência do vice, em viagem à China, e os ministros militares vetam a posse de João Goulart, Jango; o Brasil restabelece relações com a União Soviética, rompidas por Dutra em 1947.3

O mundo se polariza e no clic de Erno Schneider, Jânio Quadros não sabe qual rumo tomar, se enrola nas pernas, e num balé inusitado, renuncia, contribuindo para o desfecho no golpe civil militar.

 

3º Flash: 1984

Vinte anos depois, outro ano e tanto! 1984, ano título da célebre ficção de George Orwell, prenunciando um big brother que, de forma mais prosaica, mas não menos maligna, estaria sendo encenado no milênio.4 Para além da ficção real, ou imaginária, 1984 foi o ano da campanha das Diretas Já e do renascer da esperança da democracia no Brasil.

O calendário de comícios fornece o ritmo crescente das manifestações. 25/1/1984: primeiro comício-gigante (300 mil pessoas) da campanha Diretas Já, na Praça da Sé, São Paulo. A emissora de televisão, Rede Globo não cobre o evento; 24/2/1984: comício pró-Diretas de 250 mil em Belo Horizonte; 21/3/1984: passeata de 300 mil pelas Diretas, no Rio de Janeiro; 10/4/1984: comício de 1,2 milhão de pessoas pelas Diretas-Já, na Candelária, centro do Rio de Janeiro; 12/4/1984: comício pró-Diretas reúne 250 mil pessoas em Goiânia; 16/4/1984: comício de 1,7 milhão de pessoas pelas Diretas-Já, no Anhangabaú, São Paulo. É em números absolutos a maior manifestação de massas em cinco séculos de história do Brasil5.

Como revela o fotógrafo na sua entrevista, a foto é do início dos anos 1980, associada à organização dos comitês de anistia. Ainda assim, essa fotografia foi utilizada pela editoria da Revista Senhor, como parte do artigo de abertura. Este artigo fazia o papel de editorial, realizando um balanço da situação política da semana. No dia nove de maio é publicada com o seguinte título: Negociação ou mobilização? Só fala em nome do povo quem não negocia as diretas-já, e legenda: Figueiredo gostaria de desfazer esta velha afetuosa união.

Neste caso, a apropriação da foto de um tempo por outro, implica no esgarçamento da duração do acontecimento, atribuindo à conjuntura de abertura política um sentido visual compartilhado. A afetuosa união entre o Dr. Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, originada na tradição social democrata de ambos, se consolidaria nas campanhas pela anistia ampla geral e irrestrita e pelo apoio à campanha das Diretas Já. De acordo com leitura feita por Guran, em seu livro Linguagem Fotográfica e Informação:

Ulysses Guimarães representava, na época, a campanha pelas eleições diretas para a Presidência da República, enquanto Tancredo Neves seria a solução negociada. A inclinação corporal de Ulysses, sobretudo a sua mão esquerda, percorrendo a diagonal do quadro da esquerda para a direita (o sentido da leitura de nossa cultura) até chegar a cabeça de Tancredo, sugere, plasticamente, o segundo como resultado do primeiro e como “ponto final” da foto. A integração entre os personagens é como que o retrato da negociação política em curso. ‘Tancredo, eis o homem’, começa o artigo. Efetivamente foi, quase (…)6

Guran cunha, seguindo essa linha de leitura visual, o conceito de “foto eficiente”, segundo o qual, a capacidade de articulação dos elementos da linguagem fotográfica cria uma mensagem de impacto. Tal impacto, nesse caso específico, transcendeu o tempo exato da sua produção, sendo tão eficiente a ponto de ser polissêmica, permitindo a sua apropriação em outro contexto. Retoma-se a pergunta, será que há uma história por detrás da foto, ou múltiplas histórias?

 

A experiência fotográfica – o tempo incorporado

A geração de fotógrafos, que se formaram a partir da década de 1930, atuou num momento em que a imprensa era o meio por excelência de acesso ao mundo e aos acontecimentos. A imagem dessa geração de fotógrafos exerceu forte influência na forma como a História passou a ser contada. Asconcerned photographs, fotografias, de forte apelo social, produzidas a partir do estreito contato com a diversidade social, conformaram o gênero também denominado “documentação social”.

O legado da geração do fotojornalismo heróico, cujo emblema é Robert Capa, fotógrafo que morreu num acidente de mina, durante a cobertura de guerra, no Camboja, foi justamente a politização do olhar. A perda da inocência fez com que as fotografias de imprensa dialogassem, mais proximamente, com a síntese plástica conquistada pela charge e a caricatura, do que outras linguagens visuais. Os três fotógrafos, em certa medida, guardando as diferenças de geração (1928, 1935, 1948), são tributários desse olhar.

Flávio Damm, gaúcho, nascido em 1928, começa a trabalhar cedo como auxiliar de laboratório na Revista do Globo e aos 20 anos publica um furo de reportagem. Na edição do dia seis de novembro de 1948, daRevista do Globo (Ano XIX, nº 470), em matéria intitulada “A Longa Viagem de Volta”, com texto assinado pelo repórter Rubens Vidal, publica as primeiras fotos de Getúlio no seu retorno ao Catete. Esta reportagem lhe rendeu bons frutos, pois em 1949 ruma para o Rio de Janeiro e conquista um posto de fotógrafo na revista O Cruzeiro, o principal veículo do fotojornalismo da época no Brasil. Trabalhou na revista por 10 anos e, em 1959, ruma para uma bem sucedida carreira-solo.

Erno Schneider, também gaúcho, nascido em 1935, também começa a trabalhar cedo em estúdio fotográfico, entretanto, seguindo a trilha de outros da mesma geração, passou a trabalhar na imprensa carioca. No final dos anos 1950, ingressa no Jornal do Brasil, participando da importante reforma gráfica do jornal, onde consegue ganhar o Prêmio Esso de fotografia em 1962. Depois ingressa, em outro importante jornal do período, O Correio da Manhã, no qual é responsável por uma verdadeira revolução visual. Como editor de fotografia desse jornal Erno Schneider redefine o papel da fotografia e dos fotógrafos na construção da notícia, transformando o periódico num veículo de crítica visual ao regime militar7. Depois da intervenção no Correio da Manhã, mudou-se para o jornal O Globo, onde se aposentou.

Milton Guran, carioca da Tijuca, nascido em 1948, é fotógrafo, jornalista e antropólogo, doutor em Antropologia (Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales – França, 1996) e mestre em Comunicação Social (Universidade de Brasília, 1991). Repórter-fotográfico atuando na grande imprensa, desde 1973, foi um dos fundadores da AGIL Fotojornalismo (Brasília, 1980) e fotógrafo do Museu do Índio (Rio de Janeiro, 1986-89). É realizador e coordenador geral do FotoRio, encontro bianual de fotografia, desde 2003. Além do registro visual da trajetória política do período da abertura política, destaca-se pelo seu investimento na antropologia visual, articulando os temas identidade e memória, no trabalho sobre os Agudás no Benim e sobre os grupos indígenas do Amazonas. Dos três fotógrafos em questão é o único que enveredou pelos caminhos acadêmicos, e associou teoria e prática trabalhando com a fotografia como instrumento de pesquisa social8.

O breve relato da trajetória dos três fotógrafos serve de medida para dimensionar a relação de cada um com o ato fotográfico e suas formas de busca e espera pelo momento decisivo, de onde a foto-ícone surgirá, como feixe de temporalidades.

 

A prática fotográfica – o tempo vivenciado

Depois de ter inscrito o tempo histórico, através da contextualização das fotografias em seus respectivos anos de produção, e de, na seqüência, ter dimensionado o tempo do olhar dos fotógrafos, por suas trajetórias e pertencimento a uma geração, cabe pensar como, no regime do instantâneo, a fotografia ainda pode conceber uma narrativa de entrelaçamento temporal.

O que diferencia as fotografias modernas, segundo Maurício Lissovsky, é o ato de espera, assim a questão da autoria passa a ser definida pela condição da percepção temporal do sujeito expectante. Assim, acrescento eu, as fotografias são o resultado de uma espera concebida não como uma ação passiva, mas como uma prática social, cuja historicidade redefine a espera em esperança. Por outro lado, noção de intervalo, definida como a duração entre o olhar do fotógrafo e o clic na câmera, ou ainda, como uma forma de inscrição do vivido, como experiência temporal que projeta uma memória, não se confunde com a de interregno e de tempo interrompido. Tal diferença evidencia-se nas marcas que a espera deixa na imagem, na pregnância da duração e no aspecto da fotografia. Daí a possibilidade de definir diferentes resultados desse ato de espera, ou do próprio intervalo – a imanência do instante.

Apesar do autor não incorporar a noção de narratividade à sua duração de espera, creio que é possível perceber, nas marcas dessa espera a trama de uma história. Dessa forma, analisar as diferenças da forma de esperar, em cada uma das três fotografias apresentadas, me permite avaliar as possibilidades de narrativa e/ou duração no instantâneo fotográfico, ou ainda no tempo vivenciado no ato fotográfico.

1958 – Presidente voador – Flávio Damm. Pose arranjada, planejada e armada em parceria com o objeto do desejo fotográfico. O tempo de espera é o da contradança da pose, no acompanhar dos corpos até a justaposição perfeita: asa com braço, cabeça com cabeça, corpo a corpo. Asas da águia, corpo do presidente, na majestade do vôo. O vir a ser da foto, na avaliação da equipe, é a demolição da imagem do presidente, por isso a foto tem a sua publicação censurada. Na concepção do fotógrafo o aspecto só reafirmaria uma tendência, tornando evidente o que todos já sabiam.

1961 – Qual é o rumo? – Erno Scheneider. Pose espontânea, tomada de assalto, pelo inusitado barulho que, inesperadamente, abate o presidente em plena performance esquerdista ao lado do argentino Frondisi. O ruído tira o modelo do prumo e o projeta na instabilidade da conjuntura política. O tempo da espera é o do corpo a corpo, com os demais fotógrafos, e da intimidade com o presidente, do qual o fotógrafo é quase uma sombra. Tomado do mesmo susto, Erno reage como um caçador e captura a imagem com um clic. A intensidade da crítica é demolidora e rende ao fotógrafo o prêmio Esso de 1962.

1984 – Afetuosa união – Milton Guran. Pose planejada, mas não arranjada, sugere uma familiaridade com os modelos, um reconhecimento de suas poses e trejeitos, que espera o momento certo para tomar a foto que já havia visto antes, mas não teve tempo de tirar. Assim, o tempo da espera é o da tocaia, com armadilhas estrategicamente lançadas no terreno visual. O equilíbrio, não é completamente estável, orienta-se pelo movimento da mão no sentido do rosto, pela inclinação dos corpos, pela sensação do contato. O olhar atento do fotógrafo imprime um ritmo harmônico à foto, daí a sua eficiência: uma foto tirada em 1981 pode ilustrar uma matéria de 1984. O tempo da espera foi longo, as marcas da duração na fotografia são pura memória.

 

Conclusão

Segundo um senso comum, o mundo contemporâneo estaria inundado por imagens de diferentes tipos e densidades, fotos, cinema, televisão, internet. Associação que soa no mínimo amedrontadora, ainda mais se nos lembrarmos das imagens de Nova Orleans depois do Katrina.

Ressalta-se, no entanto, a necessidade de ultrapassar o que aparentemente se impõe como indiscutível, ou quase natural, e indagar-se: como podemos lidar com essas imagens? Como selecionar uma dentre muitas? O que de fato captamos nas imagens? Ou por outro lado, tais imagens integram a nossa memória coletiva, ou são fugazes e momentâneas?

A fotografia, ao contrário das imagens em movimento contínuo, ou de diferentes ritmos (como é o caso da internet – pop-upsflashes etc.), caracteriza-se pela sua estabilidade, uma base para o fluxo contínuo de dados. A leitura da fotografia deve romper com a tradição visual icônica, de similaridade e analogia para com o real, que na sua superfície sensível se vislumbra, e considerar segundo a história da sua produção e recepção, o que ela de fato chegou a ser: o parâmetro visual para as categorias centrais da experiência humana.

Por tudo o que já foi dito anteriormente, creio que a história, tanto como processo social, quanto como operação intelectual que se debruça sobre a análise desse mesmo processo, não se define no singular, pois o tempo material fundamental da leitura do passado é sempre plural.

Nesse sentido, por um lado, a experiência social vivida se processa numa sincronicidade de tempos, em ritmos variados, com durações subjetivas, mas também, objetivas, com balizas cronológicas e datáveis. Por outro, a operação histórica deve levar em conta esses múltiplos tempos, não em realidades fugidias, impossíveis de serem interpretadas, relacionadas simplesmente à sua dimensão fenomênica, singular e irrepetível.

A operação histórica se realiza sobre matéria concreta; analisar imagens fotográficas, como síntese de experiências históricas, como potência materializada do acontecimento, implica em deslindar a trama de tempos que tecida na representação visual, as múltiplas histórias que se conjugam para sua realização. A fotografia, como parte integrante do pensamento plástico contemporâneo, permite adentrarmos pela dialética entre o real e o imaginário. Por isso, mesmo na era digital, ela ainda continua a nos comover, nos seduzir e nos informar.
*Ana Maria Mauad é doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense, com pós-doutorado no Museu Paulista da USP. Atualmente é professora do Departamento de História, do Programa de Pós-Graduação em História e pesquisadora do Laboratório de História Oral e Imagem da UFF, desde 1992 e do CNPq desde 1996. Dedica-se ao ensino de teoria e metodologia da história e é autora de vários artigos e capítulos de livros sobre temas ligados à história da cultura e história e imagem, especialmente fotografia.

NOTAS


1Entrevistas com o fotógrafo Flávio Damm: 1ª entrevista, em 24/04/2003; 2ª entrevista, em 13/05/2003, total de horas: 3 horas e 55 minutos; Entrevista com Erno Schneider, 08/05/2003, 2 horas de duração; Milton Guran, 9/05/2006, uma hora de duração, Memórias do contemporâneo: narrativas e imagens do fotojornalismo no Brasil do Século XX, Projeto de Produtividade financiado pelo CNPq, 2005-2008. As entrevistas estão depositadas no Laboratório de História Oral e Imagem da UFF, em fase de tratamento para a sua futura publicação no site.

2BIZELLO, Maria Leandra. Entre fotografias e fotogramas: a construção da imagem pública de Juscelino Kubitschek – 1956-1961, Comunicação apresentada no XX Encontro Nacional da ANPUH, Londrina, 2005, p. 4.

3http://www.vermelho.org.br/linhadotempo/1950.asp, capturado em 13/09/2006

4Faço uma analogia ao reality show transmitido pela Rede Globo de Televisão, desde 2001, na sua sexta versão no ano de 2006.

5http://www.vermelho.org.br/linhadotempo/1950.asp, capturado em 13/09/2006

6GURAN, Milton. Linguagem fotográfica e informação, Rio de Janeiro: Editora Gama Filho, 1999, p 69.

7OLIVEIRA, Gil. O fotojornalismo do Correio da Manhã (1964-1968). 1996. Dissertação, (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Orientador: Ana Maria Mauad.

8Título do curso de especialização coordenado por ele, na Universidade Candido Mendes, entre 2002 e 2005.

 

Tempo de leitura estimado: 5 minutos

Santiago, de João Moreira Salles. O documentário entre o ensaio e autobiografia. | de Consuelo Lins

Em Santiago (uma reflexão sobre o material bruto), o cineasta João Salles coloca em prática uma idéia que vinha defendendo com afinco nos últimos anos: a produção de documentários no Brasil deve se voltar para temas próximos à vida dos diretores e não apenas filmar o “outro” – pobres, desvalidos, marginalizados. Salles talvez se referisse, indiretamente, ao filme iniciado por ele em 1992, e não concluído, sobre o mordomo que trabalhou com a família Moreira Salles por quase trinta anos.

Em agosto de 2005, decide se confrontar com as nove horas do material filmado e finaliza Santiago, que adquire um subtítulo – uma reflexão sobre o material bruto – e uma outra densidade. É um filme que contém muitas histórias: um documentário sobre um mordomo, mas também uma carta filmada dirigida aos irmãos compartilhando memórias, um “ensaio” fílmico sobre como fazer (ou não fazer) um documentário e uma homenagem póstuma ao mordomo, que morreu poucos anos depois da filmagem.

Santiago é de fato um personagem e tanto. Conjuga habilidade narrativa com histórias incomuns de vida: nascido na Argentina, começou a trabalhar com uma família aristocrática em Buenos Aires, contraindo desde então uma paixão por tudo o que dissesse respeito à vida de reis e rainhas, a nobreza em geral, real ou imaginária, pouco importava. É com fascínio por esse mundo que conta as histórias dos grandes jantares e festas na mansão da Gávea, as tarefas que envolviam a arrumação da casa, as mesas, as flores, a orquestra, os nobres e distintos que as freqüentavam. São pequenas narrativas que desvelam aqui e ali a dureza do trabalho contínuo, a dificuldade de uma vida privada, a submissão do mordomo a uma ordem estabelecida.

O documentário, contudo, está longe de ser apenas isso. Salles decide também expor no filme, implacavelmente, o que percebeu ao rever o material de 1992: o quanto se manteve distante de Santiago ao longo dos cinco dias de filmagem, o quanto impôs a ele uma idéia prévia de filme, o tanto que não entendeu o que de fato importava naquele reencontro. Uma compreensão que se deu, de certa maneira, tarde demais. Santiago morreu e o que foi filmado não pôde ser mudado.

Mas é dessa sensação de “tarde demais” que Salles extrai as condições para finalizar o filme. Retoma erros, mal entendidos e incompreensões cometidas por ele ao longo da filmagem de 1992 e os evidencia, sem meias palavras, sem subterfúgios, de forma cruel com ele mesmo, quase como um castigo. Exibe truques e manipulações efetuadas 13 anos antes e afirma na narração: “é difícil saber até onde íamos em busca do quadro perfeito, da fala perfeita”. Desmonta imagens e sons e adverte o espectador: desconfiem do que seus olhos vêem. Radicaliza de tal maneira que pouco a pouco um mal-estar nos acomete porque a imagem que fazíamos do diretor nos seus filmes anteriores – gentil e atento com aqueles que filma – toma direções inesperadas.

Nos deparamos com um diretor por vezes déspota, irritado, apressado, incapaz de estabelecer uma efetiva interação com Santiago, que tenta a seu modo acertar e fazer aquilo que o diretor quer. “Santiago vai de novo, não olha para a gente não. Não olha!” diz Salles em uma das seqüências, ou ainda: “Fala logo que estamos com um pouco de pressa”. É preciso dizer que raras vezes na história do documentário um cineasta ousou explicitar de tal maneira segredos que ficam, na maior parte dos casos, para sempre perdidos no material não usado dos filmes.

A montagem extremamente hábil realizada por Eduardo Escorel e Lívia Serpa chega a inserir quatro repetições de uma mesma fala do mordomo, mantendo hesitações e silêncios, intensificando o desconforto tanto do personagem quanto do espectador. São momentos em que opressões vividas pelo mordomo ao longo da vida parecem se manifestar de forma mais contundente, e é isso que constata Salles, ao dizer, perto do final do filme: “Durante os cinco dias de filmagem eu nunca deixei de ser o filho do dono da casa e ele nunca deixou de ser o nosso mordomo”.

Mas o filme tampouco se limita a essa dimensão confessional. Salles vai gradualmente ao encontro de Santiago e revê o que na época não o havia interessado: as 30 mil páginas de histórias da nobreza de todos os tempos pesquisadas em bibliotecas e transcritas pelo mordomo ao longo de mais de meio século. Uma tentativa quase insana de impedir que aquelas vidas desaparecessem da memória. Salles traz para o filme fragmentos desses escritos, assim como comentários pessoais de Santiago encontrados em meio aos textos. Refaz, a seu modo, o gesto do ex-mordomo e retira Santiago do esquecimento a que as imagens de 1992 o haviam condenado. Santiago é, acima de tudo, a narrativa perturbadora e comovente de um aprendizado e de uma transformação de um cineasta no confronto com ele mesmo em um outro momento da vida. Transformação “sutil e sem alarde”, como diz Salles no final do filme, e que ficou clara no reencontro com as imagens de Santiago.

*Consuelo Lins é documentarista, professora da Escola de Comunicação/UFRJ, e pesquisadora da Coordenação Interdisciplinar de Estudos Culturais da ECO. Autora de O cinema de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo, Jorge Zahar Editor, 2004, 2ª edição.

 

Tempo de leitura estimado: 29 minutos

Documentários em saúde – A produção de humberto mauro no INCE | de Alice Ferry de Moraes

INTRODUÇÃO

Muito já foi escrito sobre nosso grande cineasta Humberto Mauro, que nasceu na cidade de Volta Grande, em Minas Gerais no dia 30 de abril de 1897 e morreu em 5 de novembro de 1983. Mas pouco se sabe sobre sua vida como documentarista científico. Ele sempre teve interesse por diversas áreas: música, literatura, artes plásticas, esportes. A fotografia, estimulada por Pedro Comello, um ítalo/egípcio que foi parar em Cataguases, foi o primeiro passo para sua introdução no cinema. Com ele e alguns comerciantes locais que serviram como produtores, Humberto dirigiu seus primeiros filmes. Sua primeira câmera foi uma pathé-baby de 9,5 mm e com ela filmou Valadião – o Cratera. Formação artística ele teve: foi autor e ator de peças teatrais. A formação acadêmica foi deixada de lado no primeiro ano da faculdade de engenharia, em Belo Horizonte, por falta de emprego que lhe permitisse continuar pagando suas despesas na capital do estado. O jeito foi voltar para Cataguases onde cursou a “academia do quarto da sala”, em outras palavras, o curso de eletricidade por correspondência que fez, lendo suas apostilas em espanhol, no quarto junto à sala, que ele dividia com o avô paterno. Esse curso lhe garantiu sobrevivência em alguns empregos no Rio de Janeiro e proporcionou a abertura de uma oficina em Cataguases com um de seus irmãos. Com o surgimento do rádio, na cidade, Humberto trabalhou algum tempo instalando aparelhos nas fazendas. Nessa ocasião tornou-se radioamador, atividade que exerceu até morrer.

Conheceu Adhemar Gonzaga, da revista Cinearte e sob sua influência dirigiu filmes e documentários, transferindo-se com sua esposa Bebê e seus seis filhos para o Rio de Janeiro. Seu casamento com dona Bebê durou uma vida inteira.

Com as dificuldades para continuar sua carreira de cineasta, após o afastamento de Adhemar Gonzaga, Humberto Mauro passou por momentos difíceis.

Certo dia, um vendedor de eletrodomésticos foi ao Museu Nacional tentar vender alguns aparelhos a Roquette-Pinto para o Museu. Na realidade o vendedor era o cineasta Humberto Mauro, que naquele momento tinha 39 anos e já era conhecido pelos filmes que realizara em Cataguases (MG) […] Roquette não comprou eletrodoméstico algum; fez melhor: convidou Mauro para ser o diretor técnico dos filmes do INCE e fazer cinema educativo no Brasil. (GALVÃO, 2004, p. 84-85)

De acordo com documento encontrado no arquivo de Gustavo Capanema, na Fundação Getúlio Vargas, Humberto Mauro foi contratado no dia 28 de março de 1936 “para servir como técnico cinematográfico nos trabalhos de instalação do Instituto Nacional Educativo, com remuneração mensal de um conto de reis (1,000$000)”.

Na realidade, Humberto Mauro já era conhecido de Roquette Pinto, pois filmara Ameba, em 1935, para a filmoteca do Museu Nacional, onde aquele era diretor.

Humberto Mauro permaneceu de 1936 a 1964 no Instituto Nacional de Cinema Educativo e lá dirigiu 358 documentários. Dentre eles, e com características rurais e folclóricas que lhe trouxeram fama, é possível contar 31 documentários. Ainda como diretor, Humberto Mauro tem em sua filmografia 97 documentários na área da saúde, sendo, portanto, sua maior produção. Documentários sobre outras ciências formam um total de 41.

O INCE

A história do INCE começa em 1932 quando, pelo decreto nº. 21.240 de 04/04/1932 foi instituído o Instituto Brasileiro de Cinematographia Educativa. O presidente Getúlio Vargas assinou um despacho no processo nº. 5.882 de 1º de março de 1936, criando a Comissão Instaladora do Instituto Nacional de Cinema Educativo. Pelo decreto nº. 378 de 23 de janeiro de 1937, que deu nova organização ao então Ministério da Educação e Saúde, o INCE foi definitivamente incluído no quadro dos serviços públicos. Sua legitimação foi assim estabelecida: “Art. 40. Fica criado o I. N. C. E., destinado a promover e orientar a utilização da cinematografia, especialmente como processo auxiliar do ensino e ainda como meio de educação em geral.” (RIBEIRO, 1945, p. 176)

Ao INCE competia: a) editar filmes educativos populares e escolares, bem como diafilmes divulgados dentro e fora do país; b) prestar assistência científica e técnica à iniciativa particular de produção industrial e comercial com fins educativos. Ao Instituto também cabia manter uma filmoteca, divulgar seus filmes por meio de empréstimos ou troca com instituições culturais e de ensino, particulares ou públicas, nacionais ou estrangeiras, além de publicar uma revista sobre educação e o uso de “modernos processos técnicos” (cinema, fonógrafo, rádio etc).

A revista do INCE não chegou a ser publicada, apesar de ter contado com o auxílio do poeta Vinicius de Moraes na sua concepção e na avaliação do orçamento gráfico para sua feitura.

A tarefa de editar filmes estava em transformar filmes de 16 mm, ou sub-standard – utilizados em filmes escolares, pesquisas, intercâmbios e propagandas – em filmes standard ou de 35 mm, que era a bitola dos filmes industriais e extra-escolares. A edição também se dava ao contrário, ou seja, transformar um filme de 35 mm em 16 mm.

Segundo Humberto Mauro, em entrevista dada a Adalberto Mário Ribeiro e publicada na separata daRevista do Serviço Público, ano VI, v. 1, n. 3 de março de 1944, do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), e republicada pela mesma revista, no capítulo sobre o Ministério da Educação e Saúde, do número especial, intitulado Instituições Brasileiras de Cultura, de 1945:

No Brasil, infelizmente, os cinemas até agora só possuem projetores para filmes de bitolas de 35 mm, o que não acontece na maioria dos países europeus e nos Estados Unidos, onde os cinemas possuem sempre o projetor de 16 mm ao lado do de 35 mm. Entretanto, o I. N. C. E. não poderia desprezar esse maquinismo organizado, que o Brasil já possui, e também sua cadeia de cinemas, relativamente ampla, aliás, o único veículo de apresentação de seus filmes ao povo. E por isso o Instituto se encontra aparelhado para quaisquer serviços relativos a filmes de 35 e 16 mm, desde as filmagens, revelações, sonorizações, montagens, cópias, até os serviços especializados de reduções de 35 mm para 16, ampliações de 16 para 35 mm, fotografias intermitentes, microcinematografias, desenhos animados, etc. (RIBEIRO, 1944, p.13)

O INCE estava, portanto, aparelhado para produzir filmes didáticos, documentários sobre a atividade nacional em diversos setores como fatos históricos, obras literárias, trabalhos de engenharia e medicina, ensino técnico profissional, biografia de artistas e suas produções.

Edgard Roquette Pinto, antropólogo, médico e radialista, foi o primeiro diretor do INCE. A identificação entre Humberto Mauro e ele tem raízes na infância, vivida por ambos, em fazendas mineiras; no interesse pelas novas tecnologias (rádio e cinema) e na cultura indígena. Roquette Pinto participou das expedições de Cândido Rondon e a partir delas coletou e escreveu importante material antropológico. Humberto Mauro produziu um dicionário da língua tupi e assessorou diversos filmes brasileiros que utilizaram esse idioma.

As relações culturais do INCE com outros países permitiram o empréstimo de documentários que ilustraram conferências em países europeus como a Dinamarca, França, Portugal e Suíça, países sul-americanos como o Uruguai, Colômbia, México, Paraguai, Chile e Argentina, no Japão, sem contar com os Estados Unidos onde foram exibidos documentários do INCE na Feira Mundial de Nova Iorque, em 1939. A produção de documentários em saúde sobre pesquisas científicas era comum e destinava-se à exibição em congressos internacionais.

O intercâmbio de filmes entre os estados brasileiros também foi promovido pelo INCE, que tinha sua sede na cidade do Rio de Janeiro, Distrito Federal naquela ocasião.

Entre os usuários da filmoteca do INCE estavam nomes como o médico Clementino Fraga, o embaixador Vasco Leitão da Cunha, o etnologista francês Bertrand Fleurnoy, o professor Fróis da Fonseca, diretor da Faculdade Nacional de Medicina, o professor Abelardo Brito, diretor da Escola Nacional de Odontologia, professor Inácio Azevedo do Amaral, diretor da Escola Nacional de Engenharia, professor Baeta Viana da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, o magistrado e membro da Academia Brasileira de Letras Ataulfo de Paiva, o educador e poeta Abgar Renault e Walt Disney.

O educador Paschoal Lemme conta, em suas memórias que, em 1942, Roquette Pinto pensou em se aposentar e o convidou para assumir a direção do INCE. Paschoal Lemme recusou porque estava com importante cargo no Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos. Ele sugeriu, então, o nome do Dr. Pedro Gouvêa Filho, médico e inspetor de ensino do estado do Rio de Janeiro para o cargo oferecido, no qual tomou posse em 1947. De qualquer forma, Paschoal Lemme, nesse mesmo ano, foi para o INCE como chefe da Seção de Orientação Educacional e passou, então, a conviver com Humberto Mauro.

Nesses treze anos do convívio diuturno com Humberto Mauro, fui descobrindo as múltiplas facetas de sua riquíssima personalidade: artista de profunda sensibilidade; técnico dos mais completos na arte cinematográfica; agudíssima inteligência com que supria, de certa forma, suas falhas culturais, que ele próprio reconhecia; um homem de rara integridade moral, católico praticante, profundamente ligado à família, devotando um verdadeiro culto à companheira de toda a vida, de todas as glórias e vicissitudes – dona Baby – e aos filhos, dois dos quais – o Luís e o Zequinha – orientados por ele tornaram-se bons profissionais na técnica da cinematografia. (LEMME, 1988, p. 210)

Esse depoimento mostra o quanto a vida de Humberto Mauro ficou ligada ao INCE.

CONTEXTO HISTÓRICO

Para falar dos documentários em saúde produzidos pelo INCE é necessário lembrar que o Instituto fazia parte do organograma do então Ministério da Educação e Saúde Pública.

Com a tomada do poder pelos integrantes da Revolução de 30, liderada por Getúlio Vargas, foi criado o Ministério da Educação e da Saúde Pública. O Decreto nº. 19.402 de 14/11/1930 criou primeiramente o Ministério de Negócios da Educação e Saúde Pública. O Decreto nº. 19.444 de 01/12/1930 dispunha sobre os serviços que ficariam a cargo do então Ministério da Educação e Saúde Pública.

Uma primeira reforma nesse Ministério foi realizada pelo ministro Gustavo Capanema no período de 1934 a 1937, resultando, entre outras coisas, na mudança do nome para Ministério da Educação e Saúde. Uma segunda reforma aconteceu em 1941. Somente em 1953, uma outra reforma transformou o ministério em Ministério da Saúde, não mais relacionado à Educação que, por sua vez, passou a se relacionar à Cultura.

O golpe de 1937, também liderado por Vargas, deu início ao que ficou conhecido como Estado Novo. Houve um acirramento das idéias de nacionalismo, modernização conservadora, integridade econômica regidas por um processo de centralização.

Ao mesmo tempo em que recrudescia o projeto de state and nation building do Estado Novo, as políticas de Welfare State caminhavam paralelas à agenda internacional de saúde. Circulava entre os países da América Latina a proposta de interação entre eles para priorização das questões sanitárias para combate das chamadas doenças tropicais. Diversos médicos sanitaristas latino-americanos especializaram-se noJohns Hopkins School of Hygiene and Public Health, desde a década de 1910.

O desenvolvimento das políticas sanitárias era visto como instrumento de fortalecimento do poder público e, particularmente no Brasil, as políticas de saúde foram utilizadas como meio de expansão de autoridade pública e de construção do Estado nacional, sendo incorporadas “[ao] projeto político-ideológico do governo, de expansão da autoridade federal no interior do país, justificado pela crítica ao federalismo realizada pelo pensamento autoritário.”(CAMPOS, 2006, p. 25)

De 1942 a 1960, funcionou de maneira autônoma, dentro do Ministério da Educação e Saúde, uma agência internacional – o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) – que era financiada com recursos brasileiros e norte-americanos, criada pela Fundação Rockefeller antes de se retirar do Brasil. Esse serviço foi concebido no contexto da Segunda Guerra Mundial como uma agência temporária, atendendo à demanda do governo norte-americano.

Com a guerra aumentaram as possibilidades de transmissão de doenças, particularmente pelas tropas que atuavam em regiões tropicais, trazendo preocupação aos Estados Unidos.

Logo após o ataque japonês a Pearl Harbor, realizou-se no Rio de Janeiro, em 1942, o Terceiro Encontro de Ministros das Relações Exteriores das Repúblicas Americanas. Os exércitos aliados necessitavam de matérias primas brasileiras tais como a borracha e o ferro, utilizados na indústria bélica. Também foi identificada a necessidade do estabelecimento de bases norte-americanas no Brasil, que traziam consigo as preocupações sobre as doenças tropicais que, eventualmente, pudessem atingir os soldados americanos. A malária, em particular, preocupava duplamente, pois ela vitimava os seringueiros, produtores da borracha, e os estrangeiros que por aqui viessem.

O presidente Vargas aproveitou essa demanda por matérias primas para dar força ao seu programa de desenvolvimento econômico proporcionado pela “cooperação entre bons vizinhos”.

O governo dos Estados Unidos, por sua vez, estava preocupado com a expansão econômica da Alemanha na América Latina, em especial no Brasil, que, em 1939 tinha como seu grande importador o mercado alemão. É verdade, no entanto, que em 1940 o trato comercial entre Brasil e Alemanha foi interrompido. Havia uma preocupação com a propaganda nazista e fascista e, desde 1937, falava-se na “quinta-coluna”, que seria formada por imigrantes alemães, italianos, japoneses que viviam em países latino-americanos. Para neutralizar essa possível propaganda, Nelson Rockefeller sugeriu ao seu governo a criação do Escritório para a Coordenação das Relações Comerciais e Culturais entre as Repúblicas Americanas, que atuava utilizando os meios de comunicação como o rádio, a imprensa escrita e o cinema. O governo americano se fez presente por meio dos programas de saúde e saneamento proporcionados pelo Institute of Inter-American Affairs (IIAA) a partir da década de 30, neutralizando, desse modo, a ameaça alemã.

A criação do SESP proporcionou a aplicabilidade de políticas sanitárias voltadas para as populações do interior do país, visando combater as grandes endemias e endossando a célebre frase “O Brasil é um imenso hospital”, proferida por Miguel Couto, em 1916, ao se referir às condições da saúde no país. Foi criada uma rede de unidades sanitárias, incluindo escolas de enfermagem, hospitais, centros de saúde, ao mesmo tempo em que eram implementados sistemas de abastecimento de água e de esgotos. Foram estabelecidas normas técnicas e procedimentos médicos, que resultaram numa burocracia própria para o setor. Convênios foram estabelecidos entre governos municipais e estaduais, visando a melhora da saúde pública, por intermédio da formação de mão-de-obra qualificada e da educação sanitária.

Logo o SESP percebeu as dificuldades que encontraria para expandir a educação sanitária diante da barreira criada pelo analfabetismo. Foram utilizados, então, cartazes, cartilhas, programas de rádio e filmes, sendo que os dois últimos meios de comunicação por vezes encontravam uma outra barreira: a falta de energia elétrica.

O cinema educativo, com os filmes produzidos pelo estúdio Walt Disney que o IIAA imagina eficientes em todas as partes do mundo, mostrou-se mais adequado ao público urbano que ao rural, não apenas pelas limitações técnicas já apontadas, mas também porque as populações adultas do interior tinham dificuldades em seguir a intensa movimentação dos filmes. [Foram, então, empregados] dispositivos sonoros produzidos por técnicos brasileiros, utilizando-se de música e imagens regionais. Esta técnica, uma resposta local à inépcia, no mundo rural brasileiro, dos métodos e tecnologias importadas, permitia que histórias com conteúdo educativo fossem exibidas nas praças públicas de vilas e cidades, integrando-se às festividades comunitárias tradicionais. (PINHEIRO apud CAMPOS, 2006, p. 233-234)

Os estúdios Walt Disney foram os responsáveis pela produção da série “Saúde para as Américas” que era composta por dez filmes educativos.

A Fundação Rockefeller teve importante papel no movimento sanitarista entre 1910 e 1920 e contribuiu para a difusão dos objetivos da Liga Pró-Saneamento no Brasil, criada em 11 de fevereiro de 1918. A Liga Pró-Saneamento considerava a doença como um problema político e como tal propôs a criação de um Ministério da Higiene e Saúde Pública e um Departamento Nacional de Saúde Pública.

Entre 1942 e 1943, a Fundação Rockefeller abandonou as atividades de intervenção na área da saúde pública e passou a financiar a pesquisa científica e a formação médica. Reforçando essa política, o IIAA, a partir de 1944, enfatizou seu programa de qualificação profissional de médicos e engenheiros sanitários no Rio de Janeiro e São Paulo.

As políticas sociais estimuladas pelo ideário do Welfare State, desenvolvido em diversos países, estimularam a criação do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, redigido por Fernando de Azevedo, em 1932.

A necessidade da criação de uma universidade na capital do país levou um grupo de educadores, liderado por Anísio Teixeira, diretor da Educação do Rio de Janeiro desde 15/10/1931, a estabelecer, em 1935, a Universidade do Distrito Federal (UDF), tendo Afrânio Peixoto como reitor, que durou apenas um ano, fechada que foi por questões políticas do governo Vargas. A preocupação com uma universidade moderna, livre de uma cultura produtora de hierarquia, impulsionada pelas oligarquias, está aliada à idéia do uso de novas tecnologias de informação e comunicação para, como hoje, acelerar o processo educacional em todos os níveis. Essas tecnologias, na época, eram: o rádio e o cinema. Havia também a idéia de criação de uma Escola de Ciências, onde ensino e pesquisa seriam desenvolvidos simultaneamente, para as diversas modalidades científicas.

A proposta de uso do cinema na educação vinha desde os tempos em que Pedro Ernesto era prefeito do Rio de Janeiro. Ele, que foi nomeado em 1931 e eleito para o cargo, em 1934, transformou a antiga Diretoria Geral de Instrução em Departamento de Educação e, mais tarde, em Secretaria de Educação. Nessa época já existia a Divisão de Bibliotecas e Cinema Educativo, cujo responsável era Armando de Campos.

Nesse mesmo período, Roquette Pinto, chefe da Seção de Museus e Radio Difusão, fundava a P.R.D.-5, a Rádio Escola prevista na reforma de ensino de Fernando de Azevedo. Essa rádio foi incorporada, segundo Lima (1978, p. 117), ao Instituto de Pesquisas Educacionais.

TEMÁTICA

Inspirado fortemente na teoria da Escola Nova, de John Dewey e na intensificação de uma política higienista, nascida nos anos 20, no Brasil, as ações do Ministério da Educação e Saúde Pública influenciaram a agenda de produção de documentários do INCE. É verdade que Roquette Pinto foi o responsável por grande parte da escolha dos temas do documentário, enquanto diretor do INCE. Mas não é possível esquecer a ligação desse Instituto ao Ministério, sob a mão forte de Gustavo Capanema, político de destaque, que soube cooptar muitos intelectuais de seu tempo para serviços ao seu Ministério.

Observando com acuidade a produção de documentários em saúde do INCE, em sua maioria dirigida por Humberto Mauro, é possível observar uma concorrência velada entre ele e seus colegas norte-americanos. Ao mesmo tempo, dentro de uma política nacionalista vigente no Brasil, o INCE, sem os exageros da propaganda do também recém criado Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), exalta as ações do Ministério ao qual estava vinculado, produzindo filmes que tinham como títulos os recém criados organismos, ou seja os documentários Serviço de Febre Amarela (1945) e Serviço Nacional de Tuberculose (1945).

No caso do documentário Prevenção da tuberculose pela vacina BCG, é importante observar que a data de sua produção, 1939, coincide com o ano em que a Fundação Ataulfo de Paiva, produtora até hoje dessa vacina, é declarada de utilidade pública pelo decreto de 29 de agosto. Essa fundação, assim nomeada em 1936, foi anteriormente criada em 1900, pelo mesmo Ataulfo de Paiva que lhe deu o nome, como Liga Brasileira contra a Tuberculose. Em 1924, passou a ser Fundação Liga Brasileira contra a Tuberculose.

As ações de saneamento, sob a responsabilidade desse mesmo Ministério, foram também tema de documentários como, por exemplo, Abastecimento d´água no Rio de Janeiro (captação, fabricação de tubos, história da água e represas) (1939), os documentários do mesmo ano sobre Serviço de Esgotos do Rio de Janeiro (fundição, tratamento de esgotos), de 1939 e o documentário Esgotos do Rio de Janeiro, de 1941.

Outras ações sanitaristas do Ministério foram temas dos documentários do INCE como é o caso de A luta contra o ofidismo (1937), Combate à lepra no Brasil (1945), Assistência aos filhos dos lázaros (1950), entre outros.

Higiene rural - Fossa seca (1954)

Com o apoio da Campanha Nacional de Educação Rural, mais precisamente por intermédio do professor Chicralla Haidar e da professora Maria Cathalé Chaves foram produzidos os documentários que ficaram conhecidos como os de Educação rural. Eles formaram um total de cinco documentários produzidos entre 1954 e 1955. Seus cenários bucólicos se repetem em alguns documentários da série Brasilianas, e foram, em sua maioria, produzidos nos mesmos anos.

Documentários institucionais eram produzidos e entre eles podem ser citados: o da Colônia de psicopatas de Jacarepaguá (1936), o Serviço de Saúde Pública do Distrito Federal (1938), o Hospital Colônia de Curupaity – novas instalações (1939), Instituto Oswaldo Cruz (1939), Instituto Pestalozzi(1940). São imagens de prédios institucionais que fazem uma clara alusão ao trabalho modernizador do Ministério.

É possível criar uma tipologia para os documentários em saúde dirigidos por Humberto Mauro com subdivisões: 1) documentários oficiais que, por sua vez, seriam subdivididos em documentários sobre saneamento urbano e rural, sobre ações sanitaristas e sobre institutos ligados ao Ministério. 2) Documentários relacionados à indústria, com o registro da fabricação de produtos ligados à saúde. 3) Documentários científicos subdivididos em resultados de pesquisas e registros cirúrgicos, que seriam utilizados nas salas de aula universitárias. Os dois primeiros itens poderiam ter um público geral, daí serem identificados como populares. Os demais documentários só podem ser compreendidos por especialistas, restando aos leigos pouca informação e a curiosidade de algumas imagens.

Combate à lepra no Brasil - Serviço de Nacional de Lepra - M.E.S. (1945)

Os documentários em saúde tiveram como consultores grandes nomes da área. Entre eles podem ser citados: o Dr. Maurício Gudin (seis documentários, produzidos entre 1937 a 1941), livre docente de clínica cirúrgica da Faculdade Nacional de Medicina, catedrático da Clínica Cirúrgica da Faculdade Fluminense de Medicina. Os documentários sobre cirurgias sob sua orientação foram todos realizados no hospital da Beneficência Portuguesa. Vital Brasil Mineiro de Campanha foi o consultor do documentário sobre ofidismo, de 1937. Aloysio de Castro, um dos criadores, juntamente com o Dr. Antônio Austregésilo Rodrigues Lima, da Escola Neurológica Brasileira nos moldes da Escola Pierre-Marie de Paris, foi o consultor do documentário Neurologia, de 1941. Na ocasião, Dr. Castro dirigia os cursos e os anais da Policlínica do Rio de Janeiro. O Dr. Orlando Baiocchi, citopatologista, membro da Associação Brasileira de Genitoscopia, foi o responsável pela orientação médica de oito documentários produzidos no período de 1947 a 1953. O Dr. José Silveira Sampaio, pediatra e também conhecido autor, diretor, ator teatral e radialista respondeu pela consultoria médica do documentário Puericultura, de 1952. Manoel Dias de Abreu, conhecido pela criação da tecnologia conhecida como abreugrafia, foi o consultor do documentário intitulado Fluografia coletiva, de 1939, ano em que sua invenção ganhou seu nome no I Congresso Brasileiro de Tuberculose. O farmacêutico Gerardo Majella Bijos, ora identificado como brigadeiro, ora capitão, mas considerado civil no site da Academia Brasileira de Medicina Militar, foi o orientador dos documentários: Indústria farmacêutica no Brasil (1948) e Endemias rurais – seus produtos profiláticos(1960).

Com grande destaque na consultoria das pesquisas de ponta da área médica, estiveram pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz (IOC). Entre eles citamos Carlos Chagas Filho, que também era professor da Faculdade Nacional de Medicina. Ele respondeu, juntamente com mais quatro pesquisadores, sobre documentários que trataram da microscopia eletrônica, histofisiologia, eletrofisiologia e fisiologia propriamente dita. Esses documentários foram produzidos entre 1937 e 1960. Miguel Osório de Almeida, outro pesquisador do IOC, fisiologista e professor da Escola de Agricultura e Medicina Veterinária, respondeu pela consultoria do documentário Fisiologia geral, de 1938. Miguel Osório foi um dos grandes nomes da divulgação científica no Brasil.

[…] a divulgação científica tinha um papel importante a desempenhar. Miguel Ozorio, assim como muitos de seu entorno científico e intelectual, adquiriu consciência disso em meio a processo que tinha, na verdade, características internacionais. No pós-Primeira Guerra Mundial, a esperança depositada na ciência, o interesse por ela e, conseqüentemente, o aumento das atividades voltadas para sua difusão ganharam uma grande amplitude especialmente na Europa e nos Estados Unidos. Exemplo claro foi o enorme impacto gerado pelos trabalhos de Einstein e a construção subseqüente, em torno dele, do mito de um cientista genial e quase sobre-humano. (MASSARANI, MOREIRA, 2004)

Evandro Chagas, também do IOC, orientou a produção de três documentários em 1939. Oscar d´Utra e Silva, em 1943, foi o consultor do documentário Convulsoterapia elétrica. Otávio de Magalhães, médico e professor da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, trabalhava em uma antiga sucursal do IOC nessa cidade e que hoje leva o nome de Fundação Ezequiel Dias. O documentário sobre escorpionismo por ele orientado foi produzido em 1954. Integrantes do laboratório de hematologia do IOC responderam pelo documentário Hemóstase cutânea, de 1960.

TÉCNICA CINEMATOGRÁFICA

Havia entre os documentários em saúde dirigidos por Humberto Mauro alguns mudos e outros sonoros. Entre os mudos estavam o Hospital de Curupaity , o Instituto Oswaldo Cruz e o Miocárdio em cultura. A idéia de um filme mudo, sem letreiro explicativo vinha de Roquette Pinto. Os filmes sonoros tinham narração em off, feitas, em sua maioria, por Roquette Pinto.

Nos filmes institucionais, ou seja, nos documentários sobre institutos ligados ao Ministério, o uso do plano geral era comum, Alguns closes eram dados para identificação de detalhes dos prédios, que retratavam, algumas vezes, ações de cautela ou cuidado por parte da administração governamental. Alguns monumentos de cientistas, como é o caso do monumento homenageando Pasteur no documentário Preparo da vacina contra a raiva e dos monumentos a Oswaldo Cruz e Carlos Chagas no documentário Instituto Oswaldo Cruz foram registrados pela câmera por meio de contra-plongée, ou seja, de baixo para cima, o que pode ser interpretado como uma valorização dos cientistas, vistos pelos leigos, espectadores do filme.

No caso dos documentários sobre detalhes de pesquisas e procedimentos cirúrgicos foram usados planos fechados e a microcinematografia, como é o caso do Miocárdio em Cultura e lentes especiais acopladas à câmera, mostrada durante a gravação, documentando assim o processo de filmagem dos movimentos cardíacos de uma galinha. O resultado dos closes é um aumento de atenção para o que está sendo mostrado que, talvez, não pudesse ser observado presencialmente durante uma cirurgia ou por meio do exame microscópico, feito individualmente pelo cientista.

Na filmagem no interior do Instituto Oswaldo Cruz é possível notar o uso, por Humberto Mauro, da câmera na mão, muito utilizada pelos diretores do Cinema Novo, contrariando sua teoria sobre a fotografia dos documentários, enunciada numa palestra lida em 1º de novembro de 1943.

Insisto em chamar a atenção para o documentário porque exige da fotografia – mais que qualquer outra modalidade de cinema – foco, clareza e, sobretudo, firmeza em todos os seus apanhados. […] Sem um bom fotômetro e sem um bom tripé, não se pode conseguir bons resultados de filmagem. (HUMBERTO … , 1978, p. 133)

Os documentários da série Educação rural e da série Brasilianas possuem o mesmo formato, a mesma estética. O documentário Higiene rural – fossa seca, apesar do tema, tem extraordinária beleza, com suas imagens do dia-a-dia da vida no campo, das galinhas correndo no terreiro, dos produtos da horta mostrados, da lavagem de roupa no rio, da comida servida na refeição. O bom gosto e a sutileza empregada nesse documentário fazem dele uma poesia assim como são considerados os documentários da série Brasilianas.

Em alguns documentários foi utilizada trilha sonora por ocasião da abertura do documentário e/ou no seu final.

Alguns pesquisadores assinalam com veemência a omissão dos doentes nos documentários, em particular no documentário Colônia de Curupaity e no Combate à lepra no Brasil. É importante ressaltar que, ainda hoje, o registro de imagem de doentes requer uma autorização prévia dos mesmos ou de seus familiares. Em particular, no caso dos documentários sobre a lepra, havia, por parte do Estado, uma ação truculenta que utilizava carros pretos do Departamento de Profilaxia da Lepra para recolher, à força, pessoas doentes ou denunciadas como tal e levá-las para os mais de 40 asilos-colônias existentes em todo o Brasil. Ter um parente recolhido pelo carro da Profilaxia significava um estigma para a família que, para justificar a ausência dele, geralmente recorria a uma viagem, como justificativa. Portanto, naquela época, evitar a exposição de um paciente leproso significava poupar ele próprio e sua família. Humberto Mauro, homem sensível, deve ter levado isso em consideração.

Essa mesma sensibilidade para questões do trato humano, Humberto Mauro tinha para registrar o que quer que fosse: uma cachoeira, uma larva de mosquito, um prédio, um engenho. A beleza de sua fotografia, sempre presente, deu aos documentários por ele dirigidos um toque de arte e como tal devem ser vistos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A grande novidade aqui exposta diz respeito a um lado da vida de cineasta de Humberto Mauro pouco conhecido. Ele foi um grande documentarista científico, especializado particularmente na área da saúde. Seus documentários serviram para ilustrar palestras em feiras e congressos internacionais, aulas nas faculdades de medicina, veterinária e odontologia. Apesar da identificação de uma agenda oficial, ditada pelas ações do Ministério, é possível reconhecer a marca do grande cineasta, que não se deixou transformar em um cineasta de “cavação”, como eram chamados os cineastas estrangeiros que produziam documentários por encomenda. Seu talento e sua técnica fizeram dos documentários por ele dirigidos verdadeiras obras de arte. Em muito deles, mesmo sem entender o tema ali exposto, é possível apreciar sua fotografia, sua maneira de expor a realidade.

*Alice Ferry de Moraes é jornalista, bibliotecária, mestre e doutora em Ciência da Informação, pela Escola de Comunicação da UFRJ, em convênio com o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia/MCT. É servidora da Fundação Oswaldo Cruz/ Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde e integra o Programa Avançado de Cultura Contemporânea, do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, no Pós-Doutrado em Estudos Culturais.

REFERÊNCIAS


CAMPOS, André Luiz Vieira de. Políticas internacionais de saúde na Era Vargas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006.

FONSECA, Cristina M. Oliveira. Saúde no Governo Vargas (1930-1945): dualidade institucional de um bem público. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.

GALVÃO, Elisandra. A ciência vai ao cinema: uma análise de filmes educativos e de divulgação científica do Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE). 2004. 279 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Biomédicas) – Instituto de Ciências Biomédicas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.

GOMES, Paulo Emílio Salles. Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. São Paulo: Perspectiva, USP, 1974.

HUMBERTO Mauro: sua vida/ sua arte/ sua trajetória no cinema. (Depoimentos sobre a riqueza da filmografia maureana e sua importância na cultura brasileira.) Rio de Janeiro: Artenova, Embrafilme, 1978.

LEMME, Paschoal. Memórias. São Paulo: Cortez: [Brasília, DF]: INEP, 1988. v. 3.

RIBEIRO, Adalberto Mário. “O Instituto Nacional de Cinema Educativo”. Revista do Serviço Público, ano 7, v. 1, n.3, mar. 1944. Separata.

SCHVARZMAN, Sheila. Humberto Mauro e as imagens do Brasil. São Paulo: UNESP, 2004.

 

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Primeiras considerações sobre a questão da soberania urbana no Rio de Janeiro | Jailson de Souza e Silva, Jorge Luiz Barbosa e Fernando Lannes Fernandes

O Observatório de Favelas foi criado em 2001 por um grupo de pessoas, cientistas “do social” e ativistas de organizações sociais, em sua maioria, interessados em contribuir na construção de conceitos e metodologias no campo dos direitos humanos, em sentido lato, que pudessem ser transformados em políticas públicas. A finalidade central dessas políticas seria a superação dos desafios fundamentais que limitam as possibilidades do exercício de uma vida humana mais plena nos grandes centros urbanos, em particular a existência dos grupos sociais populares. O francês Henry Lefebvre (1992) definiu a possibilidade de se viver dessa forma como o “direito à cidade”.

Diante disso, em nosso trabalho, nos últimos anos ganharam destaque reflexões sobre temas como a violência; as representações estereotipadas sobre os moradores das favelas, em particular os jovens; o papel do Estado nos diversos territórios da cidade; o acesso republicano aos serviços e equipamentos da polis; as possibilidades de exercício da cidadania no quadro atual de esgarçamento das relações sociais e culturais etc.1 Nesse quadro se insere, de modo fundamental, o direito a circular na cidade, de forma segura, com acessibilidade e sem restrições discriminatórias a quaisquer grupos social, etário, étnico etc.

Em função do exposto, as formas diferenciadas de apropriação do território urbano e as práticas sociais específicas nele desenvolvidas pelos diversos grupos de citadinos se constituíram, progressivamente, como os eixos condutores dos nossos estudos. Nesse quadro, ganhou relevo o tema da violência, em suas diversas manifestações. Definimos “violência”, de forma sintética, como todas as práticas sociais, inclusive as simbólicas, que violam a dignidade do ser humano, como indivíduo e/ou grupo. Os estudos propostos têm sido referenciais para a elaboração de diversos projetos no campo dos direitos humanos voltados para reduzir a violência.

Assim, a violência inter e entre os grupos sociais, as práticas do Estado nesse campo, em particular nos territórios populares e a progressiva incorporação do medo e da insegurança como componente fundamental da existência cotidiana na cidade foram se constituindo como temas centrais em nossas reflexões e proposições. E passamos então a considerá-la como a grande questão urbana do século XXI no Rio de Janeiro e nas outras grandes metrópoles brasileiras. E, o mais grave, o fenômeno está se disseminando de forma acelerada para os médios centros.

Essa violência se manifesta de formas diversas, como já sinalizamos, mas duas formas em especial nos têm chamado atenção. Em primeiro lugar, a que pode ser compreendida como sua forma mais universal, quer dizer, a que atinge os diversos grupos sociais. Ela consiste no progressivo processo de redução do direito de circulação dos cidadãos no conjunto da pólis. Esse direito tem mudado em sua natureza, em sua forma e em sua intensidade. De fato, a cidade sempre foi, desde o seu nascimento, marcada por interdições na circulação de seus moradores. Estas restrições eram frutos de normas definidas pelo Estado, pelo mercado e pelas relações sociais. Neste último caso, um exemplo expressivo é o histórico temor dos grupos sociais dominantes em circular nos espaço das classes perigosas, dos pobres. Outro, ainda mais difundido, é a interdição simbólica dos territórios mais valorizados da cidade para os grupos sociais populares. Quem é um pouco mais velho lembra do furor que provocou a entrada de um grupo de moradores de assentamentos ilegais da zona oeste em um shopping em Botafogo, um dos bairros mais valorizados da cidade do Rio de Janeiro.

Nos últimos anos, todavia, tem ocorrido um temor de circulação de forma mais difusa: a insegurança de andar nos espaços de circulação da cidade. O ato de ir de um lugar a outro, de passar por espaços que não domina, onde não se sente conhecido e conhecedor tem atingido cada vez mais pessoas na cidade. Nesse caso, mais importante do que a violência objetiva que possa acontecer é o sentimento paralisante de insegurança, de permanente perigo, que domina os diversos sujeitos sociais. De forma curiosa, todavia, os jovens, as principais vítimas de violência nos espaços públicos dos centros urbanos, não são os mais dominados por este temor. Seus pais, ao contrário, sentem uma angústia avassaladora.

O outro tipo de violência que temos buscado interpretar é mais restrito, em termos territoriais, mas tem se disseminado de forma intensa nos últimos 20 anos. Trata-se do processo de privatização do que temos denominado no Observatório de Favelas como “soberania urbana”. E é sobre este processo que nos detemos um pouco mais nesse breve artigo.

A soberania, na era moderna, passou a designar a capacidade de um Estado-Nação formular e aplicar leis específicas em seu território de forma autônoma, sem depender da vontade de outros Estados. Assim, desde a Revolução Francesa a soberania passou a ser interpretada como a expressão do poder político e jurídico do Estado, emanado da vontade geral da nação. Nesse caso, o conceito está vinculado, de forma indissociável, às noções de unidade, de poder e de legitimidade.

Por unidade, se entende o monopólio da força de um ente, no caso o Estado, de fazer valer sua decisão, e apenas sua decisão, no conjunto do território sobre o qual detém a soberania. Este poder soberano se legitima a partir da vontade popular, expresso no sufrágio e é exercitado por governos de grupos – partidos – específicos e por períodos determinados.

Desse modo, é incomum, na verdade, inadequado, do ponto de vista de uso formal do conceito, o uso da expressão soberania quando se fala do exercício do monopólio da força em territórios locais de um país. Todavia, ao analisarmos a configuração territorial do Rio de Janeiro identificamos a incapacidade do Estado em exercer seu poder político e jurídico sobre vastas áreas da cidade, em especial sobre os territórios onde vivem os grupos sociais populares. Ele não consegue regular as relações de propriedade, as normas para as edificações e o zoneamento urbano; afastar da vida social e/ou responsabilizar civil e criminalmente os que não respeitam as suas leis; garantir a segurança dos cidadãos; controlar a oferta dos serviços públicos e o funcionamento dos equipamentos urbanos; e, de modo mais geral, garantir o direito de circulação no espaço local e entre os diversos territórios da cidade.

O que temos nos perguntado, como ponto de partida, é por que o Estado abriu mão, historicamente, de exercer sua soberania nos territórios populares, em especial no Rio de Janeiro, em relação às favelas. Este processo, que já se fazia presente desde o início da constituição das favelas, passou a se acentuar na década de 80, e, desde lá, tem se agravado. Antecipando algumas possíveis respostas, nossa hipótese central é que o Estado não consegue exercer seu poder soberano sobre o conjunto da cidade em função da ausência de interesse dos grupos que historicamente o dominaram e o impedem de agir de forma republicana. Isso significaria reconhecer todos os cidadãos como iguais diante da lei; não tratar o bem público de uma forma patrimonialista; não transformar os órgãos do Estado em instrumentos de afirmação de interesses particulares etc. Com efeito, o Estado brasileiro, marcado por sua herança escravocrata e oligárquica, revelou uma profunda capacidade de se modernizar sem se tornar republicano2. Ao contrário, ele se constituiu como um importante instrumento para a transformação do Brasil em um dos países mais desiguais do mundo no campo econômico e social.

A inapetência do Estado em exercer a soberania nos territórios populares e regular as relações nele estabelecidas, do mesmo modo que nas áreas mais valorizadas da cidade, fez com que essa forma de exercício do poder fosse privatizada. Assim, o monopólio da força e o ordenamento das práticas sociais em um território específico passou a ser disputado por grupos criminosos em geral identificados como “tráfico de drogas” e “milícias”. Nesse quadro, a polícia, presença mais visível do Estado nas favelas, se tornou um elemento a mais na guerra. Ela não cumpre papel mediador ou funciona como obstáculo ao poder privatizado. Em geral, termina sendo mais um elemento de tensão no quadro de enfrentamento, desenvolvendo ações violadoras dos direitos fundamentais do morador e destruindo a legitimidade do Estado como ente regulador das relações sociais.

No processo de caracterização das organizações que almejam conquistar os territórios locais, as definimos como “Grupos Criminosos Armados com Domínio de Território”. Estes constituem redes criminosas territorializadas que atuam em atividades econômicas ilícitas e irregulares, como o tráfico de drogas, serviços de segurança e transporte coletivo irregular, dentre outras, a partir de uma base territorial específica, fazendo uso da coação e/ou da legitimação como meios de manutenção e reprodução de suas práticas.

A legitimação da soberania desses grupos privados em territórios cada vez mais vastos da cidade decorre da sua capacidade de manterem o monopólio da força e, desse modo, ordenarem o cotidiano social. Além disso, a partir de seu poder eles criam as condições objetivas para que alguns moradores se sintam liberados para não respeitarem algumas normas básicas da vida social e urbana, tais como o pagamento de taxas e impostos; o respeito aos limites de ocupação dos espaços públicos; a obediência a regras de construção normatizadas pelo Estado etc. Os grupos locais, em geral, deixam de lutar, por exemplo, por tarifas sociais para os serviços de água, luz e IPTU; por uma melhor qualidade do serviço e abrem mão de fortalecerem os meios coletivos de resolução de conflitos. As relações entre os grupos criminosos e os moradores se sustentam em uma relação direta, sem intermediação de regras para além das relações pessoais.

Os atores do Estado, por sua vez, obedecem a estes grupos nestes territórios privatizados, tais como as escolas e postos de saúde; ou estabelecem uma relação de conflito, via as forças policiais. Neste caso, estas passam a agir como forças invasoras, tratando a população local como os civis do território inimigo. Extorsões, mortes, roubos etc. passam a caracterizar as ações de alguns grupos policiais, que se tornam os “bárbaros” do ponto de vista de quem controla e/ou reside no território. Sem a transformação dessas relações, dessas práticas e sem a criação de mecanismos de legitimação do Estado e das normas republicanas, a situação só se agravará.

O melhor exemplo desse fenômeno foi a recente ação do Estado no Morro do Alemão, na Zona da Leopoldina do Rio de Janeiro. O Alemão é um aglomerado de comunidades populares que reúne quase cem mil pessoas e é dominado por um dos mais fortes grupos criminosos da cidade. A polícia agiu durante dias, matou dezenas de pessoas, invadiu centenas de casas e sua ação foi objeto de críticas dos movimentos sociais e de grupos internacionais que atuam com os direitos humanos. Boa parte da população da cidade, por sua vez, apoiou a intervenção. Os argumentos desse setor da população eram caracterizados, em geral, pela “xenofobia”, pelo desejo de vingança e pelo desprezo aos direitos fundamentais dos moradores das favelas.

Ao final da ação, o chefe local do tráfico continua no controle do território, o sentimento de indignação da população com as forças do Estado é profundo; amplia-se o descompromisso com a democracia e com os direitos humanos para todos os cidadãos por parte do governo em exercício e, principalmente, aprofundou-se a naturalização de que o Estado não tem obrigações de tratar os moradores das comunidades populares como cidadãos. Nesse sentido, a distância entre os diversos moradores da cidade se amplia, assim como a sensação de insegurança e de intolerância.

O desafio, nesse contexto histórico, não é então reafirmar o que separa estes grupos sociais, mas o que pode aproximá-los. Avaliamos que um fator de unidade entre esses diversos sujeitos é o desejo de que a cidade seja um espaço de respeito aos direitos individuais, pelo menos. Um espaço onde as leis funcionem, onde as pessoas possam circular e onde a insegurança cotidiana seja transformada pela possibilidade de se exercer a solidariedade, por exemplo. Isso porque o direito à segurança, à vida, é uma premissa fundamental da existência coletiva. Podemos viver numa sociedade injusta, embora insatisfeitos, mas não podemos viver em uma sociedade sem ordenação coletiva, onde cada um faça apenas o que quer, sem reconhecimento e respeito ao outro.

Assim, o que se tem de perguntar em relação à ação das forças policiais no Morro do Alemão e em outros espaços semelhantes é: essa ação contribuiu para garantir a soberania do Estado naquele território? Ela fez com que o grupo criminoso que ali exerce a soberania ficasse fragilizado ou perdesse legitimidade? Para nós, parece que não. Pois a legitimação não é produto da força, mas o reconhecimento da capacidade de definir normas e fazê-las serem cumpridas.

Nesse sentido, o problema fundamental é que foi se criando uma clivagem entre os elementos coercitivos e legitimadores que caracterizam a construção do monopólio da força do Estado nos espaços da cidade. Para muitos grupos sociais conservadores, a ação possível do Estado nas favelas, por exemplo, é via a materialização de uma guerra contra o tráfico, em especial. Para ela são mobilizados armas e treinamento típicos da guerra, ações como a licença para matar típica dessa forma de confronto. O recente sucesso do filme de ficção “Tropa de Elite” e o furor que produziu é a melhor expressão dessa percepção.

Os grupos da sociedade civil que lidam com a temática dos “direitos humanos”, por sua vez, repudiam de forma absoluta o uso da força, vêem o Estado apenas a partir do seu papel coercitivo, exercem um papel permanente de denúncia de seus excessos, mas não conseguem propor programas efetivos no campo das políticas públicas que incorpore o item “segurança” ao conjunto de ações do Estado nos espaços populares. Na defesa monolítica das ações sociais como eixo central da ação, o que é o correto como princípio no plano ético, político e como método, os grupos terminam não reconhecendo o impacto da privatização da soberania nos territórios populares e a importância de criar formas inovadoras para enfrentá-la.

O grande desafio do Estado, portanto, é construir sua soberania sobre o conjunto dos territórios da cidade de forma legítima. Para isso, não há sentido, de fato, em invadir os territórios; o desafio é ampliar, de forma progressiva sua presença regular, cotidiana e centrada na mediação e resolução dos conflitos, de forma que o morador local consiga reconhecer o valor da sua presença. O Estado deve permanecer para além do plano da segurança, desenvolvendo um leque de ações que permitam a incorporação daquela área ao território onde ele consegue exercer a soberania.

A execução dessa ação integrada todavia, exige o reconhecimento de que só pode haver uma cidade e um cidadão, cabendo ao Estado, no que tange ao seu papel, conferir tratamento e iguais oportunidades aos moradores da cidade como um todo, entendendo que não deve haver distinção do local de moradia no que se refere aos direitos assegurados aos cidadãos pela constituição brasileira.

Além disso, urge superar os precários indicadores sociais, econômicos e ambientais, dentre outros, das comunidades populares da cidade. Isso implica em uma intervenção sócio-espacialmente focalizada, com a criação de um ciclo sustentável e integrado de desenvolvimento social, econômico, ambiental e dos direitos humanos nas favelas e periferias.

A construção desse processo implica na constituição de um plano de desenvolvimento que articule as forças do Estado, da sociedade civil e do mercado. A ação comum dessas instâncias não deve se sustentar em uma carta de intenções, mas na criação de mecanismos concretos indutores do desenvolvimento local.

Nesse sentido, uma das ações necessárias é a constituição de um Plano de Desenvolvimento Sustentável de longo prazo para as comunidades populares. Constituído de forma progressiva, esse plano seria apoiado em fundos econômicos públicos e privados, sob controle público, mas não apenas estatal. O Fundo de Desenvolvimento Local deve ser constituído de recursos de variados ordens, a partir de legislação específica e com o envolvimento de variados atores que atuam na perspectiva da soberania do Estado e são comprometidos com a republicanização da sociedade brasileira.

A elaboração de um plano desse teor deveria ser precedida por um diagnóstico social, econômico, ambiental e dos direitos humanos realizados por institutos de pesquisa; organizações da sociedade civil e/ou universidades. A aprovação, o acompanhamento dos indicadores e a avaliação desse tipo de plano, assim como a fiscalização do Fundo Público, seriam realizados por um Fórum de Desenvolvimento Sustentável Local, integrado por representantes do governo, em suas três instâncias; do poder judiciário Estadual; do poder legislativo estadual e/ou municipal; de instituições comunitárias que atuam nos territórios do programa; de empresas privadas presentes nos territórios locais; de organizações da sociedade civil, em particular as que atuam com os direitos humanos etc.

O caminho de construção da soberania do Estado no conjunto da cidade é longo, ainda estamos longe da chegada e os desafios parecem cada vez maiores. Todavia, há caminhos sendo propostos; há metodologias já experimentadas e há várias redes cidadãs sendo constituídas na cidade e no país. Assim, estão sendo elaborados, de forma quase que subterrânea, mas de modo consistente, caminhos inovadores para a crise nossa de cada dia. Eles nos remetem para a utopia de uma cidade-pólis, política e democrática, onde todos possamos estar em nossas casas certos de que um Estado democrático nos protege e andar nas ruas seguros que voltaremos para ela quando assim o desejarmos.

*Jailson de Souza Silva é geógrafo, doutor em Sociologia da educação, professor da Universidade Federal Fluminense/RJ e coordenador geral do Observatório de Favelas.
**Jorge Luiz Barbosa é geógrafo, doutor em Geografia Urbana, professor da Universidade Federal Fluminense /RJ e coordenador geral do Observatório de Favelas.
***Fernando Lannes Fernandes é geógrafo, doutorando em Geografia Urbana pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador adjunto do Observatório de Favelas.


Até Quando (When will it finish?)

NOTAS


1 Temos publicado vários trabalhos a respeito desse temas nos últimos anos, com destaque para o livro “Favela: alegria e dor na cidade” (2005).

2 Esse processo de “modernização conservadora” do Brasil foi interpretado por diferentes pensadores brasileiros, tais como Nelson Werneck Sodré e Carlos Nelson Coutinho (2003) a partir dos conceitos de “revolução passiva” de A. Gramsci, e de “Via prussiana”, de I.V.Lênin. Jessé Souza (2.000 e 2.002), por sua vez, realiza uma interpretação original da constituição e difusão desse processo de modernização autoritária no conjunto da sociedade em seus trabalhos recentes. Ele trabalha para isso com autores como M. Weber; C. Taylor e P. Bourdieu.

BIBLIOGRAFIA


COUTINHO, Carlos Nelson (Org.). Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. V. 1.

 

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Literatura, pão e poesia | de Sérgio Vaz

A literatura na periferia não tem descanso, a cada dia chega mais livros. A cada dia chega mais escritores, e, por conseqüência disso, mais leitores. Só os cegos não querem enxergar este movimento que cresce a olho nu, neste início de século. Só os surdos não querem ouvir o coração deste povo lindo e inteligente zabumbando de amor pela poesia. Só os mudos, sempre eles, não dizem nada. Esses custam a acreditar.

Não quero nem falar dos saraus que estão acontecendo aos montes, pelas quebradas de São Paulo. Isto me tomaria muito tempo. Haja visto as dezenas de encontros literários, pipocando nas noites paulistanas. Cada qual do seu jeito, cada qual com seu tema, cada qual a sua maneira de cortejar as palavras.

Mas eu quero falar mesmo e da poesia que se espalhou feito um vírus no cérebro dos homens e mulheres da periferia. Pois é, essa mesma poesia que há tempos era tratada como uma dama pelos intelectuais, hoje vive se esfregando pelos cantos dos subúrbios à procura de novas emoções.

O Tal poema, que desfilava pela academia, de terno e gravata, proferindo palavras de alto calão para platéias desanimadas, hoje, anda sem camisa, feito moleque pelos terreiros, comendo miudinho na mão da mulherada. Vocês, por acaso, já ouviram falar do tal poema concreto? Pois é, os trabalhadores e desempregados estão construindo bibliotecas com eles, nas favelas. E o lobo mau pode assoprar que não derruba. Apesar da pouca roupa que lhe deram está se sentindo todo importante com sua nova utilidade.

A periferia nunca esteve tão violenta, pelas manhãs é comum ver, nos ônibus, homens e mulheres segurando armas de até 400 páginas. Jovens traficando contos, adultos, romances. Os mais desesperados, cheirando crônicas sem parar. Outro dia um cara enrolou um soneto bem na frente da minha filha.

Dei-lhe um acróstico bem forte na cara. Ficou com a rima quebrada por uma semana.

A criançada está muito louca de história infantil. Umas já estão tão viciadas, que, apesar de tudo e de todos, querem ir para as universidades.

Viu, quem mandou esconder a literatura da gente, Agora nós queremos tudo de uma vez!

Dizem por aí que alguns sábios não estão gostando nada de ver a palavra bonita beijando gente feia. Mas neste país de pele e osso, quem é o sábio?

Quem é o feio? E olha que a gente nem queria o café da manhã, só um pedaço de pão. Que comam brioches!

Não, não é Alice no país da maravilha, mas também não é o inferno de Dante.

É só o milagre da poesia.
Quem é que odeia ler agora?

Manifesto da Antropofagia periférica

A Periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. Dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros.

A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade para a diversidade. Agogôs e tamborins acompanhados de violinos, só depois da aula.

Contra a arte patrocinada pelos que corrompem a liberdade de opção. Contra a arte fabricada para destruir o senso crítico, a emoção e a sensibilidade que nasce da múltipla escolha.

A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.

A favor do batuque da cozinha que nasce na cozinha e sinhá não quer. Da poesia periférica que brota na porta do bar.
Do teatro que não vem do “ter ou não ter…”. Do cinema real que transmite ilusão.
Das Artes Plásticas, que, de concreto, quer substituir os barracos de madeiras.
Da Dança que desafoga no lago dos cisnes.
Da Música que não embala os adormecidos.
Da Literatura das ruas despertando nas calçadas.

A Periferia unida, no centro de todas as coisas.

Contra o racismo, a intolerância e as injustiças sociais das quais a arte vigente não fala.
Contra o artista surdo-mudo e a letra que não fala.

É preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o artista-cidadão. Aquele que na sua arte não revoluciona o mundo, mas também não compactua com a mediocridade que imbeciliza um povo desprovido de oportunidades. Um artista a serviço da comunidade, do país. Que armado da verdade, por si só exercita a revolução.

Contra a arte domingueira que defeca em nossa sala e nos hipnotiza no colo da poltrona.

Contra a barbárie que é a falta de bibliotecas, cinemas, museus, teatros e espaços para o acesso à produção cultural.
Contra reis e rainhas do castelo globalizado e quadril avantajado.
Contra o capital que ignora o interior a favor do exterior. Miami pra eles? “Me ame pra nós!”.
Contra os carrascos e as vítimas do sistema.
Contra os covardes e eruditos de aquário.
Contra o artista serviçal escravo da vaidade.
Contra os vampiros das verbas públicas e arte privada.
A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.

Por uma Periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor.

É TUDO NOSSO!

 

*Sérgio Vaz – é poeta da periferia, criador da Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa), autor dePensamentos Vadios (1999), A Margem do Vento (1995) e Subindo a ladeira mora a noite (1992).

 

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Heloisa Buarque de Hollanda entrevista Paulo Lins | Dezembro de 2007

Heloisa Buarque de Hollanda: Sobre o que é o livro que você está escrevendo?

Paulo Lins: É um livro que se passa em dois momentos: final dos anos 1920 e nos dias atuais. Conta a história de uma mestranda que faz sua dissertação sobre a fundação da primeira escola de samba no Rio de Janeiro. Ela é uma mulher bonita que nasceu na favela e com muito esforço, por meio de ações afirmativas, conseguiu estudar. No entanto não consegue se casar. Muito exigente sempre acha defeitos nos homens com quem mantém relacionamento, até que se envolve com seu próprio orientador. Mora em Santa Teresa, joga capoeira, tem uma turma de amigos, também universitários, que vivem dando festas e viajam muito para o interior do Rio de Janeiro. Nas pesquisas para a dissertação, ela descobre que a maioria dos sambistas são freqüentadores da Umbanda, que ela começa a freqüentar, assim como vai também a ensaios das escolas de samba. Intelectual cética, acaba incorporando um espírito num terreiro de Umbanda que vai mudar toda sua vida. A história da criação da primeira escola de samba se passa na Zona do Mangue e é contada do ponto de vista do Zé, um malandro de quase dois metros de altura, valentão, capoeirista, compositor que pertence à turma de Ismael Silva, e outros compositores que mudaram o ritmo do samba que se tocava na Casa de Tia Ciata. Eles criam a música popular brasileira já que o maxixe e as outras formas musicais no Brasil tinham muita influência estrangeira.

HBH: Qual a semelhança e diferença do novo livro que você está escrevendo em relação ao Cidade de Deus?1

PL: Cidade de Deus é um livro de exclusão, violento, sem esperança. Desde que o samba é samba é assim é um livro que fala da inclusão social do negro através da cultura. Hoje o desfile das escolas de samba é um evento conhecido no mundo todo, assim como a capoeira que é um esporte praticado em todo mundo, mas até os anos de 1930, tanto o samba como a capoeira eram proibidos pela polícia. Para se ter idéia, Brancura, um dos fundadores da primeira escola de samba, foi preso na rua Marquês de Sapucaí (atual sambódromo) por estar portando um pandeiro. A semelhança é que os personagens de um livro e do outro são todos negros, mestiços periféricos.

HBH: Qual o efeito de Cidade de Deus na sua vida?

PL: Não fiquei rico, mas viajei bastante, consigo viver da escrita que é o mais importante.

HBH: Foi difícil escrever esse segundo livro depois da consagração de Cidade de Deus?

PL: Está sendo difícil, pois o Cidade de Deus me consumiu muito e até hoje consome, pois sempre vou a lançamentos no exterior e faço palestras que me tomam bastante tempo. É claro que eu quero que meu próximo livro faça o mesmo sucesso e isso me deixou angustiado por muito tempo e sem força para escrever. Tanto é que já deletei várias páginas do livro novo, já o reescrevi várias vezes, mas agora eu tenho que terminar.

HBH: Quanto à linguagem, há mudanças?

PL: A linguagem mudou muito. Numa história eu falo o coloquial tenso, pois os personagens são universitários, na outra é uma linguagem que eu estou inventando, pois não consegui registros da linguagem coloquial distensa do início do século.

HBH: É um livro que fala da periferia?

PL: Fala da Pequena África que é a região que inclui Estácio, Cidade Nova, Rio Comprido, Zona Portuária e Catumbi. Era uma zona onde moravam os negros que vieram da Bahia e trabalhadores do cais do porto do Rio de Janeiro. Era um gueto, mas também havia portugueses imigrantes, espanhóis e árabes.

HBH: Qual a importância social do samba?

PL: O samba como o futebol é uma saída para o pobre favelado. Muita gente sonha ser craque de futebol ou ter sambas gravados para sair da pobreza e do anonimato. Hoje as escolas de samba são verdadeiras empresas que empregam milhares de pessoas. O samba, como gênero musical, levanta a auto-estima do negro no Brasil, pois foi criada por negros no Largo do Estácio e hoje é a música que mais representa o Rio de Janeiro.

HBH: Desde que o samba é samba é assim é um título do Caetano Veloso. Caracteriza-se uma “pirataria” sua?

PL: Conversando sobre inclusão social, eu falei essa frase espontaneamente, depois comecei a repeti-la toda vez que eu falava sobre isso. Aí falei com o Caetano de colocar esse título no livro e ele liberou.

HBH: Qual o seu próximo projeto?

PL: Estou terminando esse livro que sai agora no início do ano e vai ser rodado o longa faroeste caboclo cujo roteiro eu fiz há um tempo atrás.

NOTAS


1Livro de Paulo Lins, publicado em 1997.

 

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Babilaques | Waly Salomão

Fotos: Marta Braga

SALMO
Armando Freitas Filho*

Aonde é o lugar onde os Babilaques?
É o lago do olhar. Seu abraço completo.
Waly, ao léu, recolhe, pós-Duchamp
pré-Calder, todas as águas móbiles
inobjetos truvados, o canto do trovador
plus. Babilaques não são cacos, bricabraques
nem madeleines casuais; são mangas amarelas
calculadas armadilhas, rosebuds
babel de abracadabras. Psiu, ptyx, bumerangues.
Um lince de olhos de um lance – ali –
onde se acham os perfis dos curingas invisíveis
que se escondem no meio dos baralhos marcados.

Publicado no caderno Folhetim, nº 363, jornal Folha de S.Paulo, 01/01/1984
*Armando Freitas Filho é poeta, autor de Máquina de escrever (2003, Ed. Nova Fronteira), onde reúne 14 livros de sua produção poética ao longo de 40 anos. Seu mais recente livro de poemas é Raro mar, de 2006, publicado pela Companhia das Letras. Ganhou o prêmio Jabuti em 1986, com o livro 3×4, em 2003, com Máquina de escrever e com Raro mar, em 2007. Com Fio terra (2000) ganhou o Prêmio Alphonsus de Guimaraens, concedido pela Biblioteca Nacional.

OS BABILAQUES DE WALY SALOMÃO
Antonio Cícero*

Em anotação inédita, datada de 1979, Waly Salomão, ao mesmo tempo que descreve os Babilaques como uma “Performance-poético-visual”, adverte que “evitaria designá-los simplesmente como poemas visuais, já que essa designação é desatenta à somatória de linguagens”. De fato, o que chamamos de “poesia visual” é, naturalmente, uma espécie de poesia. No Ocidente, ela possui uma tradição que remonta à Antiguidade e passa pelo dadaísmo, pelo futurismo, pela poesia concreta etc., até os nossos dias.

Quando digo que a poesia visual é uma espécie de poesia, estou supondo que uma arte chamada “poesia” seja o gênero ao qual pertença a “poesia visual”. Isso, porém, supõe, por sua vez, que esse gênero seja, ele mesmo, uma das espécies do gênero que chamamos “arte”, gênero ao qual pertencem também outras espécies, como a música, a pintura, a escultura etc.

Pois bem, penso que corresponde à intenção mais profunda de Waly dizer que os Babilaques não só não se reduzem à poesia visual, mas que não se reduzem a nenhuma dessas espécies de arte: que não se reduzem nem mesmo à poesia, quando esta é tomada como uma espécie de arte entre outras.

A verdade é que, longe de aceitar esse modo convencional de classificar a poesia, Waly, ao fazer os Babilaques, considera as diferentes artes como tantas técnicas (lembremo-nos de que a palavra grega para “arte” é precisamente téchne) através das quais a poesia é capaz de se realizar. E por que não? O poema “Exterior” pergunta, por exemplo:

Por que a poesia tem que se confinar
às paredes de dentro da vulva do poema?
por que proibir à poesia
estourar os limites do grelo
da greta
da gruta
e se espraiar além da grade
do sol nascido quadrado?

[…]
Por que a poesia não pode ficar de quatro
e se agachar e se esgueirar
para gozar
– carpe diem! –
fora da zona da página?
[…]1

Waly sublinha o caráter inter-relacional dos “textos, objetos, luzes, planos, imagens, cores, superfícies”2que se encontram nos Babilaques. Trata-se, segundo ele, de uma “multilinguagem”. Tampouco se trata de uma busca meramente pictórica, pois a a linguagem verbal – a palavra – funciona como “o agente que hibridiza todo o campo sensorial da experiência”.3 Nesse sentido, os Babilaques constituem formas de realização de um programa poético articulado e realizado, de diferentes modos, em diferentes momentos da trajetória de Waly. O poema “Clandestino”, por exemplo, do livro Lábia (1998, p. 50-51), esboça-o do seguinte modo:

[…]
já não me habita mais nenhuma utopia.
meu desejo pragmático-radical
é o estabelecimento de uma reserva de ecologia
– quem aqui diz estabelecimento diz escavação –
que arrancará a erva daninha do sentido ao pé-da-letra,
capinará o cansanção dos positivismos e literalismos,
inseminará e disseminará metáforas,
cuidará da polinização cruzada,
cultivará hibridismos bolados pela engenharia genética,

[…]4

“Polinização cruzada”, em oposição à “autopolinização”, é aquela em que uma planta é polinizada por outra. Há um poema de Waly com esse título que diz:

Polinizações cruzadas entre o lido e o vivido. Entre a espontaneidade coloquial e o estranhamento pensado. Entre a confissão e o jogo. Entre o vivenciado e o inventado. Entre o propósito e o instinto. Entre a demiúrgica lábia e as camadas, superpostas do refletido.

Imbróglio d’álgebra e jogo de azar.

[…]5

Hibridismos bolados pela engenharia genética são cruzamentos inteiramente artificiais entre diferentes espécies. No caso dos Babilaques, trata-se, é claro, de diferentes espécies de arte que, ao se cruzarem, se fertilizam, revitalizando tanto a linguagem verbal (a palavra), normalmente parasitada pelo “sentido ao pé-da-letra”, isto é, convencional, quanto “o campo sensorial da experiência”. Assim, diz Waly, “uma foto de um pedaço de fruta dentro de uma lata vazia não pretende ser uma forma insólita de ‘natureza morta’, mas instaura um discurso, uma fala, um canto, uma música, cines imaginários”.6 Há uma série de Babilaques, intitulada “Amalgâmicas”, que corresponde a essa descrição. Ao contrário de natureza morta, cada um deles poderia ser considerado uma “natureza-não-morta”, como a que Waly menciona no seguinte poema:
NOTA DE CABEÇA DE PÁGINA

Contrariando o ditado latino e a canção brasileira,
RECORDAR NÃO É VIVER.
Segundo nós dois, eu e a Gertrude Stein.
A composição enquanto PRESENÇA dalguma coisa
e essa alguma coisa
SURGE
dentro da composição através dela pela primeira única vez
Natureza-não-morta.

Não escrever sobre.

Não descrever. Ou reproduzir.

Escrever. Produzir.

Q a primeira única vez volte a se fazer PRESENÇA.

É o Q mais QUERO na vida.

Uma não-natureza still alive7
A natureza-não-morta se converte, no final, em “não-natureza still alive”. A expressão inglesa para “natureza morta”, still life, literalmente significa “vida parada” ou por “ainda vida”. Mas aqui se trata da “não-natureza”. Ora, a não-natureza é a arte. Trata-se, portanto, da arte still alive, da arte ainda viva, da arte que permanece viva. Assim quer ser o Babilaque: “a composição enquanto presença dalguma coisa”. A presença surge “dentro da composição através dela pela primeira única vez”, quando, numa performance poética, o artista põe ou surpreende, por exemplo, tal pedaço de fruta dentro de tal lata vazia. E “a fotografia”, como diz Waly na nota inédita já citada, “com seus elementos composicionais próprios: luz, cor, ângulo, corte-transforma e fixiona a performance poética”.

Observe-se nesses textos a insistência da palavra “composição” e cognatas. Uma característica impressionante dos Babilaques – que, aliás, os distingue de quase toda “poesia verbal”, conferindo-lhes uma qualidade propriamente plástica – é exatamente a sua composição sempre surpreendente e precisa.

A meu ver, a combinação dessa realização visual com a expressão cabal da vocação walyniana para “[…] transbordar, pintar e bordar, romper as amarras / soltar-se das margens, desbordar, ultrapassar as / bordas, transmudar-se, não restar sendo si-mesmo, / virar ou-tros seres […]”8 é uma das principais propriedades que tornam os Babilaques obras de arte singularmente admiráveis.

*Antonio Cícero, poeta e ensaísta, é autor, entre outras coisas, dos livros de poemas Guardar (1996) e A cidade e os livros (2002), e dos livros de ensaios filosóficos O mundo desde o fim (1995) e Finalidades sem fim (2005). Organizou, em parceria com Waly Salomão, o volume de ensaios O relativismo enquanto visão do mundo e, em parceria com Eucanaã Ferraz, a Nova antologia poética de Vinícius de Morais. Também é compositor, tendo parceiros como Marina Lima, Adriana Calcanhotto e João Bosco, entre outros.

NOTAS


1SALOMÃO, W. Lábia. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.55.

2SALOMÃO, W. “Babilaques”, 1979. Caderno inédito.

3Ibid.

4SALOMÃO, W. “Clandestino”. Lábia. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.50-51.

5SALOMÃO, W. Lábia. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.89.

6SALOMÃO, W. “Babilaques”, 1979. Caderno inédito.

7SALOMÃO, W. “Nota de cabeça de página”. Gigolô de bibelôs. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.138.

8SALOMÃO, W. “Ao leitor, sobre o livro”. Gigolô de bibelôs. São Paulo: Brasiliense, 1983.