O livro A mais recôndita memória dos homens, de Mohamed Mbougar Sarr, foi lançado em 2021 e, em meio a uma longa homenagem à literatura, à criação e aos criadores, há uma série de personagens ligados, de forma diferente, ao continente africano. Aranha-mãe, principal personagem feminina, inspirada em Ken Bugul, escritora senegalesa que hoje mora no Benim, é também escritora e tem entre seus escritos romances semiautobiográficos que falam de sexo e poder. A personagem é amedrontadora, exótica, sexualizada, mas também maternal e tradicional, cantando em serer, idioma falado na região do Sahel. Apesar das semelhanças entre as duas existe uma diferença marcante, a Aranha-mãe do livro não volta para o continente africano, permanecendo solteira e na Europa, enquanto Ken Bugul retorna, se casa com um marabout – espécie de iman tradicional senegalês – e chega a trabalhar no governo.
A aranha entra nesse texto, nessa visão ampliada da curadoria e de suas práticas de tecer relações entre criadores e espaços de criação, e entre os diversos espaços do continente. Visão ampliada porque a profissão de curador se inicia com os primeiros museus no Ocidente, sendo, inicialmente, um guardador, um cuidador de acervos, em grande parte antropológicos. A partir dos anos 1960, há uma virada nesse processo e o curador deixa de ser apenas um guardador de acervos para se tornar também um contador de histórias, alguém que, a partir de um acervo, é capaz de mostrar um lado, algo que se extrai desse acervo. Essa virada se coloca, em parte, a partir dos processos de independência no continente africano e pedidos de restituição das obras aos museus arqueológicos europeus.
A partir desse momento e da construção de teorias pós-coloniais, de estudos culturais e decoloniais, o museu se vê face a uma necessidade de mudança na forma como exibe e trata o material de seu acervo. Ao colocar em questão certezas patriarcais, raciais e coloniais, o papel do arconte, como fala Jacques Derrida em seu Mal de arquivo (2001), é colocado em xeque. O curador passa, então, a ter sua função de consignar valorizada, mas valorizada no que ela possui de recriar e retransformar os signos. No século XXI, ele assume papéis que lhe eram vedados anteriormente, ao mesmo tempo que, fora do espaço das artes, o curador se torna sinônimo de selecionador. Nas redes sociais, por exemplo, vemos multiplicar perfis de “curadoria de conteúdo”, que abordam informações sobre assuntos mil, de engenharia a restaurantes, passando, é claro, pelas artes e pela literatura.
Esse processo, ainda nos anos 1960, em seu começo, abre caminho para a existência de exposições, festivais e curadores dentro do continente africano. Quando a Europa e o Ocidente, como únicos centros de produção de arte e saber, são desafiados, a emergência de festivais de arte e cultura negra faz parte desse processo, acontecendo nos anos de 1966 e 1973 em Dakar e Lagos, respectivamente, para onde afluíram africanos e diaspóricos de todo o mundo. Os dois primeiros abrem as portas para uma série de festivais, focando em uma ou mais artes, ao longo do continente. A Bienal de Dacar é um exemplo, assim como o Festival au Désert, a Bienal de Bamako e tantos outros. A força dos festivais vem de sua intenção política e da pluralidade de grupos e povos por eles acolhidos, tudo isso ocorre nessa virada dos anos 1960, em que outros atores passam a participar dos sistemas de artes e literatura ao redor do mundo. A descentralização do poder e as independências das colônias são, dessa forma, parte da entrada de novos saberes e atores no sistema arte.
Esse processo, em sua continuação, legitima outras formas de inserção no mercado artístico e leva, no fim do século XX, o nome de Okwui Enwezor, curador nigeriano, falecido em 2019, como curador da Documenta 11 e da Bienal de Veneza, nos anos 2000. Enwezor, que tinha uma carreira construída nos Estados Unidos e na Europa, abre o caminho para uma história da arte não europeia, que inclui artistas do mundo inteiro, não apenas do Ocidente, na curadoria que apresenta em suas duas grandes mostras. Seu trabalho também é importante para abrir espaço para novos curadores do continente africano, que se fortalecem e começam a aparecer no circuito internacional. Nomes de mulheres, especificamente, começam a surgir e ganhar importância por seu trabalho, no continente e fora dele, com a construção não apenas de trabalhos curatoriais, mas também de ensino, crítica e criação de memória.
Uma dessas mulheres é Koyo Kouoh, marfinense, curadora, responsável pela criação da Raw Material Company, em Dacar. Sua trajetória começa ainda na faculdade, na Europa, quando passa de uma formação em economia para trabalhar em espaços artísticos. Decide retornar ao continente, mas não para a Costa do Marfim e sim para o Senegal, segundo ela por ser mais cosmopolita e por se interessar pelo Islã – o Senegal é país de maioria sunita. Em 1995, começa a trabalhar no Instituto Gorée, e em 2001, como co-curadora dos Encontros de Fotografia de Bamako, no Mali, importante festival de fotografia mundial, com frequência bienal. Em 2008, Kouoh funda a Raw Material Company, espaço em Dacar voltado para a curadoria e a formação em artes. Esse local compreende biblioteca, sala de exposição e espaço para as formações, que ocorrem uma vez por ano. Nas formações, pensadores e artistas do continente se encontram para discutir o tema do ano. Kouoh exerce a função, que acredita ser importante, de criar novos espaços institucionais de arte, não governamentais, e permanece nesse papel ao se afastar de Raw em 2019, passando a ser a primeira curadora chefe do Zeitz Mocaa, na Cidade do Cabo, museu de arte contemporânea africana.
No espaço Raw são organizados seminários de pesquisa também, e há memória desses seminários, em livros e publicações, dessa forma o espaço cumpre uma função de arquivo e geradora de redes da aranha. Raw Material Company é parte da Arts Collaboratory, grupo de 25 espaços de arte do Sul Global, interessados em criar solidariedades Sul-Sul e redes de criação e colaboração. O trabalho de Koyo Kouoh, assim, se coloca em diálogo com o trabalho de outros curadores e artistas em espaços não ocidentais, e Kouoh trabalha também na importância de construção dessas redes, com as palavras dela em artigo originado de um dos seminários da Raw Academy:
A Raw Material Company surgiu da necessidade de se criar um espaço de compartilhamento de conhecimento. Sua motivação principal foi estabelecer um espaço de educação e aprendizado alternativos. Um local que permita o acesso à teoria artística contemporânea e, em retorno, gere discurso, ideias e práticas com ênfase primária em África e questões relacionadas à África, ao mesmo tempo incluindo uma gama mais ampla de origens e escolas intelectuais. O nome Raw Material Company se refere à África como uma fornecedora tradicional de matérias primas (raw material) para a indústria global. Também se refere à arte e intelectualidade como uma matéria prima para o desenvolvimento humano. Company representa uma abordagem empreendedora para a produção artística e também para um sentido colaborativo de estar junto (Kouoh, 2013).[1]
Em uma das coletivas que curou, Body Talk: Feminism, Sexuality& The Body, Kouoh cita Okwui Enwezor e Chika Okeke-Agulu para falar de corpo, sexo e arte feita por mulheres no continente africano. A centralidade do corpo, como espaço de batalha, é trazida por esses curadores a partir de um evento de resistência de mulheres igbo, etnia nigeriana, contra o colonialismo. As mulheres da região que trabalham em um mercado, após a cobrança de um imposto em tal mercado, se manifestaram indo ao mercado despidas. O corpo nu da mulher tem força, ele é tabu e aparece causa de desconforto e mudança. A centralidade desse corpo na arte feita por mulheres é apresentada por Kouoh como também parte de uma resistência a um modo colonial, machista e racista de dominação, presente em todo o continente.
A artista Zoulikha Bouabdellah, argelina, apresenta seus quadros, com imagens de quadros renascentistas ocidentais, como que partidos em motivos de grafismos árabes, superpostos com outras imagens. A aranha, que aparece na obra, é uma homenagem à obra de Louise Bourgeois e cada perna representa um estilo arquitetônico diferente não ocidental. A aranha aqui também é corpo, é a presença e união dos estilos, a manutenção em pé de uma mulher. Ela acolhe e nos mostra que as mulheres ao redor são objetos transformados pelas possibilidades de corpo.
Figura 1: Obras de Zoulikha Boabdellah. Fonte: Contemporary Art Archive.
Como a Aranha-mãe mencionada, Kouoh faz de sua curadoria espaço de criar elos entre pessoas, histórias, espaços, possibilitando o acolhimento de diferentes pessoas nas exposições que organiza, como no Zeitz Mocaa, onde assumiu a curadoria e a responsabilidade de organizar o acervo de um museu dedicado à arte contemporânea africana. Koyo Kouoh nos mostra uma faceta dessa curadoria ampliada, promove a criação de redes e acervos, a curadoria que conta uma história além de mostrar uma obra. Estabelece uma questão e a analisa por meio das obras dos artistas.
Outra faceta dessa curadoria ampliada pode ser percebida nas curadorias dos diferentes festivais literários do continente, como Aké, na Nigéria. A criadora e uma das primeiras curadoras do Aké Festival, o maior festival literário da África Ocidental, Lola Shoneyin, hoje faz parte do seu Conselho Curador. Aké é um festival que aborda variados tipos de artes, não só a literatura, inclusive projetou escritores premiados e reconhecidos que hoje são publicados dentro e fora do continente. Ano passado, Wole Soyinka e Abdulrazak Gurnah, os dois prêmios Nobel de literatura africanos, estiveram presentes no festival, falando sobre seus novos livros.
Lola criou o Aké a partir da constatação da falta de festivais interessados na literatura produzida no continente em sua região, apesar de haver outros festivais literários de menor porte. Organizado a partir da elite literária local, Aké se destaca ao longo de seus onze anos de história por ter colocado junto diversos pontos de vista literários do continente, mantendo as edições online durante a pandemia, com discussões sobre feminismo africano e religião, comandadas por Mona Eltahawy, feminista egípcia, e Chris Abani, escritor e professor nigeriano. Na edição de 2023, o festival destaca uma questão central desde sua criação: o mercado literário na África e suas dificuldades, apesar de alguns nomes furarem essa bolha, chegando à Europa ou aos EUA, e em geral a tradução dos livros não é bem feita. Por isso, foi criado o TARF, espaço dentro do festival para facilitar a venda de direitos autorais de autores do continente, que tem sua primeira edição em 2023.
Lola mantém, assim, a ideia e a força do começo do festival, quando pretendia criar espaço para africanos discutirem o continente em seu próprio solo. Ao longo dos anos, vozes dissonantes se apresentaram, falaram, discutiram. Aké se tornou um espaço de criação de redes e compartilhamento de experiências. A curadoria aqui se faz também como o espaço de saber no intuito de construção desses diálogos. E Lola Shoneyin criou espaço onde o diálogo é desejado e bem-vindo, onde o acolhimento acontece desde a preocupação com a explicação sobre o visto nigeriano em sua página da internet. Com Lola, vemos outra curadoria, a dos festivais, que acredita na diversidade e multiplicidade também de formas de arte – cineastas, artistas visuais e músicos têm participado de forma constante do festival – e apesar do espaço ampliado, ele também é focado nas redes e na ampliação da comunicação dentro do continente, além de compreender as questões inerentes a essa África geográfica e expandida – eventualmente, autores diaspóricos também são chamados a participar.
O evento participa também de redes de festivais literários pelo mundo e mantém fellowships com eles, ampliando a sua inserção em outros espaços literários, e o interesse pelo espaço africano que outros espaços podem vir a ter. As fellowships também contribuem para a construção de um sistema literário internacional, com a inserção de autores e editoras africanos.
Quando Aké começa a se fortalecer, Lola cria a iniciativa Book the Buzz Foundation, que tem o objetivo de promover a leitura na Nigéria, se tornando, assim, uma parte de um sistema maior. Book the Buzz promove outros eventos durante o ano, sobretudo com crianças em idade escolar, com o intuito de ampliar a população leitora do país. Cria bibliotecas e espaços de leitura, tendo como intuito, também, o arquivo. A curadoria exemplificada aqui reforça a necessidade da memória e da leitura – em suas diversas acepções – como formas necessárias de compreensão do mundo. A aranha tece sua teia com o acolhimento e fortalecimento de novos autores e editores, a criação de conversas, a discussão de tabus e diferenças culturais em espaços africanos. Lola, como Koyo Kouoh, apesar de nascer na Nigéria, teve sua educação básica no Reino Unido, retornando para seu país após a prisão de seu pai pela junta militar no poder. A visão de um retornado aqui é importante pela percepção do que deseja e quer construir. E como pretende fazê-lo.
Figura 2: Página inicial do website de Aké Festival
O terceiro exemplo que coloco é o do coletivo Le 18, no Marrocos. Misto de galeria e espaço de criação coletivo, o espaço Le 18 foi fundado em 2013, por Laila Hida, fotógrafa local. A proposta do espaço é ser uma residência artística e espaço de cursos, biblioteca, um espaço de trocas. A partir de seu segundo ano, a ideia do coletivo e da participação voluntária se impõe, ampliando a organização para um grupo de seis pessoas. Os múltiplos interesses tornam a programação do local variada, indo de cursos de fotografia a performances, de sessões de cinema a residências.
Em 2022, fazem uma “Documenta paralela”, indo a Kassel para promover a discussão com artistas e coletivos por fora das mostras oficiais, um espaço de acolhimento, conversa e construção de redes. O espaço funciona, ampliando para fora de Marrakech práticas de conversas e exposição que já aconteciam dentro da galeria.
Laila decide ampliar o grupo também por entender que o coletivo estaria mais próximo de alcançar o que pretendia com a galeria, de criação de redes e acolhimento de outras formas de se fazer arte, dentro de um espaço em que há censura estatal e em que a influência europeia é perceptível no dia a dia. O trabalho de Laila como fotógrafa também busca o caminho do coletivo, partindo de diferentes visões de espaços e cidades, e trabalhando na criação e seleção de imagens em suas exposições – seu trabalho se aproxima de uma curadoria mais tradicional.
O coletivo tem, entre seus participantes, Soumeya Ait Ahmed e Nadir Bouhmouch, que criaram o ciclo Awal – palavra no idioma amazigh, povo minorizado do Marrocos – e que tive a oportunidade de entrevistar quando vieram para a inauguração da 35ª Bienal de São Paulo, em 2023. Dentro do ciclo Awal, iniciado em 2020, há um fortalecimento da história e poesia oral do povo amazigh, minorizado desde a colonização, ficando à margem dos processos decisórios do país. O povo amazigh tradicionalmente é ligado a territórios nas montanhas e a um modo de vida nômade. Com a colonização, foram forçados a se urbanizarem, muitas vezes ficando as mulheres como mantenedoras das tradições e histórias orais nos espaços urbanos. Com o projeto Awal, o objetivo é a retomada, recuperação e retrabalho da história e literatura oral do povo amazigh, bem como de outros povos minorizados, convidando para o centro da galeria artistas e autores que trabalham com essas expressões.
Nadir e Soumeya trouxeram à Bienal de São Paulo em 2023 um trabalho que tem inspiração nesse começo de ciclo Awal. A inquietude deles é, sobretudo, a possibilidade de registrar e manter viva uma série de manifestações culturais que se tornam marginalizadas e expulsas do corpo da cidade. Assim, trazem para o pavilhão da Bienal uma instalação composta de dois espaços separados. Em um, atrás de uma cortina de tela preta em forma circular, com dois bancos dentro, uma tela de televisão passa um filme que acompanha os agricultores no plantio e manejo de maçãs no monte Atlas. As músicas de trabalho são legendadas em inglês e português, enquanto vemos todo o processo de plantio, colheita e beneficiamento dos frutos. O espaço ao lado consiste em bancos dispostos de forma circular com tapetes e almofadas em tons de bege. Em mesas intercaladas com os bancos, pequenos livretos, parecidos com cordéis, com as poesias amazigh. Na parede, trechos de textos criados pelos dois artistas, que falam sobre monocultura e apagamento cultural.
Figura 3: Detalhes da instalação de Nadir Bouhmouch e Soumeya Ait Ahmed na 35ª Bienal de São Paulo. Fonte: acervo pessoal.Figura 4: Detalhes da instalação de Nadir Bouhmouch e Soumeya Ait Ahmed na 35ª Bienal de São Paulo. Fonte: acervo pessoal.
Com o trabalho, a ideia de Awal permanece. Uma recuperação e manutenção de um passado que também é presente dos dois artistas, que são amazigh, os primeiros da família a cursarem ensino superior. As músicas de trabalho, imperativo cultural do grupo, se reduzem ao se reduzir o número de culturas existentes no espaço do monte Atlas. Se não há variedade de plantação, não há variedade de trabalhos ou de músicas. O fim de uma cultura é o fim de todo um ecossistema cultural ao seu redor. Quando vemos o vídeo, a monotonia da maçã como única cultura se torna real. Os minutos passam e o mesmo som e as mesmas imagens se sucedem. O frio, a neve, o degelo, as maçãs, o rio, o caminho se sucedem como que sem fim. A música segue sempre a mesma. No lado de fora, no espaço, um convite a sentar, ler e descansar. Ao diálogo com outros que passam, para que se torne uma verdadeira “Assays”, a praça central da cidade no idioma amazigh, local de trocas e possibilidades.
Figura 5, 6 e 7: Detalhes da Instalação de Nadir Bouhmouch e Soumeya Ait Ahmed na 35ª Bienal de São Paulo. Fonte: acervo pessoal.
Na abertura, foi feita uma ativação com os artistas do espaço, que infelizmente não puderam estar na segunda ativação, pois voltaram ao seu país com as notícias do terremoto no Atlas. Na ativação, os artistas reforçam a necessidade do diálogo e nos convidaram a falar dessa oralidade tão desprezada pelo Ocidente, diálogo esse que podemos perceber até no formato de cordel escolhido por eles para apresentar os textos orais de sua região, decidido após passarem uma temporada no Brasil em 2022, interessados também por uma imigração forçada amazigh para o norte/nordeste do país, realizada pelos portugueses. O trabalho deles na Le 18, no entanto, como falaram na entrevista, talvez tenha chegado a um fim. Estão buscando novos espaços e novas possibilidades de realizar residências e formações, privilegiando pessoas que, como eles, são da primeira geração que chega ao ensino superior, pessoas de espaços minorizados em sua região.
Três diferentes curadorias, três diferentes propostas e formas de encarar a curadoria ampliada. Mas os três exemplos trazem em comum uma possibilidade de acolhimento e uma vontade de ampliação e criação de redes. Como a Aranha-mãe de Mohamed Mbougar Sarr, fazem o caminho de buscar os que pertencem a esse espaço de criação e unir a um propósito em comum. Siga D, o nome da personagem da Aranha-mãe, é uma mulher que se perde e se encontra diversas vezes, sem conseguir voltar ao continente africano. Nisso os exemplos diferem da personagem. Se permanecem sendo o elo e usando a memória como parte da construção da criação, não tiveram a necessidade de se isolar do local de produção de suas memórias para isso. Voltam e permanecem em solo africano, produzindo novas memórias e combatendo a monocultura.
Assim, a curadoria, que começa com o objetivo de guarda, de cuidado com um acervo, passa a ser um trabalho de seleção e contação de histórias e termina tendo um sentido ampliado, de trabalho com artes. O cuidado, que era com um acervo, passa a ser também a criação desse acervo, a criação de redes que permitam o cuidado e a ampliação do acervo e da história do fazer artístico. Como uma Aranha-mãe, o curador ocupa esse espaço de acolhimento e de aterrorizar, o medo da seleção e o medo da memória estão presentes nele. E os três exemplos aqui demonstram facetas dessa nova forma de lidar com esse espaço. O curador, em sua práxis diária em espaços não estatais de cultura, cria condições para a discussão maior dentro da sociedade a respeito de questões ligadas ao universo artístico e ao mundo literário.
* Antonia Costa de Thuin é doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. Atualmente faz pós-doutorado na UFABC, ligado ao projeto “Do coração das guerras a poéticas da plasticidade: criação e engajamento no pensamento artístico em contextos africanos dos anos 1980 a nossos dias”, 2022/05923-9, com o projeto “A produção artística e a curadoria em espaços não ocidentais, formas de lidar – CCA Lagos, RAW, Le 18, Inema Arts Center”, 2023/08981-2, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
ENWEZOR, Okwui; OKEKE-AGULU, Chika. Contemporary African Art since 1980. Bologne: Damiani, 2009.
KOUOH, Koyo. Filling the Voids, The Emergence of Independent Contemporary Art Spaces in Africa. In: KOUOH, Koyo (org.). Symposium on Building Art Institutions in Africa. Ostfildern: Hatje Cantz Verlag, 2013.
SARR, Mohamed Mbougar. La plus Sécrète Mémoire des Hommes. Paris: Philippe Rey, 2021.
Notas
[1] Raw Material Company was born out of the necessity to create a space for the sharing of knowledge. Its core motivation was to establish a space for alternative education and learning. A place that provides access to contemporary artistic theory, and in return generates discourse, ideas and practices with a primary emphasis on Africa and African related matters, all the while including a broader range of origins and intellectual schools.
A relevância e a legitimidade da curadoria estão vinculadas ao papel dos museus e das galerias como plataformas culturais que constroem narrativas por meio da seleção, apresentação e interpretação de obras de arte. É o cânone da história da arte que avalia a relevância e a distinção das obras com base em sua qualidade estética, sua influência histórica ou cultural, ou seu impacto duradouro sobre a sociedade. No entanto, ainda que obedeça ao cânone, a curadoria de exposições também reflete mudanças sociais, culturais e políticas exercendo um papel de autoridade sobre o que deve ou não ser exposto em meio a disputas no campo das artes.
Este artigo propõe-se a analisar o papel do curador em contextos históricos específicos e o resultado da correlação de forças que sustenta o status quo no mundo das artes. As narrativas modernas operadas pelo Museu do Louvre em Paris no século XVIII e o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) no século XX são observados como exemplo. Em contraste, é visto como, a partir da década de 1970, os curadores de exposições temporárias desafiaram as estruturas ocultas de legitimação do mundo das artes, buscando expandir os formatos expositivos para incluir novas possibilidades e questões propostas por novas formas de arte.
No século XXI, alguns curadores de exposições temporárias têm respondido às vanguardas artísticas conceituais e às questões sociais de seu tempo trazendo artistas de países do sul global, negros, indígenas e mulheres, que disputam narrativas estéticas e representações sociais. No entanto, esses esforços não têm alcançado a legitimidade canônica necessária e os artistas em questão muitas vezes permanecem à margem das grandes exposições de museus. Assumindo muitas vezes o papel da crítica, torna-se fundamental que os curadores continuem a desafiar as normas e a ampliar as fronteiras da arte, garantindo que as exposições sejam representativas e inclusivas a uma variedade de perspectivas e experiências.
Arte, patrimônio e narrativas civilizatórias em Salões, Gabinetes e Museus
O entendimento contemporâneo do conceito de curadoria está relacionado ao cuidado de artefatos da cultura material e tem suas bases nas experiências do mecenato renascentista entre séculos XIV e XVII, quando a Igreja, a nobreza e a aristocracia se mantinham como importantes patrocinadores das artes. Objetos considerados “artísticos” desempenhavam um papel crucial na expressão da fé e na educação religiosa, meios de expressão do gosto pessoal e educação refinada do seu proprietário que reforçavam sua elevada posição nas relações sociais; no caso da nobreza, competindo com outras cortes (Magalhães e Costa, 2021). No contexto francês, a distinção social era identificada por meio de hábitos de “etiqueta” e o privilégio do acesso à arte exercia a função simbólica de prestígio de classe (Bourdieu, 1996). Como observa Norbert Elias (2001), os gestos produzidos por meio do campo das artes teriam mais significado do que os indivíduos eles mesmos.
Figura 1: Quatro horas no encerramento do Salão da exposição anual de pintura na Grande Galeria do Louvre. Pintura de François Auguste Biard (1798-1882), 1847.
Ao lado dos Salões, outra prática de coleção, organização e exibição fundamental na história das exposições acontece entre os séculos XV e XVII nos “gabinetes de curiosidades”, onde se mantinham itens exóticos, principalmente aqueles estranhamente “curiosos”, trazidos em expedições exploratórias e guerras de “descobrimento” no Novo Mundo. Nestes espaços, os visitantes endossavam uma cultura aristocrática, e o conhecimento das “curiosidades” e “maravilhas” servia para a identificação de homens bem sucedidos e cultos; isto porque, “no caso específico dos gabinetes, as instruções ao público davam conta da importância social de admirar objetos ‘realmente’ curiosos, maravilhosos e, portanto, raros” (Amorim & Gonçalves, 2012, p. 226).
Figura 2: Gabinete de curiosidades do Museum Wormianum (1655). Fonte: Richards, Sabrina (2012). The World in a Cabinet, 1600s, The Scientist. Disponível em https://www.the-scientist.com/foundations/the-world-in-a-cabinet-1600s-41184.
No avançar dos ideais iluministas, os gabinetes configuravam-se como espaços de reunião de pessoas eruditas interessadas em abstrair o valor de uso dos objetos em sua função original a favor da ciência, da economia ou da sua própria cultura.
Enquanto apresentavam os itens de seus gabinetes a seu grupo de amigos visitantes, os colecionadores exerciam o papel que exercem ainda hoje: pesquisador, curador a educador (Cintrão, 2010, p. 20). Como cientistas em laboratórios, experimentavam critérios de seleção e catalogação baseados em diferenças e semelhanças entre os seres (indivíduos) e a natureza (macrocosmo)[1]. A raridade, associada à perspectiva infinita da coleção (universalizante), oferecia motivos pelo qual determinados itens deveriam ser preservados e mantidos.
Os gabinetes, assim como os Salões Reais refletiam mais do que erudição, refinamento cultural e posição social na nobreza e da aristocracia. Acima de tudo eram guardiões da ideologia destes grupos privilegiados. Como ambiente de produção de conhecimento, na busca pelo domínio da maior extensão possível do que estava ao seu redor, das maravilhas terrenas às impressões artísticas, o gabinete expressava a cultura e poder dos colecionadores que “se tornavam os guardiões da memória, aqueles que estavam em condições especiais e favoráveis para que o entendimento do processo da criação fosse entendido e, consequentemente, dominado” (Possas, 2005, p. 156).
Se nos gabinetes preocupava-se mais com a produção de conhecimento sobre os itens, nos Salões Reais foram buscadas medidas de segurança, preservação e conservação para controlar o acesso de um público cada vez mais interessado nas obras-primas dos maiores mestres da arte europeia, riquezas de preço infinito, desconhecidas ou indiferentes à curiosidade dos estrangeiros pela impossibilidade de ver (Alain Roy, 1977) quando restritas aos palácios da monarquia. Técnicas de conservação, organização e exibição foram desenvolvidas por mestre e artistas da Academia que assumiram a função de décorateur dos Salões. As obras recebiam molduras douradas, eram fixadas nas paredes do chão ao teto a uma distância muito próxima entre si, ainda sem a pretensão de chamar a atenção do espectador para características particulares de cada uma delas. Preocupavam-se em padronizar a prática de instalar as obras da melhor maneira de modo que garantisse sua segurança, no entanto, buscavam apresentar desenvolvimentos históricos e similaridades temáticas (Obrist, 2014).
A ideologia que orientava o que deveria ou não ser exposto não deixava de estar em disputa, e a emergência de uma elite burguesa e de novos artistas colocava os Salões como importante meio de conquistar e valorizar a obra de um “gênio criativo” da época (Hauser, 1951). Nos Salões eram abertos espaços a discussões sobre o desenvolvimento de correntes artísticas e a formação do gosto que influenciariam a opinião pública e o mercado das artes. Era evidenciada uma mudança de rota no entendimento do campo artístico com influência do pensamento iluminista representado na crítica de arte. Tal qual a prática crítica empreendida nos gabinetes, nos Salões também é desenvolvida a capacidade e habilidade de examinar, avaliar minuciosamente e finalmente julgar e categorizar. Portanto, a forma como as obras eram dispostas nos Salões indicava a emergência de um sistema de fundamentos construídos para legitimar o que é ou não relevante.
Ainda que a Academia e os ditames da História da Arte mantivessem a reputação dos Salões, as informações sobre as obras de um colecionador deveriam circular pelo mercado das artes e os especialistas, artistas, jornalistas e críticos de arte deveriam preocupar-se com a aprovação pública. Denis Diderot (1713-1784), graduado mestre em Artes pela Universidade de Paris, frequentava os Salões e produzia cartas e ensaios criticando os métodos da Academia em uma escrita que narrava a experiência dos Salões in situ, muito próxima ao espectador que descobre, observa, descreve, analisa e julga as obras de arte expostas (Petitdemange, 2021).
Quando os Salões do Louvre se abrem ao público como Museu Central das Artes da República, após a Revolução Francesa em 1793, o caráter “circulante” das informações sobre as obras de arte operado pelos críticos passa a operar no sentido da educação do público. Buscou-se democratizar o acesso à arte cumprindo o “interesse público” de preservar o patrimônio e orientar a compreensão histórica da sociedade a partir do referencial nacionalista francês. A história narrada ao longo de suas galerias reunia as coleções de obras de Arte antes restritas aos Salões a artefatos retirados de territórios dominados em guerras napoleônicas. As obras e artefatos em exposição serviam de estandarte da soberania francesa, fornecendo os modelos normativos de cidadania, gosto, educação, progresso, etc. (Bennett, 2013; Preziosi & Lamoureux, 1997).
Além da preservação do patrimônio contra a deterioração causada pelo tempo, manuseio do público e o risco de violência ou roubo sob responsabilidade do conservateur de musée, as obras e artefatos eram submetidos a processos técnicos e científicos no que se denominava “cura” (Bruno, 2008). Isso envolvia a seleção, coleta, registro, análise, organização, armazenamento e divulgação desses objetos com o propósito de identificá-los, interpretá-los e prepará-los para exposição. Tais processos envolvem, ainda nos dias atuais, procedimentos presentes na curadoria.
A diversidade de objetos, a necessidade de ordenamento e a exibição levaria a especialização do Museu em disciplinas, inclusive artísticas, e a construção de narrativa histórica a partir da exposição. A organização do acervo do Louvre, no final do século XVIII, buscava responder a categorias universalizantes, separando os elementos a partir do que os diferencia e os reunindo a partir de semelhanças, conforme prescrito nos gabinetes de curiosidades. Os artefatos eram apresentados conforme alinhamento à uma perspectiva de história singular e linear (tempo darwiniano), apresentando as obras em sua totalidade, em caráter enciclopédico e permanente, o que lhe atribuiria o status de “patrimônio” e reforçaria a função pedagógica em direção ao progresso.
Ao analisar o modo de funcionamento dos Museus Nacionais no século XVIII, os historiadores de arte Preziosi & Lamoureux (1997) identificam o desejo de compartilhar certas características comuns e propriedades únicas quanto à forma ou princípios de formação no que se refere ao indivíduo, nação, grupo étnico, classe, gênero ou raça tal qual as ideologias do nacionalismo romântico. Os autores compreendem que as exposições em museus podem ser vistas como histórias fictícias, artefatos para a criação da narrativa moderna. Os artefatos e obras de arte, utilizados pela história da arte e museologia como objetos de estudo, delineiam aspectos significativos do personagem, nível de civilização, ou grau de conhecimento social, cognitivo ou ético eles representam as histórias de pessoas, mentalidades e povos a partir de evidências convincentes das relações causais do passado com o presente, certos tipos de relacionamentos desejáveis entre nós e outros, encenam narrativas para demonstrar avanço ou declínio de um indivíduo ou nação.
Os Museus de História não são repositórios passivos de artefatos; em vez disso, moldam ativamente a forma como entendemos e interpretamos o mundo. São, portanto, instrumentos sociais – dispositivos orientados à fabricação e à manutenção da modernidade por meio da produção de conhecimento: tecnologias epistêmicas, tal como qualquer outra ferramenta ou aparelho utilizados para compreender e navegar no mundo (Preziosi, 2012). São constituídos, no entanto, por uma rede de elementos em um jogo de poderes e de saberes que, por vezes, incorporam sentidos variados, construindo gêneros de uma ficção imaginativa moderna.
Ainda que os museus tenham empreendido esforços de acessibilidade ao conhecimento erudito produzido e exibido em suas exposições, no século XX as suas narrativas ainda obedeceriam a estereótipos e hierarquias linguísticas. Enquanto tecnologia epistêmica, são operadas por determinados agentes que lutam pela manutenção de suas narrativas e de seus privilégios.
A pesquisa sobre os públicos de museus europeus empreendida por Bourdieu & Darbel (2007) nos anos 1960 indicam que diferentes públicos orientam sua experiência nos museus a partir linguagem simbólica (relativa) traduzida a partir de “um arsenal de palavras que permitem dar nome às diferenças e constituí-las ao nomeá-las (…) Com certeza, é possível amar de paixão, à primeira vista; mas, isso só acontece depois de ter lido muito, sobretudo, em relação à pintura moderna” (Bourdieu & Darbel, 2007, p. 82).
Os discursos expositivos tradicionalmente reproduzem os códigos mantidos pelos conservadores, pessoas provenientes de camadas privilegiadas da sociedade, “escolhidos por cooptação, segundo o jogo das relações pessoais e das tradições familiares (…) Eram, quase sempre, amadores de arte afortunados aos quais o museu não garantia carreira, nem retribuição (ou, então, somente no plano simbólico)” (Bourdieu & Darbel, 2007, p. 145). Não atuavam como administradores ou como pesquisadores, tampouco assumiam o papel de pedagogos, voltando sua prática ao “público que lhe parece digno de sua vocação”. Como uma ‘sociedade’ (no sentido restrito do termo), reuniam personalidades em relações de interconhecimento bastante estreitas e intensas. “Eles satisfaziam-se com um status global, ambíguo e, por conseguinte, prestigioso, que lhes permitia aparecer, diante dos criadores, como guardiães da Arte e depositários da Tradição; diante dos universitários, como homens de ação e técnicos da Arte; e diante dos marchands, como estetas desinteressados” (Bourdieu & Darbel, 2007, p. 143). Ou seja, a fruição do público não dependeria da decodificação da obra de arte em si, enquanto autônoma e regido pela estética, mas da posse de determinado capital econômico, cultural, social ou simbólico, como Bourdieu (1996; 2011) viria a afirmar posteriormente.
Arte Moderna e contemporânea em perspectiva
Se deixarmos o cenário europeu e migrarmos nosso olhar para o norte-americano, onde foram criados os primeiros museus voltados à arte moderna no início do século XX, observamos que a reprodução epistêmica de determinados códigos de organização do conhecimento se mantém sob domínio de determinadas classes sociais privilegiadas, embora o próprio conteúdo estético se altere.
O Museu de Arte Moderna de Nova York – MoMA foi fundado em 1929 a partir da iniciativa de três colecionadoras de arte moderna: Abby Aldrich Rockefeller, Lillie P. Bliss e Mary Quinn Sullivan. Seus nomes já as identificam como pertencentes à elite aristocrática norte-americana. O modelo de acervo e exposição construído para o MoMA foi dirigido pelo historiador e crítico de arte Alfred Barr (1902- 1981), que ocupou o cargo até 1943. Formado em Harvard, Barr foi aluno de Paul Sachs, ex-diretor do Fogg Art Museum e considerado o fundador da museologia moderna nos Estados Unidos, primeiro doador de obras ao MoMA. Barr esteve na Europa entre 1922 e 1937, quando conheceu as técnicas expositivas menos acumulativas e, com a preocupação de seguir uma narrativa realizadas por Alexander Dorner[2] no Landesmuseum em Hanover, frequentou a escola de arte e design Bauhaus, onde conheceu a teoria do campo de visão de Herbert Bayer (1946)[3], assim como apreendeu as técnicas de vocabulário visual de Willem Sandberg no Museu Stedelijk, na Holanda (1937-1945). Suas referências pessoais no campo das artes indicam a influencia da Academia em seus conhecimentos adquiridos e a possibilidade de viagens ao exterior, o que o destacam em posições de privilégio e oferecem reconhecimento às suas decisões enquanto diretor artístico do MoMA. Entre elas, Barr implementou o modelo arquitetônico do “Cubo Branco”, que, em contraste com a arquitetura e decoração de interiores de museus históricos, oferecia a ilusão de neutralidade e de autonomia das obras (O’Doherty, 2002). A incorporação e integração de elementos arquitetônicos e requisitos estruturais consideravam as habilidades de percepção dos visitantes e os elementos de comunicação e exibição seriam organizados em uma sequência estrategicamente planejada. Além disso, fez uso de suportes de comunicação visual com textos de parede, catálogos expositivos e anúncios das exposições. Este método ainda é utilizado, nos dias atuais, por museus de arte moderna e contemporânea em diversos países.
Figura 3: Cubismo e Arte Abstrata [MoMA Exh. #46, March 2–April 19, 1936]. Fonte: https://www.moma.org/calendar/exhibitions/2748?installation_image_index=20.Segundo Thomas McEvilley (1999), a desejada fruição da arte pretendida pela neutralidade do espaço expositivo do “cubo branco” no MoMA ainda ressaltava o status do museu como local elitista e sagrado para o mundo das artes, que espera uma sensibilidade específica do público, uma atitude do espectador, diferenciado em termos de classe e percurso cultural. A resistência das estruturas de poder inerentes ao cubo branco centra-se em condição “[…] de beleza imorredoura, da obra-prima. Mas na verdade é uma sensibilidade específica, com limitações e condições especiais que é tão glorificada. Ao sugerir a eterna ratificação de uma certa sensibilidade, o cubo branco sugere a eterna ratificação das reivindicações da casta ou grupo que compartilha de sua sensibilidade.” (McEvilley, 1999, p. 9). O museu elevava o objeto artístico a uma obra-prima glorificada interferindo, portanto, nas relações de poder entre a arte e o público.
Além da organização do espaço expositivo em “cubo branco”, Alfred Barr organizava as exposições a partir de correntes artísticas como o “impressionismo”, “cubismo”, entre outras, em ordem lógica e cronológica: “diagrama-torpedo”, que começava em 1875 e seguiria em movimento contínuo através do tempo. O diagrama orientava a compra de obras de artistas vivos e as vendas de obras com mais de cinquenta anos (política atualmente extinta). Apontava assim para um ideal de arte moderna como aquela produzida nos últimos 50 anos, enquanto influenciava também no valor das obras, não deixando de lado os critérios historiográficos aplicados à Arte, a quem respondia a seu grupo social de privilégios. Enquanto as vanguardas artísticas buscavam provocar o cânone da história da arte, Barr implementava uma metodologia de apresentação das correntes artísticas que trouxeram para a história da arte e da curadoria o sentimento modernista de ordem, hierarquia e clareza – visão linear eurocêntrica, em um momento histórico de ascensão do totalitarismo na Europa, que ameaçava a própria noção do modernismo emergente que ele mapeava. Mais uma vez, assim como na França napoleônica, os museus (agora dedicados à Arte Moderna de vanguarda) representavam uma narrativa hegemônica específica.
A partir da década de 1960, após a Segunda Guerra Mundial, embora os museus europeus estivessem debilitados e impossibilitados de receber acervos internacionais de arte moderna, a arte contemporânea ou arte pós-moderna despontava com artistas da vanguarda que traziam outras formas, conteúdos e funções. A desmaterialização que marca a Arte Conceitual provocava o afastamento dos objetos físicos em direção a processos, conceitos e experiências como formas válidas de expressão artística (Lippard, 1973)[1] – pop art, arte conceitual, arte minimalista, arte performativa, arte de rua – que não cabiam em narrativas lineares e progressões históricas previstas nos espaços arquitetonicamente programados de museus (Danto, 2006). Na busca por explorar sensações e compartilhar a crítica ao tempo presente, mais do que criar obras, os diretores artísticos passaram a trabalhar muito próximos desmistificando os museus e as galerias como espaços de legitimação das Artes.
Segundo Seth Siegelaub (1969), enquanto projeto político empreendido na época, os curadores, através de formatos expositivos expandidos e receptivos a novas possibilidades e questões propostas por novas formas de arte, seriam potencialmente capazes de desmistificar as estruturas ocultas do mundo das artes: o papel dos museus, do colecionador e da produção da obra de arte. Em entrevista a Paul O’Nell, Siegelaub (2006) afirmou que os museus e galerias da década de 1960 na Europa e nos Estados Unidos não atendiam, necessariamente, os desejos e ideias impostas pela própria natureza dos trabalhos artísticos em termos físicos e espirituais. Não se tratava apenas de espaço em termos físicos, mas quanto a ideia de um tipo de espaço sagrado, “semi-religioso” que as pessoas conhecem e visitam regularmente, “espaço de arte”. Afinal, o caráter mitológico do ambiente dedicado à “inspiração” construído como museu na antiguidade transformara-se em espaço canônico exclusivo para ter a existência artística conceitual assegurada. Ainda que alterasse o conteúdo, o público e mesmo as estruturas arquitetônicas ao longo da história, os museus e galerias mantinham essa aura sagrada.
Em um período em que os diretores artísticos de exposições temporárias assumiam uma assinatura criativa – e mesmo artística, autoral – dos eventos artísticos, e seu protagonismo era alvo de críticas pela interferência no efeito das obras de arte sobre o público, não apenas a função dos museus estava em disputa, mas dos artistas, do curador, dos colecionares e críticos.
Desde os Museus Modernos e Bienais de Arte Contemporânea, os sistemas de arte pretendem oferecer uma maior aproximação com os interesses dos artistas e do público oferecendo espaços para a manifestação de novos conceitos e novas narrativas de representatividade com menos códigos elitistas de linguagem.
A crítica de arte também se reposiciona no contexto da arte contemporânea. O filósofo e crítico Luiz Camillo Osório acredita que a crítica deva adaptar-se a novos espaços de produção e circulação para a arte, estar mais próxima do fazer artístico e do tempo da experiência artística nas exposições. Como “testemunha, que deve estar atenta aos fatos para poder trazê-los a público”, deve se deslocar do papel tradicional de um juiz do gosto sobre o objeto artístico. A escrita de um texto crítico não seria “sobre a obra”, a fim de “representar um sentido da obra analisada” –, mas uma “escrita com as obras” – que envolveria uma parcela de criatividade, “para [a crítica] se assumir de modo mais exploratório, participando do processo aberto de criação de sentido” (Osório, 2005, p.15-16).
Segundo o historiador e crítico de arte Terry Smith (2012), menos óbvios no discurso até o momento, mas igualmente importantes para o futuro, são as questões sobre como repensar a plateia, envolver os espectadores como co-curadores e o desafio de curar a própria contemporaneidade – em suas formas presentes, passadas e futuras (Smith, 2012, p.19).
À guisa de conclusão
Até que ponto o sujeito moderno, chamado a participar das experiências conceituais das exposições contemporâneas, como das transformações de design expositivo de Museus Modernos ou mesmo nas orientações pedagógicas de Museus Históricos esteve representado nas estruturas que legitimam as obras de arte?
A produção de narrativas artísticas e históricas existem, mas a direção da sua exposição e, principalmente, seu alcance, são determinadas pelo acúmulo de capital simbólico de grupos sociais em posições de poder dentro e fora das suas instituições. A história ocidental vem sendo contada a partir de narrativas expositivas em museus e exposições que orientaram um ideal de modernidade e procuraram manter determinada forma de compreender a pluralidade de vozes produzidas em diversas partes do mundo. No contemporâneo, no entanto, a direção destas narrativas em museus e exposições são pressionadas pela vanguarda artística, pela crítica e por ativistas sociais que reivindicam uma nova estética, novas categorias críticas e uma nova ética, colocando as remanescentes simbólicas do “sistema das artes” em confronto com o momento histórico.
Na contemporaneidade, a curadoria de exposições de arte tem se mostrado como um campo progressista de entendimento dessas novas experiências de mundo como visto principalmente em eventos “globais”, como as Documentas de Kassel, que abrem caminho a vozes dissidentes, saberes dos povos originários e afrodiaspóricos, além de levarem em conta questões de gênero e sexualidade. Uma disrupção que exige criatividade inovadora, fabulação, novas formas de interpretação do mundo, imaginação e valorização do sonho. A curadoria, assim como a crítica, tem se mostrado muito mais um trabalho coletivo do que uma ação individual.
A figura do curador está associada à intelectualidade e seus múltiplos campos de saberes, isso o capacita a nomear, classificar, validar e também criticar dentro de um arranjo curatorial. Se a curadoria ocupou o espaço da crítica produzindo conhecimento dentro do campo das artes, podemos destacar que, de fato, no contemporâneo algumas exposições são explicitamente críticas e podem aparecer como questionamentos aos produtos artísticos, a criatividade, a fatos históricos e até a injustiças sociais.
Os entendimentos tradicionais acerca da curadoria, de forma geral, podem compreender o espaço expositivo enquanto desenho arquitetônico que prestigia, eleva e mitifica determinadas representações. No entanto, ao assumir o cenário de disputa contemporâneo, os museus, ainda enquanto tecnologia epistêmica, podem se tornar laboratórios de produção de conhecimentos novos, novas narrativas e novas representações cênicas.
* Cristine Carvalho é doutoranda no Programa de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ com bolsa CAPES e foi pesquisadora visitante da Universidade de Miami com bolsa CAPES PRInt em 2022. Atua em projetos de pesquisa voltados à economia criativa e inovação social.
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[1] Categorizados em Artificialia – objetos criados ou modificados por humanos, Naturalia – criaturas e objetos naturais (com um interesse particular para monstros), Exoticas – plantas e animais exóticos; e Scientifica – instrumentos científicos.
[2] Dorner promove mudanças no pensamento expositivo através da reorganização de quadros, de um modo menos acumulativo e com a preocupação de seguir uma narrativa. Cria, também, material impresso com dados das obras e das exposições e, ainda, etiquetas fixadas ao lado das produções artísticas com informações pertinentes à autoria, por exemplo (Cintrão, 2010).
[3] Bayer (1946) desenvolve a Teoria do Campo de Visão por onde se compreende a exposição como design/desenhos no espaço.
Empenhado em finalizar sua carreira como realizador com a marca de dez longas-metragens, numa carreira iniciada em 1992, com Cães de Aluguel, Quentin Jerome Tarantino abriu 2024 compondo o elenco de um projeto chamado The Movie Critic. Brad Pitt foi o astro escalado para assumir um papel central na trama sobre um crítico cinematográfico, de verve mordaz, que, na Califórnia da década de 1970, assinava uma coluna de resenhas numa revista pornô. “Ele fez carreira escrevendo sobre produções mainstream”, anunciou o cineasta, em depoimento colhido pelo site Indiewire.com, referindo-se ao fato de que o objeto da análise de seu protagonista são produções de grande orçamento e de larga penetração em circuito. “Ele é cínico como o inferno e seus textos são uma combinação do que o jovem Howard Stern (radialista americano famoso por polêmicas) e Travis Bickle (papel de Robert De Niro em Taxi Driver, de 1976) fariam se criticassem longas-metragens”. A declaração ilustra uma perspectiva desmistificadora sobre a arte de criticar obras fílmicas na mirada do diretor laureado com a Palma de Ouro de 1994, dada a Pulp Fiction, um thriller que mudou a forma de se escrever roteiros, desafiando linearidades e usando falas e fatos da cultura de massa em seus diálogos. Para o realizador que fez o sistema métrico dos sanduíches do McDonald’s ser assunto de uma conversa entre matadores de aluguel (o famoso Royale With Cheese, dito por John Travolta, no supracitado longa de 94), a persona do crítico carrega um simbolismo pop, e sua produção intelectual é capaz de transgredir padrões do que é obra-prima e do que é descartável.
Figura 1: Cena do filme Pulp Fiction (Fonte: Pulp Fiction, 1994).
Após uma série de ataques sofridos pela imprensa europeia durante a exibição de Jackie Brown na competição pelo Urso de Ouro na Berlinale de 1998, Tarantino destilou ódio contra resenhas que reduziam seu cinema à violência e demonstrou repúdio em relação a críticas que se recusam a “conversar” com a proposta estética trazida por um filme:
“No dia em que um cineasta chamar um crítico pelo nome, seja de que forma for, por uma crítica negativa que escreveram contra seu trabalho, esse será o dia mais feliz da merda da vida desse resenhista. E eu nunca darei a um crítico que me tenha atacado o dia mais feliz da sua maldita vida”, disse o diretor ao site Deadline em entrevista de 21 de novembro de 2022, concedida ao repórter Mike Fleming Jr. Nessa conversa, ao admitir que “rouba” referências de tudo o que viu e vê, o realizador de Os Oito Odiados (2015) explica que, ao revistar clássicos e cults, em suas paráfrases e homenagens, ele se comporta como um crítico. Um crítico que filma. Faz crítica na ótica da dimensão genealógica que a crítica tem, como apontou José Carlos Avellar (1936-2016) em seu O Chão da Palavra, editado pela Rocco, em 2007:
A crítica que influi e contagia uma geração – e as gerações seguintes – é feita não só por profissionais, que escreviam com regularidade em jornais e revistas, como também pelo espectador. De certo modo, desenvolvemos nas Américas uma espécie de crítica de espectador, aquele que conseguia ver mais filmes e organizava qualquer forma de registro, arquivo ou fichário. Ler a crítica era parte do ritual cinematográfico. Os anos 60 foram o momento em que os filmes eram reflexão e reflexo, debate direto e vivo da realidade e vontade de nos definirmos diante dela. Alguns se bastavam nisso. Outros partiram dessa nutrição trazida pelos filmes para filmar e construir universos. (p.106)
Avellar costumava citar uma frase de Glauber Rocha (1939-1981), diretor de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964): “Diretor é quem dirige filmes; cineasta é quem cria seu universo particular ao dirigir”. Depurava essa sentença do cineasta baiano dizendo: “Crítico é quem desbrava esses universos dos cineastas, rejeitando o lugar comum da epifania demiúrgica da criação, para construir uma semiótica daquele universo particular em busca de traços identitários (ou seja, marcas de autoralidade, registros de uma expressão poética própria, que gere um paradigma) (2007; p.205).
No exercício cotidiano de ver e rever e filmes que adquiriu ainda na infância, Tarantino tenta cartografar esses potenciais caminhos paradigmáticos de que fala Avellar a cada novo longa ou curta a que assiste, mesmo quando se trata de uma produção ignorada pela fortuna crítica. Entende que certos filmes são ignorados ou caem no esquecimento por uma desconexão com os anseios de uma época. “Filmes não podem ser reduzidos à carreira que fazem no fim de semana em que são lançados, pois, no estado de coisas da arte, esse é o período que menos importa em sua vida útil na memória dos cinéfilos”, disse Tarantino, na entrevista ao Deadline, enfatizando o fato de que “alguns longas são soterrados por não se encaixarem em códigos prévios de quem escreve sobre eles”.
Parte do que seriam esses “códigos”, por vezes determinados por sensos impressionistas e, mais tarde, depurados a partir de estudos capazes de dissecar planos fílmicos como linguagem e como narrativa, começaram a ser estabelecidos a partir de 1895, data encarada como marco zero da invenção do cinema como manifestação cultural (e tecnológica). Os códigos para se analisar filmes nascem em artigos publicados em jornais (em especial, no New York Times), em dezembro daquele mesmo ano, em reação à primeira projeção pública do cinematógrafo dos irmãos Louis e Auguste Lumière, na França. Mas eram textos descritivos, que almejavam refletir sobre a sinestesia gerada por filmes como A Saída dos Operários da Fábrica Lumière ou A Chegada de um Trem à Estação, pela fricção gerada por imagens em movimento vistas, pela primeira vez, em preto e branco numa tela. Nos EUA, só em 1908 o escritor Frank E. Woods (1860-1939) viria a se tornar o primeiro crítico a ter um espaço fixo para falar exclusivamente sobre a arte cinematográfica na imprensa americana, publicando no New York Dramatic Mirror, antes de se lançar como roteirista. Woods faz descrições detalhadas dos elementos cênicos e dos acontecimentos retratados nos primeiros filmes feitos em solo americano e inglês, mas consegue, em paralelo, abrir discussões sobre os dilemas morais de seus personagens. É um trabalho pioneiro, assim como o do editor italiano Ricciotto Canudo (1877-1923), fundador da revista Montjoie!, em 1913 (um dos periódicos que mais e melhor promoveram a pintura cubista). Em artigos de 1911, ele foi uma voz pioneira, na intelectualidade europeia dos anos 1910, a enxergar dimensão estética na produção cinematográfica, defendendo que filmes deveriam ser analisados não sob critérios de apreciação de gosto, mas, sim, a partir de uma teoria capaz de dissecar os meandros simbólicos da física por trás de corpos em deslocamento na tela.
O interesse de Tarantino, em seu The Movie Critic, não se detém sobre a cinemática, ou seja, o efeito que um corpo em movimento gera numa tela. Um de seus filmes de maior sucesso, Era Uma Vez… Em Hollywood (ganhador do Globo de Ouro de Melhor Filme de Comédia em 2020), aborda os bastidores da feitura de um longa e sua recepção pelo público mais interessado numa cultura de recepção de bases históricas. Para o diretor de Django Livre (2012):
“Eu gosto da História porque ela parece um filme. Um filme no qual eu posso entender comportamentos a partir de um determinado período e seu ethos. O trabalho de um narrador não é apenas escrever sobre si próprio, mas olhar para o resto da Humanidade e explorar a forma de falar das outras pessoas em seu tempo, de modo a entender as frases que utilizam. Minha cabeça é uma esponja. Ouço o que toda a gente diz, observo pequenos comportamentos idiossincráticos. Quando as pessoas me contam uma piada e eu me lembro dela, essa anedota passa a fazer parte do meu modo de olhar. Quando alguma pessoa me conta um causo interessante da sua vida e eu consigo me lembrar dele, encontro ali matéria de dramaturgia” (declaração do diretor dada ao site The Talk, em 2022).
Em declarações concedidas à imprensa em sua passagem pelo Festival de Cannes de 2023, Tarantino explicou que não concebeu The Movie Critic para fazer um balanço histórico da atividade jornalística ou acadêmica que se debruça sobre filmes em busca de um senso estético. Seu objetivo é dissecar um tempo no qual a opinião de um profissional de mídia poderia redirecionar as atenções do público leitor para um filme.
Não por acaso, o fetiche desse personagem idealizado como eixo dramatúrgico em The Movie Critic é um longa-metragem (real), outrora encarado como um título classe B na produção cinematográfica americana dos anos 1970, e hoje cultuado: A Outra Face da Violência (Rolling Thunder, 1977), de John Flynn (1932-2007). “É a melhor combinação já feita entre estudo de personagem e filme de ação”, escreve Tarantino nas páginas de seu livro Especulações Cinematográficas (2023, p.259), explicando que descobriu esse thriller em 1977, aos 14 anos, numa sessão dupla com Operação Dragão (1973), com Bruce Lee (1940-1973), que prestigiou na companhia de sua mãe.
Figura 2: Capa do livro Especulações Cinematográficas (2023) (Fonte: Editora Intrínseca, 1ª edição, 11 dezembro 2023).
Na trama escrita por Paul Schrader (roteirista de Taxi Driver e diretor de A Marca da Pantera) e por Heywood Gould (romancista e repórter), o Major Charles Rane (William Devane) regressa da guerra do Vietnã com status de herói, sendo coroado com uma série de condecorações em sua cidade natal. Preso por sete anos numa prisão militar vietcongue em Hanói, ele retorna alquebrado do front. Luta para estabelecer uma nova relação com sua mulher e com seu filho até que sua casa é invadida por criminosos que matam os dois e dilaceram sua mão. Sedento de revanche, Rane substitui seu punho decepado por um gancho e recorre à ajuda de um colega de farda, Johnny Vohden (Tommy Lee Jones), para se vingar dos bandidos, num banho de sangue.
Rodado em San Antonio, no Texas, ao custo de US$ 2 milhões, O Outro Lado da Violência fez carreira em circuito no mesmo ano de Contatos Imediatos do Terceiro Grau, de Steven Spielberg, e avançou até 1978, quando a Guerra do Vietnã passou a ser abordada, nas telas, como tragédia social, de forma nada romantizada, por dramas de sucesso como Amargo Regresso, de Hal Ashby (1929-1988), e O Franco-Atirador, de Michael Cimino (1939-2016). Perto desses dois longas, ganhadores de Oscar, o filme de Flynn era apenas um exercício comercial de exploração dos traumas dos combatentes estadunidenses, estilizado a partir da figura de um anti-herói com mão de ganho para atrair uma plateia das chamadas grindhouses.
O termo – traduzido no jargão industrial do audiovisual brasileiro como “cinema poeira” – se refere a salas de exibição das periferias das metrópoles onde era possível assistir a dois longas por sessão, com um único ingresso, mais barato do que a média do circuito. A saga do major Rane estava destinada a se notabilizar na plateia dessas salas e, posteriormente, em exibições na TV em horários destinados a filmes-pipoca de apelo violento, como é o caso brasileiro da sessão Domingo Maior, da TV Globo. Porém, algo mudou no lugar histórico desse filme no imaginário cinéfilo.
Essa mudança foi provocada por Tarantino, num devir–crítico, não apenas nos artigos do livro Especulações Cinematográficas, mas em palestras que passou a ministrar. A mais importante delas, e mais significativa para o legado de Flynn, aconteceu durante o Festival de Cannes de 2023, quando foi convocado para ministrar uma palestra na mostra paralela Quinzena de Cineastas, antecedida por uma exibição (escolhida e comentada por ele) de A Outra Face da Violência.
Figura 3: Quentin Tarantino como convidado da palestra Quinzena de Cineastas (Fonte: Divulgação/ Julian Ungano).
Quando concorreu à Palma de Ouro com À Prova de Morte (2007), Tarantino foi visitar a Quinzena a fim de acompanhar uma projeção, na Croisette, da cópia restaurada do outrora maldito Parceiros na Noite (1980), de William Friedkin. Ria de se acabar na poltrona, ao ver a versão estereotipada que o longa (com fama de maldito) trazia da cartilha dos longas de psicopata. Cerca de 17 anos depois, ele voltou lá para ministrar informalmente uma espécie de aula sobre a história do audiovisual. No balneário da Côte d’Azur, pessoas se estapeavam por um ingresso para ouvi-lo sobre sua própria cinefilia – uma história bonita.
Por um soldo de US$ 200 semanais, Tarantino passou o ano de 1985 batendo ponto na Video Archives, uma locadora de Manhattan Beach, Califórnia, onde fez amigos, reais e imaginários, devorando o acervo local, sobretudo o faroeste Rio Bravo (no Brasil o título é Onde Começa o Inferno), de 1959. É do VHS que vem a depuração de sua cultura cinematográfica, reforçada com o DVD, que chega ao convívio dos cinéfilos num momento em que ele já é um diretor de respeito, com o díptico Kill Bill– Vol. 1 (2003) e Vol. 2 (2004) em seu currículo. Mas o universo das fitas rebobinadas do Video Home System foi essencial para ele. A partir do início da década de 1980 quando a tecnologia informática permitiu o advento dos retângulos analógicos do VHS, toda a memória fílmica produzida no mundo, até aquele momento, encontrou um escoamento (e um veio de preservação) biblioteconômico, que nos permitiu acesso a cópias, por exemplo, de uma comédia de Harold Lloyd (1893-1971) feita em 1919. O VHS alfabetizou uma nova linhagem de cinéfilos e reeducou o olhar dos mais velhos, criando, em ambos, uma percepção de que a realidade – do Presente e do Passado, sobretudo – é mediatizada, ou seja, existe o passado real, concreto, e existe o passado que o cinema nos ensinou. Nossa ideia da Chicago dos gângsters não é a Chicago dos documentos, calcada em fatos: nossa Chicago é a de Brian De Palma em Os Intocáveis, um filme de 1987. Ou seja… verdade dá lugar a simulacros. E simulacros produzem simulações da vida, ou seja, uma meta-vida, onde imagem não é só um corredor que nos leva a experiências sensíveis: imagem é a experiência em si.
Figura 4: Cena do filme Kill Bill Vol. II (Fonte: Kill Bill Vol II, 2004)
É isso que ele foi explicar à Quinzena e é disso que se trata seu The Movie Critic, um filme que chega às telas num momento de mudança nas práticas de recepção do cinema, quando o VHS é um suporte defunto, suplantado (na atualidade) pelas plataformas de streaming. Entre o fim dos anos 1990 e meados de 2010, a tecnologia do DVD e do Blu-Ray ainda oferecia a cultura informativa dos extras. Hoje, o saber está diluído, e, na maioria das vezes, sem foco curatorial numa Babel de podcasts e blogs, como aponta Rodrigo Carreiro no artigo História De Uma Crise: A Crítica De Cinema Na Esfera Pública Virtual:
De certo modo, a crítica de cinema contemporânea parece estar migrando de um território (a imprensa clássica) para outro (o ciberespaço), onde reúne condições mais favoráveis para voltar a exercer o papel original que lhe cabia: incentivar um debate estético amplo e horizontal, sem opiniões impostas de cima para baixo, o que por si só já constitui uma atitude de resistência cultural.
Mudaram os suportes, sim, o que leva os Tarantinos do presente a se formarem de outra forma. Porém, a crítica de hoje – inclusive aquela que cineastas como o diretor de Pulp Fiction fazem parafraseando narrativas de colegas mitificados – segue reverente ao Evangelho da Autoria. É um credo que já soma sete décadas, iniciado a partir de 1951, em textos da revista Cahiers du Cinéma, em especial as pesquisas do crítico André Bazin (1918-1958), nas quais nasce o termo “autoralidade” em relação a filmografias que são marcadas por recorrências de engramas estéticos, ou seja, pela reiteração de um tema, ou de uma mesma abordagem formal, ou de um mesmo coletivo de atrizes e atores, ou da mesma investigação filosófica. Exemplo: 1) o recorrente e reiterado investimento da belga Agnès Varda (1928-2019) em devassar a semiótica do feminino na mídia e expor lugares-comuns sexistas; 2) a aposta de Spike Lee em tramas que exponham as vísceras racistas da sociedade americana; 3) a conexão de Luchino Visconti (1906-1976) com pilares da literatura europeia de diferentes fases (Lampedusa, Stendhal, Camus) para extrair da palavra literária o conceito estético de Belo.
Desde o início dos anos 1990, carregando consigo o saber que trouxe de suas fitas VHS, Tarantino se fez autor com sua forma particular de incluir conversas sobre práticas de consumo da cultura de massa em situações inusitadas de tensão, como a sequência de Cães de Aluguel discutem sobre sexualidade num videoclipe de Madonna ou como o clímax de Kill Bil: Vol. 2, no qual o chefão do crime (David Carradine) fala sobre os óculos do Superman. Mais do que isso, Tarantino levou a violência nas telas a um extremo onde ela se fratura como signo. Como diz Jean Baudrillard (1929-2007), “nenhum valor cultural desaparece pela escassez, mas, sim, pelo excesso”.
Na excessiva reação do ator Rick Dalton aos hippies assassinos que invadem sua casa em Era Uma Vez… Em Hollywood – usando um lança-chamas para dizimá-los -, Tarantino espatifa a brutalidade e nos expõe o âmago ridículo de sua prática a cada filme. The Movie Critic deve ter violência também. Sempre tem. Mas o que mais se espera dele é a reinvenção de filmes que seremos capazes de rever… e amar.
Figura 5: Diretor de cinema e roteirista, Quentin Tarantino (Disponível em: https://mubi.com/pt/cast/quentin-tarantino).
* Rodrigo Fonseca é formado em Produção Editorial pela ECO/UFRJ, com especialização em Literatura Infantojuvenil pela UCAM, crítico de cinema, dramaturgo e roteirista, tendo assinado reportagens no Globo, no Estado de S. Paulo e no Jornal do Brasil, onde ainda é colaborador. Autor do romance “Como Era Triste a Chinesa de Godard” e da biografia de Renato Aragão (“Do Ceará Para O Coração Do Brasil”). Escreveu peças teatrais como Chico Xavier em Pessoa e François Truffaut: O Cinema É Minha Vida. É correspondente do site luso C7nema e repórter e crítico do Correio da Manhã.
Referências bibliográficas
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BAUDRILLARD, Jean. A Transparência do Mal. São Paulo, Papirus, 1992.
Curadoria pode ser – entre outras coisas – uma vastidão de intenções
Ana Lira
Neste artigo buscarei traçar algumas considerações sobre a relação entre crítica e curadoria a partir da exposição Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro, em cartaz no Sesc Belenzinho (São Paulo) de 3 de agosto de 2023 a 31 de março de 2024. A exposição tem curadoria geral de Igor Simões, que, além de curador, é professor de História da Arte na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), juntamente com Marcelo Campos, curador-chefe do Museu de Arte do Rio e professor no Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e Lorraine Mendes, curadora da Pinacoteca de São Paulo. O projeto teve origem em 2018, com a pesquisa desenvolvida por Simões e Hélio Menezes, antropólogo e curador de exposições como Histórias Afro-Atlânticas (MASP, 2018) e da 35ª Bienal de Arte de São Paulo (2023).
É certo que muitas exposições de artes (áudio)visuais hoje têm colocado o foco sobre as temáticas etnicorracial, de gênero e sexualidade – aquilo que poderia ser chamado de “minorias”, o que no sentido usual pode soar um tanto pejorativo e acuado, mas que, no sentido que lhe emprestaram Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997; 2002), é justamente o que, por não ser a maioria, por diferir do Mesmo, das configurações que aprisionam as possibilidades de ser e de existir, têm como imanência a possibilidade de criação de outros modos de vida. No entanto, diante da própria concepção histórica de arte e do cenário social, político e econômico em que vivemos, todos os empreendimentos são necessários para que se promova a arte produzida por artistas negros, negras, indígenas e LGBTQIAPN+ etc. e se dê visibilidade a ela.
Um dos aspectos que mais chamam a atenção em exposições como Dos Brasis é a miríade de suportes que compõem os trabalhos apresentados – entre tapeçarias, pinturas, fotografias, vídeos, instalações e esculturas. A diversidade de suportes dá a ver a riqueza da arte contemporânea produzida no Brasil e como o próprio fazer artístico se relaciona com a produção de conhecimento, dialogando, respondendo ou tensionando a história instituída, branca e hegemônica, que buscou recalcar o racismo histórico e cotidiano no país. Cria-se também uma contrafação à ideia de nacionalidade que se constituiu como uma “‘etnicidade fictícia’ e homogênea que no Brasil firmou-se através do recalque das profundas tensões, separações e violências étnicas e sociais” (Cunha, Bacelar, Alves, 2004).
Daí também a força – que remete à perspectiva curatorial – do título evocando Brasis no plural. Nesse sentido, não se trata de uma crítica em relação à curadoria apenas, como dois âmbitos – crítica e curadoria – que entrassem em oposição, mas da própria curadoria como crítica e como modo de produzir conhecimento e pensamento. Ou, ainda, para usar os termos propostos por Michel Foucault (1990) ao dissertar sobre o que é a crítica, trata-se de perceber um movimento que dá a ver as relações entre saber e poder na manutenção do significado de arte.
O texto de Foucault é evocado aqui na medida em que ele propõe uma genealogia da emergência do que ele vem a chamar de “atitude crítica”. Essa atitude, que se configura como um modo de se colocar diante do mundo e das questões políticas e sociais em uma determinada sociedade, Foucault a localiza na formação do que viriam a ser os Estados-nação, como tensionamento ao fato de ser governado de uma determinada forma e por um determinado grupo social hegemônico. Isso teria, segundo ele, desencadeado o que denominou como uma atitude crítica em resposta a uma atitude coercitiva do poder, e, mais ainda, ao vínculo entre saber e poder: “Justamente no momento em que se põe o problema: como ser governado, vai-se aceitar ser governado desse modo?” (Foucault, 1990). Na ocasião, ele trata desse tema da crítica em uma conferência proferida na Sociedade Francesa de Filosofia em 1978, posteriormente publicada em 1990. O que interessa aqui destacar é justamente o modo como ele articula a emergência de uma atitude crítica à governabilidade e ao exercício de um poder de Estado.
Ler a atitude crítica por essa chave permite ressaltar o modo como a composição de muitas das obras presentes na exposição Dos Brasis, como veremos adiante mais detalhadamente, está imbuída desse gesto crítico, visto que tratam justamente do desacordo em relação a um modo de governabilidade baseado no racismo e na formulação de uma nacionalidade cuja hegemonia política é branca, ainda que fundada sob um ideal de mestiçagem cultural que foi usado como fomento para uma política de embranquecimento social do país. Dessa forma, a produção artística que se apresenta na exposição reencena, na contemporaneidade, algo do que provocou essa atitude crítica: a que se destina o exercício do poder sobre determinados setores da sociedade? Como lidar com o vínculo entre poder e saber quando estes incidem de forma violenta sobre corpos e existências consideradas à margem da humanidade ou, na perspectiva mais recente, à margem de uma cidadania plena? Como lidar com o vínculo entre poder e saber quando estes foram usados para justificar atrocidades como o tráfico escravista, a política de branqueamento e a consequente situação de indigência cognitiva produzida pela precarização das condições de vida da população negra brasileira?
Isso fica evidente, por exemplo, na segmentação da exposição em diferentes núcleos, intitulados, a saber: Romper, Branco Tema, Negro Vida, Amefricanas, Organização Já, Legitima Defesa e Baobá, como também no aporte teórico-crítico que fundamenta a linha curatorial, amparado em autores e autoras tais como Beatriz Nascimento, Emanoel Araújo, Guerreiro Ramos, Lélia Gonzalez e Luiz Gama.
Luiz Gama foi um proeminente advogado baiano que na segunda metade do século XIX liderou o movimento abolicionista, assumindo a defesa jurídica de pessoas escravizadas que se achavam em situação ilegal e em processos de alforria. Foi crítico do regime monarquista e do racismo (na época, preconceito de cor) no Brasil. Também atuou como escritor, tendo publicado em vida o livro Primeiras trovas burlescas, em 1859. É conhecida a sua frase, proferida durante um júri, de que o escravo que mata o seu senhor, seja em que circunstância for, o faz sempre em legítima defesa, o que certamente inspirou o título de um dos núcleos da exposição Dos Brasis.
Alberto Guerreiro Ramos, por sua vez, foi um sociólogo, baiano de Santo Amaro da Purificação, pioneiro na formulação do racismo enquanto uma patologia do branco brasileiro, em livro publicado em 1957 (Sovik, 2009, p. 52). Guerreiro Ramos criticou os estudos do que designou como “negro-tema”, ou seja, estudos realizados por pesquisadores brancos que tomam a população negra como objeto, percebendo sua “contribuição” à nação (mestiça) na forma de música e culinária, mas que ignoravam o “negro-vida”, isto é, não como um objeto estanque e com uma referência ancorada no passado, mas como agente em constante movimento, fundamental para a construção do país. Foi, nesse sentido, um dos pioneiros na formulação do que hoje se constitui como os estudos da branquitude no Brasil.
Beatriz Nascimento foi uma historiadora sergipana, radicada no Rio de Janeiro, que, nos anos 1970 e 1980, propôs desenvolver uma história dos quilombos no Brasil, ou mesmo uma história do Brasil a partir dos quilombos, principalmente através da importância da cultura bantu na formação quilombola e na constituição do próprio país. Em seu projeto, Beatriz Nascimento buscava conceituar a noção de quilombo para além da historiografia, como explicita ao falar sobre as dificuldades e pretensões de sua pesquisa, dentre as quais a demanda por especialistas de outras áreas das ciências humanas, como geografia, antropologia e linguística, bem como de áreas tecnológicas (Nascimento, 2021, p. 148). Dentre as contribuições de Beatriz Nascimento, destaca-se a conceituação do racismo como ideologia e a defesa da formulação de uma história da população negra e do Brasil protagonizada pela população negra, que, segundo ela, ainda estaria por ser feita (Nascimento, 2021, p. 45).
Lélia Gonzalez, historiadora e filósofa mineira radicada no Rio de Janeiro, também teve importante atuação política e intelectual nos anos 1970 e 1980. Dentre suas inúmeras contribuições, destaca-se o modo como articulava a discussão sobre racismo no Brasil às questões de gênero e ao sexismo, percebendo tanto no movimento feminista uma lacuna em relação ao debate racial quanto no movimento negro uma necessidade de se articular ao debate feminista e de desigualdade de gênero. Lélia formulou a ideia da categoria político-cultural de amefricanidade, destacando a relevância do aspecto cultural enquanto força que perpassaria o debate racial e de gênero em diferentes países da América Latina, ou, como ela gostava de chamar, a Améfrica Ladina (Gonzalez, 2020, p. 127). Esta noção cunhada por Lélia Gonzalez inspirou o título do núcleo Amefricanas na exposição Dos Brasis.
Por fim, Emanoel Araújo, artista plástico e curador, baiano de Santo Amaro da Purificação, foi diretor do Museu de Arte da Bahia nos anos 1980 e diretor curador do Museu Afro Brasil, em São Paulo, até o ano de sua morte, em 2022. Teve uma carreira proeminente no Brasil e no mundo. Em seus trabalhos escultóricos, tinha como referência fundamental a cultura negra, em especial o candomblé. Uma de suas esculturas mais conhecidas chama-se justamente Baobá, nome de uma árvore sagrada de origem africana, que esteve exposta no núcleo de mesmo nome da exposição Dos Brasis, ocupando o lugar central no salão das esculturas (Figura 12).
Nota-se, desse modo, que não só as obras, mas sobretudo o ato curatorial esteve bastante atento às temáticas apontadas acima, ao propor núcleos que respondem e dialogam de formas distintas com questões também distintas entre si acerca do debate racial e da cultura negra nos Brasis, em detrimento de divisões que priorizassem cronologia, estilo ou linguagem. É importante destacar ainda que, além da pesquisa curatorial, houve uma residência artística on-line intitulada “Pemba: Residência Preta”, com mais de 450 inscrições e 150 residentes selecionados, reunindo artistas, educadores, curadores e críticos.[1]
Em um texto sobre a 35ª Bienal de São Paulo, que ocorreu em grande parte paralela à Dos Brasis, Bernardo Carvalho (2023) afirma que, de um modo geral, as obras expostas na Bienal que buscam reparação histórica recusam contradições, salvo o vídeo Uma mulher pensando, de Aida Harika Yanomami.
Muitas na Bienal são obras da vontade (e não da contradição), são asserções, expressão da cultura (e não da dúvida). Não há ruído nem problema entre o que querem dizer e o que dizem; estão do lado do que é justo, do que é consenso entre quem as busca como confirmação. E nesse sentido são moralmente inquestionáveis. (Carvalho, 2023)
Segundo ele, essa “adequação moral” das obras apresentadas estaria de acordo com o “pacto garantido pela cultura” de quem vai à Bienal. Sendo assim, a curadoria da Bienal estaria se afastando de um dos pilares da tradição moderna da ruptura, das elipses e da valorização das contradições, estabelecendo mesmo uma guerra contra as descontinuidades entre arte e vida, o que representa, para ele, uma reciclagem da lógica da moral e dos costumes, ainda que constituam propostas de outra moral e de outros – e novos, mas talvez nem tão novos assim – valores. Esse distanciamento do valor da contradição na arte, e a adequação a um pacto moral, acaba ferindo, para o autor, o princípio crítico de que uma obra não pode ser, ao mesmo tempo, artística e inquestionável, ou seja, de que a função da arte é justamente pôr em dúvida as certezas, por mais idônea que seja a moral de que a obra está imbuída.
No entanto, o que Carvalho parece não levar em consideração é todo um “estado de coisas” em relação ao qual certas obras se constituem. É evidente que o questionamento de uma mulher yanomami sobre a cultura yanomami coloca em xeque a romantização que se faz do outro como ser uno e coerente em relação à sua própria cultura, como uma concepção estanque ideal e desprovida de movimento – problema este levantado por Gayatri Spivak em relação ao pensamento dos “filósofos da diferença” Foucault, Deleuze e Guattari em Pode o subalterno falar?
Essa postura de tomar o “outro” como um sujeito uno, ao passo que se critica a unidade da noção de sujeito erigida na modernidade ocidental, não deixa de guardar um ranço colonial segundo o qual os indígenas não teriam direito à dúvida quanto à sua própria identidade que aparece muitas vezes como boia de salvação para um modelo de sociedade em decadência – e que elege, nessa alteridade idealizada, novas certezas e paradigmas capazes de salvar a humanidade.[2]
Ainda assim, esse questionamento não diminui a força com a qual as obras que recusam expor e explorar as contradições, no que ele chama de uma “moral inquestionável”, interpelam o estado de coisas de um país profundamente conservador e excludente, e cuja realidade social e política ancora-se em princípios racistas, misóginos e fóbicos em relação às expressões dissidentes de gênero e sexualidade. Ao relacionar nacionalidade e cisgeneridade enquanto prática de gênero colonial, a artista e professora Dodi Leal chama a atenção para o modo como os “fluidos corporais são controlados pelo Estado, e o poder de decisão sobre o corpo também. Todas essas formulações do Estado que vão reger nossas corporalidades têm um caráter de definir quem é verdadeiramente da nação” (Brasileiro; Leal, 2021, p. 15).
Se, na concepção de Carvalho, o público da Bienal de 2023 – e poderíamos igualmente estender à exposição Dos Brasis – é um público que aceita o pacto garantidor da moral apresentada pelas obras – e pela curadoria –, o que por si só já é uma assertiva questionável, isso não diminui a contundência da escolha curatorial – e da crítica empreendida através da curadoria.
Nesse sentido, é importante perceber o papel da curadoria, para além das obras tomadas “individualmente”, e sua maior ou menor adequação ao pacto garantidor da moral. Castiel Vitorino Brasileiro, uma das artistas presentes em Dos Brasis, ressalta, em diálogo com Dodi Leal, a necessidade de “ter mais pessoas negras, trans e indígenas fazendo curadoria, fazendo crítica” (Brasileiro; Leal, 2021, p. 16). Nesse sentido, o que Dos Brasis apresenta, por exemplo, ao reunir obras de artistas negros e negras que vão do século XVIII ao século XXI, pode ser lido como uma reescrita de boa parte da história da arte no Brasil, uma história que precisa ser revista e refeita continuamente, como destacou Beatriz Nascimento. Uma história da arte que já se faz ao mesmo tempo no presente e no porvir.
O fato de se coadunar com a proeminência e a projeção que vozes e discursos dissidentes da hegemonia branca vêm ganhando nos últimos anos, a despeito de um recrudescimento avassalador do conservadorismo, não significa que a curadoria ou as obras apresentadas estejam isentas de contradições ou, mesmo que estejam, que isso se configure como um aspecto negativo. Assumir essa perspectiva significa reconhecer a importância de uma assertividade que possa abandonar o paradigma das contradições para que se constitua como força de uma história a ser (re)escrita, sobretudo quando se tem em vista o que precisa ser feito em termos de reparação e reconstrução. Retomando mais uma vez os dizeres de Castiel Brasileiro,
A contradição é um encontro de caminhos, e nesse encontro existe a decisão por qual caminho tomaremos, um dos caminhos pode ser a eliminação da contradição, mas também nessa encruzilhada, nesse encontro de caminhos é possível cultuar justamente esse momento onde tudo se desfaz. (Brasileiro; Leal, 2021, p. 11)
Quando pensamos no cenário cultural e político atuais, esse problema surge diante do imenso desafio ético, estético, social e civilizacional que se coloca contemporaneamente.
A primazia que a curadoria ou a figura do/a curador/a assumem a partir dos anos 1970, o que no Brasil se firma a partir dos anos 1980, em detrimento da figura do crítico, conforme aponta Francisco Alambert (2014), parece sugerir uma oposição, estampada no termo que intitula a chamada para o texto de Alambert publicado no portal Sesc SP: Curadoria versus crítica de arte. Segundo ele, o curador, em vez de se limitar ao espaço de “conservador” de obras de arte e de seu acervo, passa a atuar e a ser compreendido como um autor e produtor na medida em que cria um discurso ou um sentido em uma exposição, num processo de mediação entre o mercado da arte e o público.
Essa criação de conexões entre a arte e o público através de um discurso ou de uma curadoria que produz uma exposição com um nexo de significação e valor – ou seja, com um sentido e uma direção captáveis pelo público – parece bastante evidente em Dos Brasis, sobretudo na segmentação em núcleos nos quais diferentes aspectos das relações raciais são trabalhados: Romper, Branco Tema, Negro Vida, Amefricanas, Organização Já, Legitima Defesa e Baobá. Aspectos como a crítica à percepção da população e da cultura negras como objetos de estudo estanques e solidificados no tempo, o tensionamento com a perspectiva de uma convivência racial harmônica através da asserção e exposição do conflito racial, as organizações político-sociais de combate ao racismo, a valorização de elementos das culturas e religiões negras e afro-diaspóricas como valores civilizacionais e modos de organização social.
No entanto, o que se busca ressaltar aqui é que, a despeito de uma crítica enquanto percepção externa à curadoria, essa atitude curatorial já é por si só uma atitude crítica frente a um discurso – ou a discursos – hegemônicos provenientes da historiografia oficial, ou mesmo de uma história da arte. No caso, em Dos Brasis, a crítica a essa historiografia e à percepção de Brasil se dá já no título da exposição, que opta por tratar um país no modo plural, fazendo emergir no espaço expositivo os embates, as contradições, os tensionamentos.
Nesse sentido, a curadoria e as obras não parecem se adequar a uma nova conformação moral, mas justamente evocam uma inquietação com um estado de coisas, inclusive do próprio modo de funcionamento do mercado da arte. Na exposição, tais provocações se iniciam ainda na parte externa do Sesc Belenzinho, na instalação Sinalização Profética, de Augusto Leal, com placas nas quais se leem os avisos “Curador simpático a 200m”, “Patrocinador imparcial a 600m”, “Produção cultural sensível a 300m” (Figuras 1, 2 e 3). Ou, ainda, no trabalho de Paula Duarte intitulado Nem o sabão é neutro (Figuras 4 e 5), que evoca, para quem leu Stuart Hall (2016) em “O espetáculo do ‘outro’”, os usos e abusos do racismo nas propagandas de sabão que trabalham subjacentemente com o binômio limpo/sujo – e que não se limitam ao sabão Pears e ao período colonial inglês analisado por Hall, conforme demonstram casos recentes na publicidade (Santahelena, 2017; BBC Brasil, 2016).
Castiel Brasileiro, por sua vez, relaciona a questão da limpeza e da sujeira à construção do sujeito moderno como sujeito límpido, segundo a formulação proposta por Denise Ferreira da Silva em A dívida impagável, destacando, ainda, que no contexto brasileiro a busca da limpidez e da higienização se relaciona também com “a eliminação de um passado contraditório” (Brasileiro; Leal, 2021, p. 23), diante do qual a neutralidade é no mínimo constrangedora, para usar o termo cunhado no sabão por Paula Duarte.
Figuras 1, 2 e 3: Augusto Leal, Sinalização Profética, 2023. Fonte: Arquivo pessoal.
Figuras 4 e 5: Nem o sabão é neutro. Paula Duarte, 2023. Fonte: Arquivo pessoal.
Os livros de Manuel Querino, as esculturas de Mestre Valentim (Figura 6) e o Autorretrato de Wilson Tibério (Figura 7) compõem, junto às intervenções sobre os desenhos de Johann Moritz Rugendas e Jean-Baptiste Debret realizadas por Marcus Deusdedit (Figuras 8 e 9), uma historiografia de arte brasileira a partir da perspectiva negro-africana e diaspórica. Mas não se trata apenas de revisionismo histórico, trata-se da rearticulação de elementos de significação para uma historiografia e para uma configuração de Brasil que demonstram a passagem do negro-tema destacado por Guerreiro Ramos para o “Branco tema” e para o “Negro vida”, como o ferro que remete aos assentamentos de pomba-gira sobre veludo vermelho, que ocupam o espaço inicial da exposição, na obra de Jade Maria Zimbra, Xica Maria, Teu Amor para mim não é Fantasia (Figura 10), e emprestam outro sentido às joias de crioula ao lado das quais a obra se encontra (Figura 11).
Figura 6: Mestre Valentim, Conjunto de três continentes: África, América e Ásia, século XVIII.Figura 7: Autorretrato de Wilson Tibério, 1941. Fonte: Arquivo pessoal
Figuras 8 e 9: Marcus Deusdedit: Intervenção sobre Moinho de Açúcar, de Johann Moritz Rugendas, 1835 (2022), Intervenção sobre Mercado de Escravos, de Johann Moritz Rugendas, 1835 (2022) e Intervenção sobre Retorno de um Proprietário, de Jean Baptiste Debret, 1816 (2022). Fonte: Arquivo Pessoal.Figura 10: Jade Maria Zimbra, Xica Maria, Teu Amor para mim não é Fantasia, 2021.Figura 11: Joias de crioula. Fonte: Arquivo pessoal.
Os elementos ligados ao candomblé e à umbanda, bem como o uso de línguas como o iorubá, contribuem também para a percepção de Brasis que coexistem e que tensionam, porque agenciam outras forças capazes de dar sentido e valor ao que seja uma política da verdade no jogo entre poder e saber e na busca por legitimação de sensibilidades que existem à margem da ordem vigente. Modos de vida, por exemplo, que se colocam Entre o obé e o livro (2023), segundo o título de uma instalação de Pandro Nobã, composta por gamelas pintadas em tinta acrílica e uma tela pintada a óleo.
Destaca-se, ainda, como o espaço expositivo contribui para o impacto da exposição e o próprio fazer curatorial, como fica evidente no salão de esculturas, onde se encontra uma réplica da estrutura de madeira feita por Mestre Didi para o Ilê Asipá, terreiro de culto a Egungun no qual ele era sacerdote, debaixo da qual figura o Baobá de Emanoel Araújo (Figura 12).
Figura 12: Espaço expositivo do Sesc Belenzinho na exposição Dos Brasis. Fonte: Arquivo pessoal.
A epígrafe deste artigo é de um texto-poema-comentário acerca do projeto Conversas Críticas sobre Curadoria promovido pelo Instituo Moreira Salles, em que a curadora e artista Ana Lira traz algumas questões e impasses acerca da curadoria, do mercado de arte e da missão cada vez mais desafiadora de descentralizar a circulação da produção artística do eixo Rio-São Paulo. Missão que requer ir a fundo em Brasis nem sempre tão visíveis às curadorias que se encontram nos circuitos hegemônicos de arte. O presente artigo buscou, portanto, contribuir para o debate em torno das relações férteis entre crítica e curadoria tomando como tema a curadoria da exposição Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro, que se afirma como uma alternativa contundente e compartilhável com o público de crítica tanto à história instituída na hegemonia branca e nacional das artes brasileiras quanto ao racismo histórico e cotidiano no país.
* Felipe Wircker Machado, doutor em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio, é bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD/CAPES) no Programa de Pós-graduação em Relações Étnico-Raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (PPRER-CEFET/RJ), onde leciona, e desenvolve pesquisa pós-doutoral também no Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ), através do projeto intitulado “Candomblé, Verger, Bastide e o confronto com o racismo no Brasil”.
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SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
Audiovisual
Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro [exposição]. Pesquisa de Hélio Menezes e Igor Simões. Curadoria geral de Igor Simões. Curadoria adjunta de Lorraine Mendes e Marcelo Campos. Sesc Belenzinho (São Paulo), 2 de agosto de 2023 a 28 de janeiro de 2024.
Notas
[1] As aulas públicas que fizeram parte do programa da residência estão disponíveis no canal do Sesc Brasil no YouTube: https://www.youtube.com/@SescBrasil.
[2] Castiel Vitorino Brasileiro fala sobre o tema da salvação em diálogo com Dodi Tavares Borges Leal, cf. Brasileiro; Leal, 2021.
“To be alone so long. to see you move in this varicose country like silhouettes passing in apprenticeship from slavery to pimp to hustler to murder to negro to nigguhdom to militant to revolutionary to blackness to faggot with the same shadings of disrespect covering your voice.”
Sonia Sanchez, “To All Brothers: From All Sisters”, 1984
Em 1991, o jornal do Movimento Negro Unificado, histórica organização negra fundada em 1974 em São Paulo, publica na capa foto de Carlos Moura em que vemos um jovem casal (os modelos Nethio e Lucia) no ato de se beijarem. A foto tem como legenda versos do poema “Bandeira”, de Reinaldo Santana, que à época assinava como Ori, e hoje assina como Lande Onawale[2]. O poema tem forma algo inusual e os versos selecionados para a capa ocupam posição singular na estrutura do poema.
Reaja à Violência Racial (II)*
Isso, me bata
Me bata…
Quebre o cacete em minhas costas
Agora… percebe?
Reconhece o meu gemido?
É. Nosso avô gemia assim
No seu tempo era um perigo
Um SUSPEITO negro
Como eu
Hoje não é diferente. Você já se perguntou por que eu sou caça e você caçador
Mas se a esperança demora a morrer, eu só quero crer que um dia você sabendo o que nos une, pode (quem sabe?) hesitar
Não bater com tanta força ou parar pra pensar…
Poderá se libertar das migalhas do opressor
E travar junto comigo a luta de vovô *beije sua preta em praça pública
A gravura/cartum de Nethio Benguela deixa mais evidente qual o contexto do poema: um policial negro agride um homem negro, suspeito como “eu”, o “eu” do poema apela à consciência do agressor, ele próprio um negro como “eu”, e também como vovô, um “perigo”. Trata-se de reagir à violência racial, slogan muitas vezes repetido e pixado nas ruas de Salvador nos anos 1980. Na gravura, Xangô, de Oxe na mão, intercepta o agressor, o poeta pede que o policial se lembre de tudo o que nos une. E conclui: lute a “luta de vovô” e “beije sua preta em praça pública”. O amor, o afeto, o carinho, o desejo entre iguais, como antídoto para a violência policial. Um apelo que, como muito explícito no poema e no cartum, segue de homem para homem, um homem como “eu”, um homem como Ori, um homem como o policial, um homem, finalmente, como “vovô”.
Figura 1: Capa do número 19 do Jornal do MNU – maio/junho/julho de 1991
O contexto poético, ou significativo, exige ou demanda o posicionamento, ou melhor, encenação de um sujeito, dito ou representado, a “mulher”. Que aparece na fabulação, e esse é argumento implícito desenvolvido aqui, como efeito da necessidade estrutural de subjetivação de uma consciência masculina, que na economia do discurso está fixada como uma posição estrutural, eixo de articulação de uma posicionalidade ontológica, definida de modo categórico em uma estrutura de antagonismos. A figura da mulher, entretanto, aparece como contingencialmente referida a uma experiência histórica, antes definida subjetivamente por uma relação negativa com a própria matéria de sua constituição, e como a matéria através da qual a consciência de si masculina pode esboçar autonomia, ainda que sob as determinações da antinegritude que obliteram, por definição, essa possibilidade. Diante da masculinidade negra estrutural, “espinho no coração do mundo” antinegro, a mulher negra aparece no discurso do homem negro como uma subjetivação plenamente fenomenológica, calcada na experiência, ou “escrevivência” (Fanon, 2008; Evaristo, 2020)[3].
Figura 2: Contracapa do número 19 do Jornal do MNU – maio/junho/julho de 1991
É nesse sentido que acredito que o poema, e mesmo a gravura, servem de introdução adequada ou chave de leitura para discussão proposta abaixo como uma leitura crítica da imaginação da modernidade negra, tal como fabulada sob a forma da masculinidade, ou de uma determinada sensibilidade, forma de subjetivação ou estrutura de sentimento masculina e negra. Interessa particularmente a invenção do sujeito negro moderno e as aporias da subjetividade em articulação conflituosa com as práticas de representação literárias antinegras, e mais que isso, é claro, como o poema deixa evidente, com as próprias formas de textualização de si, confrontadas pela materialidade histórica da antinegritude, determinante das formações sociais, das subjetividades e das formas expressivas ou estéticas.
A consciência de si do homem negro escorre em direção à mulher, como um “duplo vínculo”, double bind, de gênero e raça, como veremos a seguir (Bateson et al., 1956).
Importa considerar a relação entre sujeito e representação, e as necessárias mediações entre estruturas de subjetividade, constituídas no transcurso da experiência histórica, ou seja, em um vetor processual, e formas estéticas, materializadas sincronicamente como estruturas semióticas. O muitas vezes colocado problema da triangulação entre a objetividade das formas históricas, a volatilidade da constituição do sujeito e a objetivação estética como constituição de um si mesmo que de muitas formas e em muitas leituras, está sempre já alienado (Butler, 1997).
Lukács interroga essa determinação recíproca do “ser social” e de suas formas estéticas ao discutir, por exemplo, as oposições entre “narrar” e “descrever”’ como transcrições formais de condições sócio-históricas que definem o ser social em sua relação como a autorreprodução material da sociedade, que não dispensa recursos simbólicos, ou ideológicos. Com privilégio para a narração como forma expressiva de uma sociedade que reconhecia nas instâncias de sua autorrepresentação a historicidade, expressa como teleologia ética, desdobrada para efeitos do argumento estético, mas não apenas como práxis (Lukács, 2010).
Como Frederic Jameson comenta, o que parece ser característico do materialismo histórico é a negação da autonomia do “pensamento”, e a obra de Lukács e de outros autores marxistas busca dessa forma reconciliar formas de pensamento ou estruturas formais e a vida, ou a vida histórica do ser social (Jameson, 1985). O romance, na modernidade burguesa, busca como gênero cumprir essa reintegração, a rigor sempre interditada em nível ontológico, entre “espírito e matéria, entre vida e essência” (Jameson, 1985, p. 136). Uma vez que as amarras do idealismo são pegajosas, no esforço de desvencilhar-se delas, o crítico parece afundar cada vez mais em suas próprias determinações singulares. Elas próprias são também fundamentalmente alienadas. A alienação do trabalhador encontra dessa forma analogia com a alienação do autor. Ambos sujeitos assujeitados na própria alienação intrinsecamente constitutiva de uma generalidade: “No entanto é precisamente nessa terrível alienação que se encontra a força da posição do operário: seu primeiro movimento não é em direção a conhecimento do trabalho, mas rumo ao conhecimento de si como um objeto, em direção a consciência de si” (Jameson, 1985, p. 147).
No mundo antinegro, entretanto, as formas dessa alienação se revestem de atributos particulares. Como poderiam ser transcritas, nesse intervalo instável, definido por uma precariedade que não parece nada contingente, apesar de gratuita (Vargas, 2010)? Trata-se na verdade de situar o sujeito negro no âmbito da modernidade antinegra. Ora, “black subjectivity is a crossroads where vertigoes meet, the intersection of performative and structural violence” (Wilderson, 2011, p. 3). Wilderson define então primeiro o que chama de vertigem subjetiva, é a “vertigem do evento”, realizada como uma dimensão contingente, incidindo sobre a formação de si em um lapso ou transcurso temporal. A percepção de viver em um ambiente perpetuamente desequilibrado, fruto de uma relação estrutural, categórica e atemporal com a violência, uma relação que na perspectiva de Wilderson não possui analogia. A isso ele chama “vertigem objetiva”, “life constituted by disorientation rather than a life interrupted by disorientation” (idem, p. 3). Isto é, estrutural em oposição à violência performativa. A subjetividade negra é, nesse sentido, uma encruzilhada, uma interseção, entre a violência performativa (vertigem subjetiva) e a violência estrutural (vertigem objetiva).
Em seu Prólogo ao Homem invisível, Ralph Ellison esboça uma fenomenologia da masculinidade negra na “vertigem”, definida de modo relacional, como matéria determinante para um específico e insidioso esvaziamento ou invisibilização: “Quem se aproxima de mim vê apenas o que me cerca, a si mesmo, ou a inventos de sua própria imaginação – na verdade, tudo e qualquer coisa, menos eu” (Ellison, 1990, p. 7). Um “fantasma na cabeça dos outros” ou “criatura de pesadelo”, essa é a forma histórica, e estrutural, da identidade de um homem negro, invisível, diante da esmagadora objetividade de sua aparição, a um só tempo inapelavelmente material e fantasmática. A interdição de ser visto, reconhecido, como portador de uma coerência legível entre forma, imago[5], e sujeito é efeito dessa condição de relacionalidade esvaziada do homem negro. Ora, “não ter noção da própria forma é experimentar a morte” (idem, p. 10). O homem invisível em busca de si faz perguntas aos outros, a estes mesmos que não o enxergam e que quando o veem se defrontam apenas como a sombra distorcida de uma imaginação pervertida que todos parecem conhecer: “sou um homem invisível”. E sua própria forma é a forma “perdida” da morte social.
Com o poeta baiano Davi Nunes vemos que essa invisibilidade é muito material e faz equivaler a vida do homem negro a um mergulho “cosmogônico” na morte social.
Uma áurea cosmogônica sobre a minha cabeça
O vazio do crânio em formato de esqueleto
Uma pistola com o fogo autoritário de deus
As minhas mãos que se levantam inúteis
Uma voz de cão esbravejando ódio no gueto
O olhar do algoz ao meu agônico
Uma bala que se entranha como um pequeno sol em meu cérebro
O fim que tinge os pensamentos com o sangue da morte
Assumindo o ponto de vista de quem é alvejado por uma bala, “fogo autoritário de deus”, o poeta formaliza o momento final da experiência agônica da morte, como um “sol” que finalmente ilumina a conexão do sujeito com sua verdade final, sua práxis vertiginosa, definida por essa negação, renúncia mais profunda, de ser aceito e reconhecido. A mesma modalidade de morte em vida, de intimidade com a violência, o medo, a desorientação, a angústia, a falta de si e da própria imagem. Apenas na morte podemos encontrar reconhecimento, ser para si no momento, estrutural e performático, do confronto com nosso “algoz”. Creio que vemos aqui, uma vez mais, elementos de estruturação, objetivação textualizada, de determinada estrutura de sentimento articulada como a incidência definida da violência e da ruptura categórica essencial com a própria imagem.
Em “Marxismo e Literatura”, Raymond Williams (1979) define estrutura de sentimento no âmbito da discussão sobre a definição do sentido para a “época”, como algo transitando entre o “residual” e o “emergente”. A percepção dessas variações se dá na relação com a articulação explícita de formas sociais como “produtos acabados”, desiderato da objetivação da experiência histórica. Ora, “o que estamos definindo é uma qualidade particular da experiência social” que deve ser tomada desde o início como “experiência social” que sinaliza modificações entre o residual e o emergente, e tais modificações podem ser definidas justamente como modificações nas “estruturas de sentimento” (Williams, 1979, p. 134). Dessa forma, estas podem ser descritas como formas estéticas na arte e na literatura, tomadas como indícios de uma nova estrutura. Mas ora, se essa nova estrutura estiver ela própria definida por uma interdição ou impossibilidade, por uma aporia ou contradição, antagonismo insuperável? O residual, a escravidão, não se dissolve. O emergente não pode se constituir objetivamente em novas formas, que pressupõem um sujeito histórico, por definição negado ou invisível. Não é assim que Fred Moten em Na Quebra parece sugerir ao dizer que:
Na transição do trabalho escravo para o trabalho livre, o local ou força ou ocasião do valor é transferido do trabalho para a força do trabalho (…) Essa transferência e transformação é também uma desmaterialização – novamente uma transição do corpo, mais plenamente da pessoa do trabalhador, para um potencial que opera no excesso do corpo, no desaparecimento de uma certa responsabilidade do corpo. Isso vai se cristalizar, mais tarde, na figura impossível da mercadoria que emerge como que do nada, a figura que é essencial àquela modalidade possessiva e despojada de subjetividade que Marx chama de alienação (Moten, 2023, p. 354).
Como comenta Spivak, a diferença entre o “residual” e o “emergente” pode ser também a diferença entre “uma forma radical e uma forma conservadora de resistência a dominante [cultural]” (Spivak, 2022, p. 365). Ou como transcreve poeticamente Davi Nunes:
Quando senti sob meus pés
pela primeira vez
o corpo gigantesco desta terra
afundei até o pescoço
era um solo movediço – a escravidão
Na introdução a Filho nativo, “Como nasceu Bigger”, Richard Wright descreve a gênese estética, para-sociológica, de Bigger Thomas, protagonista de seu romance, o jovem homem negro “desorientado”, que assassina uma jovem branca. Como ele diz então muito textualmente, o romance é “uma exteriorização imensamente íntima por parte de uma consciência expressa em termos dos eventos mais objetivos” (Wright, s.d., p. 9). E conclui: “as emoções são subjetivas, e ele somente consegue comunicá-las ao transvesti-las com um disfarce objetivo” (idem, p. 9).
Como então ele aponta, sempre existiram muitos Biggers, cravados na própria experiência do autor e em seu horizonte de referência. Ele se recorda da infância e juventude e dos Biggers que conheceu. Ora, como diz Wright, a natureza do meio ambiente que produziu esses homens os produziu como o “homem de confusão” de que nos fala Huey Newton em To Die for the People (2009), torturado e, na verdade, fabricado pelos próprios pecados. Representando para si mesmo, de modo “objetivo”, uma aproximação inferior de humanidade, malograda ou vivida malogradamente, no “solo movediço” de uma historicidade, ou “época” que prolonga a escravidão como sua vida póstuma (Hartman, 1997). Uma historicidade objetivamente subjetivada como medo e vulnerabilidade, em virtude de sua “singular posição” na vida, vivida como uma redução a uma coisa, um animal, uma nulidade (nonentity). As leis de autoconstituição da sociedade, da pólis, como uma negociação no âmbito da sociedade civil, estão fechadas para ele (Vargas, 2012). As leis do homem branco e sua moralidade – ou mesmo ética – autotransparente aparecem para ele como um duro código que age sobre ele, mas não para ele. Ora, pergunta Newton, com quem, com o que, pode ele, um homem, identificar-se? A sociedade não o reconhece como tal, ele, “um consumidor e não um produtor”. Quem afinal ele é? “Is he a very old adolescent or is he the slave he used to be? What did he do to be so black and blue?” (Newton, 2009, p. 79)[6].
De certo ponto de vista, desse ponto de vista “singular”, definido pela centralidade da morte social e da violência gratuita como gramática operativa da singularidade negra no mundo antinegro, vemos que esse mundo, horizonte sem sentido de um sentido histórico para a violência estrutural, só pode ser definido distopicamente como uma devastação ininterrupta. O afropessimismo, como apresentado por Frank Wilderson, pretende estabelecer uma aproximação para uma ontologia política (a rigor impossível ou obliterada) e uma linguagem abstrata, filosófica, conceitual, para expressar a violência da escravização e de suas formas alongadas na duração e na correlação categórica, estrutural e performativa, que em sua dimensão “gratuita” materializa a obstrução ao reconhecimento ou integração para o negro e para o homem negro em particular. É nesse sentido que o afropessimismo entende o significado da negritude como uma posição estrutural de incomunicabilidade, na verdade definida por modalidades de acumulação e fungibilidade, e não de exploração e alienação (Wilderson, 2010). Como parece textualizar a obra de Fabio Mandingo, entre a oralidade de uma “gramática” antinegra das ruas e um repertório linguístico pré-formado, em meio ao qual poderíamos divisar certas transformações. Para Jober Pascal, Mandingo toma a “substância controvertida” da experiência – fenomenologia histórica e subjetiva – das ruas e de suas contradições e violências, estruturantes da própria paisagem urbana em Salvador da Bahia, lócus diegético em sua obra, como “escolhas estéticas”. Ou como “um fluxo de violências que explode pelo triunfo da comunicação” (Pascal, 2018, p. 336).
O caos urbano e distópico, que é o reverso de uma imagem paradisíaca para cidade de Salvador, presentifica uma geografia antinegra, uma topografia do horror racial (Alves, 2013), em que o homem negro vive intensamente a expulsão dilacerante da cena moderna de reconhecimento e interação comunicativa, o que seria esfera pública, mas transita de modo ladino, amefricano ou fugitivo, eu diria, no interstício tumultuoso de uma socialidade interrompida a bala. “Barulho ensurdecedor ferindo os ouvidos. Tensão. A multidão em polvorosa nas ruas noturnas. Helicópteros. Medo. Tropas de choque. Um homem negro caído imóvel no chão desagua um rio de sangue: é carnaval em Salvador!” (Mandingo, 2018, p. 48).
A obra de Mandingo, e sua dicção mandingueira, inapelavelmente masculina, inapelavelmente dependente da representação da mulher na consciência do homem negro, nos serve para definir esteticamente a passagem das aporias da antinegritude, na construção de “escolhas estéticas”, para o momento de transfiguração amefricana e moderna, entre a experiência de confusão vivida pelo homem negro e o alívio carnal no duplo vínculo de gênero. O repertório urbano, mapa cognitivo e estilístico de Mandingo, que percorre as praias da Ribeira, ou o degradado Centro Histórico de Salvador, se desenvolve em meio à reconfiguração urbana, moderna, da ladinidade presente na experiência histórica afro-brasileira, e não é de outra forma que a capoeira, a roda de capoeira e o amor proibido pela filha do mestre de capoeira servem de ponto de apoio, vínculo e transformação entre o dilaceramento agudo, desorientação objetiva, e o reencontro ancestral que o corpo da mulher permite.
– Vixe, irmão, você tá apaixonado mesmo hein?
– Completamente apaixonado, D´Ketu, essa mulher foi quem me fez entender o significado de plenitude.
– Que nada D´´Oyó, amor de capoeira é berimbau, mulher vem e vai…
– Nego, nego, nego, não existe berimbau sem a união da beriba com a cabaça. (Mandigo, 2018, p. 100)
Modernidade Amefricana: A Identidade Negra como um conteúdo simbólico-cultural
Jorge Augusto interroga a produção textual de pessoas negras, levando em conta aspectos sociológicos de constituição do mercado ou campo literário negro, e também do ponto de vista formal. Nesse sentido, sugere tópicos para a revisão de todo um campo, e nisso a crítica ao biografismo parece muito pertinente. Como ele aponta, o “biografismo tal como efetuado por parte da crítica acaba adentrando os caminhos minados do fetiche, pela existência do pobre e do iletrado; e do mérito, pelo exemplo de superação” (Augusto, 2022, p. 155). Biografismo, dizendo de modo direto, subsistiu uma análise rigorosa pela exotização da autoria. O que implica ademais em certa condescendência pervertida “produzida pela intelectualidade negra” que “tende a ser elogiosa” e se demitir de seu papel na construção de um de campo e de um repertório analítico. Entre a exotização, quase etnográfica, e a condescendência fetichizada, a ênfase na autorrepresentação do sujeito se converte na mesma velha conhecida armadilha de confiar cegamente na representação e na ilusão do Sujeito Soberano (Spivak, 2022). Na verdade, a crítica da constituição ideológica dos sujeitos no interior das formações estatais e dos sistemas de economia política não pode ser apagada, e o mesmo vale para a prática teórica ativa da transformação da consciência. Ora, destes erros a presente análise pretende se ausentar. E nesse sentido é que a determinação de situar a masculinidade negra no âmbito da modernidade antinegra parece imperativa.
A configuração moderna da experiência da diáspora africana é a própria constituição, histórica e estrutural do fato da negritude. De modo intrinsecamente conectado à modernidade antinegra. O tráfico transatlântico, o mercado de escravos, a passagem do meio, mais do que tropos literários, ou clichês visuais na iconografia colonial da (anti)negritude, se conformam como elementos estruturantes das aporias que definem a identidade negra e a subjetividade de homens negros. A diáspora em sua dupla dimensão, dispersiva e conectiva, disjuntiva e sincrética, ou justamente disjuntiva porque sincrética, configurada tanto em leituras do Atlântico Negro como na proposta teórico-prática amefricana, é um horizonte inescapável, que define o ser social do negro nesse transe (vertigem) irrealizável (Gilroy, 2001; Gonzalez, 2028 [1988]).
É principalmente desse ponto de vista que poderíamos considerar algo como uma tradição cultural africana ou afro-americana como uma estrutura, objetivada nas instituições e discursos, de uma dispersão ou violência originária negra/africana. Como sugere Fanon em Racism and Culture (1970), a violência da escravidão, do colonialismo e do racismo não são fatos exteriores à chamada cultura negra, ou à tradição afro-diaspórica, a não ser que a tomemos como mistificação devotada ao opressor/captor. “Thus, the blues – ‘the black slave lament’ – was offered up for the admiration of the oppressors. This modicum of stylized oppression is the exploiter’s and racist’s rightful due. Without oppression and without racism you have no blues” (Fanon, 1970, p. 47).
Em Paul Gilroy, como sabemos, a máquina do terror colonial pode ser restabelecida como paradigma de teorização crítica e/ou poética, como uma “transvaloração híbrida” definidora de uma contracultura da modernidade. Transvaloração particularmente demonstrada nas tradições musicais modernas, como formas não figurativas de reflexão, objetivação, diríamos, e memória inventiva. Tradições inventadas da diáspora constituem as formas culturais como objetos semióticos autopensantes[7] que se apoiam na reprodução de sujeitos e subjetividades (Gilroy, 2001). Ainda que Gilroy pareça excessivamente preso a “cultura” e a metáforas culturais. Quando, como diz Spivak, “a cultura é a explicação cultural; quer dizer que tudo que é cultural significa fazer de tudo meramente cultural” (idem, p. 386). Assim, parece radical o gesto contracultural de Gilroy, que paradoxalmente reforça a centralidade de uma tradição, que embora apoiada nas formas não figurativas, também depende da instituição e reconhecimento de uma intelectualidade negra, que ainda assim é intensamente “cultural”: “a ideia de tradição é compreensivelmente invocada para sublinhar continuidades históricas, conversações subculturais, fertilizações cruzadas intertextuais e interculturais, que fazem parecer plausível a noção de uma cultura negra distinta e autoconsciente” (Gilroy, 2001, P. 353).
No contexto da virada ontológica para o pensamento radical negro, a violência e a violência sobre o corpo deslocam as preocupações críticas de uma semiologia intertextual para uma ontologia corporificada, em relação tensa com a história. Como em Saidya Hartman, para quem o corpo supliciado da escravizada é o corpo da memória sobre o qual a imposição de um despedaçamento brutal e integral torna-se o imperativo para uma constituição de si, no umbral ambíguo entre escravidão e liberdade (Hartman, 1997). O corpo desmembrado do escravo é, nesse sentido, o lócus de um sujeito que não pode desdobrar-se como autorrepresentação consciente, de forma que as prerrogativas coletivas de uma enunciação cultural estão emudecidas, ou subsistem na “quebra”, como o ruído obscuro que resiste à decodificação, como um rastro de apagamento total de si, mergulho intrassubjetivo na carne em um nível efetivamente pré-semiótico e não, vamos insistir, meramente cultural (Moten, 2023; Gordon, 1999). Ainda assim, ou mesmo assim, o corpo é lugar de um exercício de agência, configurado como formas performáticas, e nesse sentido Hartman vê o lugar da performance negra, que não se confunde com cultura ou tradição, como expediente para aliviar o corpo dolorido, magoado pela “history that hurts”, uma agência coagida pela “non-autonomy of practice” por definição extensiva à condição escrava, que esvazia na escravidão e na vida póstuma o lócus próprio da política. Dessa forma, a performance se põe como forma de reparar (“redress”) o corpo desmembrado do escravo. Citando o antropólogo Victor Turner, Hartman ainda evoca a natureza liminar da reparação “betwixt and between”[8]. Entre a dor excruciante e o prazer inebriante, a dissolução e a simulação de si, a transfiguração transcendental na fugitividade cosmológica das formas ancestrais, onde o corpo é ainda meio de comunicação, e uma ponte entre os vivos e os mortos (Hartman, 1997).
Na poética da masculinidade negra, a reparação (redress) que parece advir da tradição, aparece como uma modulação entre a sensualidade dos ritmos – maleabilidade paradigmática da música negra como uma metáfora para o prazer e o desejo figurado no corpo da mulher – e dos devaneios eróticos que parecem ser a tábua de sustentação de uma singular subjetividade masculina. Ou seja, a mulher-matéria no corpo da História. Dentre tantos autores, talvez Solano Trindade seja o campeão na encenação dessa expressão triangulada entre raça, desejo e tradição. Solano, nosso mais brilhante e solar Orfeu negro.
Velho atabaque
quantas coisas você falou para mim
quantos poemas você anunciou
Quantas poesias você me inspirou
às vezes cheio de banzo
às vezes com alegria
diamba rítmica
cachaça melódica
repetição telúrica
maracatu triste
mas gostoso como mulher…
Verdadeiro Orfeu, Solano epitomiza a invenção da masculinidade épica no afro-nacionalismo. Nessa figuração, a masculinidade negra aparece como “the reaffirmation of an autonomous and powerful black male sexuality”, convertida como estratégia da afirmação política de afirmação do povo negro (Alexander, 2000). Assim, a narrativa da epifania racial como afirmação do desejo negro heterossexualizado é inapelavelmente tema estruturante da diáspora africana e de suas políticas da subjetividade. Está em Ralph Ellison, em Richard Wright, em Marcus Garvey, em Solano Trindade, em Fabio Mandingo, e mesmo em Frank Wilderson (2020). De tal forma que o heteropatriarcado parece estar bem à vontade no coração das representações sobre a emancipação racial. O afronacionalismo, tal como Christen Smith o define, depende de uma articulação com estruturas de gênero e sexualidade para garantir sua própria coerência ou ficção verossímil, como uma genealogia possível diante do parentesco ferido pela escravidão e das próprias narrativas nacionais, formatadas como narrativas sexuais de miscigenação e hibridismo (Smith, 2016; Spillers, 2021). Na poética de Davi Nunes, a erótica em direção à mulher negra também é uma transcriação lírica da tradição amefricana, daí não só a “capoeira”, mas o “banzo”, o “atabaque” e o “dengo”, como tropos transicionais, formadores de um duplo vínculo de raça e gênero, no âmbito de uma negação da negação como um mergulho na tradição (Nunes, 2017).
Oh, cor da madrugada, diva Negra
denga flor de Iansã, doce mandinga.
tenho ao peito o belo seu como ginga
belo que nunca vi em deusa grega
Vou afetuoso, mas eu não bambo
na forma que te visto o quanto clássica;
vou no seu compasso, por isso sambo
No ofício que domino boa plástica.
O gênio que me inspira, é afronta
que n’alma regozija como bomba;
o novo como traço seu ribomba
Poema que no mundo se defronta;
verso tu negra, aqui não é remendo,
não amor, é bem melhor, é dengo.
A formação das subjetividades masculinas, designadas por essa relação especular e perversa com o Homem Branco, estabelece a centralidade política da sexualidade como marco de fronteira, liminar, betwixt e between, entre o discurso hegemônico da nação e o discurso nacionalista negro, nesta chave “cultural” ou “tradicional”, que, como no Orfeu Negro”, estabelece a primazia do simbólico, do mítico e do natural, como essencialmente africano, e essencialmente masculino (Sartre, 1978). Nesse sentido, a performatividade do eu poético negro é também masculina ou “espermática”, na medida em que, para Sartre (1978, p. 113), “o negro continua sendo o grande macho da terra, o esperma do mundo”. Vemos, então, nessa fabulação a conjugação a um só tempo da tradição, revisão de uma certa memória cultural amefricana materializada como “cultural”, e da heterossexualização de um sujeito, que encontra na imaginação da mulher negra o antídoto para a morte social. A tradição negra expressiva, ancestral, aparece como a produção de uma disjunção de gênero que elege a mulher como “vessel“, corpo significativo, para a afirmação da tradição, corpus significativo, e da própria subjetividade masculina. Como em Solano:
Outra linda negra
me levou à macumba
No Xangô da Baiana
da Praia do Pina
Era noite de lua
a negra era bela
Dançava no corpo
Que lindo o andar!
A negra era filha
da Deusa Oiá
tinha um cheiro no corpo
que me levou ao pecado
Faltei com respeito
Ao seu Orixá
Lá no terreiro
dançou pra mim
seus seios bonitos
pulavam no ritmo
do atabaque
e do agogô
Fui pra casa da negra
Recebi o santo
do corpo da negra
e fiquei o maior de todos os Ogans
e passei a cavalo
de Obatalá…
A performance do eu poético do homem negro se encontra e se perde em sua própria situação, diante e imerso no mundo antinegro. Consideraríamos, entretanto, como o mundo amefricano – suas estruturas e instituições – estabelece relações, transformações que são, ao menos no contexto latino-americano, coextensivas ao mundo antinegro. Morte social e ancestralidade, o mundo antinegro e o mundo africano, superpõem-se transversamente, como horizontes ontológicos de uma posicionalidade transformada ou generativa, liminar, estabelecida entre a morte social e a ancestralidade (Mandingo, 2018).
Capa de Banzo, de Davi Nunes (Organismo Editora, 2020)
A Maldição do Avô
Em O Homem Invisível, Elisson principia a narrativa referindo-se à “maldição do avô”:
Mas meu avô é a chave. Meu avô era um cara estranho, e diziam que saí a ele. Foi ele quem causou o problema. Em seu leito de morte, chamou meu pai e disse: “Filho, depois de eu partir, quero que continue nesta luta. Nunca lhe contei, mas nossa vida é uma guerra, e tenho sido um traidor desde que nasci, um espião no território inimigo, desde que deixei minha arma, na época da Reconstrução. Quero que você viva com a cabeça dentro da boca do leão. (…) Quero que você os subjugue de tanto dizer sim, que os afogue com seus sorrisos subservientes, concorde com eles até a morte e a destruição, deixe-os engolirem você até vomitarem ou explodirem. (Ellison, 1990, p. 19)
Tal qual no poema de Ori/Lande, o avô é a chave. A admoestação do avô martela na cabeça do narrador, de que guerra ele está falando, de que traição? Que destruição ele profetiza em seu leito de morte? Tudo fez sentido depois quando o narrador, convocado para entreter os figurões da cidade em uma luta de vale-tudo, percebe a violência implicada, não apenas na luta ela mesma, contra outro assustado homem negro, mas no espetáculo ele próprio. Fez sentido então o risco, o medo, a dúvida e a confusão experimentadas na “boca do leão”. “O evento foi no salão de baile do principal hotel. Ao chegar, descobri que se tratava de uma reunião exclusivamente masculina e fui informado que, já que estava deveria participar, junto com outros colegas da escola, de um vale-tudo organizado como parte do entretenimento” (idem, p. 21). Então de repente, a figura feminina, virago antinegra, tropo essencial na conversão da fragmentação de si do negro em um Homem de verdade, uma “loira magnífica”, a mulher branca: “fez-se um silêncio absoluto. Senti uma lufada de ar fresco me congelar” (idem, p. 22). Diante da aparição o jovem narrador entra em pânico, desejando intensamente “afagá-la e destruí-la, amá-la e assassiná-la” (idem, p. 22). Na arena masculina, onde homens negros lutam como gladiadores para sujar de sangue o tapete e divertir homens brancos, a figura da mulher é o vórtice de uma vertigem que não pode distinguir entre ódio ou fascínio, desejo e violência. Neste momento o homem negro e seu corpo ganham coerência provisória como a autoimagem homicida, selvagem, Bigger ou muitos Biggers. “Com os olhos cheios de lágrimas e a boca cheia de sangue”, sou um homem de verdade? “Será que eles iam reconhecer o meu valor”? (idem, p. 12).
O transe e a vertigem da masculinidade negra convocam uma crítica encarnada ao sujeito soberano e revelam de modo agudo a heterogeneidade das redes de poder-desejo-interesse (Spivak, 2022), e revelam ainda a dupla posicionalidade, nó cego, ou “double bind”, para a fundamentação do sujeito negro na modernidade (Bateson et al., 1956). Estes só encontram precária sustentação nas transformações que a morte social opõe entre a Escravidão e a Africanidade, o mundo amefricano e o mundo antinegro. Duplo vínculo, double bind, que está implicado na condição ontológica de existir (como uma não-entidade) dentro da sujeição, mas ainda não como um sujeito[9]. Como poderíamos dessa forma, depois de procedermos a esse ajuste, que situa o homem negro nessa ambígua posição liminar, caracterizar uma “consciência”, instância ou lócus onde o sujeito poder tornar-se objeto para si mesmo? A crítica ao sujeito soberano e as políticas de representação são elementos integrais da constituição da aporia de uma subjetividade “singular”. A forma literária, a objetivação estética, busca um suplemento na representação da tradição, mas esta já é a estória de uma violação replicada na história de modo performativo e estrutural. A performance da negritude e sua encenação da vida social, na literatura, não pode obliterar o fato de que é escravo o objeto que permite a existência do sujeito burguês (ser-para-si/ser-para-o-outro) e que a confluência entre negritude e escravidão interdita de modo estrutural a reivindicação de subjetividade plena, autoconsciência como uma prerrogativa ética moderna. Porque escravo personifica o poder e a dominação do senhor, e é o Senhor a personificação do Sujeito Soberano. Como ser objetivo para si, alienando-se como modo de subjetivação, se o fundamento estrutural desse torturado si mesmo é a vida póstuma da escravidão? Diante dessa opacidade, ser para si é ser um escravo, “et tout le reste est littérature”[10].
* Osmundo Pinho é antropólogo, bolsista de Produtividade CNPq-2, doutor em Ciências Sociais (UNICAMP) e professor no Programação de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Recôncavo da Bahia em Cachoeira e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia em Salvador. Foi pesquisador visitante no Africa and African Diaspora Department Studies da Universidade do Texas em Austin (2014) e Richard E. Greenleaf Fellow na Latinoamerican Library da Universidade de Tulane em Nova Orleans (2020). É autor de Cativeiro: antinegritude e ancestralidade (2021), além de outros livros e artigos.
Referências bibliográficas
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Notas
[1] Este ensaio foi redigido a partir da apresentação “Pretitude e Poética: Modernismo e Masculinidade”, preparada para a mesa redonda “Gênero e Raça no Modernismo Brasileiro”, no seminário “O Modernismo Negro de Lima Barreto e os Cem Anos de 22: Tensões, rasuras e diálogos na modernidade brasileira!”, organizado pelos grupos Perifa/IF Baiano; Rasuras/UFBA; Etnicidades/UFBA; Esopo/UNEB; Yorubantu/UFBA e Poéticas Periféricas – UFRB em setembro de 2022. Agradeço a Jorge Augusto e a Florentina da Silva Souza o convite. E a Eumara Maciel a mediação da mesa.
[3] Sobre “escrevivência”, ver Conceição Evaristo (2020).
[4] A reflexão desenvolvida aqui foi em grande medida também discutida na oficina “Negritude: A Masculinidade na Encruzilhada”, desenvolvida com o grupo teatral Os Crespos em abril de 2021, como estudo teórico de preparação para filme-espetáculo Dois Garotos Que Se Afastaram Demais do Sol (https://www.youtube.com/watch?v=MVUe2vZ7_w0). Agradeço a Lucélia Sergio o convite e aos demais integrantes do grupo a fecunda interlocução.
[5] David Marriott (2007) recupera a noção lacaniana de imago, como aparece em “O estádio do espelho” (Lacan, 1988), para qualificar criticamente a “aparição” do homem negro.
[6] Referência a canção gravada em 1955por Louis Armstrong “(What Did I Do to Be So) Black and Blue?”, originalmente composta por Thomas “Fats” Waller em 1929.
[7] Em mente aqui analogia com a discussão presente em Samain sobre imagens que pensam. Sendo estas percebidas como tendo “vida própria” e “poder de ideação”, uma capacidade de agência e reflexão do pensamento capaz de configurar uma rede de significação e de conexões materiais (Samain, 2012, p. 23).
[8] Em A floresta dos símbolos (2005), Turner caracteriza um estado particular na estrutura dos ritos de passagem definido por sua liminaridade constitutiva: “O sujeito submetido ao ritual de passagem fica, no decorrer do período liminar, estruturalmente, ou mesmo fisicamente, ‘invisível’” (Turner, 2005, p.137-139). Talvez convenha lembrar que a fórmula “floresta de símbolos” aparece pela primeira vez no famoso poema “Correspondances”, de Charles Baudelaire (1985).
[9] Em “Toward A Theory of Schizoprenia”, Gergory Bateson e colegas (1956, p. 6) dizem: “Then the double bind cannot work on the victim, because it isn’t he and besides he is in a different place. In other words, the statements which show that a patient is disoriented can be interpreted as ways of defending himself against the situation he is in”.
[10] Último verso do poema “Art poétique”, de Paul Verlaine. Em francês e português em O Anticrítico, de Augusto de Campos (1986).
A marca de nosso tempo, seu umbral – a grave fronteira que cumpre atravessar, arrastando trapos, ruínas, culpas e esperanças –, o signo por excelência – a celebrar, inverter e esconjurar –, a referência paradigmática de nossos dilemas, pessoais e coletivos, o centro, o novo e arcaico centro gravitacional para as cosmologias em trânsito, o eixo que ordena o regime de afetos e afia o gume das horas, a marca, portanto, de nosso tempo é Fausto.
Fausto, embora meio caduco e banguela, jantou Édipo e o cuspiu, misturado às tripas do anjo da história – que mania de olhar pra trás –, jantou Édipo e o cuspiu no baú dos arquivos veneráveis – veneráveis mas destituídos de urgência. Édipo pulou fora de nossas retinas pra virar retrato na parede, figura itabirana melancólica, álbum de família, flagrante saudoso e remoto de papai & mamãe.
Foi mais ou menos, traduzido e traído por minha memória claudicante, o que Italo Moriconi me disse, em meados dos anos 1990, quando nossa comunicação era diária e frenética, graças à magia recém-descoberta do e-mail, serviço pago e discado: eu em Virginia, ele em Copacabana. Talvez ele não se lembre, provavelmente não se lembrará. Italo era uma usina de ideias, como é até hoje, sempre foi, turbilhão, trezentos, não heterônimos, mas flashes por segundo, intensamente presente na experiência que sorvia até a última gota (veneno-remédio – naturalmente).
Italo Moriconi em foto de Ana Branco
Presente de corpo e alma em cada cena cotidiana, política até a raiz dos cabelos, cenas que ele agarrava pelos cabelos até extrair-lhes a confissão. Saibam vocês: as cenas tagarelas que Italo dissecava, em suas mensagens-crônicas deliciosamente minuciosas, etnográficas, literárias, personalíssimas, dissecava com a violência sutil de poeta aprendiz, aquelas cenas confessavam tudinho, rendiam-se inteirinhas, da cabeça aos pés.
Italo flertava com as mil e uma possibilidades de sentido e sabor, desdenhando nostalgias, clichês e madeleines – porque interessante mesmo era o mundo por vir. Ao mesmo tempo, quem diria?, flanava pelas frestas da cidade, de que ele tomava posse, completamente: glutão, glutão.
Em outras palavras: presente, corpo e alma, mas sempre também recuando para o lado sombrio de cada esquina, camaleônico, poeta camuflado, voyeur espectral, fazendo-se de morto, evocando mortes e distâncias irredutíveis, encenando a si mesmo como tábula rasa, aberto ao mundo – cabeça, tronco e membros abertos, oferendas à fertilidade, dádivas aos deuses e demônios das origens e das manhãs.
Italo vivia os anos 90, como os 80 e os 70, de Brasília ao Rio, com intensidade paradoxal (doce e amarga, cheia de carne nos dentes, volúpia e comedimento), intensidade paradoxal de quem mergulha na boca da noite, mas se dedica ao ofício de palitar molares e caninos ao amanhecer, fixando na página em branco o ato que põe o sujeito em pauta sem rasuras. Italo sempre foi matutino e carioquíssimo, estrangeiríssimo, abrindo os olhos (não-inteiramente, é claro, porque faz muito sol em Copacabana), semicerrando a vista para cuidar-se, para cuidar, entrever e refratar a florada extravagante de luzes e ambiguidades, a explosão irremediavelmente parnasiana a que remete a linha alta do mar de Copa, dia sim, dia não.
Onde mesmo é que estávamos quando esse texto começou, antes de escapar ao controle e refugiar-se no labirinto de vielas barrocas? Vocês hão de me perdoar, mas essa lua e esse conhaque botam a gente comovido como o diabo. Ah! Sim, o diabo: Mefistófeles, Fausto. Pois é, talvez Italo nem se lembre, mas seu diagnóstico de que Fausto substituíra Édipo na encruzilhada de nosso tempo produziu um grande impacto em mim, impacto que ainda não metabolizei inteiramente, e sob cujo efeito penso e escrevo, até hoje, três décadas depois daquela nossa conversa casual.
A troca de mitos corresponde a uma troca entre sistemas de trocas. Com Édipo, estava em jogo, do ponto de vista antropológico, a troca de um interdito radical por uma autorização vivificadora, da endogamia pela sociedade, da clausura pela expansão, do insulamento pela reciprocidade e a tessitura das redes estendidas de sociabilidade, do solipsismo pelo universo das trocas. Do ponto de vista psicanalítico, estava em questão a substituição de uma linguagem matricial (em certa medida estava em questão a própria psicanálise). Édipo equivalia à troca da plenitude imaginária ilimitada e, por isso mesmo, mortificante, pelo nascimento do sujeito, graças à castração – a intervenção do terceiro, a entrada em jogo do falo. O declínio de Édipo retrata o ocaso do Pai, indicia a fratura de um pilar do capital, expressa o colapso de um regime de poder e servidão, o Patriarcado, nome do banho de sangue contínuo que encharca nossos destinos coloniais. Mas a que preço abandonamos as paisagens mentais em chamas, a que custo migramos dessas paragens que nos formaram, que são a nossa casa, a nossa cara? O que significa o desterro, o exílio? O que implica deixar-se reger pela cosmologia fáustica? Por outro lado, resta alguma escolha?
Esquematicamente, Fausto remete ao pacto, à celebração de um acordo por meio do qual se troca o objeto do desejo pela danação eterna, o que equivale a dizer que se troca a cadeia dos objetos que se põem a circular como alvos do desejo pelo desejo mesmo, enquanto nome da falta irremediável. Trocamos a saciedade provisória pela insaciabilidade permanente. Capitalismo, consumo, gozo contingente no ímpeto consumista trocados pela rendição à dinâmica da insaciabilidade, trocados pela ansiedade irrefreável, a insatisfação crônica, o fracasso – e a terra devastada, literalmente. Ou então: verdade, beleza, prazer, a glória em troca da condenação, a alma arrebatada, a liberdade vendida. Nada disso basta. A sabedoria de Italo, o poder de sua intuição vai além do trivial, das leituras previsíveis, do senso comum ilustrado, do ceticismo cultivado.
Leio o que ele mesmo escreveu no poema Contrato, em seu livro Quase Sertão, publicado em 1996 pela editora Diadorim (RJ):
Eu tenho nojo do teu comportamento.
Você tem nojo do meu comportamento.
Vamos guardá-lo no baú ancestral de couro encardido.
E fabricar nosso tecido
De meias-palavras.
O contrato negocia um sistema de relações, um sistema de trocas, de interações, interlocuções, diálogos, uma sociabilidade à meia-luz, à meia-boca, um convívio feito de silêncios que tenha o mérito de não se degradar em conflito terminal, em guerra e destruição. Mas esse mérito traz consigo o infortúnio de outra degradação, de outra destruição. Guardando o nojo recíproco no baú, nos salvaremos do cataclismo, sobreviveremos ao apocalipse. O preço é a meia-palavra. Custo valiosíssimo para o poeta, que lapida em cada silêncio, pausa a pausa, palavra e meia. De certa forma, não há relação nem troca com o nojo metido no baú, porque não se trata da meia-palavra plena de sentido, aquela que basta para que a comunicação se cumpra. Aqui, o baú é arca, túmulo, ataúde, o recalque objetivado. Se criação poética é desrecalque, ela aqui está sepultada. A palavra pela metade é comunicação mutilada. O preço da paz centrífuga é a coexistência de solidões insuladas.
Nojo é mais que desprezo moral: adiciona um tom sensível, corpóreo, inflama os cinco sentidos com o sopro da repulsa, mobiliza todas as dimensões do sujeito para a abjeção. Por outro lado, o alvo do nojo não é raça ou nacionalidade, é comportamento, é ação dotada de sentido. O repúdio se desnaturaliza e, por assim dizer, se politiza.
O couro encardido do baú, gasto pelo tempo, é matéria animal ressecada, esterilizada, revestindo o esquife que evoca a ancestralidade: a seta da ascendência aponta para a origem, arché, matriz, sede de arquétipos, figuras imemoriais imunes à contingência e à temporalidade. Aí está, arqueologicamente depositado no poema, o que seria, na ilusória tradição do esclarecimento, confrontada pelo poema, o fulcro do comum, a raiz primitiva do universal, solo sob os solos em que as diferenciações babélicas se radicariam, unidas no paraíso metafísico das indistinções. Nesse baú, repousaria a alma essencial e unívoca da humanidade, a garantia última da transparência, da comunicação desobstruída e da palavra plena. Pois aí está a crueldade e a ousadia subversiva do poema: seus versos enterram no poço ancestral a matéria insepulta da mútua abjeção. Não se sai desse poema como quem lava as mãos. Ao contrário, as mãos, como o poema, estão sujas, as mãos e as unhas se melam no esterco: na merda chafurda o lavrador, garimpeiro de palavras. Nenhuma Antígona velará pelo corpo insepulto da repulsa recíproca.
O contrato, este, pode bem aludir ao pacto fáustico, desde que recalibremos o alcance da reflexão, desde que renunciemos à pompa grandiloquente do bronze, tanto à gravidade do bronze que eterniza, quanto à bela leveza da tessera hospitalis, que enlaça. Este contrato não se cumpre, firma-se para a traição, firma-se com a piscadela do diabo que, por sê-lo, mente e finge, feito poeta, meio carioca, meio transgressor. Pacto feito de semitons, claro-escuros, despiciendo, pacto que é desconversa, meias palavras, jogo sujo, harmonia falsa sobre fundo falso, simetria impossível entre meias metades (inversão da tessera hospitalis), meias metades com as quais se convive, a muito custo, antagonistas que jamais serão salvas pela síntese sebastianista da dialética, cujas forças incomensuráveis sempre postergarão a guerra no jogo arrastado, traído e distraído. O que são desmesuras pela metade? Nem ilusão pseudo-humanista, nem escatologia dialética messiânica: o reconhecimento do quadro agonístico é o que resulta no poema, trama e drama insolúveis.
Não se trata, portanto, de celebrar contrato com o diabo; diabólico é o contrato; a relação está envenenada. Tampouco se trata de uma relação qualquer, mas do convívio pusilânime que mutila a palavra para garantir a coexistência corroída e corrosiva. O reino das meias palavras mortifica e amortece, dilui arestas, dissolve paixões no ácido da desconversa, põe-se contra o enfrentamento desestabilizador e angustiante das relações agonísticas, embate perigoso mas vivo, onde há clima para a poesia, paisagem pesada mas imune ao enxofre. Imune à putrefação da palavra, ao domínio do clichê, à morte da criação, seja canônica, seja essencial.
No cosmos do capital, prevalece a lei das trocas, palavra-moeda, pátria da comensurabilidade (ou da simetria substitutiva, para evocar Paul de Man), prevalece a linguagem da mercadoria, o império do mercado e do fetiche, feira onde tudo tem seu preço e se presta a virar pastiche, tudo encontra equivalentes. Nesse cosmos, o que rebenta a casca do ovo e põe a cabeça pra fora, dando-se à luz, é a singularidade – pós-canônica, pós-essencial, especialíssima, irredutível aos sistemas de trocas, aos sistemas das equivalências. A singularidade, o poema, a criação literária, a obra estética em voz anticlichê exige leitores e leitoras, ouvintes, fruidores e fruidoras (e críticos e críticas) que ousem a invenção de suas próprias mordidas únicas, incomparáveis. As dentições são diferentes como as impressões digitais. Italo anunciou, por obra e graça de Fausto, evocando o pacto mefistofélico como sinal dos tempos, Italo anunciou, isto é, insinuou a era das impressões digitais emancipadas, das dentições inclassificáveis.
No tempo pós-edipiano, novos e novas poetas estariam livres da angústia da influência, prescindiriam da morte do pai, evocariam ascendências matrilineares ou conceberiam um céu livre de monoteísmos, ou povoados de monoteísmos extintos, puras recordações inofensivas, céus e terras e mares panteístas ou vazios e silentes. Mas é claro que a novas liberdades corresponderiam novos constrangimentos. Nesse caso, a celebração de pactos talvez remetesse a contratos horizontais, em que se empenhe a palavra plena, sem concessões, em que se troquem toques e trilhas de fecundação recíproca.
Linhagens de novo tipo. Pistas futuras.
Como talvez dissesse um Mário renascido: os males do Brasil já não são muita saúva, pouca saúde, mas muita, muita saliva, muita palavra gasta, muita palavra moeda de troca, muitas convicções vendidas nos templos do fascismo, à boca pequena, na mão grande, na festa monumental da pusilanimidade, todas as mãos sujas de sangue, cumplicidade e meias palavras. Italo nos propõe o contraponto, representado pela consciência crítica sobre o pacto fáustico, que aponta para um ambiente estético, ético e político sem acomodações. Contra a transigência untuosa e pusilânime, à meia luz, das meias-palavras, a pulsão solar de Copacabana.
Por tudo, Italo, as lições, os exemplos, a coragem, a lucidez, por tanto afeto e generosidade, por tudo, meu amigo, meu irmão, eis-me aqui, a teus pés.[1]
* Luiz Eduardo Soares é escritor, antropólogo, professor visitante da UFRJ e ex-professor da UERJ, do IUPERJ e da UNICAMP. Publicou mais de vinte livros, dos quais os mais recentes são Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos (Boitempo, 2019), O Brasil e seu Duplo (Todavia, 2019), Dentro da noite feroz: o fascismo no Brasil (Boitempo, 2020) e o romance Enquanto anoitece (Todavia, 2023).
Notas
[1] Intervenção no seminário em homenagem a Italo Moriconi, realizado em 8 de dezembro de 2023 na Casa Dirce, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e organizado pelas professoras doutoras Diana Klinger (UFF) e Ieda Magri (UERJ) e pelo doutor em Literatura Brasileira e crítico literário Ricardo Vieira Lima.
Que tipo de crítica, de comentário sobre arte, é desejável hoje? De fato não estou dizendo que as obras de arte são inexprimíveis, que não podem ser descritas ou interpretadas. Podem sê-lo. A questão é como. Como poderia ser uma crítica adequada à obra de arte, e que não usurpasse seu lugar? Contra a Interpretação, Susan Sontag
Nesse famoso ensaio que faz parte do livro Contra a interpretação, de 1961, publicado no Brasil em 1987, a afirmação de Susan Sontag indica a relação importante da ensaísta e romancista com o tema deste número da Revista Z. Mais adiante, no mesmo ensaio, afirma que a função da crítica “deveria ser mostrar como é que é, até mesmo que é que é, e não mostrar o que significa”. Para terminar com a originalidade e a independência que marcavam suas reflexões: “Em vez de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte”.
O “olhar que quer mostrar o que é ou o que parece ser” surge como categoria de leitura válida na contemporaneidade. Falo sempre de um olhar feminista sobre a obra de arte, a literatura, o cinema, uma maneira de mostrar como a obra é vista pelo leitor interessado e forçosamente envolvido que é o crítico.
Foi a proposta de uma mulher lançar um olhar sobre outra mulher, a intelectual pública libertária que foi Susan Sontag (1933-2004) – decisiva para toda uma geração de estudiosos de literatura –, que me atraiu no livro de Sigrid Nunez, Sempre Susan. A expectativa foi amplamente satisfeita e, mais do que isso, ele me parece ser altamente sugestivo como exemplo de escrito próximo do biográfico.
Sigrid Nunez (1951) é uma ficcionista premiada que nasceu e vive em Nova York. Também professora e experiente no trabalho com editoras, publicou sobretudo romances. No Brasil encontramos seu livro de contos O que você está enfrentando, lançado aqui em 2021.
No meio dos anos 1970, a jovem Sigrid foi indicada para trabalhar com Susan Sontag pela prestigiosa The New York Review of Books, de que era colaboradora, e ajudar sobretudo com a correspondência acumulada enquanto a escritora operara um câncer de mama que continuava tratando.
Nova York e o mundo literário ofereciam muito em comum às duas, além do trabalho a ser feito juntas. Só que em pouco tempo, Sigrid se mudou para o famoso 340 Riverside Drive, apartamento que dava vista para o rio Hudson e por onde passavam escritores, como Joseph Brodsky, prêmio Nobel (namorado de Susan por certo tempo), críticos, jornalistas, professores, dentre os quais o charmoso amigo Edward Said e outros intelectuais críticos do status quo americano.
Pouco depois de começar a frequentar o apartamento, foi intrépida: passou a namorar David Rieff, filho único da escritora, que, é claro, morava com a mãe. É sobretudo sobre o período de um ano e meio em que conviveram e conversaram os três, geralmente em volta da mesa da cozinha, que o livro fala.
A mãe que dormia no quarto ao lado fora sempre determinada a não deixar que houvesse um gap geracional entre ela e David, tratando-o como adulto desde criança. Fica, porém, chocada quando um psicoterapeuta lhe pergunta certa vez: “Por que você tentou fazer de seu filho um pai?”. São confidências que vão da sessão de terapia aos encontros, amores e desilusões com homens e mulheres que a poderosa intelectual partilha com a aspirante a escritora.
Escrever sobre alguém é sempre mais do que falar do biografado, é sempre, de algum modo, falar sobre si mesmo. O período serviu a Sigrid como iniciação ao mundo literário, político, do gosto requintado, e o livro é, de certa forma, uma breve novela de formação.
A figura de Susan que nos é apresentada é cercada de admiração e afeto, mas também não é poupada na apresentação de suas idiossincrasias: generosa e exigente, forte mas com dificuldade de ficar sozinha, apaixonada ou furiosa. Cobrava da jovem dedicação à carreira de escritora, mas exigia sua companhia o tempo todo. Não tolerava qualquer vitimização, especialmente nas mulheres: “Cuidado com a guetização. Resista à pressão de pensar em si mesma como uma mulher escritora”.
Sigrid referenda que Susan era feminista, mas era também capaz de criticar as irmãs feministas, consideradas pouco intelectualizadas, ingênuas e sentimentais, e garantia que o cânone (ou a arte, ou o gênio, ou o talento, ou a literatura) “não era um empregador que oferece oportunidades iguais”. E não é mesmo.
A melhor definição de Susan Sontag forma todo um parágrafo que resume a biografada e evidencia o talento da romancista:
Ela era tão Nova York. E no entusiasmo, na energia e na ambição, no poder de tudo fazer, no espírito de superação de revezes, na natureza infantil – e na crença em seu excepcionalismo e no poder da própria vontade, na autocriação e na possibilidade de renascer, na possibilidade de novas chances infinitas e de tudo ter –, também era a pessoa mais estadunidense que conheci.
A identidade nacional apontada não deixa de parecer estranha ao falar da intelectual que em 1966 afirmava: “Os Estados Unidos foram fundados sobre um grande genocídio, sobre o pressuposto inquestionável do direito dos brancos europeus de exterminar uma população nativa”.
Conheci Susan Sontag pessoalmente em sua vinda ao Brasil em 1993 para lançamento do romance O amante do vulcão pela Companhia das Letras. Seus livros de ensaios arrebatavam a intelectualidade durante os anos 1980. Cansados do esquematismo estruturalista, já distantes da herança francesa, pensadores e formadores de opinião recebiam os escritos de uma mulher de pensamento independente que já estivera até no Vietnã do Norte como uma possibilidade nova de se olhar cultura e política.
Luiz Schwarcz, seu editor, preparou um lançamento nos moldes americanos, com a autora presente, lendo trecho do romance diante de uma plateia fascinada: a mecha branca, o sorriso largo, todo um corpo que expressava a coragem daquela mulher.
No entanto, o romance não foi o sucesso que as publicações anteriores, conjuntos de ensaios, pareciam anunciar.
Em Sempre Susan, a autora faz o tempo todo restrições à ficção em que a ensaísta se empenhava tanto e que ela lia com dificuldade: “assim como outros leitores de sua obra, considerei os ensaios fascinantes e os romances custosos de ler”.
Depois, em setembro de 2002, a Fundação Biblioteca Nacional sediou o seminário internacional “Caminhos do pensamento: Horizontes da memória”. Susan Sontag foi convidada a partilhar com Carlo Ginzburg, popular entre nós pela obra O queijo e os vermes, a mesa “Conceitos de memória contemporâneos”. Eduardo Portella, diretor da Biblioteca, que fora meu professor e orientador, me pediu que fosse ao aeroporto para recebê-la na véspera da palestra. E lá fui eu, tensa e insegura.
A figura da escritora não desmentia as hipnóticas fotos de estúdio que conhecíamos, e do aeroporto fomos para o Hotel Glória, onde ficaria hospedada.
Apesar da gentileza da convidada, tremi nas bases quando chegamos à recepção. Queria um quarto com cama de casal – mesmo sozinha só dormia em camas duplas, disse –, mesa para escrever com um abajur que realmente iluminasse – justíssimo – e, finalmente, um banheiro com banheira. Aí fiquei em pânico: banheira! Felizmente estávamos no velho Glória e havia um único quarto com todos os requisitos.
Era cedo, havia um dia todo pela frente e ela não conhecia ninguém na cidade. Propus então darmos um passeio e fomos ver a praia, Copacabana, no tempo adorável de setembro no Rio. No caminho falou que tivera câncer e logo se corrigiu: eu tenho câncer. Deu fome e fomos almoçar. Pensei na reles diária oferecida para os gastos, mas ponderei: euzinha, almoçando com Susan Sontag, tenho que caprichar. Estacionamos então num belo restaurante de frutos do mar em frente à praia para o mais inesquecível almoço que desfrutei. Era dia de sorte, tudo estava ótimo, inclusive o vinho que ela pediu. Enquanto conversávamos, a cada frase parecia que de algum modo me testava, enquanto falava sobre o mundo, os Estados Unidos e literatura. No carro me dera uns foras, a maneira como eu entrara no táxi e outra bobagem, mas fomos ficando quase amigas.
Sigrid fala várias vezes do horror que Sontag tinha de ficar sozinha, então era melhor aquela professora brasileira do que um almoço sem companhia no hotel meio triste.
Às páginas tantas falei alguma coisa sobre os anos em que morei na Europa e subitamente a crítica passou a prestar atenção ao que eu falava. Em resposta a suas muitas perguntas – alma de jornalista –, contei que morara em Paris, estudara na École de Hautes Études e assistira às aulas de Roland Barthes. Fora um ano especial para os estudantes, porque as aulas eram dadas num teatro e o crítico francês, vaidoso, aproveitava a iluminação da ribalta.
Daí em diante tudo mudou e tornou-se uma conversa quase entre pares. Poupava minhas observações para ouvi-la o máximo possível e tudo o que falava era da maior importância, sempre marcado pelo magnetismo de sua presença. Política ainda mais que literatura, cultura em todas as expressões possíveis, e pelo mundo afora.
Lembrei-me tanto dessa cena quando li o que Sempre Susan fala sobre a admiração que a ensaísta, ela mesma capaz de se utilizar da belle écriture, tinha por Barthes. No livro está o relato de uma conversa entre as duas a propósito de como David e sua mãe eram próximos e se pareciam:
Ela me mostrou uma fotografia que a encantava, o jovem Roland Barthes com sua mãe (…) Roland Barthes, um dos maiores heróis literários de Susan, a quem eu muito admirava também, viveu com a mãe até o dia em que ela morreu.
A experiência barthesiana nem foi tão importante para mim. Naquele momento o crítico seguia em análises que me pareciam um tanto áridas, no caminho do enjoado S/Z. Nada ainda dos arrebatadores escritos de A câmara clara, que serviu de estímulo para Sontag escrever Sobre a fotografia, ou o íntimo Incidentes, mas me garantiu minimamente o interesse daquela mulher poderosa durante o almoço.
Concluímos o passeio enquanto esperávamos o quarto ficar pronto, indo, por sugestão dela, ao Pão de Açúcar. Subimos até o morro da Urca e lá me dei conta de grave erro meu: não levara nenhuma máquina fotográfica (pré-história: não havia celular para fotos!). Um quiosque vendia aquelas pequenas máquinas descartáveis. Perguntei se poderia tirar uma foto dela com aquela vista, e é claro que ela aprovou, adorara fotos. Foi com a precária maquininha que pude garantir que não fora tudo um delírio.
Figura 1: Susan Sontag em visita ao Rio de Janeiro.
Antes de irmos, propôs uma foto juntas e essa é mais uma que resistiu ao tempo.
Figura 2: Susan Sontag posa ao lado da professora Beatriz Resende.
Voltamos para o hotel, deixei-a no quarto, onde abriu a mala e tirou uma série de livros seus e me disse que escolhesse um. Interessei-me por uma obra crítica que se ocupava de teatro e eu não conhecia. “Rubbish”, exclamou, e me estendeu um romance.
Sigrid diz: “insistia que era uma escritora de ficção que por acaso escrevia ensaios, e não o contrário”.
No dia seguinte era a conferência. Na programação não constava o título, porque a palestrante não mandara. Ainda em nossa breve biografia a autora fala da relação ambígua que Susan guardava com as palestras, conferências, aparições públicas de modo geral, necessárias para vender livros, e ela precisava vender. Sigrid fala da impressão que a ensaísta passava de que, se não fosse pelo dinheiro, estava perdendo seu tempo.
Ganhou fama de ser um monstro de arrogância e falta de consideração, mas conforme a vida seguia, os convites continuavam chegando, ela os aceitava, e a má reputação crescia cada vez mais.
E vai mais além:
“Não tenho uma palestra entalada”, dizia, insinuando que ter uma palestra pronta não era algo de que qualquer escritor deveria se orgulhar. Ela improvisava – com resultados variados.
De fato a palestra, com “tema a confirmar”, não foi o sucesso que poderia ter sido. Na verdade, não apresentou nada que os leitores mais aplicados já não conhecessem. Carlo Ginzburg fez uma bela fala sobre “Memória e Distância”, mas, por mais que o historiador italiano esbanjasse simpatia, ninguém poderia concorrer com o carisma de Susan.
Deixou-nos em dezembro de 2004, pouco depois de publicar o fundamental Diante da dor dos outros, dedicado a David, sobre guerra, dor, violência, imagens de atrocidades. O livro começa por citar Virginia Woolf escrevendo sobre a Segunda Grande Guerra, passa por conflitos e atentados, e, a cada imagem do horror de novas guerras telemonitoradas a que assistimos, o livro parece mais atual.
Falando de fotos que constroem nossa ideia do presente e do passado imediato, diz: “Essas ideias são chamadas de ‘memórias’ e isso, no fim das contas, é uma ficção”.
* Beatriz Resende é professora titular da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora do CNPq e da FAPERJ e editora da Revista Z Cultural.
Referências bibliográficas
NUNEZ, Sigrid. Sempre Susan: Um olhar sobre Susan Sontag. São Paulo: Instante, 2023.
Christina Sharpe em foto de Rachel Eliza Griffiths (Divulgação)
O modo mais honesto de iniciar um comentário sobre o livro de Christina Sharpe (2023) – No vestígio: negridade e existência – é reconhecer o incômodo, certa perturbação, que como psicanalista prefiro nomear de mal-estar. Pode ser descrito, ainda, como espécie de desequilíbrio: ficamos zonzos, talvez, como em alto-mar, quando somos obrigados a buscar o horizonte, o ponto fixo, a referência que nos permita ficar de pé.
Sharpe nos deixa, então, deixou-me, ao menos, no vestígio. O que pode ter muitos significados. A dificuldade de tradução que acompanha o texto se refere à distância continental das línguas e aos impasses da travessia. Às vezes, são necessárias muitas palavras e a imprecisão deve ser explorada com vagar. Wake tem sentidos diversos que, em português, requerem outras palavras: vigília, velar, velório, vereda.
Há algo de específico nesse mal-estar, que talvez torne preciso recorrer a categorias como lugar de fala (Ribeiro, 2019) ou saberes localizados (Haraway, 1995) para dizer da minha leitura e do quanto posso me implicar ou ser implicado pelo pensamento e afetos evocados por Sharpe. Afinal, ainda que não seja, nos termos de Charles Mills (2023), um signatário, sou certamente um beneficiário do contrato racial e da violência que engendra.
Não seria, contudo, justo falar, a partir do que li, em identidade. Melhor, necessário, dizer de experiências, experiências compartilhadas, aquelas capazes de se sobrepor à distância temporal de alguns séculos, fazendo passado e presente coexistirem no mesmo instante – afinal, para muitas pessoas Negras – grafado assim, em maiúscula, como quer a autora – não é necessário viajar no tempo, como a personagem de Octávia Butler (2019), em Kindred, para viver concretamente a violência da escravização, da transmutação de si mesmo em coisa.
Experiências, contudo, que não podem ser compartilhadas por um homem branco, por exemplo. O que não quer dizer que o livro não nos toque na carne. Tais experiências, como a do porão do navio, do tumbeiro, percorrem todo o livro.
A travessia proposta pela autora se faz em quatro momentos que se movimentam e se contaminam – vestígio, navio, porão, tempo –, capítulos que se encadeiam e se sobrepõem, como o passado e o presente na sensibilidade do vestígio. Navegando-os, descobrimos sentidos novos para palavras conhecidas, e conhecemos outras, como tumbeiro. Navio e sepultura, transporte para a não humanidade e depois a morte.
O destino do livro, porto (um pouco mais) seguro, é fazer do “vestígio” um problema para o pensamento. Há muito a elaborar.
Mas será preciso, antes, perguntar de que pensamento falamos quando buscamos, ao mesmo tempo, interrogar o tipo de racionalidade objetivante, que acaba por transformar pessoas em coisas para descartá-las em benefício de outras mais valiosas, ou simplesmente liquidá-las em troca do seguro comercial. Desdobrar o vestígio em vigília, implica em pensar de outro modo, uma forma de in-disciplina recusando a racionalidade que faz com que as pessoas pretas sejam “com frequência disciplinadas a pensar por meio de nossa própria aniquilação”. Só assim será possível formular “um método para encontrar um passado que não passou” (Sharpe, 2023, p. 33).
Quando afirma se distanciar de intelectuais que buscam respostas políticas, jurídicas ou filosóficas para aproximar-se da arte – da literatura à performance passando pela cultura visual –, Sharpe nos alerta para a incidência da sensibilidade na vigília que reconfigura o pensar. Trata-se de um novo regime de pensamento, de saber, novo regime estético, como quer Paul B. Preciado (2020), que fala a partir da resistência a outra operação colonial de corpos. Como em muitos outros momentos, o pensamento de Sharpe se aproxima de temas caros ao pensamento queer, sobretudo ao que nele se engendra de utopia, como o trabalho de subversão da cronologia que nos incita a falar de um “passado que não passou reaparece, sempre, para romper o presente” (Sharpe, 2023, p. 25). É assim que o vestígio se torna “uma forma de consciência” (Sharpe, 2023, p. 35).
Outras aproximações podem ser feitas com o pensamento queer, inclusive em relação à interrogação do modo como o pensamento (ocidental, branco, europeu, masculino, heterossexual) definiu as fronteiras da humanidade e nelas sentou guarda armado de regimes de verdade e de dispositivos de poder. Definindo, ainda, o modo como se transmite tal humanidade ou seu contrário.
Sharpe nos lembra que a genealogia, a filiação, que, para muitos, garante a ordem simbólica e o primado da civilização sobre a barbárie, no vestígio, opera a persistência da exclusão, pois o que se transmite, simbolicamente, é a não existência:
Viver (n)o vestígio da escravização é viver “a vida após a morte da propriedade” e viver a vida após a morte da ideia de partus sequitur ventrem (quem nasce segue o ventre), em que a criança Negra herda o (não) status, a (não) existência de sua mãe. Essa herança de um (não) status está aparente em toda parte agora na criminalização contínua de mulheres e crianças Negras. (Sharpe, 2023, p. 36)
Questões de gênero chegam a ser tratadas diretamente no livro e os corpos Negros são aproximados de corpos queer, tendo sua experiência marcada por um asterisco seguindo a palavra trans, como em Jack Halberstan (2023). Corpos que resistem à generificação, à epistemologia da diferença sexual, ao mesmo tempo que, como propõe Berenice Bento (2023), estão aquém dela, pois estão fora da humanidade. Nos termos de Sharpe, ejetados.
O asterisco após o prefixo “trans” mantém o espaço aberto para o pensamento (a partir dessa e nessa posição). O asterisco também se refere a uma gama de experiências incorporadas chamadas de gênero e ao desmantelamento do gênero euro-ocidental, sua incapacidade de se manter na/sobre a carne Negra. O asterisco diz sobre uma série de configurações da existência Negra que tomam a forma de tradução [translation], transatlântico, transgressão, transgênero, transformação, transfiguração, transcontinental, transfixado, transmediterrâneo, transubstanciação (processo pelo qual poderíamos entender a transformação de corpos em carne e depois em mercadorias fungíveis, mantendo a aparência de carne e sangue), transmigração e muito mais. (Sharpe, 2023, p. 66)
O pensamento em vigília, que vela, se faz afetivamente, por afetação, não havendo separação no vestígio, na turbulência, na vigília, entre razão e emoção. Recusa-se, nos termos de Saidiya Hartman, a “violência da abstração” (Sharpe, 2023, p. 24). O trabalho intelectual se dá com os nervos à flor da pele. Da mesma forma, o político contém o íntimo. A dor sofrida na intimidade é testemunho da subjugação política. Subjugação vivida em público e no privado, como na privação.
O livro se inicia com relatos de perdas, íntimas, pessoais, o que se articula à busca de uma narrativa singular e de suas condições e modos de produção. Mais uma das razões pelas quais a obra de Christina Sharpe interessa a um psicanalista branco e cisgênero que escuta pessoas negras e trans, desejando que essa escuta não se ancore no silenciamento do outro, de muitos outros: “incluo o que é pessoal aqui para conectar as forças sociais acerca do que é existir no vestígio para uma família específica ao que é existir no vestígio para todas as pessoas Negras” (Sharpe, 2023, p. 23).
Trata-se de falar de experiências subjetivas singulares a partir do que lhe seria, em princípio, exterior, evitando psicologização ou essencialização, privilegiando experiências e as estruturas que as produzem. Dessa forma, também é possível falar da negridade sem atribuição de marca identitária comum: este, se produz ao longo do tempo e é o interminável desse tempo, da redução dos corpos Negros a coisas, que define os limites possíveis da experiência. Por outro lado, essa escrita corporificada, questiona, ao mesmo tempo, o sujeito universal e o regime de produção de conhecimento instituído a partir do centro europeu.
A linguagem já está, aliás, desde sempre encarnada, como nos mostra o caso George Floyd, estrangulado por um policial na cidade de Minneapolis, lembrado pela autora, ou a morte por asfixia de Genivaldo num camburão da Polícia Rodoviária Federal, no estado em que moro, Sergipe. A falta de ar, a impossibilidade de respirar, o sufocamento intencional não são metáforas.
Essa passagem, travessia entre corpos e nomes, palavras, é algo central na escravização: “A primeira linguagem que os guardas do porão usam com as pessoas cativas é a linguagem da violência: a língua da sede e da fome e da dor e do calor, a língua da arma e da coronhada, o pé e o punho, a faca e o arremesso ao mar” (Sharpe, 2023, p. 128).
A morte está presente em quase todas as páginas e talvez o livro possa ser descrito como elegante e poético testemunho de um trabalho de luto. Mas como se esse luto fosse infinito, como se o preciso fosse sempre e para sempre continuar a velar mortes que não se esgotam, se desdobram, se repetem em outros corpos que de algum modo são um mesmo, um só. “Vidas após a morte da escravidão”, escreve Sharpe.
Sharpe faz mais do que nos recordar a escravização e o tráfico de pessoas. Não se trata apenas de um esforço de rememoração, ainda que este seja necessário e árduo. Trata-se de reconhecer no presente a repetição, a permanência do passado, permanência do desastre: “os meios e modos de sujeição infligidos às pessoas Negras podem ter mudado, mas o fato e a estrutura dessa sujeição permanecem” (Sharpe, 2023, p.31).
Vestígio pode ser o rastro deixado pelo navio que cruza o oceano carregando pessoas transformadas imaginariamente em coisas, mercadoria. Ou pessoas que morrerão no caminho e só então serão consideradas humanas, como os refugiados mortos nas costas europeias ontem. Talvez também hoje, provavelmente amanhã. Numa nota de rodapé, aprendemos que o desastre “é o desdobramento contínuo de séculos do comércio de pessoas africanas” (Sharpe, 2023, p. 18).
Examinando obras de arte, Sharpe encontra vestígios humanos: a personagem negra que aparece apenas para desaparecer; a criança com uma etiqueta em seu rosto onde se lê navio; Délia e Drana, fotografadas “para revelar como a negridade é e como olhar para ela” (Sharpe, 2023, p. 86). Destinos que se repetem, violência tão contínua quanto gratuita, imagens que não são verdadeiramente percebidas, seres espectrais, retratos de (não) existências. Como aqueles seres que foram lançados ao mar de uma embarcação chamada Zong, antes Zorgue, que significa cuidado. Seres espectrais, como a Amada de Toni Morisson (2007), personagem recorrente no argumento de Sharpe, ou como a senhora Jackson do filme TheForgotten Space:
A maneira como ela é incluída no filme e a incapacidade de este compreender seu sofrimento fazem parte da ortografia do vestígio. O espaço esquecido é a negridade, e quando a sra. Jackson é conjurada para preenchê-lo ela aparece como um espectro. (Sharpe, 2023, p. 61)
A semântica fantasmagórica é recorrente – espectros, assombrações – para descrever uma experiência que talvez possamos aproximar do Unheimilich freudiano (Freud, 2021), do que intimida, do estranho que surge no familiar, ou o contrário.
O que dá sentido maior à história de morte do Zong, assassinatos percebidos como lançamento de mercadoria ao mar, tem importância vital no trabalho de/na vigília de Sharpe.
O Zong foi levado ao conhecimento do grande público britânico pela primeira vez por jornais que noticiavam que os proprietários do navio estavam processando os seguradores pelo valor do seguro daquelas 132 (ou 140, ou 142) pessoas africanas assassinadas. Os pedidos de indenização são parte do que Katherine McKittrick chama de “matemática da vida negra”, o que inclui essa matabilidade [killability], esse lançamento ao mar. (Sharpe, 2023, p. 61)
Assim, Sharpe nos adverte que a redução do outro à vida nua, bem como a separação entre vidas dignas e indignas de serem vividas, elementos centrais da leitura da biopolítica proposta por Agamben (2010), é uma operação política de larga escala posta em movimento muito antes do nacional socialismo alemão e dos seus campos de concentração. Tudo começou muito antes, apenas não foi percebido. O mal, até então, se abatera apenas sobre seres que podiam ser coisas, podiam ser facilmente situados além das nossas possiblidades de identificação.
No Zong, o navio, há um porão no qual se transportam pessoas transmutadas em mercadorias que podem, em caso de necessidade, serem lançadas para a morte, no vestígio do navio, sem que isso seja visto, entendido, enunciado como assassinato. Aqui, a importância das palavras em seu múltiplo sentido, importa. O porão do tumbeiro, que se chamou cuidado, se escreve hold, e nada está mais longe do to hold, que no psicanalista Donald Winnicott (2022) deriva em holding, condição imprescindível para que o bebê se torne um ser.
Esse navio, que transporta vidas que serão assassinadas e de algum modo já tem seu destino traçado, não no momento em que embarcam ou são conduzidas ao porão, mas no momento em que nascem, partus sequitur ventrem, ainda navega nas águas do mediterrâneo e ancora em campos de refugiados. Não por acaso, o navio tem um ventre.
O Zong se repete; ele se repete e se repete por meio da lógica e do cálculo da desumanização iniciada há muito tempo e ainda operante. Os detalhes e as mortes se acumulam; os idem idem preenchem os arquivos de um passado que ainda não é passado. Os porões se multiplicam. (2023, p.133)
Verificação rotineira de documentos, baculejo, centros de detenção de famílias, centros de detenção, Lager [campos de refugiados], zonas de quarentena… são outros nomes pelos quais se pode reconhecer o porão como ele aparece em Calais, Toronto, Nova York, Haiti, Lampedusa, Trípoli, Serra Leoa, Bayeruth e assim por diante. (2023, p.153)
Importante dizer, enfim, que No vestígio nos dá respostas a certo discurso crítico dos movimentos ditos identitários, que procura desqualificar a retomada da categoria de raça pelos movimentos antirracistas, afirmando que esta categoria foi expulsa do campo da ciência e que tanto a escravização acabou quanto as antigas colônias se emanciparam[1]. O faz recordando, tecendo laços entre esse passado e o que vemos hoje na TV – os navios de refugiados no mediterrâneo, mas poderia ser o trabalho análogo à escravidão nos grandes latifúndios brasileiros –, o que vivem em seus corpos, pessoas marcadas pela cor negra da sua pele[2]. A cristalização da identidade é, por outro lado, uma das marcas do/no vestígio, não apenas uma imagem, estereótipo, que permite o reconhecimento imediato e a pronta ação das forças da ordem, mas a inscrição de um destino:
Uma professora do primeiro ano em Paterson, Nova Jersey, posta no Facebook que vê em seus alunos e alunas “futuros criminosos”. “Futuro criminoso” se junta a “ex-mãe” no anagramatical: não criança, não mãe, não ser. No vestígio, devemos conectar a indústria do nascimento à indústria prisional, a máquina que degrada, nega e eviscera a justiça reprodutiva à máquina que encarcera. (Sharpe, 2023, p. 160)
* Eduardo Leal Cunha é psicanalista. Doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ), professor titular da Universidade Federal de Sergipe e pesquisador associado da Universidade de Paris. Publicou recentemente O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política, pela Editora Criação Humana, e O político e o íntimo: subjetivação e política, do impeachment à pandemia, pela Editora Devires, onde dirige a coleção Impertinências.
Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
ANDRADE, Érico. Negritude sem identidade. São Paulo: n-1, 2023.
BUTLER, Octavia. Kindred: laços de sangue. São Paulo: Morro Branco, 2019.
FREUD, Sigmund. O incômodo. São Paulo: Blucher, 2021.
HALBERSTAN, Jack. Trans*: uma abordagem curta e curiosa sobre a variabilidade de gênero. Salvador: Devires, 2023.
HARAWAY, Donna. Saberes localizados, Cadernos Pagu (5), p. 7-41, 1995.
MILLS, Charles. O contrato racial. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.
MORRISON, Toni. Amada. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.
PRECIADO, Paul B. Je suis um monstre qui vous parle. Paris: Grasset, 2020.
RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
ROUDINESCO, Elizabeth. O eu soberano: ensaio sobre as derivas identitárias. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.
SHARPE, Christina. No vestígio: negridade e existência. São Paulo: Ubu, 2023.
WINNICOTT, Donald. Processos de amadurecimento e ambiente facilitador. São Paulo: Ubu, 2022.
Notas
[1] Ver, por exemplo, Roudinesco, Elizabeth. O eu soberano: ensaio sobre as derivas identitárias. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.
[2] Logo depois de encontrar Christina Sharpe, me deparei com Érico Andrade e seu Negritude sem identidade, de modo que, para mim, ambos acabam se encontrando frequentemente no que penso e sinto.
Bia Lessa é uma artista multimídia que não hesita em encarar grandes temas e grandes autores. Uma ousadia que é sua marca desde a estreia como diretora em 1983, com a peça A terra dos meninos pelados, baseada no livro homônimo de Graciliano Ramos. De lá para cá, encenou no teatro obras como Orlando, de Virginia Woolf (com texto de Sérgio Sant’Anna) em 1989, e Os possessos, de Fiódor Dostoiévski, em 1987; montou óperas como Don Giovanni, de Wolfgang Amadeus Mozart, em 1992, e Suor Angélica, de Giacomo Puccini, em 1990; e foi responsável pela criação e curadoria do Pavilhão do Brasil na Exposição Universal de 2000 (EXPO) em Hannover, Alemanha, do Módulo Barroco da Mostra do Redescobrimento, no Museu Nacional de Belas Artes, em 2000, no Rio de Janeiro, e das exposições Grande Sertão: Veredas, na Inauguração do Museu da Língua Portuguesa, em 2006, e Brasileiro Que Nem Eu. Que Nem Quem?, na Fundação Armando Alvares Penteado, em 1999, ambas em São Paulo.
Nesta entrevista concedida à Revista Z Cultural em 19 de janeiro de 2024, em sua casa no Cosme Velho, Bia Lessa comenta a sua trajetória, iniciada em 1975 como atriz no Teatro Tablado, no Rio de Janeiro, e a sua relação com a recepção da crítica e do público: “O teatro é uma humilhação diária”.
Por ocasião do lançamento de seu filme O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho, fala do desafio de levar Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, ao Museu da Língua Portuguesa, ao teatro e, depois, às telas de cinema e trata, ainda, da inquietação que a faz explorar diferentes suportes e meios.
Foto: Arquivo Pessoal
Beatriz Resende: O tema deste número é crítica e curadoria, entendendo, inclusive, a curadoria como um tipo de crítica, e a crítica contemporânea menos como crítica e mais como uma espécie de curadoria. Por isso, veio essa ideia de conversar sobre seu trajeto, sua independência, e de que maneira você convive com avaliações, com críticas.
Bia Lessa: Acho o tema extraordinário. É o que mais anima: essa ideia de curadoria e crítica como sendo a mesma coisa, porque, de fato, não há como ter uma curadoria sem uma análise crítica muito firme ou muito determinada. Também acho extraordinário pensar crítica como ação. Vivo falando para a Flora [Süssekind] que, muitas vezes, quando ela fala sobre o meu trabalho, ela inventa um trabalho que eu nem sabia que existia. Então, quando ela cria, tem uma ação em cima do próprio trabalho. O outro vem e coloca outra camada. É isso que eu acho excepcional.
Do meu caminho, não sei muito por onde começar. Fiquei um ano no Antunes [Filho], que é uma pessoa extraordinária. Eu tenho um respeito imenso por ele, mas uma hora entendi que não ia poder ficar mais. Achei que, se ficasse em São Paulo, não ia dar conta de criar o meu caminho do lado de uma pessoa tão poderosa para mim. Daí eu vim para o Rio. E, quando vim, o Antunes estava começando a história dele no SESC. Foi quando conheci o SESC na Tijuca, que era um espaço fora da zona sul, à margem. Fiquei animada, porque ficar em um canto que ninguém queria, fora de tudo, me parecia ideal. E encontrei o Ubiratan Correa, que era o presidente do SESC naquela época, que se tornou uma pessoa fundamental na minha trajetória e um amigo como poucos. Lá, fui convidada a dirigir um espetáculo infantil. Fazer o quê? Como fazer? Eu tinha acabado de ver Memórias do cárcere, [filme] do Nelson Pereira [dos Santos], que amei. Não esqueço a cena final do chapéu que voa da prisão e cai no mar. E eu me deparei com o texto de A terra dos meninos pelados [de Graciliano Ramos], uma versão infantil de Memórias do cárcere. Havia ali várias questões que me interessavam e que não eram propriamente do universo infantil. O universo só da criança não me interessava, me interessava o universo do homem. Era um espetáculo infantil que era também adulto. Na minha cabeça, se é bom para criança, é bom para adulto. Começou a minha briga, que era convencer o SESC e convencer os jornalistas que valia a pena divulgá-lo. Naquela época a gente não tinha divulgação, nós mesmos fazíamos esse trabalho. A gente ia no Jornal do Brasil e falava: “O Macksen [Luiz] tem que ir”. Na época o crítico era o Yan [Michalski] ainda, brigávamos na redação com o cara do tijolinho: “Tem que ter tijolinho de manhã e de tarde no infantil.” Era muito extraordinário ter essa relação direta com os jornalistas e críticos – hoje temos intermediários.
Flora Süssekind: Eu me lembro que o Yan fez a matéria de lançamento de A terra dos meninos pelados. Eu escrevi também sobre a peça, graças à matéria dele, anterior, e muito cuidadosa, acho que a crítica foi capa, ao menos lembro que teve uma página enorme.
Inês Cardoso: Era uma época em que havia matéria de estreia de teatro, e depois a crítica. O que já não tem mais.
BR: Quer dizer, a crítica de jornal tinha um papel fundamental.
BL: O Antunes tinha uma coisa que eu achava espetacular: nos colocar para fazer cenas. A gente ficava uma semana estudando a cena, oito horas por dia, ele parava e perguntava para cada um. “Você, o que achou da cena? E a interpretação? E o espaço? E o cenário?” Era amedrontador, uma sabatina oral… Ele geralmente nos massacrava, mas aprendíamos a decodificar. Você aprendia o espaço, você aprendia a interpretação, o figurino, a luz, cada objeto. Era uma coisa extraordinária.
Então, fiquei muito vinculada ao exercício da crítica permanente, a ter alguém com quem estabelecer um diálogo de fato. Porque, no fundo, é o que a gente mais gosta. Foi quando chamei a Ângela Leite Lopes para fazer essa dramaturgia comigo. Foi ela que me apresentou o [Tadeusz] Kantor. Não, o Antunes me apresentou o Kantor, mas ela me apresentou mais coisas dele. Antunes também me apresentou o Bob Wilson. A Ângela ficou durante um tempo comigo, acompanhando alguns trabalhos. O trabalho teórico sempre foi fundamental para mim, unir teoria e prática, ou melhor, a estética ser o resultado do conteúdo. E meu trabalho foi tachado no começo como teatro da imagem.
BR: Mas essa clarificação era algo bom ou não?
BL: Nem um nem outro. É o que falavam. Acho uma besteira, porque não tem teatro da imagem, a imagem faz parte do teatro. Como é que você faz teatro sem imagem? Acho bobo, mas já me interessava essa coisa de um homem inserido em um espaço, o homem não era mais o centro de tudo, então, se ele não é o centro de tudo, o espaço é um personagem extraordinário. Lembro que estava estudando Dostoiévski para montar Os possessos e fiz o Exercício número um, que era uma abstração um pouco em cima de Os possessos, os cientistas correndo atrás do conhecimento como o burro querendo a cenoura… Era um espetáculo de 45 minutos em que chovia papel picado. Nunca esqueço da gente picando papel a noite inteira, porque a minha vida é feita das pessoas dizendo para mim: “Não dá”, e eu fazendo. Então falei: “Precisamos que tenha papel picado caindo o tempo todo”, porque queria que as pessoas vissem o espaço. Só a luz não ia bastar, queria que vissem a pessoa dentro do espaço. “Então vamos picar o papel e ver quanto tempo dura de papel picado”. Gente, moleza, gastamos dez sacos de 100 litros, tínhamos picado cinquenta: deu e sobrou.
No primeiro dia de espetáculo, abre a cortina, mostra o espetáculo, fecha a cortina e a plateia não vai embora. Ninguém percebe que acabou. Fica aquele negócio constrangido, abro a cortina e falo: “Gente, acabou”. Ficava aquele constrangimento, e um jornal publicou, não lembro quem era o jornalista, uma crítica muito ruim, em um pequeno espaço, não chegava a ser uma crítica, era um comentário. O Yan foi para a briga e escreveu uma crítica bastante interessante e foi quando me chamaram para fazer a capa da revista Programa [do antigo Jornal do Brasil], era a capa da revista. Essa crítica, foi um divisor de águas. O SESC, através do Ubiratan, nos dando suporte, nos cedendo o espaço onde podíamos montar os espetáculos, fazer as oficinas, proporcionar espetáculos de novos diretores etc. Tínhamos o espaço, mas não tínhamos nenhum patrocínio nem apoio financeiro.
Não tinha nem papel higiênico. Não tínhamos patrocínio, mas éramos muito mais estruturados do que hoje. Éramos uma equipe, Suzana Macedo, Fernando Mello da Costa, o Alberto Renault, André Monteiro e Zé Luiz [Rinaldi]. Registrávamos em texto todos os espetáculos, todos os ensaios, as experiências, as tentativas… Tínhamos o pensamento teórico do que era cada cena e fazíamos o que chamávamos de escritura cênica. A escritura cênica, é o registro do espetáculo, com todos os elementos que o constituem. Quando o espetáculo vai para a cena, o texto não é mais o texto, ele é o texto com a luz, com a música. Então começa com o sinal, e o silêncio, aí entra a luz, e, quando a luz toca no rosto do ator, o ator sente a luz e por isso ele responde àquele estímulo e, porque ele reage à luz, a música entra. Os elementos estão sempre ligados um ao outro, pedindo uma ação ou reação.
Quando estou muito obcecada, ainda faço como uma partitura de música – de forma que se saiba que a luz entra com determinada intensidade, a música entra baixinho etc. –, tudo como se fosse um gráfico mesmo. Não para ter um registro, e sim para os atores entenderem que estão em diálogo com a luz, com o figurino, que não estão sós e que o diálogo não é apenas com a outra pessoa. O diálogo é com tudo que está em volta, com a roupa, com a cadeira que entrou. É assim até hoje. Esse é o princípio do meu trabalho. Lembro que, em Ospossessos, eu precisava que o “ar” fosse “concreto” como uma massa sólida. Eu pretendia que o ar criasse uma atmosfera densa, uma tradução do universo do Dostoiévski. Um universo denso, onde os personagens estão presos. Era assim: a atriz, Lilia Cabral, dava um passo, e o outro ator tinha que recuar um passo – estabelecendo uma ligação entre os três: espaço e atores –, se um ator anda ele de certa forma “empurra” o outro.
A partir disso dá para falar um pouco de como fui fazer curadoria e expografia. Me interessava pensar a exposição também como arquitetura, não só como curadoria, mas como espaço – um caminho natural. O raciocínio entre o fazer teatral e a exposição são muito parecidos, o diferente é o processo. Me chamam de artista multimídia, mas no fundo é a mesma coisa, o mesmo pensamento – o que muda é a matéria-prima. No cinema o mesmo, uma maravilha! No cinema o espaço é também a lente que você escolhe, o movimento da câmera.
BR: E você ficou muito tempo no espaço do SESC?
BL: Uns sete ou oito anos. Foi bastante tempo. Só que no final era tão exaustivo, é a maluquice de a gente trabalhar no Brasil. É muito duro. É um esforço. Eu não ganhava dinheiro nenhum. O SESC nos cedia o espaço, mas gerenciar o espaço, dar conta dele, sem um apoio financeiro, era nossa função. A gente tinha inclusive que pagar um percentual da bilheteria, então não havia verba. Eu com uma filha pequena, sozinha. O jeito que consegui para viver foi dando cursos. Eu ia para Campo Grande com a minha filha, ficava lá duas, três semanas; ia para Salvador, voltava; ia toda semana para Volta Redonda, pegava um ônibus. Fora fazer os espetáculos. Lembro que a minha mãe ficava enlouquecida, porque eu vendia tudo. Fui casada com o pai da minha primeira filha, que era rico em relação a mim, e ele tinha muitos móveis antigos, cômodas, penteadeiras. Quando vim para o Rio, a metade ficou comigo e eu vendi tudo. Mas os espetáculos tinham o cenário que queríamos, o figurino, o registro escrito do processo de criação, como a gente não tem mais. Mas tinha e tem o custo da exaustão. Fico até emocionada de falar, por exemplo, da morte do Zé Celso. Ele foi um herói. Você vê, o Zé tinha 80 e poucos anos. Estava vivo pra caramba, mas fisicamente… Ele segurou a coisa no braço, na unha, percebe? Queimado em praça pública. Então é muito simbólico, é muito verdadeiro. A morte do Zé é o Brasil puro.
BR: Mas você sentia que o público retribuía isso?
BL: O público ora adorava, ora detestava.
BR: E quando detestava?
BL: Quando detestava era difícil, porque o teatro é uma humilhação diária. Você tem que ter uma espinha dorsal, porque todos os dias você espera uma pessoa que não vai, você vê uma plateia que não gosta, e isso durante 3, 4 meses. Lembro de OsPossessos quando a Fernandona [Fernanda Montenegro] foi… Alguém tinha dito que achava que ela ia. O SESC tem várias sacadinhas, pelas quais você fica vendo as pessoas chegarem. Estávamos eu e o Alberto [Renault] esperando, deitados em uma sacadinha, e a Fernandona apareceu lá. Avisamos ao elenco, porque era um acontecimento. Vinham quatro, vinham cinco, vinham seis [espectadores] às vezes. Isso não só em um espetáculo, mas em muitos. A gente vai aprendendo. O teatro é parecidíssimo com os desafios da vida.
Lembro que, primeiro, eu ficava muito mal com as críticas. Recebi críticas muito graves na vida. Lembro de uma do Flavio Marinho, em A tragédia brasileira, que era uma coisa assim: “É uma pena que essa menina exista”. Nesse grau. Até agora. O [Artur] Xexéu escreveu sobre Formas breves: “Soube que a Bia vai voltar ao teatro, que infelicidade, lá vem bomba”. Com o tempo, você vai entendendo que o que fica é o trabalho. É claro que [a crítica negativa do] jornal leva menos gente. Mas o que conta é o trabalho. Se o trabalho é bacana, se ele tem o que dizer, ele segue seu próprio caminho. Mas tive críticas maravilhosas, não apenas no sentido de enaltecer o espetáculo, mas de gerar reflexão, da Flora Süssekind, Yan Michalski, Gerd Bornheim, Haroldo de Campos etc.
Foto: Entrevista na casa de Bia Lessa no Cosme Velho. Arquivo Pessoal
Lucas Bandeira: Você falou que, quando a Flora escreve sobre sua peça, ela acrescenta algo. É como se tivesse um que diminui e um que aumenta.
BL: Sim, sem dúvida. Só que na realidade essas que diminuem são umas pessoas que estão distantes do universo em que trafego, então não contam tanto. Quer dizer, contam para o negócio do teatro, mas não para o teatro em si.
FS: Agora eu acho que nem há mais isso de levar público. Nem sei o que de fato leva público ou não, possivelmente o Instagram. Ainda assim a primeira recepção é sempre curiosa. Eu me lembro da Barbara Heliodora escrevendo sobre você, sobre o Gerald Thomas. Não se tratava simplesmente de incompreensão, mas de construir, fixar, uma espécie de invisibilidade. Porque, assim, se mantém uma mediania que não incomoda. Em grande parte, a primeira recepção resguarda padrões e convenções. Por isso é infelizmente difícil imaginar a persistência, em grandes veículos, de uma crítica que desafie esses padrões.
BR: A gente reconhece o talento da Barbara, mas sabia que era uma pessoa reacionária.
BL: Lembro que, no Formas breves, encontrei com ela antes de ela entrar e falei: “Preparada para a luta?”. Eu acho até engraçado. Olha o grau de distância dela sobre o espetáculo. Ela escreveu: “Bia continua não fazendo teatro, agora ela faz artes plásticas”. Quer dizer, a concepção dela de teatro não possibilitava ver que o teatro hoje pode ser também artes plásticas. Ela tinha um valor, mas um valor fixado num modelo, modelo que hoje em dia já não é mais possível. Se há modelos hoje, são infinitos.
Quando eu fiz a minha primeira ópera, que foi a Suor Angélica, com Paulo Mendes da Rocha, um trabalho que adorei fazer, foi um sucesso do ponto de vista de levarmos à cena o que pretendíamos e também da compreensão do público de nossas intenções. Quando acabou, lembro que a gente foi para um restaurante e comemoramos muito a noite inesquecível. A gente sabe quando alguma coisa acontece, foi uma comoção! Naquele tempo a gente ficava acordado para esperar o jornal sair. E estava escrito assim na Folha de S. Paulo: “Bia Lessa copia Bob Wilson” [a crítica saiu com o título: “Bia Lessa faz cópia dos cenários de Bob Wilson”]. Quase morri. Nunca tinha visto o Bob Wilson na vida, a não ser algumas fotos que o Antunes tinha me dado. Daí, um cara lá da Bienal, amigo do [Emilio] Kalil, falou assim: “Vamos ver o que tem do Bob Wilson”. Bom, descobrimos que o Gerald encontrou com esse cara, [o jornalista Luís Antônio] Giron, e falou sobre a proximidade com um trabalho do Bob Wilson. E daí fomos pesquisar: não tinha nada, nem que lembrasse esse trabalho. O que tinha era o seguinte, no Bob Wilson tinha um cenário com umas escadas, em que umas pessoas subiam como se fosse uma biblioteca. No meu era um paredão que as freiras escalavam, sem escada, elas subiam pelas paredes, não tinha nada a ver. Acho que é errado, é mesquinho – ninguém poderia dizer que alguém copia sem ter uma prova de que copia. Só de ouvir algum comentário na saída de um espetáculo.
FS: A própria ideia de cópia é complexa… Não há como trabalhar sem referências. Trata-se de ver como elas atuam. Trata-se de ver os deslocamentos que foram operados. Se houver alguma referência bruta, aparentemente sem grandes desdobramentos, trata-se de pensar por que se dá essa apropriação tal qual, por que esse ready made está lá.
BL: Exatamente. Mas uma hora você entende que uma certa imprensa funciona assim. Ela levanta sua bola para cortar depois. A gente não pode esquecer que o jornal é feito para ganhar dinheiro. Então, a relação deles é com o Ibope ou instituto semelhante.
LB: E alguns críticos estavam ali para isso.
BL: Era para isso. Tanto que, depois, eu respondi a ele. E o [Fernando] Zarif me deu o título mais lindo do mundo: “Original é o pecado”. Tive muitas brigas com jornalistas, porque tinha a ingenuidade de achar que o mercado não estava em primeiro lugar. Ao mesmo tempo criei relações profundas com outros, que até hoje são contribuições fundamentais.
BR: E como você passou para a ópera?
BL: Não passei, foi algo que se deu naturalmente. Foi o Emilio Kalil, diretor do Theatro Municipal de São Paulo na época, que viu meu espetáculo Orlando e achou que ele era de certa forma uma ópera, que a linguagem cênica conversava com a ópera. Daí ele me chamou para montar Suor Angelica, de Puccini – minha primeira parceria com Paulo Mendes da Rocha. A mesma coisa aconteceu com a primeira exposição, a Faap me convidou para fazer uma exposição da alta-costura do Christian Lacroix. E me chamaram, em seguida, para fazer uma exposição sobre o Brasil. Foi quando conheci a Maria Lúcia Montes, uma antropóloga e historiadora da USP, uma pessoa extraordinária que trabalhava com Emanoel Araújo e o ajudou a criar e inventar a Pinacoteca [do Estado de São Paulo; Araújo criou a Associação dos Amigos da Pinacoteca]. A Maria Lúcia foi uma pessoa que me ensinou muita coisa. Ela falava: “Isso não conversa com isso. Essa imagem não conversa. O que que conversa com o quê? O que colocar do lado de quê?” E eu resolvi fazer uma exposição, a Brasileiro que nem eu. Que nem quem?. Era um pouco sobre o que é o brasileiro, mas, ao mesmo tempo, já era uma coisa multi. Primeiro a gente pensou: historicamente, quem é o brasileiro? Então vieram o documento, o registro, mas olhávamos e falávamos: “o brasileiro não está aqui”. Pegávamos foto documental, mas o brasileiro também não estava lá. Então havia as artes plásticas, a poesia, a música. Tínhamos muitas linguagens para explicar o que era o brasileiro. Uma música do Cartola, por exemplo, pode falar mais do brasileiro do que mil documentos, mas os documentos dizem algo que o Cartola não diz – então a exposição precisava contar com essas múltiplas camadas, para tentar chegar ao “brasileiro”. Foi minha primeira exposição, a primeira em que fiz curadoria e expografia.
Nessa época, conheci o [José] Mindlin, porque eu precisava de um quadro do Franz Post. Foi a coisa mais linda do mundo. Eu nunca tinha feito curadoria e nem exposição, então ninguém me cedia nada. Eu ligava para a dona do quadro, pedia para ela me emprestar a obra, até que um dia ela não aguentou mais e disse: “Minha filha, eu só te entrego o meu quadro se o José Mindlin vier aqui”. Tudo bem, não tinha, e acho que continuo não tendo, nenhuma timidez para alcançar o que era imprescindível para que o discurso da exposição ficasse inteligível. Peguei o telefone do Mindlin, liguei: “José Mindlin, aqui é Bia Lessa, você não me conhece, etc.”. Ele disse: “Me dá cinco minutos”. Deu cinco minutos e ele me ligou: “Estou aqui na porta dela”. Ele foi até a casa da colecionadora e me trouxe um Franz Post naquele mesmo dia. Lembro que uma vez liguei para ele e falei: “Puxa, não estou conseguindo ir aí tantas vezes te ver”, e ele me disse: “Você tem que me garantir só uma coisa: você está lendo? Me visitar não precisa”. Eu tinha o maior preconceito do mundo com colecionador, porque acho essa coisa de coleção besta. Mas fui na coleção do Mindlin e, na hora em que ele me abriu o Grande Sertão: Veredas, fiquei tonta, quase caí. Me deu um grau de emoção, fiquei branca, e entendi o Mindlin e a importância daquilo. É incrível, o jeito como ele doou, o jeito como ele cuidava, como ele divulgava [a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin foi doada para a Universidade de São Paulo (USP) e é aberta ao público]. Era o oposto da coleção, no sentido do acúmulo.
BR: E você chegou ao Grande Sertão: Veredas.
BL: Me chamaram para o Museu da Língua Portuguesa e o projeto do museu era maravilhoso, mas tinha só a ver com a estrutura da palavra. De onde ela vinha, o que vinha do tupi, do latim… E pensei: um museu sobre a língua portuguesa que não fala da linguagem? O poder do idioma é a linguagem. Claro que é importante você saber a origem das palavras, mas me brotou de imediato o valor da linguagem, que é o que me fascina na vida – as mil formas de você falar com o outro. Pensei no Grande Sertão: Veredas, em Guimarães Rosa, mas eu nunca tinha lido o livro. Eu conhecia da escola, mas nunca tinha lido. E, na hora em que eu peguei o livro, pensei: “Me fodi”. Porque não podia expor nada, se expusesse uma fotografia, estaria falando que o sertão era aquilo. Se eu fizesse o sertão da Bahia, se pusesse os óculos do Guimarães… Qualquer exposição enfraqueceria a obra.
Lembro que entrei no museu e ele estava em obra. Vi os entulhos e me veio aquela metáfora óbvia, que é a construção do museu, a construção da linguagem. Então decidi trabalhar com os tijolos, com os restos, os entulhos – os materiais da construção dariam suporte às palavras. Uma constrói prédio, a outra ideias.
BR: E isso foi decisivo para a própria instituição, para o museu ser o que ele quis ser.
BL: Acho que foi. Até foi bonito isso, porque a gente teve uma discussão muito grande e eu defendia que fosse museu e ninguém queria que fosse museu. Era o “Palácio da Palavra”. Eu falei: “Não, tem que ser museu, porque, sendo museu, vai nos obrigar a ter um outro tipo de relação”. Foi uma briga bonita.
BR: O que você está dizendo é que o museu não tem que ser o que o museu é?
BL: Acho que a função da gente é contribuir. É ampliar as regras ou mudar as regras. Quer dizer, na profissão de crítica não tem outra saída, você está no fogo cruzado. Se vai fazer o que já existe, não é essa a profissão. Então não adianta. Acho que a função é botar a cara a tapa, uma função de exposição absoluta. Mas foi muito difícil, eu sofri muito. Não sofri só para fazer, mas sofri para convencer as pessoas de fazer uma exposição só com palavras. Eles não queriam, receavam o uso exclusivo da palavra, diziam que palavra é a coisa mais chata de uma exposição – e de certa forma eles tinham razão, mas a palavra na exposição não era apenas texto, era também imagem. Acho que por isso tocava tanto as pessoas.
Exposição Grande Sertão: Veredas. Foto: Acervo Pessoal.
LB: Isso me lembra dos vídeos da preparação para a peça [Grande Sertão: Veredas]. Tem ali um trabalho duplo. Você primeiro faz a curadoria do próprio Guimarães, tanto na exposição quanto na peça, e a partir daquilo cria um espaço, primeiro no ensaio, depois na peça.
BL: E depois no filme.
LB: E depois no filme. De interação do ator com o texto em relação ao qual você fez a curadoria e depois do espectador em relação ao espaço. Eu queria que você falasse um pouquinho disso. Ser curadora de Guimarães Rosa e Mário de Andrade [na peça Macunaíma] e de vários outros.
BL: Nunca adaptei, porque sempre trabalhei com alguém com o domínio da palavra. No caso do Grande Sertão, também não adaptei. Eu curei, fui tirando trechos. Quando falam adaptação, não tem adaptação, tem o livro tal como é, esse pedaço, aquele pedaço, aquele outro pedaço. Então, não teve, como teve no Orlando, uma adaptação [de Sérgio Sant’Anna sobre o romance de Virginia Woolf].
LB: E é a curadoria como criação, não é? Você está criando sem intervir no texto diretamente.
BL: É, você intervém na relação dele com o outro. O que é que está do lado do quê? Você colocar um Kafka do lado de um Dostoiévski é diferente de você colocar um Kafka do lado de um Freud. Você faz algo a partir da relação que estabelece entre uma coisa e outra. É isso que acho lindo na curadoria: o que está do lado do quê? O que está conversando? Então você vai criando uma outra camada. Isso é muito lindo.
BR: Acho que na verdade é isso que dá um salto na curadoria. Por exemplo, o museu está em crise, então você arranja um tema, cata isso, cata aquilo, cata aquilo outro.
BL: A primeira vez que vi uma curadoria que me encantou profundamente, porque os museus eram assim, posso estar sendo ignorante, mas era assim. Duchamp. Van Gogh. Daí eu lembro que entrei um dia na Tate [em Londres] e era assim: amor, desejo. E daí tinha o Duchamp, conversando com o Monet, com o Picasso, com o Vermeer. Não era uma exposição cronológica ou uma retrospectiva de um dos artistas, era a obra de um em diálogo com a do outro – atravessando os tempos, sem cerimônia.
FS: Talvez você pudesse falar da disposição das peças naquela exposição da coleção do Itaú. De alguns quadros colocados no chão, tendo um suporte de vidro em cima. Como a “Painting to Be Stepped On”, da Yoko Ono. Lembro como a reação a essa exposição foi violenta. A reação a outro lugar para olhar, a outro modo de pensar a disposição, e o percurso pelas obras. E houve também a reação à mostra sobre o Barroco. A recepção a essas exposições foi marcada por um desconforto muito grande de curadores mais tradicionais e também de alguns artistas.
BL: O Emanoel Araújo tinha acabado de fazer uma exposição no Grand Palais, em Paris, sobre o barroco brasileiro, com muito sucesso. Uma exposição toda barroca, uma obra do lado da outra, linda, como ele sempre fez. E o meu barroco era uma exposição dos 450 anos do Brasil. Então na minha cabeça eu tinha que fazer uma exposição do Brasil, do povo brasileiro e do barroco. Por isso, criei aquelas flores todas e separei as obras. Então, eu punha um Aleijadinho e você andava dez, quinze metros para ver o outro. Havia ali dois protagonistas em diálogo: as obras e a história do Brasil a partir da colonização, que imprimiu uma religiosidade católica, cheia de pecados e culpa, onde o homem tem que ter temor a Deus, e o brasileiro transformou essa religiosidade num Deus que obedece aos desejos do homem: “Se Santo Antônio não me arruma um marido, ele fica de cabeça para baixo”. O barroco brasileiro traz essas questões, as obras barrocas que vieram da Europa e foram se transformando a partir da realidade encontrada aqui. Foi uma exposição que gerou uma série de questões, propunha uma outra forma de expor que não fosse mais o cubo branco, criando elementos que dialogavam com as obras.
Em Brasileiro que nem eu. Que nem quem?, foi a maior discussão com a Maria Lúcia Montes porque eu disse que ia colocar [as obras religiosas] no chão. Era uma briga imensa, porque como colocar o “sagrado” no chão? A Maria Lúcia falava que não podia botar no chão arte sacra, o ouro no chão. Eu retruquei: “As pessoas vão pisar em cima da igreja” e o que aconteceu foi o imprevisível: o chão ficou mais sagrado do que nunca, as pessoas pisavam com imenso cuidado, como se pisassem em ovos. E nessa sala, no teto, tinha uma foto da Nossa Senhora da Boa Morte, o que era bonito porque a morta refletia nesse vidro em cima do qual as pessoas passavam. Sagrado e profano juntos. Era uma exposição em que chão, teto e parede existiam.
Para fazer a cidade de São Paulo, para explicitar a selvageria da especulação imobiliária, optamos por colocar palitos de fósforos queimados pela parede inteira – era uma parede circular –, eram milhões de palitos de fósforo, colocados um a um. No centro da sala havia uma espécie de poço com óleo negro – petróleo –, no centro desse poço, exposto o osso do Anchieta, porque conseguimos o osso do Anchieta. Até hoje não sabemos como a Diocese nos emprestou esse osso. Então na sala tínhamos a floresta destruída através dos milhares de palitos de fósforo queimados, o poder e a sedução do dinheiro através da beleza do poço de petróleo, que produzia uma espécie de espelho onde tudo se refletia, e um pedaço do corpo do colonizador.
E tinha uma coisa que eu gostava. A exposição chamava Brasileiro que nem eu. Que nem quem?. Quando as pessoas entravam, eram fotografadas, e íamos colocando a foto de cada visitante [na parede] e fomos tendo que criar mais paredes, a exposição ia se ampliando diariamente. E tinha expostas as obras de artes plásticas, os documentos, a música, a poesia, a fotografia etc. Camadas!
Exposição Brasileiro Que Nem Eu. Que Nem Quem? Foto: Acervo Pessoal.
BR: Voltando ao Grande Sertão, você primeiro chegou à exposição, e da exposição foi para a peça.
BL: Teve a exposição e eu não imaginava a possibilidade do teatro.
BR: E como é essa mudança de suporte?
BL: Ah, é de novo aquilo, conteúdo e forma. Se o espaço diz uma coisa, o que está dentro dele, o objeto ou a pessoa, também tem um significado, o diálogo que estabelece entre eles é o que me interessa. Então não me interessava fazer um filme da peça, um registro. Mas havia o desejo de levar para o cinema as questões que o teatro me colocava, porque na peça o cinema me ajudou demais. Por exemplo, o corte seco que tem no cinema foi uma linguagem que levei para o espetáculo. No cinema há uma cena no deserto, corta para dentro do apartamento. No Grande Sertão não tinha entrada e saída de ator. O tempo inteiro estavam todos lá, num espaço que não permitia saída. Os atores ora eram homens, em seguida bichos, plantas – corte seco. Aquilo veio de um pensamento de cinema. Também o som, do fone de ouvido, de ter os ruídos como linguagem, como quase uma cenografia sensorial, veio da ideia do foley [sonoplastia] do cinema. O cinema foi uma referência para o espetáculo.
Muito do que penso, desde o trabalho do ator e tudo na minha vida, é quase o oposto do Antunes, me apoio nele para fazer outra coisa. Mas no Antunes era assim, a gente ia montar o Nelson Rodrigues, a gente estudava todo o Nelson Rodrigues, a fala do Nelson Rodrigues, o que ele quis dizer naquele momento, e eu, com o tempo, fiquei achando isso quase ingênuo, porque a sensação que tenho é que você vai emburrecendo, primeiro você tem a pretensão de achar que sabe exatamente o que aquele autor quer dizer, e é impossível descobrir isso, porque o bom, quando você lê, é pensar sobre aquilo, não exatamente o que o autor quis exprimir, mas o que te interessa no que você leu.
BR: E esse foi o caminho por muito tempo da crítica. Querer entrar na cabeça do autor e explicar o que era a cabeça dele. Isso em literatura foi um desastre.
BL: Mas isso, na realidade, não é crítica. Isso é uma aula, uma tentativa de domínio total dos códigos e conteúdos – isso me parece pretensioso e ao mesmo tempo ingênuo. O ator virava o empregado do texto. Você era um empregado e acho que, em qualquer ato de criação, você não pode ser empregado, você tem que ter brio, tem que ter caráter, entendeu? Não posso ter medo do Guimarães. Eu o acho um gênio, mas, se vou fazer a obra dele, tenho que olhar para ele e me colocar.
As pessoas falavam muito: volta pro teatro. Mas, para voltar pro teatro, eu queria criar uma grande dificuldade. Essa era a máxima do Antunes, que também levo para o resto da minha vida. O bom da vida é você criar dificuldade, não criar facilidade. Ele falava que, quando você cria uma dificuldade, é só uma questão de trabalhar. Você pode trabalhar dez anos, mas, quando você resolver, deu um passo para a frente. O espetáculo Grande Sertão trazia muitas questões, entre elas a impossibilidade de criar uma cenografia que localizasse o romance em uma região – tínhamos que criar um espaço concreto e abstrato ao mesmo tempo, porque o sertão do Guimarães não é um espaço geográfico, mas um espaço metafísico: “O sertão está dentro da gente”. Um dia, uma antropóloga, Marina Vanzoline, me deu uma definição linda. Ela viu o espetáculo e falou: “O sertão não está aí, mas você evoca o sertão.” Que palavra boa.
BR: E mais ainda no filme.
BL: É. Mais ainda no filme. Evoca, é bonito. Não afirma. Evoca, chama.
BR: Qual é o formato que te dá mais prazer, ou tanto faz?
BL: Tanto faz. Paulo Mendes dizia uma coisa. Ele falava que férias para ele é trabalhar em outra coisa. Então é assim, descanso do teatro fazendo cinema, do cinema fazendo exposição – o trabalho me cansa, mas me dá um prazer parecido com férias. Teatro é muito difícil, pela questão do grupo. Eu, por exemplo, não gosto de companhia. Implico com companhia, porque acho que você acaba criando um ambiente homogêneo. Eu gosto do diverso, de atores diferentes um do outro: um cheio de experiência, ao lado do outro que nunca pisou no palco, de pessoas oriundas de diferentes culturas, com origens e conhecimentos variados. Eu gosto de estar apaixonada pelas pessoas que estou dirigindo. Mas hoje em dia a questão do mercado me apavora, a relação forte com o dinheiro, a fama, a carreira, que está cada vez menos vinculada ao significado do ofício. O ofício pelo qual optamos é um ofício de risco, de precipícios e não de certezas.
BR: Mas você falou uma coisa fundamental, que você vai tendo ideias, mas ninguém vai. É isso que me impressionou muito no filme. Na situação em que a gente está, economia de mercado e tudo o mais, você peita isso e diz “ninguém vai”. Mas vai.
BL: Às vezes temos público, não é sempre. No Cartas ao mundo não foram. Mas não ter público também faz parte. O Grande Sertão foi um sucesso. Foi mais do que um sucesso. Ele foi, de fato, uma coisa que eu nunca tinha vivido. Já vivi sucessos. A terra dos meninos pelados, meu primeiro espetáculo, foi um sucesso imenso. Orlando foi um sucesso imenso. As óperas foram sucessos imensos. Não foi só fracasso, mas o Grande Sertão é diferente. É uma coisa diferente, mesmo para a gente. O sucesso tem – como vou dizer? – uma alegria.
IC: É como a Bia falou. Quando ninguém vai, a sensação é mesmo de uma humilhação diária. O ator está ali toda noite para fazer o espetáculo. As pessoas estão sentadas sem gostar. Ou as pessoas não estão nem lá sentadas. Ou as pessoas estão sentadas e vão embora. É uma humilhação física. Você está lá. Então o sucesso, no sentido da presença do público, de uma relação que se estabelece, é uma alegria sim. É muito forte, é uma explosão.
BL: Isso. Aplausos, pessoas vão ao camarim, todo mundo fala alto. E no Grande Sertão ninguém ia embora do teatro. As pessoas ficavam, choravam, ficavam paradas. Na fila no CCBB tinha gente desde as quatro horas da manhã. E aí tem umas coisas bonitas. A quantidade de gente que escrevia para mim. No dia seguinte tinha, sei lá, oitenta depoimentos que vão do Caetano a um professor do CEAT [Centro Educacional Anísio Teixeira, fundado por Therezinha Gonzaga Ferreira, mãe de Bia Lessa]. Outro dia a [atriz] Luisa Arraes me falou de um projeto novo, ótimo, mas ela me disse: “Bia, sem ilusão, não é?! O que a gente viveu no Grande Sertão a gente sabe que nunca mais”.
LB: Bia, tem o dispositivo no palco [a jaula da peça Grande Sertão: Veredas], não? É do Paulo Mendes [da Rocha]. Os atores não saem, tem aqueles bonecos. Como é que isso foi pensado?
BL: Sabe que esses dias eu estava pensando nisso e não sei como é que esses bonecos chegaram. Lembro de pedir para o Fernando Mello [da Costa] os bonecos. Fernando ainda estava vivo. Daí o Fernando fez a coisa mais linda: ele foi esculpindo. Mas não lembro exatamente, só lembro que queria que eles [os bonecos] virassem mochilas, para que as pessoas as carregassem. O homem carregando o homem nas costas, como peso e como bagagem. E também como rio, como muro, como vento até. O cenário é da Camila Toledo e meu, o Paulo foi um colaborador.
FS: Nos bonecos, você optou por um material semelhante ao que cobre as pessoas em situação de rua.
BL: Exatamente. Hoje, olhando para eles, penso em algumas obras do [Joseph] Beuys [artista alemão, autor de Terno de feltro, de 1970]. O piano coberto…
FS: Sim. O feltro. A gordura e o feltro, cruciais para o Beuys. Lembro que havia uma oficina de fabricação dos bonecos no local do ensaio do Grande Sertão. Eles habitaram o espaço de construção da peça o tempo todo.
BL: Eu não tinha onde ensaiar e resolvi ligar para o Roberto Irineu Marinho, um homem especial, que gosta do meu trabalho. Pensei: “Será que ele não tem um lugar para eu ensaiar?”. Eu queria um lugar bonitinho, que tivesse um jardim agradável. Porque, para mim, o espaço onde se cria um espetáculo ficará impresso na criação – não é apenas uma questão de conforto. No espetáculo As três irmãs, o cenário é quase a casa onde ensaiávamos – as entradas e saídas, as portas… Liguei e perguntei: “Será que você não consegue?” Ele me disse: “Olha, tem o antigo prédio da Infoglobo”. Habitamos aquele lugar, um edifício desocupado, com inúmeras salas. Tivemos a oportunidade de ensaiar, montar uma oficina de cenário, de figurinos, de adereços, num espaço ótimo e ao mesmo tempo em ruínas – o espetáculo tem nele essas ruínas e a generosidade encontradas ali. O espaço, de novo, fez o espetáculo.
Primeiro, o [arquiteto e urbanista] Paulo Mendes [da Rocha, colaborador da peça e morto em 2021, com quem ela trabalhou em seis espetáculos] e eu tivemos uma briga, porque ele falava assim: “Você sempre querendo muita coisa, faz uma única cena, que todo o Grande Sertão está contido em uma única cena”. É fato, no caso do Guimarães, em uma única cena, de certa forma, está toda a obra. Mas o desejo da dificuldade de fazer aquilo tudo era o meu negócio. Eu me encanto não apenas com a linguagem, mas com a história, gosto de como ela é, gosto de não ser cronológica, gosto de misturar as histórias, de valorizar o que está atrás da ação, gosto dos fragmentos um ao lado do outro. A primeira ideia cenográfica que apresentamos a ele era a gaiola, e ele, deslumbrante e radical, falou: “Vamos fazer só uma coisinha, que as pessoas fiquem apoiadas assim, fica todo mundo de pé, nada de fazer o povo sentar, o povo entra e volta, briga pra ver – criamos um corredor apertado em volta da cena”. E, como era dentro do CCBB, que era muito pequenininho, ainda não tinha ideia de fazer ali no meio [o espetáculo foi, por fim, montado na rotunda do Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro], fazemos o espaço cênico o maior possível e o espaço para a plateia mínimo, deixa os caras se espremendo e brigando para ver. Olha que beleza. Porque daí você ficava com alguns jagunços dentro e fora.
BR: Que é bem do teatro contemporâneo moderno, tirar a plateia daquela posição passiva e incomodar.
BL: O Paulo tem cada história. A primeira briga feia com o Paulo foi na primeira ópera que eu fiz, olha que briga linda. Era um espaço cênico com uma escadaria que ia do proscênio ao fundo do palco. A distância do chão para a vara de luz era imensa. Tinha que afinar a luz. Não havia escada possível que chegasse até os refletores. Como é que íamos afinar a luz? O Paulo fala: “Simples, desce a vara, a gente calcula o ângulo da luz, e pronto”. Eu falei: “Paulo, não dá. Isso decidimos vendo, experimentando, temos que ver”. A gente afinava a luz assim: sobe a escada, bota essa gelatina, tira, coloca outra, abre o foco etc. Eu lembro que ele olhava e dizia: “Você não acredita na matemática, você não acredita no cálculo”. Mas foi uma briga tão feia que eu falei: “Paulo, saia daqui”. Porque eram cinco dias de montagem, sempre aquela coisa de montagem desesperada. Foi a primeira briga que eu tive com ele, feroz, ele foi embora, furioso. Chamamos uns caras de rapel, pendurados de capacete, e afinamos a luz. Por essa razão acho que fomos tão cúmplices durante a vida, não tínhamos medo dos embates.
BR: Na montagem do Grande Sertão no Rio, o que mais me fascinou, por incrível que pareça, foi o debate. Não saíam duas pessoas com uma opinião igual. Vi duas vezes o espetáculo e foram duas recepções muito diferentes. Uma foi logo no início, tinha muito estranhamento, e a segunda tinha outra coisa interessante, porque as pessoas iam ver uma coisa que já estava elogiada, já era considerada de qualidade. Mas será que não é isso que cabe à crítica, que a crítica devia ser?
FS: Não sei se é assim. A crítica é muitas coisas, as possibilidades de intervenção são muitas. Também na relação com obras contemporâneas. Não vejo a crítica como intervenção posterior. A crítica problematiza campos expressivos. Inclusive o próprio campo de atuação da crítica. No caso da Bia, do Grande Sertão, e também do Macunaíma [baseado na obra de Mário de Andrade], que ela montou depois, havia uma interlocução crítica intensa com muitas pessoas, de áreas bastante diferentes, ao longo de todo o processo – e depois da estreia, ao longo da temporada. Como está havendo com vocês agora. Foi uma construção em debate. Como em tantos outros trabalhos da Bia, há essa atenção para perspectivas diversas. Claro que vai se operar uma síntese ligada ao projeto artístico, que é dela.
BL: O Antunes tinha uma máxima. “Ouça tudo, depois joga fora!” Isso é uma maravilha, é muito bonito. Mas a gente tem cada vez menos um interlocutor real no próprio trabalho, no elenco. Então isso também é um empobrecimento.
FS:Não só no âmbito do elenco, o espaço de discussão pública está muito restrito.
BL: É algo que vocês perguntaram sobre a crítica. Acho que é quase como se a crítica tivesse uma independência do objeto que está sendo criticado, como se fosse, de fato, um pensamento autônomo daquilo que está sendo analisado. Então é ali que acho que a coisa acontece. E é algo necessário, a conversa. Tem que ter, porque, se não tem, morrem os dois. Morre aqui e morre lá. A crítica é uma obra em si, que dialoga com uma outra obra, que também dialoga com infinitas outras coisas e obras.
FS: É a questão da autonomia intelectual. De como ela não tem encontrado lugares mais amplos, do ponto de vista do espaço público, para o seu exercício. Houve de fato esse estreitamento da discussão comum, pública. Pois, quando se discute, se conversa, se você de fato tem autonomia, você vai produzir diferença, vai ser uma diferença em relação a quem produziu aquele objeto, aquela obra, aquele campo artístico, e se produzirá dissenso com relação ao público potencial também. Você não bajula esse público. Não se tem mais esse lugar de dissenso, assim como de análise detida. O que se tem é o elogio fácil, que caiba no Instagram, na divulgação de tal ou qual trabalho. Ou que faculte a simples adequação dessa ou daquela obra a algum trending topic do momento.
BL: E não tem nada a ver com dizer que é bom ou ruim. Tanto que eu lembro que, quando apareceu a coisa da crítica dos bonequinhos do Globo, aplaudindo sentado, em pé, eu quase morri. Eu lembro que eu fui lá, fui brigar. Eu sou tão ingênua que fui ao jornal tentar reverter, porque aquilo induzia o espectador a ir ou não assistir o filme, ver a peça.
BR: No lançamento do filme [O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho, baseado em Grande Sertão: Veredas], você comentou a questão de ser hors concours [no Festival do Rio de 2023]. Ou seja, não concorrer. Por que isso?
BL: Eu fiquei muito mal. Flora que me convenceu, com toda a razão, de a gente passar o filme, porque realmente é uma oportunidade, a gente não pode do jeito que estão as coisas se dar ao luxo de falar não. Mas eu acho uma loucura, porque já deixa o filme como uma exceção, ele está fora. Eu acho que é um filme para estar dentro.
–
FS: Mas que não cabe em gavetas pré-prontas. Como o filme do Bressane, lançado na mesma época.
BR: Mas como é que está agora a distribuição?
BL: A Adriana Rattes [cofundadora do Grupo Estação] fará a distribuição. Então a gente está nessa batalha de conseguir dinheiro para fazer o lançamento.
Sofro muito com isso, não por não ter dinheiro, mas por não poder fazer as coisas que eu gostaria de fazer. Por causa de dinheiro. E, ao mesmo tempo, acho que essa precariedade me dá uma liberdade muito extraordinária. Acho que eu sou resultado dessa precariedade que nos leva a inventar desde as formas de produção até os caminhos estéticos e ao mesmo tempo gera um cansaço infinito, que de alguma forma vai nos matando.
Você faz opções, as opções têm consequências.
* Beatriz Resende é professora titular da Faculdade de Letras da UFRJ e editora da Revista Z Cultural; Flora Süssekind trabalha como professora do curso de Estética e Teoria do Teatro da Unirio; Inês Cardoso é professora do curso de Estética e Teoria do Teatro da Unirio; Lucas Bandeira é professor adjunto do Instituto de Letras da Uerj e editor da Revista Z Cultural.
A década de 1980 foi um momento de euforia para os estudos feministas. Parecia que nossa perspectiva do mundo e das relações sociais tinham ganhado uma lente nova, novíssima, e o que não percebíamos antes voltasse com a nitidez de uma luz frontal. A percepção de um sistema de gênero que determinava as relações entre homens e mulheres era um admirável mundo novo. Tudo mudava em nossos discursos, pesquisas, afetos. Um certo binarismo ainda guiava os estudos que começavam a ganhar legitimidade acadêmica. A pergunta sobre como ler um texto com perspectiva crítica feminista revelava o estágio inicial desses estudos. Dessa primeira leva, o artigo “Repensando a história literária” de Ria Lemaire, publicado em Tendências e impasses, volume que organizei, surgiu como um salva-vidas indispensável. É interessante revisitá-lo hoje, quando as teorias queer sinalizam o final da saga da identidade binária e das relações de gênero fixas. É mais interessante ainda perceber sua utilidade metodológica mesmo em tempos de alterações paradigmáticas radicais.
Heloisa Teixeira
curadora da seção Vale a Pena Ler de Novo
A História Literária Tradicional
A história literária, da maneira como vem sendo escrita e ensinada até hoje na sociedade ocidental moderna, constitui um fenômeno estranho e anacrônico. Um fenômeno que pode ser comparado com aquele da genealogia nas sociedades patriarcais do passado: o primeiro, a sucessão cronológica de guerreiros heróicos; o outro, a sucessão de escritores brilhantes. Em ambos os casos, as mulheres, mesmo que tenham lutado com heroísmo ou escrito brilhantemente, foram eliminadas ou apresentadas como casos excepcionais, mostrando que, em assuntos de homem, não há espaço para mulheres “normais”. Tanto a genealogia quanto a história literária revelam a tendência masculina de justificar seu poder atual por meio do recuo às origens e do mapeamento de uma evolução, factual ou hipotética, até o presente. Desta forma, o poder político e cultural masculino passa a ser entendido como apenas um momento de uma tradição venerável e secular. Ou seja, é pela ideia de ancestralidade que são legitimadas situações atuais. Neste sentido, nos discursos das ciências humanas, as representações masculinas sobre a mulher, como o sexo “natural, essencial e universalmente” mais fraco, podem ser consideradas como uma das formas mais radicais deste tipo de legitimação de poder: não se trata apenas de representações ancestrais, uma vez que elas nunca foram diferentes.
Podemos observar ainda outra preocupação comum aos dois tipos de historiografia. Ambas apresentam suas genealogias como uma tradição única e ininterrupta e desqualificam, isolam ou excluem, como marginais ou inimigos, indivíduos que, por uma razão ou por outra (ideias, raça, sexo, nacionalidade) não se adequam ao sistema construído. A genealogia e a história literária criam a ilusão de uma só história, de uma única tradição. Este mito é reforçado continuamente em cada descrição genealógica e cada versão da história literária.
Os “heróis” destes dois tipos de historiografia também têm muito em comum:
* sua sucessão é definida em termos patrilineares; são pais e filhos no quadro de relações de um sistema social baseado na propriedade privada. Nos dois casos, os filhos são apresentados como herdeiros de um patrimônio político ou cultural.
* são vistos como seres humanos superiores, de maior valor e importância, que, distantes e acima da banalidade da vida cotidiana, criam seus sistemas políticos ou obras de arte sublimes.
Existe um caráter comum interessante por trás destas convicções. Elas implicam negação, ou, no mínimo, depreciação das circunstâncias econômicas, sociais e políticas, dos jogos de poder e dos conflitos de interesse e respectivas ideologias, que possibilitaram a esses heróis – nas sociedades em que viveram – a oportunidade de expressão, propagação e realização de suas ideias. De um lado, os conceitos básicos da história literária, como o gênio, o autor, o herói, o personagem e o tema, e por outro, tradição, unidade, originalidade e criatividade (todos geralmente definidos em sua relação com o cânone das obras escritas) estão intimamente relacionados com a negação básica do impacto das estruturas sociais tanto em obras individuais como na tradição literária. Essa negação dissimula as complexas relações entre uma sociedade e sua literatura, impedindo assim a percepção do papel das ideologias nas obras literárias e na sociedade, bem como a inter-relação de suas funções. Estes conceitos básicos são também os pressupostos (geralmente) ocultos da crítica tradicional, que, na maior parte das vezes, reforça as perspectivas ideológicas das obras literárias em vez de promover instrumentos que possam detectá-las e criticá-las.
Examinadas do ponto de vista das mulheres, a crítica e a teoria literárias explicitam – como faz a genealogia em outro nível – uma das principais obsessões masculinas nas sociedades patriarcais: a incerteza acerca da paternidade biológica. Enquanto, na genealogia, esta insegurança é compensada pela descrição da linhagem em termos patrilineares, na história literária este sentimento desconfortável é reprimido pela ênfase excessiva na paternidade cultural, mecanismo que implica a exclusão ou negação de qualquer elemento que possa perturbar o monopólio masculino neste sentido.
Esta perspectiva nos permite distinguir duas preocupações básicas na crítica literária contemporânea. Em On deconstruction, Jonathan Culler as apresenta da seguinte maneira:
1. “Controlar o contato com os textos para prevenir a proliferação de sentidos ilegítimos” (Culler, 1983, p. 61). A interpretação, uma das atividades-chave da crítica literária, é uma prática diretamente ligada a esta ordem de preocupação.
2. “Desenvolver princípios que determinem quais são os sentidos verdadeiramente concebidos pelo autor” (Culler, 1983, p. 61). Neste caso estão as eternas discussões sobre os autores e suas vidas, sobre as origens, gêneros e períodos literários que vêm sendo fartamente utilizados, em favor da paternidade cultural, no reforço dos sistemas de classificação dos discursos das ciências humanas e de conceitos preestabelecidos, em lugar de servirem como base material para a criação destes sistemas de classificação. A política da edição de textos, concentrando-se no estabelecimento do texto único, verdadeiro e autêntico, é uma parte essencial dessa tendência de definição da paternidade cultural. Por este motivo ainda, muitos textos medíocres foram incluídos no cânone e usados na consolidação do mito da continuidade e unidade de uma tradição masculina que dataria dos tempos de Homero. Por esta mesma razão, as literaturas não-ocidentais, assim como a contribuição feminina, foram, até muito recentemente, excluídas do cânone e das discussões acadêmicas. A história literária tem sido – com pequenas exceções – fundamentalmente etnocêntrica e viricêntrica.
Da mesma forma, foram subestimadas as numerosas tradições orais das línguas vernaculares, outra parte importante da história cultural do mundo europeu. A reabilitação destas tradições só vem ocorrer durante o período romântico, depois de séculos de discriminação pelas elites, empenhadas em destruí-las ou em adequá-las as suas próprias visões de mundo (Burke, 1983; Lemaire, 1986).
Depois do romantismo, as tradições orais voltaram a ser marginalizadas, tornando-se, agora, alvo de uma reação ainda mais intolerante, de descaso ou negação, como pode-se observar na redefinição teórica do discurso das humanidades, no final do século XIX, situação que mantém-se quase inalterada desde então.
Uma característica desta redefinição foi a separação entre o estudo da literatura escrita, que na Europa ocidental concentrou-se nas universidades, e o estudo das tradições populares e orais, relegado aos folcloristas, geralmente não admitidos como professores nas universidades. Assim, as abordagens e as disciplinas tradicionais das humanidades ainda refletem a luta entre as tradições populares europeias nativas, com suas visões de mundo e sabedoria próprias, e a tradição escrita, de origem estrangeira, imposta pela elite (Ong, 1971; Lemaire, 1986). As técnicas da escrita desempenharam um papel-chave nesta luta (Ong, 1967-1982). Mais tarde, este papel é assumido pela imprensa e pelos meios de comunicação de massa.
Estas tecnologias, usadas pelas elites na propagação de suas visões de mundo e culturas, pelo próprio fato de serem escritas, eram apresentadas como civilizadas, superiores, e mais desenvolvidas. Os vieses ideológicos desta imposição tornaram-se os pressupostos atuais dos discursos das ciências humanas, que, por esta razão, podem ser caracterizadas como “scriptocêntricas” (Lemaire, 1984). Enquanto a história da literatura continuar sendo apresentada como uma história única e contínua, como um cânone de obras escritas cuja origem está numa cultura, ancestral e distante, transmitida por meio de uma elite intelectual, a existência das tradições orais e das culturas populares nativas vai permanecer excluída da historiografia cultural. No mesmo sentido, a perspectiva scriptocêntrica vai continuar dispensando os pesquisadores da tarefa de estudar o impacto inegável das culturas orais (onde as elites masculinas muito se inspiraram para criar sua tradição escrita) no próprio cânone literário.
Oralidade e escrita
Algumas descobertas fundamentais da historiografia literária feminista emergiram do debate sobre oralidade e escrita desenvolvido por pesquisadores como E. Havelock (1963), que estudou a transição da oralidade para a escrita na cultura grega, J. Goody (1968 e 1977), que trabalhou as relações entre oralidade e escrita nas sociedades africanas, e P. Zumthor (1983 e 1984), que estudou a mesma questão na cultura medieval europeia. Nos trabalhos de W. Ong (1967-1982), foi desenvolvida a síntese das pesquisas realizadas sobre esta questão em vários campos, culturas e períodos, e elaborada uma teoria geral da oralidade e da escrita.
A colocação central destes trabalhos é a crítica do scriptocentrismo na cultura ocidental, ou seja, a existência de um conceito da escrita unitário e monolítico e seu uso nas discussões acadêmicas. A própria escrita tem uma longa história. A épica de Homero ou a literatura medieval, por exemplo, não foram “escritas” no sentido moderno da palavra. A partir desta perspectiva, estes pesquisadores invertem o jogo: o ponto de partida para as discussões sobre a escrita e sua história deve ser a oralidade. A cultura escrita sempre parte das culturas orais preexistentes, como ocorreu no caso da Europa, onde se desenvolveu uma nova tecnologia, ou, mais tarde, no caso do desenvolvimento da imprensa e dos meios de comunicação de massa.
A história literária europeia deveria ser estudada como uma transição lenta, mas progressiva, da oralidade para as formas primitivas de escrita, para as formas mais elaboradas de escrita, e, finalmente, para a imprensa e meios de comunicação de massa. Em cada um destes momentos, as formas e funções destas tecnologias foram diferentes, assim como suas relações com as tradições orais mais próximas. Com base nestas observações teóricas, podemos afirmar que, nas comunidades europeias tradicionais da Idade Média, a escrita foi introduzida numa associação íntima com um tipo de cultura vinda de fora e em língua estrangeira: o latim.
Esta cultura não se enraizava na realidade cotidiana, mas numa tradição escrita, morta e predominantemente masculina, e foi imposta por uma elite – em coalizão com o cristianismo – como cultura superior e mais civilizada. Nas sociedades europeias, isto determinou uma defasagem entre a tradição e o saber oral local – que pertencia a todos os membros da comunidade, mulheres e homens – e uma elite masculina que se utilizou do latim e da tecnologia da escrita para impor suas visões de mundo e criar centros elitistas de cultura escrita. Nas sociedades medievais, as mulheres foram, progressivamente, sendo excluídas destes centros de cultura escrita. No discurso das ciências humanas, a introdução da escrita e a invenção da imprensa sempre foram representadas como um progresso para todos os seres humanos, apesar de suas consequências terem sido marcadamente diferentes para mulheres e homens. Na realidade, estas tecnologias foram usadas, por uma pequena elite, como instrumentos de poder para ampliar a distância entre o povo e a elite (Pattison, 1982), entre mulheres e homens (Ong, 1982).
Nas comunidades tradicionais europeias, havia duas culturas diferenciadas, que tinham por base a divisão econômica de trabalho entre os sexos: a cultura dos homens e a cultura das mulheres. Os universos culturais dos homens e das mulheres desenvolveram-se num patamar de igualdade, mas em duas linhas diversas, cada sexo possuindo seu próprio tipo de saber tradicional, suas próprias formas de lidar com o amor, a vida, a morte, a natureza e a religião, suas próprias canções e gêneros literários, seus próprios instrumentos musicais e até suas próprias formas de dançar e cantar. As tradições das mulheres eram geralmente mais ricas e diversificadas que as dos homens. Apesar das exceções, podemos afirmar que, no conjunto, as tradições masculinas desenvolveram-se na linha da narrativa épica. Suas danças eram frequentemente caracterizadas por um tipo de performance “heroica” e espetacular, enquanto as mulheres criavam seus gêneros na linha da narrativa lírica, adaptando as danças aos sentimentos que desejavam expressar.
Ambos os sexos revelavam estratégias variadas de exclusão do outro sexo de seus universos culturais. As mulheres, por exemplo, paravam de cantar quando surgia um homem ou, no século XIX, recusavam-se a cantar suas canções para folcloristas masculinos que tentavam coletá-las. Os homens reuniam-se em grupos fechados para contar ou cantar seus gabs ou swanks, como ainda fazem hoje em dia, ainda que o tipo de performance e o batismo dos gêneros tenha mudado muito desde então. Entretanto, geralmente, esta exclusão não era completa: muitas vezes, os dois sexos imitavam ou apropriavam-se das canções um do outro. Nestes casos, a canção ou a estória não era simplesmente apropriada, mas também adaptada a seus gostos e estilos.
Estes fatos provam que mudanças estranhas e radicais devem ter ocorrido nas sociedades ocidentais nas quais os gêneros femininos não existem mais (excetuando-se, talvez, as cantigas de ninar) e nas quais, oficialmente, temos apenas uma cultura, monopolizada pelos homens e apresentada como a única e exclusiva tradição do mundo ocidental.
lsto nos induz a formular algumas questões de grande importância para a pesquisa feminista da história literária. O que aconteceu na história da cultura ocidental que provocou o desaparecimento das ricas tradições femininas? Como foi possível para os homens, cujas culturas orais tradicionais eram menos variadas que as das mulheres, estabelecer um monopólio que não possuíam nas culturas orais tradicionais da Europa? Como os homens puderam impor os mitos de sua paternidade cultural exclusiva, na qual, até muito recentemente, todos acreditávamos?
Reconsiderando um mito
Para a abertura do círculo hermenêutico que tem sido construído de forma tão cuidadosa no discurso das ciências humanas – no qual cada elemento confirma o sistema e vice-versa – , devemos promover uma alteração radical dos conceitos e pressupostos da história literária. Uma desconstrução que seguirá duas linhas centrais:
1. A desconstrução do próprio sujeito masculino: o homo sapiens da cultura ocidental, bem como o “herói” das obras literárias.
2. A desconstrução de sua genealogia literária, do mito de uma única literatura.
No que se refere à desconstrução do homo sapiens, o sujeito/gênio masculino que criou a cultura ocidental, é importante perceber que a noção de “autor” teve, no passado, sentidos extremamente diferenciados. Por exemplo, Homero foi a pessoa que compôs a Ilíada, ou o artista que recitava a épica, ou o copista que a transcreveu? Provavelmente nunca saberemos a resposta, mas pelo menos podemos garantir que ele não era, de forma alguma, um “autor” no sentido moderno da palavra. Na literatura medieval europeia, o “autor” cujo nome encontramos nos originais pode ser o copista de uma canção, um bom intérprete, o compositor ou simplesmente alguém que se apropria dos originais de outra pessoa.
Este exemplo mostra como uma história da literatura baseada numa definição monolítica de escrita e de autoria pode reforçar o mito de que a literatura ocidental foi criada por escritores homens.
Uma outra estratégia de desconstrução pode ser desenvolvida por meio da análise das relações do autor com as estruturas político-sociais de seu tempo. Em vez de criar a imagem de um gênio individual, autônomo e superior, este tipo de história literária poderá revelar a dependência do autor em relação aos discursos de seu tempo, e mostrar como seu desempenho é ligado às estruturas da sociedade.
De forma similar, a psicanálise pode ajudar a descobrir que as obras de um autor (ou parte delas) não são produtos de um gênio autônomo e autoconsciente, mas expressões de conflitos inconscientes, temores e desejos não admitidos abertamente. A crítica feminista trabalha frequentemente nesta direção, demonstrando que o que encontramos nas obras dos autores não são, necessariamente, verdades essenciais e universais, mas conflitos pessoais, sexuais, emocionais e de poder.
Os heróis (personagens, sujeitos) de obras literárias também devem ser reconsiderados. Os trabalhos de Mieke Bal são, neste sentido, uma contribuição fundamental. Desde a publicação de Narratologie (1977), a autora vem desenvolvendo uma nova teoria do sujeito com base no pressuposto de que a noção do sujeito humanístico unitário, autônomo e individual é uma ilusão. Mieke Bal decompõe este sujeito em três categorias: o narrador (que conta a história), o focalizador (cuja visão é apresentada) e o(s) ator(es).
Em seus estudos sobre o sujeito nas narrativas bíblicas, que se baseiam em três questões centrais – quem conta? quem vê/focaliza? e quem age? -, ela demonstra a ambiguidade dos heróis nas narrativas, sua falta de unidade, bem como a evolução, mudanças e contradições em suas posições e papéis de sujeito. O confronto das respostas que Mieke Bal propõe com as interpretações dos teólogos e intérpretes da Bíblia sobre essas mesmas narrativas revela o caráter ambíguo e falso das interpretações baseadas no conceito humanista unitário de sujeito/herói masculino bíblico. Por isso, estes intérpretes por um lado tentam ocultar ou resolver as ambiguidades e contradições dos personagens masculinos da Bíblia e, por outro, alterar, mutilar ou minimizar as personagens femininas (como Dalila, Deborah ou Ruth), que não se adequam às concepções de mulher, ou do lugar da mulher nas sociedades do século XX.
A decomposição do sujeito/herói bíblico nos elementos que o constituem (narrador, focalizador, ator) e a recomposição de sua ambiguidade original têm se revelado excelentes estratégias de leitura para a identificação da ideologia das obras literárias para o mapeamento das complexas manipulações do leitor, e para a análise da recepção tradicional das obras pela crítica e pela história literárias. Para a historiografia literária feminista, oferecem instrumentos para a crítica das imagens que os homens criaram sobre si mesmos e sobre as mulheres em suas obras, e para a identificação dos recortes ideológicos da crítica masculina e da história literária tradicional.
A desconstrução do mito de uma literatura única
Os princípios da desconstrução dos discursos da história literária foram formulados por Foucault em sua Leçon inaugurale no College de France (1970), a partir de quatro premissas metodológicas:
– o principe de discontinuité. Em vez da procura da continuidade, unidade e tradição, a observação de gaps, descontinuidades, quebras e contradições nos discursos.
– o principe de renversement. Elementos, ideias, conceitos, até hoje considerados positivos (como unidade de sentido, continuidade), devem ser analisados em seus aspectos negativos: a exclusão de sentidos, ideias e personagens que não se adequem a quadros preestabelecidos. A história literária não é apenas definida – como tem sido ensinado até hoje – a partir de uma seleção natural e positiva, nem apenas a partir da sobrevivência de obras realmente superiores do passado. Ao lado de uma seleção positiva, houve também uma seleção negativa por meio da qual obras/autores importantes foram excluídos. E o que Foucault chama de jeu négatif.
– o principe de spécificité. Que formas de violência foram impostas aos fatos, à realidade, aos seres humanos pela introdução de novos discursos, gêneros ou estilos? Em outras palavras: como uma ideologia específica foi propagada nas obras de um dado período? Como foram desenvolvidas ideologias novas ou parcialmente novas?
– o principe de l’extériorité. No lugar de simplesmente glorificar a autoria, o heroísmo individual, a originalidade, deve-se levar em consideração as condições e as circunstâncias externas, as estruturas sociais, culturais e ideológicas que permitiram que discursos específicos se impusessem e obscurecessem outros discursos.
A historiografia literária feminista traz uma contribuição nova para a desconstrução do discurso da história literária tradicional, porque junta, aos quatro princípios definidos por Foucault, uma nova premissa, que não é simplesmente um quinto princípio metodológico, apesar de intimamente relacionada aos princípios de Foucault, determinando consequências fundamentais para todos eles. Seu ponto de partida é a percepção de que a história literária é um dos discursos de uma sociedade que se baseia essencialmente na desigualdade entre os sexos. lsto resulta no fato de que mudanças nas estruturas sociais ou culturais terão consequências diversificadas para homens e mulheres. Por exemplo, certas mudanças culturais consideradas como progresso para todos os seres humanos frequentemente provam ser ganhos para os homens, mas perdas para as mulheres.
Pressupõe-se, portanto, que o discurso da história literária deve ser estudado prioritariamente como um sistema de relações de gênero, cujos códigos subjacentes dizem respeito às estruturas de poder na sociedade. A primeira questão será então: o que significam ou significaram os fenômenos que descobrimos (quando analisamos os discursos segundo as sugestões de Foucault) para as mulheres e o que significam para os homens?
Uma historiografia feminista da cultura ocidental
A reescrita da história da literatura ocidental demanda três atividades distintas:
1. A desconstrução da história literária tradicional como parte do discurso das ciências humanas.
2. A reconstrução das diversas tradições da cultura feminina marginalizadas e/ou silenciadas.
3. A construção de uma nova história literária, como produto de diversos sistemas socioculturais inter-relacionados, marcados pelas relações de gênero.
Isto implica a elaboração de uma história dialética com duas pistas inter-relacionadas, mas que, a partir da introdução da escrita nas culturas vernáculas europeias, começaram a se orientar em direções opostas. A cultura masculina inicia um processo contínuo de crescimento, reforço e monopolização da cultura escrita, contrabalançado pela exclusão das mulheres desta cultura e pela progressiva marginalização, deformação e obliteração das tradições orais femininas. A relação entre essas duas vertentes culturais tem sido dialética: os homens imitaram e se apropriaram dos gêneros femininos e, ao mesmo tempo, os transformaram. As mulheres reagiram, mas pelo menos uma parte desta reação não foi mais determinada pelos recursos de suas próprias tradições, mas pelos novos padrões criados pelos homens.
Foi por meio da introdução da escrita nas línguas vernáculas europeias que a primeira desproporção essencial entre homens e mulheres foi estabelecida. A partir deste momento, os homens tiveram duas culturas: uma, predominantemente oral e tradicional, e outra estrangeira, escrita, e apresentada como superior. A história da literatura medieval, examinada a partir desta perspectiva, mostra as formas de coalizão entre estes dois tipos de cultura e a progressiva exclusão das mulheres dos domínios masculinos. A invenção da imprensa alargou esta distância por ter permitido a propagação da visão de mundo masculina numa escala muito maior do que a feminina, além de se constituir numa arma extremamente eficiente na luta contra as culturas populares. A partir daí, as culturas populares foram sendo progressivamente substituídas por novos tipos de cultura “popular”, criados por artistas da sociedade burguesa, disseminando a visão de mundo de suas classes. Esse fenômeno é hoje considerado a origem da cultura de massa (Burke, 1987; Göttner-Abendroth, 1982). Mais uma vez, a cultura europeia havia criado duas tradições culturais distintas: a cultura erudita e a cultura de massa.
Formulando nossas próprias questões
Uma historiografia feminista deverá colocar, para cada período (oralidade, escrita, imprensa, comunicação de massa), as seguintes indagações relacionadas às questões de gênero:
– O que mulheres e homens criaram no período em questão? Que ideias e imagens tinham eles sobre si e sobre o outro sexo? Como homens e mulheres apresentaram temas como amor, natureza, experiência religiosa, morte e outros?
– Que estratégias foram usadas para a exclusão do sexo oposto de seus universos culturais?
– Como poderíamos relacionar as ideias expressas por mulheres e homens aos códigos que sublinham seus respectivos discursos frente às estruturas econômicas, sociais e políticas de seu tempo?
– Como estas ideias, imagens e relações têm sido interpretadas até hoje? Quais os recortes ideológicos destas interpretações? Como estes recortes foram apropriados pela crítica literária, história e ciências humanas?
Para cada período de transição, é necessário ainda que estas perguntas e respostas sejam especificadas com clareza:
– Quais as mudanças que ocorriam então na distribuição de gêneros entre os sexos? Qual a parte assumida pelos homens e quais os novos tipos de literatura que criaram? Qual pretendia ser a nova divisão de trabalho cultural entre os sexos?
– Existiam novas estratégias ou mecanismos de exclusão das mulheres em áreas tradicionalmente delas ou de bloqueio de sua fala ou escrita no novo contexto? Como reagiram as mulheres?
– Quais as mudanças ocorridas nos conceitos, ideias e imagens tradicionais sobre os homens, as mulheres, o amor, a natureza, a religião, o trabalho?
– Que tipos de violência os novos discursos impuseram a homens e mulheres?
– De que forma estes fenômenos vêm sendo interpretados pelos pesquisadores; como os representam em seus discursos; quais os pressupostos não explícitos de suas interpretações?
Finalmente, novas questões devem ser formuladas para cada período:
– Quais os elementos que reforçam o poder masculino nas novas estruturas sociais ou culturais?
– Como as mulheres conseguem manter suas tradições apesar do fato de se tornarem progressivamente mais invisíveis? Que mudanças introduzem? Como se adaptaram aos novos padrões criados pelos homens? Como resistem às ideias, imagens e conceitos, cada vez mais opressivos, propagados pelos homens?
– Como estas formas de cultura e de resistência femininas têm sido interpretadas, ou esquecidas, nos discursos das ciências humanas? (Spender, 1982)
Repensar e reescrever a história literária numa perspectiva feminista pressupõe, assim, em primeiro lugar, aprender a colocar novas questões que possibilitem a revisão de ideias estabelecidas, das interpretações acerca destas ideias e das teorias decorrentes destas interpretações. Isto implica uma alteração radical no paradigma das ciências humanas, cujo ponto de partida é a descoberta de que, mesmo nas ciências humanas, não há seres humanos, nem existência humana, a não ser como homem ou como mulher.
* Ria Lemaire é medievalista, professora de literatura na Universidade de Poitiers e autora de Passions et positions. “Rethinking literary history” foi publicado em Historiography of women’s cultural traditions, ed. Maaike Meijer e Jetty Schaap, Foris Publications Holland: USA, 1987, p. 180-93. Tradução de Heloisa Teixeira.
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