Categorias do Ciberespaço: rumo à atomização
A estrutura de conexões possibilitadas pelos sistemas computacionais recebeu o nome de ciberespaço, como foi batizada por William Gibson em seuNeuromancer, de 1984. Para Gibson, o ciberespaço era uma alucinação consensual, como o definiu. Como alucinação o ciberespaço ensejava a ideia de um espaço criado na mente das pessoas, era assim uma projeção, um local imaginado, e não exatamente um espaço físico, visto que as redes computacionais não configuram um espaço, mas um fluxo de códigos que trafegam em cabos, ar e equipamentos. Nos cabos, no ar, nos equipamentos, existem códigos, e não espaço.
Contudo, a partir da metáfora criada para o termo cibernética, da qual deriva ciberespaço, e a noção de espacialidade sustentada pela palavra [espaço], que recebeu o prefixo [ciber], aliada ao conceito de espaço-informação de Douglas Engelbart no desenvolvimento das interfaces gráficas computacionais ou GUI (Graphic User Interface), criou-se uma concepção de universo paralelo, para o qual os usuários se transportavam ao acessar o ciberespaço. Engelbart, ao desenvolver um modelo de interfaces gráficas, sustentou sua invenção em três conceitos principais, espaço-informação, manipulação direta e duplo virtual. A sua concepção de espacialidade, contudo, se restringia ao espaço simulado pela interface gráfica, e não pelo ciberespaço. Engelbart pensava o espaço bidimensional da interface gráfica da tela dos computadores, com a possibilidade de forja da tridimensionalidade, seja a partir do uso da perspectiva, seja de outro recurso de ilusão óptica. Mas certamente seu empenho se distingue da concepção de que houvesse espaço para além da tela, da interface gráfica.
Entretanto, vários pesquisadores deixaram-se levar pelo senso comum, ajudando a divulgar a ideia de um ciberespaço alheio ao mundo natural, que era acessado pelas interfaces, como se estas fossem uma membrana que separa o mundo natural do ciberespaço.
Para Poster (1995: 20 – 21) uma interface está entre o humano e o maquínico, uma espécie de membrana, dividindo e ao mesmo tempo conectando dois mundos que estão alheios, mas também dependentes um do outro. (apud SANTAELLA, 2003, 91)
Narrativas maravilhosas e fábulas à parte, tentaremos aqui discutir tais concepções, fazendo avançar alguns conceitos, e negar uma perspectiva romantizada e idealizada que constitui uma primeira visada sobre o termo ciberespaço e seus desdobramentos, como a cibercultura. Não se nega, diga-se desde já, a existência desta concepção romântica, mas será preciso tê-la como idealizada, encontrando suas razões de ser, mas deixando-a, em seguida, para fronteiras outras do pensamento.
Se o termo cibernética encontrou sua razão de ser pela comparação que se fez entre a quantidade de informações processadas pelos sistemas computacionais, aproximando-a de um mar de informações – lembremos que o termo deriva deKubernetes, que em grego significa timoneiro, aquele que governa, em referência à condução de um barco em pleno mar -, seu prefixo, ciber, serviu para gerar outras palavras, tendo a maior referência o termo ciberespaço. Se considerarmos que Engelbart criou a interface gráfica a partir de alguns conceitos, dentre os quais o de espaço-informação, que seria tomar o espaço bidimensional da tela não como um conjunto de linhas, mas como um espaço que os elementos das interfaces pudessem ocupar livremente, pode-se inferir que a junção da simulação de espaço das interfaces gráficas e a metáfora de mar, derivada de cibernético, foi o motor para se gerar a ideia de um espaço para além da tela do computador, para onde nosso espírito seguia ao acessarmos os sistemas computacionais. Mais ainda, poderíamos assumir, naquele universo, novos corpos, chamados avatares, nos quais poderíamos ter uma outra vida, talvez uma segunda vida [a rede socialSecond Life se sustenta neste pensamento].
Esta definição de ciberespaço como mundo paralelo encontrou uma série de defensores, que sustentavam que a interface era uma janela para o ciberespaço, ou um lugar onde os sistemas computacionais e humanos se encontravam. As interfaces seriam, nesta concepção, o portal de passagem para o outro mundo, livre de todas as querelas de nossa sociedade. Destituídos de nossa cultura corpórea e social, estaríamos livres para compor uma outra cultura, a cibercultura. Contudo será preciso lembrar que a cultura não é constituída por espaços, mas por pessoas que ocupam os espaços. E sua base é a consciência, além do comportamento. Assim, ainda que fosse de fato outro espaço, ainda assim seríamos nós, com toda a nossa cultura, que estaríamos lá. A cultura é a humana, a mesma em todos os espaços, com as variações de pertencimento, formalidade, espontaneidade, que temos nos vários espaços sociais que ocupamos.
No nível da experiência, nosso corpo próprio recebe estímulos, compondo as sensações, reconhecidas como percepção. O que experienciamos ao acessarmos os sistemas computacionais é o estímulo da cor-luz emitida pelos monitores em suas telas, é o som, são as interfaces físicas que convocam nosso sistema háptico. As informações são atualizadas nas e pelas interfaces, alcançando nossa base sensível, os exteroceptores, compondo nossa experiência. Nossa consciência não deixa o corpo, não nos transportamos para um universo paralelo. Antes disto, aceitamos as regras da ilusão das interfaces, reconhecendo uma simulação da espacialidade tridimensional onde há apenas duas dimensões. Ao aceitarmos esta forja, desejamos crer nela, acatando-a como base da experiência, o que de fato não ultrapassa as noções de representação sígnica, simulação computacional e projeção do eu, em processos de subjetivação que se assemelham a literatura, quando nos reconhecemos em um personagem, ou no cinema, intensificados pela resposta simultânea das ações que executamos. O ciberespaço é ilusório desde a sua concepção. É uma forja auxiliada pelo design de interfaces e pelos textos que o querem um universo paralelo.
Esta concepção de ciberespaço, baseada no paralelismo, encontra duas outras categorias ou concepções: seu atravessamento e sua atomização. O atravessamento recebe o legado das tecnologias tele, de acesso remoto, como o telefone e a televisão. É quando a tarefa a ser realizada não ocorre nas simulações computacionais, mas estas possibilitam acessos remotos, como teleconferência, telepresença e telerrobótica. A telemática sustenta tecnologicamente esta concepção.
A terceira categoria, atomização, situa o ciberespaço não em um mundo paralelo, mas presente no mundo natural, como elementos atômicos. Sensores, câmeras e outros dispositivos identificam elementos do mundo natural, filtrando-os e identificando-os enquanto ações que determinam novas ações de sistema. Movimentos, gestos, cores, localização, posicionamento, voz, fala, ruído, qualquer elemento previamente determinado como acionador do sistema pode ser usado, de modo a atualizar informações virtualizadas em interfaces variadas, seja de entrada seja de saída do sistema. Aqui as interfaces são das três categorias: físicas, perceptivas e cognitivas 1. O ciberespaço, antes de estar para além das interfaces, situa-se para aquém delas, no mesmo espaço usado pelo corpo próprio, o mundo natural.
Cada vez menos é necessário se falar em ciberespaço. Na sala de aula, eu estou em contato físico com os estudantes, mas ao mesmo tempo estou usando uma tela de projeção conectada. Portanto, estamos nos apropriando de elementos que estão absolutamente incorporados àquele ambiente físico e que são coisas que estão no chamado ciberespaço. […] Essas fronteiras deixam de existir. (PALÁCIOS, 2009, 254)
Embora boa parte da cultura ainda se refira ao ciberespaço a partir da categoria do paralelismo, nota-se claramente uma mudança de curso, tanto em concepções teóricas quanto de mercado. Em filmes como Matrix e Avatar temos a ideia de migração da mente, que deixa o corpo e assume outro corpo, digital no primeiro caso e biológico, porém artificial, no segundo. E se na primeira categoria, paralelismo, o corpo próprio era elemento obsoleto, relegado a uma função quase banal e dispensável, ele recupera importância na terceira categoria, atomização, sendo o grande responsável pelos acionamentos das interfaces computacionais. Na verdade, no paralelismo, o corpo não era dispensável, mas seus movimentos eram minimizados, com as mãos realizando os movimentos de condução do mouse e acionamento do teclado, enquanto o olhar vasculhava as imagens sintéticas das interfaces gráficas. Com a atomização o corpo ganha espaço e pede passagem, com a incorporação de gestos, voz, movimentos amplos. Para se jogar com o Wii, da Nintendo, o corpo todo é convocado para a ação. O Projeto Natal, da Microsoft segue o mesmo caminho, eliminando a figura do avatar e mantendo o corpo próprio como elemento de jogo. Porém, não se fala mais em entrar no ciberespaço, mas o ciberespaço, enquanto noção de espacialidade tecnológica de acionamentos e interatividade, se acomoda em volta do corpo, observado agora por câmeras e sensores que possibilitam ao sistema identificar deslocamentos, movimentos, gestos, sons, a própria fala. Não é o usuário que entra e navega no ciberespaço, é o ciberespaço que se lança no mundo natural, tornando-se cada vez mais pertencente a este, um elemento dele. Desfaz-se, e tardiamente, o equívoco conceitual de oposição entre real e virtual, e problematiza a definição de interface, visto que não é mais possível sustentar a afirmação de a interface ser um elemento que separa dois mundos, ou mesmo que os une. Não existem dois mundos, apenas um, o que conhecemos. Heim, já em 1993, mostrava o caminho de reconhecimento do ciberespaço, composto de um modelo ou mapa mental – daí o vínculo com a ideia de alucinação consensual de Gibson – e o leiaute da interface gráfica.
O arquivamento magnético não oferece nenhuma pista tridimensional para corpos físicos. Por isto, devemos desenvolver nosso próprio sentido internamente imaginado da topologia dos dados. Esse mapa interior que produzimos mais o layout do programa é o ciberespaço. (HEIM, 1993, 132)
Mas somente com a atomização do ciberespaço a cultura como um todo parece ter de dar razão ao estudioso.
Cultura digital, cibercultura e cultura contemporânea
Desde o surgimento da concepção de ciberespaço, e tem naquele momento a primeira categoria, estudiosos tratam de uma cultura própria, a cibercultura.
Este termo [cibercultura] surgiu pra fazer uma separação entre a cultura até então existente e algo que estava emergindo, que era o digital. Nos primeiros artigos sobre a cultura digital era muito comum se usar a expressão real life para se referir ao mundo das coisas sólidas, em contraposição a esse outro mundo, que seria o mundo virtual. (PALÁCIOS, 2009, 253)
A base de sua constituição era, desde o seu surgimento, a oposição à cultura propriamente dita, em clara referência à cultura estabelecida no/com o ciberespaço. Ainda que sua gênese fosse a cultura das mídias (SANTAELLA, 2003) e sua base não fosse o desktop, mas o processador (SANTAELLA, 2003), seu surgimento sustentou a oposição, como afirma Palácios, entre cultura real e cultura “virtual”. Vários estudiosos se debruçaram sobre o tema, ora fazendo ver que a cultura estabelecida não se restringia ao ciberespaço, mas a partir dele, contaminando o corpo social, engendrando-se na cultura, ora restringindo-o àquela ideia de espacialidade cibernética. No mundo de cá, mundo natural, cultura, no mundo de lá, ciberespaço, cibercultura. Haveria a possibilidade nascente de reconstruir a cultura a partir do zero, e pesquisadores como Pierre Lévy (1999) divulgava a boa nova como uma oportunidade preciosa para se reinventar a cultura humana, com vistas a um ambiente colaborativo, constituindo o que ele chamou de inteligência coletiva. O campo das possibilidades era profícuo.
Ocorreu, contudo, que o admirável mundo novo não era completamente novo, porque fora povoado pelos mesmos povos, com suas culturas, já existentes. Identificou-se que a cultura não é a do lugar, mas das pessoas que habitam esse lugar. Em outras palavras, o lugar, em si, não tem cultura, mas as pessoas a fazem. Ainda assim, o alicerce que sustentava a oposição entre real e virtual mostrou-se frágil, verdadeiramente falso. O mesmo Lévy o disse em seu O que é o virtual?(1996), ao reparar que virtual se oporia ao atual, e que ambos, virtual e atual, pertencem ao real. Ao aceitar tal fato, perde-se de perspectiva que o ciberespaço tenha um locus próprio, fora do mundo ou da cultura. Não faz mais sentido falar em cibercultura no contexto de oposição. Ela passa a nominar uma etapa específica da sociedade, uma faceta histórica.
A gente pode empregar como sinônimos cibercultura e cultura digital, que seriam nomes para a cultura contemporânea, marcada a partir da década de 70 do século passado, pelo surgimento da microinformática… (LEMOS, 2009, 136)
Postos deste modo, a cibercultura, nascida de uma oposição, se integra ou se dissolve na cultura contemporânea, nominando não mais algo pontual, mas geral, ainda que mantenha o vínculo tecnológico que a fez surgir. Não nos parecerá estranho, então, que o termo entre em desuso, por absoluta falta de necessidade.
Conclusão
Não me parece justo decidir sobre a obsolescência de alguns termos e seus sentidos, visto que isto cabe à cultura linguística, à comunidade que os utiliza. Contudo, parece caber ao observador atento a tarefa de reconhecer variações semânticas, e o sutil deslizar do emprego de determinados termos, na orientação que oscila entre o conceito e a semântica.
Se, semanticamente, os termos ciberespaço e cibercultura surgiram de uma necessidade nominativa específica, é também certo que tais termos sofreram, rapidamente, variações de sentido, como apontadas, perdendo parte de sua especificidade, em alguns casos a totalidade de sua serventia. E se assim o é, antever a obsolescência dos termos já não seria de todo condenável, já que a sua eliminação reacomoda, de modo mais consensual e adequado, os conceitos dos quais derivam.
Em sendo assim, identificamos a tendência de o termo ciberespaço voltar a ter o sentido de sua concepção original, como alucinação consensual ou como a junção de modelo mental e leiaute da interface gráfica, nada mais que isto. Já o termo cibercultura parece não mais suportar o peso do que nominou um dia, sendo paulatinamente substituído por outros mais gerais, como cultura digital, cultura contemporânea, ou até, talvez e apenas, cultura. Conceitualmente atualizamos a ideia de um único mundo e cultura, sabidamente recheados de facetas, tensões, variações e mesmo contradições.
Referências
HEIM, Michael. The metaphysic of virtual reality. Oxford University Press, 1993.
LEMOS, André. Entrevista. In SAVAZONI, Rodrigo, COHN, Sérgio (orgs.)Cultura Digital.br. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. 135-149.
LEVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: ed. 34, 1999. (Coleção TRANS)
LEVY, Pierre. O que é o virtual? Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: ed. 34, 1996. (Coleção TRANS)
PALÁCIOS, Marcos. Entrevista. In SAVAZONI, Rodrigo, COHN, Sérgio (orgs.) Cultura Digital.br. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. 253-261
POSTER, Mark. The second media age. Cambridge, Polity Press, 1995.
ROCHA, Cleomar. Interfaces Computacionais. In Anais do 8º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia. Brasília: PPG Arte/IdA/UnB, 2009.
ROCHA, Cleomar. Três concepções de ciberespaço. No prelo. Goiânia, 2010.
ROCHA, Cleomar. Interfaces Computacionais In Anais do 17o Encontro Nacional da ANPAP. Florianópolis: ANPAP, 2008.
SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
Filmografia
AVATAR. Direção e Roteiro: James Cameron. Produção: James Cameron e Jon Landau. Elenco: Sam Worthington, Zoe Saldana, Sigourney Weaver, Stephen Lang. EUA: Twentieth Century-Fox Film Corporation / Lightstorm Entertainment / Giant Studios, 2009. 1 DVD (162min).
THE MATRIX. Direção e Roteiro: Andy Wachowski e Larry Wachowski. Produção: Joel Silver. Elenco: Laurence Fishburne , Carrie-Anne Moss , Hugo Weaving , Joe Pantoliano, Marcus Chong. EUA: Warner Bros, 1999. 1 DVD (136min)
*Cleomar Rocha é pós-doutorando em Estudos Culturais no Programa Avançado em Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ), pós-doutor em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD/PUC-SP) e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas (FACOM/UFBA). Professor Adjunto do Programa de Pós-graduação em Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás – FAV/UFG.
1 Apresentei e discuti as três categorias de interface durante o pós-doutoramento em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, com supervisão da profa. Lucia Santaella. A discussão também foi apresentada em artigos publicados em 2008 e 2009, notadamente no #8.ART – 8o Encontro Internacional de Arte e Tecnologia, realizado em Brasília em 2009, e no 17o Encontro Nacional da ANPAP, realizado em Florianópolis em 2008.