Dando continuidade às discussões em torno dos 60 anos do Golpe de 1964, iniciadas pelo encontro “Ecos Contemporâneos de 1964”, realizado em abril de 2024, este número de Revista Z Cultural apresenta o dossiê “De 1964 a 2024: caminhos, atalhos, barricadas”. Em ambos os casos, no evento presencial e na presente publicação, o propósito era e é duplo: por um lado, reavivar a memória do arbítrio e da violência de Estado instaurados pelo regime militar – os anos de chumbo –; por outro lado, investigar ou apontar para dimensões de violência e autoritarismo que marcam a sociedade brasileira, confrontando o momento 1964 com o momento atual, passadas seis décadas, sendo quatro delas já em regime civil democrático.
A história do regime é recuperada pelo artigo de Bernardo Kucinski e pelo contundente depoimento de Dulce Pandolfi, em entrevista concedida a Beatriz Resende, Italo Moriconi e Lucas Bandeira. Diga-se de passagem que a presença de Kucinski se deu tanto como palestrante principal no evento de abril como através do texto aqui publicado, um verdadeiro roteiro da ampla literatura de testemunho publicada no Brasil sobre a tortura e os embates mais duros da oposição à ditadura. Uma história que não pode ser esquecida pelas gerações mais jovens. Já o depoimento de Dulce Pandolfi é particularmente relevante, por ter ela sobrevivido a sessões terríveis de tortura, tendo sido capaz, depois, de desenvolver uma trajetória exemplar de vida profissional e de engajamento com as lutas populares.
Um dos temas recorrentes quando se faz a história da ditadura militar, ao mesmo tempo ponto culminante e parte de uma história permanente de violência em nosso país, diz respeito ao conservadorismo na área de costumes e comportamento. Misoginia, homofobia, transfobia, temas ainda tão contemporâneos, foi o que não faltou durante os anos de chumbo. Comportamento e sexualidade dissidente eram oposição política a priori para os órgãos policiais repressivos da ditadura. A resistência LGBTQIA+ se dava na imprensa alternativa (que teve como marco o surgimento do jornal Lampião da Esquina em 1978), nos locais de encontro e nas ruas. Ela é aqui recuperada pelo artigo de Dri Azevedo e pela bela entrevista do grande escritor e militante da causa gay João Silvério Trevisan concedida a Sandro Aragão.
Na entrevista de Trevisan, vale ressaltar a conexão que ele lembra existir entre a repressão comportamental na ditadura e a política bolsonarista nos dias de hoje. Como consequência, temos assistido ao aumento do número de episódios de agressão e repressão no campo da cultura. Um caso recente e rumoroso foi o ocorrido no Prêmio Sesc de Literatura, aqui relatado pelo criador da premiação, o produtor cultural Henrique Rodrigues. Seja como for, a cultura sempre é campo de resistência aos obscurantismos. Também no pior da ditadura, ela desempenhou seu papel, apesar de cada vez mais perseguida, censurada, agredida, exilada. Incluem-se aqui dois documentos históricos interessantes nesse sentido: o manifesto de Glauber Rocha sobre “estética da fome”, na seção Vale a Pena Ler de Novo, e a recuperação do clima daqueles anos no livro Rebeldes e marginais: cultura nos anos de chumbo, de Heloisa Teixeira, resenhado por Felipe Quintino.
O dossiê é complementado por artigos que levam a problemática para o campo da crítica literária e cultural. Gabriel Martins comenta as circunstâncias da escrita de Em liberdade, de Silviano Santiago, romance no qual se entrançam diferentes momentos autoritários da história brasileira. Pedro Süssekind e Claudia Lage, ao refletirem sobre seus próprios processos de escrita, puxam fios que revelam aspectos cruciais na anamnese da experiência autoritária brasileira. A abordagem do tema “anistia” permite a Süssekind confrontar a memória da ditadura, aliás trazida à tona pela Comissão da Verdade por ele mencionada, com os tempos bolsonaristas, iluminando a dialética entre a pretendida superação histórica e a retomada da distopia autoritária. O jogo entre utopia e distopia é o tema de Lua Gill da Cruz, a partir da leitura que faz do romance Tupinilândia, de Samir Machado de Machado. Já Claudia Lage entrelaça a vivência da política à vivência do corpo feminino. O corpo, essa realidade dita individual, porém atravessada pelas vicissitudes sócio-históricas do gênero, também fica em primeiro plano no artigo de Catarina Lara Resende sobre cinema pornô/erótico no período da ditadura.
Como nota de pesar, registramos o falecimento, quando finalizávamos a revista, do grande fotógrafo Evandro Teixeira, que gentilmente cedeu as fotografias que ilustraram o material de divulgação do encontro “Ecos Contemporâneos de 1964” e a capa desta edição da Z. Agradecemos ao IMS pela disponibilização das imagens. Teixeira produziu as imagens definitivas do embate entre repressão e resistência, registros que impediram e impedem que a memória se perca. Imagens que ressoam no poema de Mary Garcia Castro que abre o dossiê: “Ficaram memórias / E nossas mãos / Uma a outra / Bem dadas / E aquela manifestação / E como gritávamos”
Danielle Corpas e Italo Moriconi
Curadores do dossiê