Resumo
O presente artigo discute aproximações entre arte e tecnologia, tomando-os separadamente de início, e apontando para algumas articulações poéticas entre os dois campos. Busca tais articulações face a utilização de recursos equivalentes, voltados a despertar a atenção do espectador ou usuário. Em vista da caracterização desses recursos, aborda a ideia de sublimação, ocultação ou transparência dos aparatos de suporte, como uma tendência ou predileção ao aspecto sígnico em detrimento do objetual ou do hardware. Nesse sentido, faz referência a algumas recentes produções artísticas e a vídeo promocional, que indicam a pertinência das proposições apontadas.
Palavras-chave: luminância, ocultação, estratégia, poética, signo
1. Material, meio e interface
Há uma tendência bastante recorrente de nos colocarmos em estado de pura inocência e encantamento frente a novos aparatos surgidos dentro de um processo tecnológico que vivenciamos, o qual se apresenta, a cada dia, com fôlego e força renovados. Esse novos produtos tecnológicos, mesmo quando apenas remodelados, ou reapresentadas as suas funcionalidades, fazem obliterar outros, agora associados ao passado e à obsolescência. Kerckhove (1997), que possui uma visão bastante peculiar e pertinente acerca do tema, considera que há um “processo mais profundo a decorrer” (Op. cit., p. 141):
Como se cada tecnologia importante, antes de atingir níveis de saturação nas culturas, tenha tido de passar por dois estádios básicos: primeiro estar em clara evidência; segundo ser interiorizada até ao ponto de se tornar invisível (Idem, ibidem).
O autor descreve como exemplo o fato dos fios elétricos, postes e cabos telefônicos terem ficado muito em evidência nas cidades quando do advento e propagação da energia elétrica, estruturas as quais se fazia questão de ostentar, como um verdadeiro sinal de que o progresso tecnológico já havia chegado à localidade em questão. Passado algum tempo, verificava-se a necessidade de se criar dutos subterrâneos para a instalação desses cabos, de forma a ocultá-los.
Estendendo algumas das importantes constatações de McLuhan 1, Kerckhove (Op. cit.), chegaria ao tema da necessidade de ocultação ou da sublimação do material. Nesse ponto, interessa-nos relacionar esta constatação a alguns desdobramentos verificados no âmbito da artemídia, com artistas valendo-se de estratégias de ocultação do aparato, colocando o conteúdo em evidencia, encantando-nos a partir dessas estratégias.
2. Catedrais de luzes em todos os lugares
Chamamos a atenção para a necessidade pela luz artificial, o que marcaria toda uma época, tendo sido caracterizada como uma sociedade do “gosto pelas luzes brutais que nenhum abajur consegue abrandar” (Virilio, 2002, p. 25). Nesse sentido, quanto maior fosse a intensidade da luz, maior era o indicativo de prosperidade econômica das pessoas, como analisado por Virilio (Op. cit.), o que fazia da luz artificial um verdadeiro espetáculo:
[…] as ruas à noite ficam tomadas por uma multidão que contempla as obras dos iluminadores e dos especialistas em fogos de artifício, habitualmente chamados de impressionistas (Idem, ibidem).
Partindo também das conclusões de McLuhan (2002), destaca-se a luz como meio, que contém tudo o que está iluminado e, logo, tudo o que é possibilitado por ela e pela eletricidade, seja “uma intervenção cirúrgica no cérebro ou para uma partida noturna de beisebol” (Idem, op. cit., p.22). Para o autor eram importantes:
[…] as conseqüências psicológicas e sociais dos desenhos e padrões na medida em que ampliam ou aceleram os processos já existentes […] Pois a mensagem de qualquer meio ou tecnologia é a mudança de escala, cadência ou padrão que esse meio ou tecnologia introduz nas coisas humanas (Idem, ibidem).
Então, tomando a luz elétrica como exemplo, nota-se toda sua influência sobre a cadência na execução de tarefas, a ponto de criar cidades sonâmbulas e síndromes, como a do despertar incompleto, mencionada por Virilio (2002). Um novo patamar para a produção e consumo de bens é promovido, para, então, chegarmos à época do advento dos aparelhos cintilantes, alimentados por eletricidade, como a TV e o computador, estes que, ironicamente, nos levam a olhar diretamente para “caixas de luz”, e representam tão bem esse período de deslumbramento e consumo.
Por esse caminho, Virilio destaca o termo fantasmagoria 2, que vai buscar em discurso de Albert Speer, arquiteto do Reich, palavra relacionada à criação de “muros luminosos”, usados na divulgação de evento do partido nazista alemão. Conhecido por suas habilidades propagandísticas, o regime nazista de Hitler soube se sustentar em simulações eficientes, que faziam seus militantes “obedecerem a uma lei que eles mesmos não conheciam, mas que poderiam recitar dormindo” (Goebbels apud. Virilio, op. cit., p. 28).
A forma de iluminação criada por Speer serviu para deslumbrar sua plateia e, principalmente, serviu como demonstração de quanto as pessoas se deixavam encantar pelos fachos de luz a iluminar os céus durante a noite. Conduzida, em um segundo momento, para as “caixas iluminadas de imagens”, chegamos a um período das telas gigantescas de TV, dos formidáveis monitores computacionais, que agora consegue agregar em suas finas estruturas, os processadores e, ademais, todo o hardware do sistema. Época, também, dos palms ou pads, e suas telas sensíveis ao toque, que dispensam periféricos como mouse e teclados alfanuméricos. Cabe-nos destacar que, por um período importante, os computadores dispensavam totalmente os monitores, ou estes eram considerados apenas como “opcionais”. 3
Como apontado por McLuhan (2005) temos que o meio é que configura e controla a proporção e a forma das ações humanas, então, luzes elétricas, excesso de luminosidade, transparência – fenômenos que colocaram a visão em outro patamar – passam a fazer parte da vida das cidades e a ditarem o seu ritmo. Dessa forma, poéticas e cânones da condução do olhar nas artes, passam a se modificar, se misturar e encadear-se às novas possibilidades elétricas de causar envolvimento, encantamento, articulando-se à publicidade, ao design de bens de consumo, verificados outros desdobramentos e quebra de paradigmas 4:
A lanterna mágica, os panoramas, dioramas, a fantasmagoria, o cinema, os monitores de computador e as mídias de imagens técnicas aparecem todos nessa perspectiva como agregados de máquinas, formas de organização e materiais em mudança contínua que permanecem, apesar de todas as padronizações, raramente estáveis; estamos constantemente fascinados pela possibilidade de aumentar a ilusão (Grau, op. cit., p. 257)
Com as formas de aumentar o envolvimento e criar ilusão sustentando-se sobre táticas de ocultação do aparato, passam a ser exitosas as construções que conseguem efetivamente colocar em evidência os aspectos sígnicos, ou dizendo de outra forma, ao “material enquanto signo”, verificado o desinteresse pelo “material de suporte do signo”. Nessa perspectiva, assenta-se o processo de diluição sistemática do contexto, o que favorece à independência que a imagem-luz, enquanto elemento sígnico, precisa para encantar.
Um dia feito de vidro
Tanto no campo das artes, como na produção da indústria tecnológica e na publicidade, percebe-se as reverberações desse processo, que tem como uma de suas qualidades a capacidade de se converter em uma poética, que parte exatamente do pressuposto da superação dos limites impostos por quadros, telas e outros suportes. Falamos em poética, pois, a superação desses limites é dada mais por uma simulação que por uma superação propriamente dita, por construções orientadas a prender a atenção, criar ilusões, desencadear encantamentos. Podemos ver essa orientação nos recentes trabalhos de Sommerer e Mignonneau (Lifewriter, 2006), e de Chris Sugrue (Delicate Bondaries, 2007), que são exemplos verdadeiramente formidáveis nesse sentido.
Em Lifewriter e em Delicate Boundaries, busca-se causar a impressão que as imagens projetadas possuem certa autonomia, ao simularem comportamento correlato ao de seres vivos, como a movimentação característica de pequenos insetos, sempre prontos a interagirem com o fruidor. Ao mesmo tempo, nota-se a ocultação do aparato responsável pela projeção dessas imagens, e a sublimação ou abrandamento dos limites do quadro de projeção, deixando as imagens livres para transitarem pelo corpo do fruidor, ou por folhas de papel, que tornam-se superfície de projeção. Com relação a esse tema, em vista da obra de Sugrue, Rocha (2010) pontua:
Elementos antes tidos como virtuais, presos nas telas dos computadores, parecem agora deixar este espaço de confinamento, avançando o mundo natural, causando a percepção de serem seres vivos de fato. Embora não haja envolvimento tátil, o recurso visual se basta, causando uma sensação sinestésica, via memória visual, de completude da experiência, de deleite estético (Rocha, op. cit., p.5).
Entender o que nos faz saltar aos olhos as imagens dessas duas obras e o caminho rumo à transparência e ocultação de aparatos exige-nos, ainda, que percebamos aí um processo, também relacionado à materialidade, já visto na história da arte e caracterizado pela “procura por novos materiais e, por fim, pelo imaterial” (Poissant, 2009). Tal afirmação, embora não nos permita concluir acerca de uma possível superação do material, nos revela, por outro lado, a importância do momento de escolha deste, indicando-nos a preocupação com a estruturação de estratégias voltadas a agregar mais atratividade à obra e, com isso, despertar mais a atenção. Conforme Poissant (Idem), “não existe material inocente”, e, no mesmo caminho:
[…] a ênfase foi se deslocando progressivamente do processo para a experimentação de dispositivos que convidavam o espectador a se conectar num outro nível e, por fim, interagir com a obra de arte e seu ambiente. O interesse pelo processo abriu caminho para uma série de considerações e tentativas de técnicas. Como Isabelle Rieusset-Lemarier salientou: “A técnica é um espelho interativo” (Idem, p. 73).
Encontraremos, facilmente, articulações entre formas de estruturação encantadoras da arte, como as propostas por Sugrue e Sommerer-Mignonneau, e prospecções de novos formatos para produtos industriais, como podemos ver no vídeo promocional A Day Made of Glass (2010), produzido pela Corning Incorporated, empresa especializada na produção de vidros e cerâmicas especiais.
O vídeo expressa uma visão de um ambiente urbano futurista, mas que poderíamos classificar como um futuro próximo (talvez seja esta a intenção), tratando-se de uma ficção bastante imaginativa, com nítida preocupação com a verossimilhança. O ambiente, proposto pela Corning, assemelha-se a uma cidade de vidro, tamanha a presença desse material. Mas, muito além de sua elegante transparência, nessa ideia de futuro, o vidro consegue agregar em si interfaces que possibilitam aos humanos o controle de várias funções que precisam desempenhar no cotidiano, desde a verificação de e-mails, passando pelo preparo de alimentos à consulta aos itinerários do transporte coletivo da cidade.
As transparentes interfaces gráficas estão prontas para surgir em qualquer superfície lisa, como a de geladeiras, mesas de jantar, pára-brisas de carros, paradas de ônibus e vitrines de lojas, tendo como o vidro, os espelhos e as cerâmicas o seu substrato de referência. A estratégia explorada pelo vídeo para valorização do elemento sígnico em detrimento de seu suporte, consistiu em fazê-los translúcidos e flexíveis e, ao mesmo tempo, espalhá-los em vários tipos de superfícies.
A eficiência na escolha do material, que pudesse dar esse sentido de ocultação e do aparato, retorna, então, como eficiência poética, sabendo que “os materiais não são inocentes”. Tomando o vidro como exemplo, além de verificarmos o importante lugar que já ocupa na arquitetura de centros urbanos, sua própria materialidade nos familiariza com a tela de monitor computacional. Às imagens estão, aparentemente, liberadas dos limites impostos pelo material, podendo agora fluir entre superfícies, estas que ainda nos dão a possibilidade de interação pelo toque 5.
Concluímos que, o desenvolvimento no campo das tecnologias tem favorecido um processo de evidenciação sígnica e, ao mesmo tempo, de ocultação ou sublimação de suportes destes signos, cujos reflexos podem ser vistos tanto no campo do design, quanto da arte ou mesmo da arquitetura. Muitas vezes estabelecidos por meio de estratégias bem definidas, voltadas ao envolvimento perceptivo e orientados para causar encantamento, esses recursos remontam a outros períodos, cujos exemplos tornam-se importantes para a própria compreensão dessas mesmas estratégias, como vimos no trabalho de Speer, que buscava, da mesma forma, levar o olhar das pessoas para vaguearem rumo à luminância de uma catedral ofuscante, deixando para trás as paredes de concreto e os pesados holofotes que nelas se sustentavam.
Referências
ARISTÓTELES. Poética. Tradução Jaime Bruna. In: A poética clássica (Aristóteles, Horácio, Longino). São Paulo: Cultrix, 2005.
GRAU, Oliver. Lembrem a fantasmagoria: política da ilusão do século XVIII e sua vida após a morte multimídia. In: DOMINGUES, Diana (org.). Arte, ciência e tecnologia: passado, presente e desafios. São Paulo: Unesp, 2009.
________. Arte virtual: da ilusão à imersão. São Paulo: Editora Unesp: Editora Senac São Paulo, 2007.
KERCKHOVE, Derrick de. A pele da cultura (uma investigação sobre a nova realidade electrônica) Lisboa: Relógio D’Água, 1997.
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix Ltda., 2005.
POISSANT, Louise. A passagem do material para a interface. In: DOMINGUES, Diana (org.). Arte, ciência e tecnologia: passado, presente e desafios. São Paulo: Unesp, 2009.
ROCHA, Cleomar. Interfaces computacionais e experiência sensível. [no prelo – texto a ser submetido para publicação]. “2010.
VIRILIO, Paul. A máquina de visão. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.
Vanderlei Veget Cassiano Lopes Junior é Mestre em Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás, com graduação em Direito e em Comunicação Social, ambas pela mesma universidade. Atualmente é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual, Faculdade de Artes Visuais da UFG, integrante de grupo de pesquisa em poéticas visuais e processos de criação e pesquisador do Laboratório de Investigação em Mídias Eletrônicas LIME – UFG, coordenado pelo Prof. Dr. Cleomar de Sousa Rocha.
vanderveget@hotmail.com
FAV – UFG
1 “O meio é que configura e controla a proporção e a forma das ações e associações humanas” (McLuhan, 2005). Por isso o meio é a mensagem. A consideração de McLuhan é de fundamental importância, pois, deriva que, se não notamos a energia elétrica – luz elétrica – como um meio de comunicação, é porque tendemos a considerar como meio somente o conteúdo da luz elétrica – TV ou computador, por exemplo. Daí que pode concluir que meio = conteúdo, ou meio = mensagem.
2 Utilizado com muita propriedade por Speer, o termo “fantasmagoria” remete-nos também às lanternas mágicas e aos efeitos gerados em seus espectadores, objeto de discussão proposto por artigo recente de Oliver Grau intitulado Lembrem a Fatasmagoria! Política da Ilusão do Século XVIII e sua vida após a morte multimídia. Mas, se na época das lanternas mágicas, ilustrações estáticas projetadas em salas escuras acompanhadas por narrações de temas mórbidos, causavam espanto e cativavam a plateia, no decorrer do século XX essas estruturas foram repaginadas, modificadas mas mantido o seu objetivo: prender a atenção pela redução do distanciamento crítico com o que é representado e pelo envolvimento emocional, como nos aponta o autor.
3 Notemos que os primeiros computadores, como o ENIAC, não possuíam monitores para visualização de dados processados pelo sistema, assim como aconteceu com os primeiros microcomputadores, surgidos na década de 1970. Nessa época, monitores passaram a ser comercializados como periféricos, como foi o caso do primeiro Apple. Recentemente, há quase quarenta anos do lançamento de seu primeiro microcomputador, a mesma empresa, festejada pela qualidade do design e usabilidade de suas máquinas e sistemas, disponibiliza para a venda os seus famosos iPads, e microcomputadores que se apresentam como um fino monitor de cristal liquido. Mesmo com espessura muito reduzida, ocultam toda a parte do hardware computacional, dando-nos a real impressão de estarmos utilizando apenas um “smart monitor”
Vanderlei Veget C. Lopes Junior
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FAV – UFG