INTRODUÇÃO
A arte é “um universo de discurso” e o trabalho do artista não segue regras fixas. O Direito é a “técnica da coexistência humana”, impondo normas de conduta e organização. A Propriedade Intelectual, um direito imaterial que abarca os direitos relativos às obras literárias, artísticas e científicas, divide-se em dois ramos distintos: o de Direito de Autor e o de Propriedade Industrial. Ao primeiro, cabe o ordenamento relativo aos direitos autorais das obras intelectuais estéticas fundamentado nos direitos da personalidade, nos seus aspectos morais, mas inserindo-se também na questão patrimonial; o segundo abrange a obra intelectual de cunho utilitário, em todos os seus direitos, mas vinculado a interesses técnicos e científicos.
Considerando que a arte tem um caráter social, assim como o conhecimento e os produtos culturais são de caráter social ou têm uma base social, percebe-se uma diversidade de linguagens utilizadas para descrever as relações entre as obras de arte e seu contexto social1. A atividade artística sempre esteve inserida no mundo do trabalho e a definição de suas atribuições e prerrogativas sempre foi questionada e reivindicada. O artista lutou pelo uso da assinatura e hoje seus direitos autorais são assegurados por lei.
A Declaração dos Direitos Humanosii, promulgada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948, preceitua que toda pessoa tem o direito à proteção dos interesses morais e materiais quando for produtora de suas obras científicas, literárias ou artísticas. A Constituição Federal de 1988, no seu artigo 5o, inciso XXVII, confere e explicita dos direitos aos criadores intelectuais ao afirmar que “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”. A Lei no 9610 de 19 de fevereiro de 1998 é a que regula o Direito de Autor e Conexos no país. Segundo Carlos Alberto Bittar,
… pode-se assentar que o Direito de Autor ou Direito Autoral é o ramo do Direito Privado que regula as relações jurídicas, advindas da criação e da utilização econômica de obras intelectuais estéticas e compreendidas na literatura, nas artes e nas ciências. Como direito subjetivista e privatista, recebeu consagração legislativa em função da doutrina dos direitos individuais, no século XVIII3.
Bittar considera ainda que
… o objetivo do Direito de Autor é a disciplinação das relações jurídicas entre o criador e sua obra, desde que de caráter estético, em função, seja da criação (direitos morais), seja da respectiva inserção em circulação (direitos patrimoniais), e frente a todos os que, no circuito correspondente, vierem a ingressar (o Estado, a coletividade como um todo, o explorador econômico, o usuário, o adquirente de exemplar)iv.
Assim, os direitos morais se relacionam à defesa da autoria da obra, enquanto os direitos de ordem patrimonial se referem à sua utilização econômica. Estes últimos estão, por sua natureza, relacionados com os meios de comunicação com os quais a criação intelectual se concretiza na prática (publicações, exposições, transmissões etc.).
Os direitos da personalidade, para Bittar, são “aqueles que se referem a relação da pessoa consigo mesma, quanto a características extrínsecas do ser e a suas qualificações psíquicas e moraisv”. Abarcam, portanto, o homem em si e em suas projeções para o exterior, como os direitos à vida, à honra, à imagem, à intimidade e outros. Por direitos intelectuais, entende-se que são aqueles referentes a relações entre a pessoa e as coisas (bens) imateriais que cria e traz à luz os produtos de seu intelecto, expressos sob determinadas formas dos quais detêm monopólio. Esses direitos, entretanto, incidem sobre as criações humanas que se manifestam em formas sensíveis, estéticas ou utilitárias, voltando-se à sensibilização e à transmissão de conhecimentos, como também à satisfação de interesses materiais do homem na sua vida cotidiana.
No mundo do Direito, de acordo com essa diferenciação, estipulam-se dois sistemas jurídicos especiais: o do Direito de Autor e Conexos, reservado às obras que por si realizam finalidades estéticas e de conhecimento, e o do Direito de Propriedade Industrial, destinado às obras de cunho utilitário.
No mundo da Arte existe uma distinção (tema bastante controverso) entre o que se considera Arte (arte pura, autônoma) e Artes Aplicadas, nas quais se inserem o Design e o Desenho Industrial. A diferenciação entre Design e Desenho Industrial é bem complexa e envolve discussões contraditórias, a partir mesmo de suas definições.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A PROPRIEDADE INTELECTUAL
O Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), criado pela Lei 5.648 de 11 de dezembro de 1970, é o órgão brasileiro responsável pelas marcas, patentes, desenho industrial, transferência de tecnologia, indicação geográfica, ferramental relacionado à Tecnologia da Informação e da Comunicação (hardware e redes) e topografia de circuito integrado. A proteção das cultivares pode ser obtida por meio da concessão de Certificado de Proteção de Cultivar concedido pelo Serviço Nacional de Proteção de Cultivares (SNPC), vinculado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).
A Biblioteca Nacional, localizada no estado do Rio de Janeiro e os seus postos estaduais de Escritórios de Direitos Autorais são responsáveis pelo registro e averbação das obras artísticas e intelectuais. As obras de artes visuais podem ser registradas na Escola de Belas Artesvi, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
No que tange aos chamados “conhecimentos tradicionais”, existem várias discussões entre juristas, comunidades locais e organizações mundiais de proteção da Propriedade Intelectual acerca da adequação dos direitos autorais. A Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI)vii trata conhecimentos tradicionais como um novo tema a se definir, instituindo o “Comitê Intergovernamental sobre Propriedade Intelectual, Recursos Genéticos, Conhecimento Tradicional e Folclore”, para estudar formas de regulamentar o assuntoviii.
A Propriedade Intelectual, no Brasil, está disciplinada principalmente pelas leis de Propriedade Industrial (Lei no 9.279/96ix), 9.456/97 (Cultivares), 9.609/98 (Software) e 9.610/98 (Direitos Autorais), além de tratados internacionais, como as Convenções de Bernax (Decreto no 75.699de 06/05/75, sobre Direitos Autorais) e de Paris, sobre Propriedade Industrial (Decreto no 1.263 de 10/10/94), e outros acordos como o Trade Related Intelectual Property Rights – TRIPs (Decreto no 1.355 de 39/12/1994). É também preceito Constitucional, estando arrolado entre os Direitos e Garantias Fundamentais, com previsão nos incisos XXVII, XXVIII e XXIX, em consonância aos incisos XXII e XXIII, do artigo 5º da Constituição Federal.
A divisão da Propriedade Intelectual entre direitos do Autor e Propriedade Industrial nos remete a uma questão filosófica recorrente no pensamento ocidental: a distinção entre seres e coisas, onde as grandes dicotomias – natureza/cultura, corpo/espírito, objeto/sujeito – estão sedimentadas. Esta última, a distinção entre objeto e sujeito, cujas premissas se reportam não à Grécia, mas sim à Roma Antiga (persona/res), é relativamente tardia e desenvolveu-se com o pensamento cartesianoxi.
Mas o homem faz parte da natureza e o que o distingue dos outros animais é o fato de que ele almeja transformá-la. E isso ele faz pela cultura. O pensamento antropológico xiiconsidera que os fenômenos culturais apresentam-se na forma de ideias, comportamentos e objetos físicos. Este último constitui aquilo que se denomina cultura material que, contudo, não está separada de ideias e do comportamento humano. A cultura material é tratada, geralmente, como uma contraposição dos objetos materiais às idéias e instituições, mas constitui-se, na realidade, em um fenômeno culturalxiii, expressando-se em todas as formas de conhecimento do homem: mito e religião, linguagem, arte, ciência e história. O conceito de culturaxiv, para os arqueólogos, se amalgama com o de cultura material, esta última entendida como uma das atividades do homem representada por um objeto, utensílio ou artefatoxv.
Seguindo essa concepção, podemos considerar que, na transformação da natureza, o homem inicia seu trabalho idealizando na mente a forma do objeto, projetando-o em seguida para finalmente dar-lhe a forma concreta. Assim, a cultura material engloba a imaterial.
Para o economista Antonio Luiz F. Barbosaxvi
… todo trabalho foi e é útil, mas nem todo o trabalho é necessariamente produtivo. Assim, o trabalho artístico é útil por atender às necessidades lúdicas, porém pode não ser economicamente produtivo, enquanto o trabalho do operário é útil e produtivo, criando bens necessários e destinados à troca. Nas etapas pré-capitalistas, a produção não pressupunha a troca; hoje, a troca é a finalidade da produção. O capitalismo se caracteriza por dissociar produção e consumo. Repensando o trabalho artístico, o processo pode ser compreendido. À medida que as novas tecnologias possibilitaram a reprodutibilidade da obra de arte, foi transformado não só o processo de trabalho, mas a própria utilidade de seu resultado. O artista deixa de trabalhar para o mecenas e é substituída a exponibilidade da obra única, limitada a uns poucos consumidores; agora, seu trabalho é destinado a uma extensa reprodutibilidade para o consumo de massa. A obra não perde a sua individualidade, mesmo quando realizada por uma equipe – como no caso do cinema, por exemplo –, e a produção adquire um caráter individualista.
Essas considerações nos reportam à obra de Walter Benjamimxvii e aos teóricos da Escola de Frankfurt, na discussão sobre a chamada Indústria Cultural (ou do entretenimento, como a chamam os americanos), onde estão inseridas as atividades e expressões artísticas como: teatro, filmes, vídeos, fotografias, cartazes, gravuras e suas diferentes técnicas, discos, desenho animado, história em quadrinhos e a publicidade, que trata da divulgação de todos. Todas essas atividades são protegidas pela Lei de Direitos de Autor e Conexos, ou pela Propriedade Industrial.
Assim, nos deparamos com as questões problemáticas que se apresentam nas relações existentes entre criação com dependência econômica. A obra do artista plástico se processa na relação com a necessidade desta ser comunicada e, consequentemente, “ser vista, sensibilizar e capaz de tocar” xviiiaos que a contemplam e com o mercado de arte.
Catherine Arruda Ellwanger Fleury é doutora em Artes Visuais e mestre em História da Arte pela UFRJ (Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGAV/EBA/UFRJ), e artista plástica. É também graduada em Arqueologia pela Universidade Estácio de Sá onde, atualmente, está cursando o segundo período de Direito (Campus Tom Jobim). O presente texto é parte de trabalho escrito – O Direito e a Obra de Arte – para o livro Direito Civil – Constitucional: Direitos da Personalidade Dignidade da Pessoa Humana / Uma Leitura Constitucional do Direito, organizado por Cleyson de Moraes Mello e Guilherme Sandoval.
1. Trato desse assunto em texto publicado em livro organizado por Rosza vel Zoladz. FLEURY, Catherine Arruda Ellwanger. “Refexões sobre Arte e Artistas”. In: Imaginário Brasileiro e Zonas Periféricas: algumas proposições da Sociologia da Arte. ZOLADZ, Rosza vel. Rio de Janeiro: 7Letras/FAPERJ, 2005, p. 188-206s
2. Declaração Universal dos Direitos Humanos, Artigo XXVII. 1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios. 2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor. http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php – acesso em 15/03/2011.
3. BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992, p. 8.
4. BITTAR, Ibid., p. 17.
5. BITTAR, Ibid., p. 2 e 3.
6. No site da Escola de Belas Artes (UFRJ), na página referente aos Direitos Autorais, encontram-se as instruções para que se possa efetuar o registro de obras de arte (artes visuais). No final, vem escrito: “não registramos músicas, partituras musicais, mapas, símbolos nacionais, livros ou textos”.
7. A Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI, criada em 1967, é um dos dezesseis organismos especializados do sistema das Nações Unidas, de caráter intergovernamental, com sede em Genebra, Suíça. Informações sobre a OMPI encontram-se disponíveis em: www.inpi.gov.br/menu-esquerdo/patente/pasta_acordos/ompi_html. A OMPI define Propriedade Intelectual, um monopólio concedido pelo Estado, como “ a soma dos direitos relativos às obras literárias, artísticas e científicas, às interpretações dos artistas intérpretes e às execuções dos artistas executantes, aos fonogramas e às emissões de radiodifusão, às invenções em todos os domínios da atividade humana, às descobertas científicas, aos desenhos e modelos industriais, às marcas industriais, comerciais e de serviço, bem como às firmas comerciais e denominações comerciais, à proteção contra a concorrência desleal e todos os outros direitos inerentes à atividade intelectual nos domínios industrial, científico, literário e artístico”.
8. O INBRAPI, Comitê Intergovernamental sobre Propriedade Intelectual, Recursos Genéticos, Conhecimento Tradicional e Folclore é uma organização não-governamental sem fins lucrativos cuja origem se reporta ao Encontro de Pajés ocorrido em 2001, em São Luís do Maranhão. Em 2002, foi criada a Comissão Indígena da Propriedade Intelectual (Cipi). Disponível em: http://www.inbrapi.org.br (Acesso em 28/03/2011).
9. Alterada e acrescida pela Lei no 10.196, de 14 de fevereiro de 2001.
10. Decreto n° 75.699, de 06 de maio De 1975 promulga a Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas de 9 de setembro de 1886, que foi completada em Paris a 4 de julho de 1896, revista em Berlim a 13 de novembro de 1908, completada em Berna a 20 de março de 1914 e revista em Roma a 2 de 1928, em Bruxelas a 26 de junho de 1948, em Estocolmo em 14 de julho de 1967 e em Paris em 24 de julho de 1971 e modificada em 28 de setembro de 1979.
11. POIRIER, Jean. História dos Costumes: O Homem e o Objeto. Lisboa: Editorial Estampa, Ltda., 1999.
12. NEWTON, Dolores. “Cultura Material e História Cultural”. In RIBEIRO, Berta (org.). Suma Etnológica Brasileira – 2 Tecnologia Indígena.. Edição atualizada do Handbook of South American Indians. Petrópolis: Vozes, 1986.
13. Reporto-me a Ernest Cassirer, que define o homem como um ser cultural, interpretando o empreendimento humano em suas principais formas simbólicas: a linguagem, a arte, a religião, a história e a ciência (CASSIRER, Ernest. Ensaio sobre o Homem. São Paulo: Martins fontes, 1997).
14. Em arqueologia, o termo cultura é visto como “uma associação de objetos de diferentes tipos, que se repete com certa freqüência no espaço e no tempo” (SOUZA, Alfredo Mendonça de. Dicionário de Arqueologia. Rio de Janeiro: ADESA, 1997, p. 41). Esse conceito se aproxima do que chamamos, na Arte, de estilo. Meyer Schapiro (SCHAPIRO, Meyer. Theory and Philosophy of Art: Style, Artist, and Society. New York: George Braziller, 1994, p. 51) afirma que estilo é geralmente entendido como uma forma constante e, às vezes, como elementos, qualidades ou expressões constantes na arte de um indivíduo ou de um grupo. O estilo reflete ou projeta a “forma interior” do pensamento e do sentimento coletivos. O que importa não é o estilo de um indivíduo ou de uma arte única, mas as formas e qualidades compartilhadas por todas as artes de uma cultura num período significativo de tempo.
15. Trato desse tema no primeiro capítulo de minha Dissertação de Mestrado, Renda de Bilros, Renda da Terra, Renda do Ceará: a expressão artística de um povo, obra essa que foi selecionada entre outras dissertações e teses para publicação, pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará. FLEURY, Catherine Arruda Ellwanger. Renda de Bilros, Renda da Terra, Renda do Ceará: a expressão artística de um povo São Paulo: AnnaBlume; Fortaleza: SECULT, 2002.
16. BARBOSA, Antonio Luis Figueira. Sobre a propriedade do trabalho intelectual: uma perspectiva crítica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999, p. 21, 22.
17. BENJAMIM,Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: Magia e Técnica: arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
18. DUVIGNAUD, Jean. O Artista, A Arte e a Identidade. Palestra proferida com apoio do Fórum de Ciência e Cultura. Tradução de Rosza Vel Zoladz. Escola de Belas Artes /UFRJ, 1994. P. 7.