Beatriz Resende entrevista Bernardo Carvalho
abril de 2007
Bernardo Carvalho: O livro foi escrito, de certa forma, em reação à recepção do Nove Noites e doMongólia. A certa altura, me dei conta de que o que realmente atraía a maioria das pessoas nesses dois romances era o efeito de realidade, a idéia de que liam uma história real, baseada em fatos reais, como se o romance estivesse reduzido a um relato da realidade, como se a invenção, a criação e a imaginação fossem o de menos. E isso começou a me incomodar, porque era a negação daquilo em que eu mais acredito, a negação da própria literatura. Não foi um projeto deliberado, porque em literatura as coisas não acontecem assim, são mais ambíguas e mais complexas. O Sol se Põe em São Paulo não é a ilustração de uma tese prévia. Mas, de fato, tem um lado militante. De algum jeito, acabou sendo resultado de uma inquietação diante da perda do interesse dos leitores pela ficção na literatura. O romance é uma máquina desvairada de produção de ficção.
Beatriz Resende: Como é, para você, que nasceu no Rio de Janeiro, viver em São Paulo? Se você tivesse total liberdade para escolher, viveria aonde?
Bernardo Carvalho: Para mim, é fundamental o sentimento de não pertencer a um lugar, um certo deslocamento que impossibilita a integração e o reconhecimento, permitindo ao mesmo tempo que você siga vendo as coisas de fora. Quando vim para São Paulo, a cidade funcionou um pouco dessa maneira, como terra estrangeira dentro do Brasil. Isso foi muito importante para eu conseguir fazer as minhas coisas, para conseguir escrever. A distância faz você enxergar melhor. Há várias cidades do mundo onde eu gostaria de viver hoje. Mas em todas elas o que eu sempre procuro é essa excitação do estranhamento.
Beatriz Resende: Por que sua deriva geográfica é agora pelo Japão? Você acha a literatura japonesa realmente importante para leitores latino-americanos?
Bernardo Carvalho: Não tem nada muito específico nem programático. Sempre fui fascinado pela literatura do Tanizaki, que é uma figura muito presente nesse romance. Parte do livro pode ser lida como um pastiche dos romances do Tanizaki, narrado por uma das personagens principais. O Japão produziu grandes escritores no século XX. E isso em termos absolutos, mundiais. No caso desse romance, o que me interessava era o deslocamento do qual eu vinha falando, o Japão no Brasil e o Brasil no Japão, as coisas fora do lugar. E o curto-circuito que a inadequação e o estranhamento podem provocar na criação de outros pontos de vista, de outras maneiras de ver. Há uma frase no final do livro que resume esse sentimento e essa vontade: “o oposto é o que mais se parece conosco”.
Beatriz Resende: Em seu O mundo fora dos eixos, importante obra de reflexão teórica sobre literatura, você faz um enfático o elogio da ficção e propõe uma formulação que não é simples ao ver ” a imaginação como elemento constitutivo da realidade e não um artigo supérfluo”. O que você acha da forte tendência da literatura brasileira contemporânea ao realismo e ao documental?
Bernardo Carvalho: É uma tendência natural. Quanto maior a violência dessa realidade, mais ela vai impor uma representação unívoca, mais ela vai reduzir as possibilidades de representação. A questão não é representar ou deixar de representar a realidade (até porque, de alguma forma, ela sempre acaba representada), mas não sucumbir a uma determinada idéia de representação da realidade como modelo e paradigma. A imaginação é um elemento complexo da realidade. A literatura e a arte cessam quando você passa a aceitar modelos para a criação.
Beatriz Resende: No auge de sua carreira como romancista, você fez uma pausa e se dedicou a uma nova experiência, como autor dramático, na criação junto com o Teatro da Vertigem de BR-3.
Como foi esta experiência autoral? Como foi o processo de criação partilhado, como é proposta do grupo? O resultado obtido valeu a pena? O espetáculo correspondeu às expectativas?
Bernardo Carvalho: O processo de criação do BR-3 foi muito longo, intenso e violento. Quando fui convidado para escrever o texto, o projeto ainda estava numa fase muito incipiente, tudo se resumia a uma vontade um pouco difusa e aberta de falar do Brasil por meio de três lugares (Brasilândia, na periferia de São Paulo; Brasília e Brasiléia, na fronteira do Acre com a Bolívia) e à idéia genial do diretor, Antonio Araújo, de montar o espetáculo em barcos e nas margens do rio Tietê. Eu podia propor o que bem entendesse e logo deixei bem claro que não me interessava fazer uma sucessão de cenas ou esquetes. Queria tentar encenar um texto narrativo, com personagens que tivessem uma história e seguissem um percurso do início até o final da peça. E queria que o texto tivesse uma dimensão trágica. É lógico que, pelo histórico do Vertigem, a idéia não era escrever uma peça aristotélica, nem criar personagens psicológicos. O próprio cenário, o rio Tietê, um esgoto a céu aberto cortando a cidade mais rica do país, funciona como emblema do fracasso de um projeto industrial de modernização na periferia do capitalismo e reforça a perspectiva alegórica de um projeto teatral que pretende falar do Brasil bem ali. Eu queria muito escrever um texto contemporâneo e narrativo que se passasse em vários planos de tempo e de espaço. No início, até pensei em usar o rio como uma linha do tempo, localizando o passado, o presente e o futuro no espaço (no final das contas, isso acabou se tornando impossível, pelas próprias dificuldades da montagem, que eram imensas). Em princípio, eles aceitaram a minha proposta. Durante um ano, trabalhamos em vários lugares de Brasilândia, oferecendo oficinas para adolescentes etc. Aprendi um monte de coisas nessas idas a Brasilândia, duas vezes por semana, ao longo de um ano. Depois, fomos de caminhão até Brasiléia, passando por Brasília, numa viagem de pesquisa. A viagem durou um mês. Foi a minha lua-de-mel com o grupo. Na volta, apresentei uma proposta de enredo, uma sinopse, uma estrutura dramática e narrativa, com os personagens e alguns diálogos esboçados. E foi aí que começaram os conflitos com os atores que tomaram a experiência do espetáculo anterior, Apocalipse 1,11, como paradigma do processo de criação colaborativa do grupo. Alguns ficaram incomodados que eu tivesse criado os personagens e um enredo, se sentiram tolhidos da autoria. Essas dificuldades se estenderam por todo o processo e acabaram repercutindo no próprio texto. Minha sorte foi encontrar no Antonio Araújo, que é um diretor incrível, um grande parceiro e um defensor do texto. Adoraria voltar a trabalhar com ele, mas não no mesmo esquema. Acredito em autoria individual. Que eu saiba, não existe nenhum grande texto de teatro que não tenha sido escrito por uma única pessoa. É claro que existem grandes espetáculos de teatro criados coletivamente. Mas não se pode dizer a mesma coisa dos textos. Há uma tendência, em alguns meios, a ver na autoria individual um resquício burguês e reacionário. Eu acho que é justo o contrário. A autoria individual é a possibilidade da diferença, da inadequação ao que é comum e compartilhado, e isso é fundamental para a idéia de liberdade. Pode ser até uma ilusão, mas prefiro viver com ela.
O resultado desse trabalho foi incrível. É claro que há coisas de que não gosto nem um pouco, mas há outras sensacionais. Montar essa peça no rio Tietê exigiu esforços hercúleos e uma entrega heróica de todos os que participaram do projeto. O problema é que, pela grandiosidade do projeto e pela escassez de recursos e meios, eles mal conseguiram ensaiar (ou pelo menos não o suficiente para poder estrear com o espetáculo pronto). Houve um ensaio, sob chuva torrencial, que foi para mim, de longe, a coisa mais bonita que já vi em teatro em toda a minha vida.
Beatriz Resende: O Teatro da Vertigem tem planos de encenar BR-3 no Rio de Janeiro?
Bernardo Carvalho: Havia uma possibilidade. Não sei a quantas anda.
Beatriz Resende: Fala um pouco de como você vê a literatura brasileira hoje? Como ela se situa em relação a produção internacional?
Bernardo Carvalho: Não acompanho com muita atenção. Você certamente saberá responder melhor do que eu.
Beatriz Resende: Quais são os próximos planos? Você pensa em repetir a experiência de criação de texto dramático?
Bernardo Carvalho: Estou tateando num novo projeto de romance. Adoraria voltar a escrever para teatro.
Beatriz Resende: Duas perguntas pessoais, você responde se quiser, o que quiser. 1) Dá para viver de literatura? E seria bom viver disso ou a própria literatura poderia sofrer com isso?
Bernardo Carvalho: Eu não consigo viver de literatura. Mas acho que seria bom viver disso.
Beatriz Resende: Não só vivo, mas na casa dos quarenta, super jovem. Como é para você ser um autor tão estudado, tema de tese e dissertações?
Bernardo Carvalho: Infelizmente, não dá mais para dizer que sou um escritor jovem. Não conheço a produção universitária sobre os meus livros. Talvez seja melhor assim.