Ano XIII 0201
dossiê
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EU E O EXÍLIO: UM DIÁLOGO COM LUTGARDES COSTA FREIRE

Neste ano de 2018 completam-se 40 anos que Lutgardes Costa Freire começou a organizar o retorno do exílio, de Genebra ao Brasil, com sua mãe, Elza Maia Costa Freire, e seu pai, o educador Paulo Freire, hoje Patrono da Educação Brasileira. Nessa jornada, eles elaboraram o exílio, tomaram distância dele, costuraram tramas, educaram a espera, a solidão, a raiva, registraram momentos difíceis e outros alegres.

Esta conversa, transcrição da entrevista gravada em vídeo[1], com Lutgardes Freire sobre as lembranças do exílio, faz parte de um diálogo iniciado há quase 20 anos e pode nos ajudar a compreender a importância de Paulo Freire e sua concepção de educação para os Estudos Culturais, sobretudo diante do movimento conservador que avança sobre a educação na América Latina. Como um diálogo inacabado, a entrevista se inicia pelo meio.

 

Lutgardes Freire Foto: Margarita Victoria Gómez
Lutgardes Freire
Foto: Margarita Victoria Gómez

 

Lutgardes Freire: (…) Eu estava com menos de cinco anos e minha mãe não me dizia onde meu pai estava. A ausência do meu pai foi bastante dolorida para mim. As minhas irmãs sabiam que ele estava preso e elas iam com a minha mãe até a prisão para levar comida para meu pai e para os outros presos.

Não tenho ideia do tempo que passou, é muito elástico, é a cabeça de uma criança. Mas, como te dizia, minha mãe ocultou esse fato de mim e de meu irmão porque ela precisava encontrar uma maneira de nos proteger. Ela pensava que se dissesse para mim e para Joaquim: “olha, o pai de vocês está preso”, a gente como criança poderia pensar que ele era ladrão, que ele tinha matado alguém. O imaginário da criança é muito fértil.

Ela falava que ele estava viajando. Mas cadê o papai, faz muito tempo que ele não vem, cadê o fim da viagem? A resposta era: “não, ele ainda não voltou da viagem”.

Eu não tenho noção dos comentários das pessoas do Recife com relação a isso. Mas era perigoso ficar no Recife, onde meu pai estava preso, com os militares tendo essa oportunidade de nos prender também. Então fugimos para o Rio de Janeiro, para a casa da irmã do meu pai, em Campos. E lá ficamos escondidos, era uma maneira de nos protegermos dos militares.

Lembro que uma das brincadeiras que eu tinha quando morava na casa da tia Stella e do tio Bruno, os dois já falecidos, era jogar pedra nos cachorros da rua. Eu era criança e acredito que era uma forma de extravasar a ausência.

Nesse período não estudei, não tinha escola, não tinha condição nenhuma de me levarem à escola porque seria uma oportunidade muito fácil de nos identificarem. A coisa foi muito feia. Muito dolorosa.

Nós ainda tivemos muita sorte, porque outras famílias passaram por outras situações muito mais difíceis. Por exemplo, famílias em que o marido está preso e a mulher chega para visitar o marido e diz na cara dele “tá vendo, tá vendo, o que você ganhou com se meter com o comunismo, tá vendo no que dá”, e aí se acabava o casamento, a família.

Qual foi a importância da presença das mulheres no exílio?

Lutgardes Freire: Nós ficamos unidos. A minha mãe sempre apoiou o trabalho do meu pai. Ela era uma educadora, foi professora de magistério e diretora de escola no Recife. Ela contribuiu com o meu pai na alfabetização das pessoas. O apoio das mulheres da família foi muito importante, por isso até hoje as minhas irmãs, especialmente a Fátima e a Madalena, têm essa coisa da força das mulheres nordestinas muito presente dentro de si.

Não sei que autor disse que a mulher nordestina é, antes de tudo, uma forte[2]. Ou seja, a mulher nordestina é muito forte porque você sabe que na nossa cultura nós somos machistas, temos que reconhecer isso, mas ao mesmo tempo, quem acaba obedecendo dentro de casa é o marido. No Nordeste isso é muito forte. As mulheres não têm a forca física, mas têm a força espiritual, força boa do coração, e minha mãe era assim, ela tinha essa fortaleza, era uma pessoa muito forte. Tanto assim que quando meu pai começou a escrever no Chile (e já podemos entrar no Chile), quem suportava a família no exílio era a minha mãe, psicologicamente. Eu te conto, Margarita, o exílio é uma fratura emocional.

Depois de passar pela Bolívia, nós, que estávamos na casa da tia Stella, do Rio viemos para São Paulo, e uns amigos nos ajudaram com a compra das passagens, e no Chile reencontramos o nosso pai.

Esse foi um dos momentos mais marcantes da minha vida. Descer daquele avião, eu não sabia sequer o que era um avião, eu também não sei como entramos no Chile. O que me foi dito é que Vera Barreto e o marido dela compraram as nossas passagens para Santiago. Descemos em Santiago e eu vejo assim longe um homem de bigode, meio careca, e eu disse, “meu Deus será que esse é meu pai, não pode ser, será que é?” E descobri que era e saí correndo, todo o mundo correndo.

No Chile, Jacques Chonchol sabendo da história conversou (não tenho isso claro, não sei se foi bem assim que aconteceu), mas me parece que ele conversou com o governo do Chile para exilar a gente e ao mesmo tempo encontrar um trabalho para meu pai. Aí chegamos a um apartamento duplex, em que em cima estavam os quartos dos meus pais e das minhas irmãs, e embaixo o quarto meu e de Joaquim. Começamos a morar nesse apartamento, mas não foi ainda nesse momento que meu pai esclareceu tudo para mim. Ele pensava: “ele não vai entender, é muito pequeno”.

Quando desci para brincar com as crianças, eu naturalmente não sabia falar chileno, espanhol:  eu falava e o menino não entendia; eu falava de novo, eu insistia, ele me dizia: você está louco, e eu dizia: não, você que está louco. Até que cheguei em casa e perguntei: “pai, que lugar é este? Isso aqui não é o Brasil?” Eu pensava que estava no Brasil, pensava que tinha voado para outra cidade do Brasil.

Fui me defrontando com essas situações culturais e com a beleza do Chile, uma país lindo, aquela cordilheira enorme, com aquele gelo, aquela neve, aquela coisa linda, aquele ar seco, o Chile tem um ar seco, e comecei a frequentar a escolinha, o jardim de infância e lembro que brincava muito com plantas. As professoras pediam para a gente plantar, plantar árvores, plantas, tinha um dia específico para cuidar da terra, para colocar água, tinha um dia para dançar, era uma escolinha mista então nós dançávamos com as meninas músicas folclóricas do Chile, músicas de filmes, como Zorba, o grego.

Um fato curioso que me aconteceu. Nessa idade, você vai entender, comecei a me apaixonar por uma menina, não pela professora, e eu disse: “Marcela, vamos entrar nesse armarinho”, e ela disse “vamos”. Eu fechei o armário e comecei a brincar com ela. Aí a professora tinha sentido a falta nossa e tirou a gente de dentro do armário. E ela disse para mim “niño cochino” (menino porco) e eu disse “perdão, perdão”.

O bom dessa história é que, depois de uma longa discussão que essa professora deve ter tido com meus pais e com os pais da Marcela, fizeram que no dia da dança eu dançasse com Marcela. Foi lindo, uma boa lembrança. Mas eu era danadinho já nessa época. Eu já tinha uma sexualidade à flor da pele. Eu não fui expulso da escola porque meus pais devem ter falado com a diretora.

Mas nessa escola eu me lembro das músicas que a gente tinha que cantar. Por exemplo, uma que dizia, “todos los patitos se fueron a nadar, el mas chiquitito se quiso quedar, la madre enojada le quiso pegar y el pobre patito se puso a llorar…”. Um dia cheguei em casa e disse “eu sei cantar em espanhol” e todo o mundo ficou a meu redor e eu cantando “todos os patitos”, era muito engraçado. Então tinha esses momentos também.

Na minha infância no Chile eu não gostava da missa. A minha mãe era muito religiosa – e eu estou sorrindo agora porque me lembrei de um fato em Genebra, mas a gente não chegou ainda nesse ponto – e fazia questão de levar no domingo toda a família à igreja. Meu pai ia, mas, no decorrer do tempo, com todas as mudanças que estavam ocorrendo naquela época, na conjuntura econômica, política, não só no Chile, mas em toda a América Latina, a Teologia da Libertação começou a ganhar força com o meu pai. A partir desse momento ele disse: “olha, Elza, eu não vou deixar de ser católico, mas não comungo mais com essa igreja tradicional”. Ele começou a trazer o padre para casa. O padre Menezes vinha celebrar a missa todo domingo conosco. Diferente da tradicional. Ele pegava um pedaço de pão, e comíamos o pão. Era como qualquer outra missa, mas dentro de casa. Eu me lembro que li um trecho da Bíblia.

Agora, tem um fato que eu gosto muito de lembrar. Nessa idade, um pouco mais adiantado, eu tinha um “dever” para fazer, que era aprender sobre todos os ossos e o corpo por fora da galinha. Já era de noite, peguei o livro e fiquei estudando. Mas não entendia. Não tinha jeito de eu entender o que era aquilo. Aí eu disse, “vou falar com meu pai”.

Ele estava no seu escritório, e eu disse: “pai, me ajude aqui, eu não estou entendendo essa matéria e a prova é amanhã”. Ele disse: “O que é?” “Tenho que aprender todos os ossos da galinha e como é o corpo dela por fora.” Ele disse: “meu filho, pare de estudar, você não vai aprender nada assim, já são mais de dez horas, você está cansado, precisando dormir, amanhã acorde bem cedo e vai ver lá fora, no quintal, como é uma galinha, as penas, o bico… e depois você vai fazer a prova”.  Nós criávamos galinha para comer galinha ao molho pardo.

Aí eu acordei bem cedo, olhei a galinha e tal e entendi. Cheguei, ele estava tomando o seu café, e lhe disse “papai, entendi tudo”. Ele disse: “eu sabia”. Fiquei muito feliz, fui para a escola, e tirei nota máxima. Muito mais tarde, quando comecei a me interessar pelas ideias de meu pai, percebi que não é possível dissociar o concreto do teórico. O que eu estava fazendo e a escola ensinando era só o teórico. Ninguém aprende sobre o mundo só com o teórico. O mundo é essa relação dialética entre teoria e prática, concreto e teórico, claro que naquela idade eu não tinha essa noção.

E, a partir desse momento, os meus professores no Chile trabalhavam comigo essas coisas. Meu pai já tinha melhorado de vida, trabalhava na ONU e tínhamos mudado daquele apartamento para uma casa de um bairro chique.

Essa é outra coisa. Quando morávamos naquele apartamento, todo fim de semana vinham brasileiros e estrangeiros para almoçar em casa para conversar com meu pai. Então, um dia um psiquiatra lhe disse: “olha, Paulo, se tu quiseres salvaguardar a tua família, é melhor você se mudar daqui. Ir para uma casa mais distante que evite tanta gente dentro de casa porque teus filhos estão perdendo você, estão precisando de você”. Ele trabalhava a semana inteira, escrevia e, nos fins de semana, estava com os amigos. Ou seja, não havia mais família. Fomos para essa casa e tudo mudou. As visitas continuaram, mas eram menos frequentes.

Ou seja, a situação de exílio e o fato de ser uma pessoa destacada afetou a família.

Lutgardes Freire: Sem dúvida. Por isso que eu penso que tenho muita sorte de ser filho de Paulo Freire, mas também era um sacrifício.

Então, naquela casa, quando eu tinha sete anos, meu pai nos revelou a verdade. Ele disse: “eu não desapareci, eu fui preso”. A gente perguntou: “Mas por quê?” “Eu fui preso porque eu criei um método de alfabetização, e os militares deram um golpe no Brasil, e me prenderam”. Se dissipou dentro de mim a dor dessa ausência, entendi melhor o que tinha acontecido com meu pai. Joaquim aceitou melhor, ele tinha mais idade. Eu tinha uma reação muito infantil ainda. Eu era muito agressivo, isso já na Suíça, e fui criando raiva de meu pai, eu não tinha pai, Margarita, só tinha a minha mãe. Chegou uma época que eu disse para o meu pai: “quando que você vai parar? Quando que a gente vai tomar um chope juntos?” Eu consegui tomar o chope com ele. Eu já fazia terapia nessa época. Fiquei feliz, na verdade a gente se disse poucas coisas, mas só queria isso, estar próximo, sentir que estava à disposição. Eu acho que os filhos de exilados de alguma forma se rebelam contra seus pais. Era um sacrifício que a gente tinha que fazer, ele era na verdade um pai ausente-presente. Ele viajava muito e quando voltava era uma festa.

Mas, voltando ao Chile ainda. Começamos a fazer amizade com Thiago de Melo, Geraldo Vandré, Almino Affonso, Plínio de Arruda Sampaio, Fernando Henrique Cardoso. Tem até um fato que não sei se alguém sabe: um belo dia, tu sabes, Chile naquela época era um país muito pobre, então tinha assaltantes, os batedores de carteiras, e, no dia do recebimento do salário de meu pai, ele pegou o ônibus (vestia uma capa, fazia muito frio), em pé, esperando chegar ao ponto dele, e, quando desceu, percebeu que estava sentindo um frio esquisito. Quando abriu o casaco, estava rasgado e todo o salário dele de um mês sumido. Ele chegou em casa pálido, disse: “aconteceu isso… e nós não temos dinheiro”. Minha mãe disse: “Paulo, não tem jeito, vamos pedir ajuda a nossos amigos”. E aí, se eu não me engano, ele falou com Fernando Henrique Cardoso, que era o mais rico dos exilados naquela época no Chile. Ele lhe disse: “Fernando Henrique, pelo amor de Deus, me salva. Eu vou te pagar centavo por centavo, mas me dá meu salário, não tenho condições de sobreviver”. E Fernando Henrique deu uma bela soma para nós.

Como foi a passagem do Chile para Cambridge?

Lutgardes Freire: Em Cambridge, morávamos perto de Harvard, onde foi filmado Love story. Quando chegamos, meu pai tinha que aprender inglês em 40 dias (não usou o método dele, risos). O método que ele utilizou, o que eu me lembro, ele comentou comigo. Eu sentia que não daria certo, ele já tinha mais de 40 anos, teria que fazer um esforço enorme. Ele fez o seguinte: tinha um livro em espanhol, digamos, de Freud, e aí ele comprava o mesmo livro em inglês, e ficava lendo um e outro. O inglês dele era muito curioso. Usava muitas expressões que não são usadas no mesmo sentido em inglês, mas que fazem sentido para nós, brasileiros. Por exemplo, ele dizia, “look, look!” (olha, olha!). Ele foi falando assim. Ele comentava comigo, “estou fazendo um sucesso fantástico, sabe por quê, Lute? Porque os norte-americanos admiram toda pessoa que sabe latim, e como sou um homem latino, uso expressões em latim e eles ficam fascinados”. Ele aprendeu em 40 dias! Foram 11 meses fantásticos, difíceis para todos nós, as minhas irmãs ficaram no Chile e depois de certo tempo decidiram ir também para os Estados Unidos.

Pode o exílio ser considerado um momento de aprendizagem?

Lutgardes Freire: O exílio não é fácil. Vivemos 11 meses nos Estados Unidos, na época da Guerra do Vietnam. Foi um aprendizado, mas também você tem que estar disposto para esse aprendizado. Dos filhos, fui o mais resistente, eu não gostava dos Estados Unidos porque naquela época representava a coisa do imperialismo, do capitalismo, do dinheiro, os jovens protestando nas ruas. Eu era muito criança para entender tudo isso. Depois dos 11 meses, quando acabou o contrato do meu pai com a Universidade de Harvard, partimos para Genebra.

Como foi a sua experiência na escola?

Lutgardes Freire: Preciso dizer que a minha experiência na escola nos Estados Unidos não foi boa. Era uma escola normal, tinha aulas particulares de inglês, com uma professora da escola, eu e meu irmão. Eles tentaram nos ajudar o máximo para que a gente gostasse daquilo, mas eu não gostei, meu irmão gostou mais, era mais velho e entendeu.

Mas quando chegamos em Genebra foi demais. Eu disse: “não vou ficar, não suporto isso aqui”. Tudo certinho, tudo bonitinho, parecia casa de boneca, tudo maravilhoso, nenhum problema social, não tinha pobre (risos). Só depois de muito tempo que eu fui descobrir que os suíços escondem a sua pobreza. Claro que isso é relativo. Estamos falando dos anos 1970.

Na escola eu criei um problema para meus pais. Fui para a escola no primeiro dia, e o professor disse: “tirem seus cadernos, peguem as suas réguas, façam margens em todas as páginas”. Mas eu pensei, “esse cara pensa que está falando com máquinas?”

Cheguei em casa e disse para meu pai: “eu não vou estudar nessa escola”. Ele perguntou: “por quê?” “Eu não quero virar robô!” Ele disse: “filho, tu tens que ir à escola”. E eu: “não vou, e você critica essa escola que está aí! E eu também critico!”. Nossa… isso foi… meu pai teve que ir à polícia suíça para explicar e dizer, “desculpe, mas meu filho está passando por um choque cultural e psicológico muito forte aqui na Suíça, ele não está se adaptando, então ele não quer ir à escola”. Os suíços ficaram surpresos e disseram: “tá bom, ele vai estudar com um professor particular durante um ano, e, depois desse ano, ele volta para a escola. Ele terá se acostumado com a nossa cultura e voltará para a escola”.

Era um problema porque na Suíça a escola era gratuita e obrigatória, como deveria ser em todo o nosso país. Fui consultado por meu pai e aceitei. E assim fui tendo as minhas aulinhas de francês, matemática, história. Estou falando da década de 70 do século passado. Hoje pode parecer um absurdo. A escola suíça se você compara com a brasileira… não tem comparação.

Eu tinha 11 anos e depois entendi uma coisa fundamental, que é que o governo de um país é uma coisa, mas o povo é outra, não era para lutar contra todos e sim contra o governo, e como você é estrangeiro pega mal. Então, minha cara amiga, tinha que respeitar e estudar do jeito que todo mundo estuda.

Estudei até onde pude e depois do ensino fundamental não tirei nota suficiente para continuar o colegial. Fui estudar música, percussão clássica e popular no Conservatório Popular de Genebra. Foi fantástico. Mas, então, já era época de retornar ao Brasil.

Meu pai, no Conselho Ecumênico das Igrejas da Suíça, recebia gente do mundo inteiro e não tinha nenhuma restrição a ninguém. E viajava de 15 em 15 dias.

Eu vi fotos suas no Taj Majal, na Índia…

Lutgardes Freire: Não, não sou eu, eu não ia nessas viagens profissionais com o meu pai. De vez em quando ele viajava com a minha mãe. Ela carregou a família inteira nas costas, tinha que cuidar das crianças, da casa.

Mas eu quero chegar à África. Foi o momento em que meu pai começou a alfabetizar na África e foi uma das experiências mais marcantes na vida dele e mais bonitas também. Ele, junto com o IDAC, Instituto de Ação Cultural que criou em Genebra, viajou para as antigas colônias portuguesas que se libertaram. Ele ia e voltava; tem muita gente que pensa que moramos na África. As viagens duravam em média 15 dias a cada vez. Foi rico profissionalmente para meu pai.

Qual foi a particularidade do exílio nesse momento?

Lutgardes Freire: O exílio afasta você da sua cultura original, mas também lhe dá culturas diferentes, é complicado, porque em meu caso eu não me sinto totalmente brasileiro. Minha esposa certa vez me falou: “Lute, você lembra do Crush?” Eu perguntei: “O que é isso?” Eu não conheci isso dos anos 1970, eu estava na Suíça.

Eu me sinto um pouco estrangeiro, não tanto como Geraldo Vandré, que se sente exilado em seu próprio país. Sou um brasileiro que pensa em francês, em inglês, que fala um pouco de espanhol (está enferrujado). O exílio é uma coisa complicada porque você tem que fugir fisicamente da sua própria cultura. Fugir não significa esquecer, abandonar, escapar e nunca mais querer saber disso. Meu pai não fugiu, muito pelo contrário, ele deu uma grande contribuição ao mundo, não só ao Brasil, ao Chile, aos Estados Unidos, ou à Europa, África. Quando digo fugir é porque existiu de fato uma situação-limite, ou seja, se ele fosse preso no Rio de Janeiro, ele teria sido assassinado. Então, quando você se encontra numa situação como essa, você tem que fugir se você quer salvar a sua vida. Seria ridículo se ele fizesse o contrário, seria um suicida.

Aqueles que ficaram e lutaram contra a ditadura, esses não chegaram à situação-limite do meu pai, que foi perseguido, ele não tinha outra opção. Ele não queria sair do Brasil, ele disse para a minha mãe: “eu vou ficar”, e ela perguntou: “como você vai educar cinco filhos aqui?” É novamente a importância da minha mãe, da mulher, na sua vida.

O exílio foi se acalmando, fomos envelhecendo, amadurecendo. Chegou 1978, aconteceu a abertura no Brasil, e Dom Paulo Evaristo Arns foi a Genebra falar com meu pai, e ele disse: “Paulo, eu te garanto que nada vai acontecer contigo nem com a tua família voltando ao Brasil. Vou falar pessoalmente com os militares”.

Meu pai ficou muito tocado e muito feliz. Evidentemente, mais do que para nós, para meus pais o exílio provocava um sonho, que não é um sonho, é o leitmotiv (nem sei se se usa essa palavra ainda)… era uma coisa constante, “quando é que eu vou voltar?” Era um desejo profundo de voltar para sua casa, seu país, sua cultura.

Ele disse: “Lute, você vem comigo porque você está estudando percussão clássica aqui na Suíça, mas não tem condições de se manter, e eu não vou ter dinheiro para te manter aqui na Suíça”. Fiquei muito chateado com isso, eu queria ficar. Mas, por outro lado, tinha uma curiosidade enorme de conhecer o Brasil. Para mim, o Brasil foi sempre aquela coisa desconhecida de que todo mundo falava. Eu saí com cinco anos do Brasil e voltei com 21. Minha irmã Fátima foi para a Polônia, Cristina casou na Suíça, Joaquim decidiu largar a escola e se dedicar à música, ao violão clássico, então ele foi professor de violão já muito jovem. Madalena já estava no Brasil, ela tinha se casado com 18 anos no Chile com Francisco Welfort. Voltamos efetivamente para o Brasil, eu, meu pai e minha mãe, para este apartamento.

Conversando sobre exílio, hoje quando nos deparamos com grupos que sugerem retirar de Paulo Freire o reconhecimento legítimo de patrono da educação brasileira, é como se quisessem exilá-lo novamente. O que você pensa disso?

Lutgardes Freire: Essas pessoas são uma minoria. São pessoas geralmente humildes, que não estudaram ou estudaram pouco, não têm muito acesso à cultura nem entendimento da educação brasileira.

Podemos pensar que é um setor com falta de educação crítica?

Lutgardes Freire: Pois é.  É complicado porque, ao mesmo tempo que tem essas pessoas humildes, não é verdade que sejam só elas, você encontra outras pessoas, algumas muito ricas, que têm esse pensamento. É uma diferenciação que precisa ser feita. Essas pessoas são da extrema-direita e se posicionam contra meu pai, e têm todo o direito de fazer isso. Vivemos ou não vivemos em uma democracia? A gente tem que aprender também a respeitar o pensamento do outro. Podemos não concordar, mas não temos o direito de impor o nosso ponto de vista.

Acredito que o meu pai somente vai ser reconhecido no Brasil no dia em que nós tivermos uma quantidade muito pequena de analfabetos. Acredito que o método (ou proposta pedagógica) dele ensina rápida e eficazmente. Claro, é também político, crítico e democrático, e é por isso que não vinga, por isso que Paulo Freire é um exilado dentro de seu próprio país.

Como você vê o alcance desse movimento conservador global?

Lutgardes Freire: Estou estupefato com o que está acontecendo no mundo com esse retrocesso mundial da política para o fascismo, para o pensamento totalitário e esse pensamento norte-americano, da defesa dos direitos dos homens e das mulheres brancos de olhos azuis e loiros em detrimento da maioria das pessoas do mundo. É um retrocesso com um efeito tão forte que acaba provocando o que a gente chama de terrorismo; e leva a uma situação de exaustão, de terrorismo, e não é possível dialogar com o terrorismo. Se, ao mesmo tempo, tivéssemos amenizado essa diferença entre os mais ricos e os mais pobres o terrorismo não teria acontecido. O terrorismo é fruto de uma política elitista e racista. É muito grave, e com isso não estou defendendo o terrorismo, acho uma coisa horrível, mas a gente deve se questionar: o que o mundo ocidental está fazendo com o mundo islâmico para que tenha essa reação? É muito grave a questão da religião? Temos que ter um pouco de humildade e reconhecer se somos realmente democráticos, reconhecer e aceitar a diferença do outro. É um tema atual e muito complicado.

Voltando ao exílio de Freire, ele nunca foi realmente entendido e aceito no Brasil. Por mais que ele tenha ganhado prêmios, muitos desses prêmios não foram no Brasil.

Tenho a impressão de que Freire foi mais criticamente reconhecido em outros países da América Latina do que no Brasil…

Lutgardes Freire: Veja você a situação… o conservadorismo e o racismo ajudam. O brasileiro é racista e não quer que digam a ele que é racista, não quer reconhecer. Meu pai sofreu muito com isso, ele foi professor da PUC, mas o sonho dele era voltar para o Recife, ser aceito pela Universidade Federal e continuar o trabalho dele. Mas as condições políticas não o permitiram. Eu acho lastimável o conservadorismo, pensando em tudo isso do meu pai, ele hoje é reconhecido ainda no Brasil como do século passado, como literatura, como um professor que escreveu sobre educação e que tem que ser lido para passar na prova.

Evidentemente são tempos difíceis, mas ainda esperamos por mudanças culturais e políticas importantes. Como trazer Paulo Freire para a atualidade?

Lutgardes Freire: Na atualidade, a sociedade capitalista e, em particular, a sociedade brasileira, criou uma verdadeira adoração aos aparelhos tecnológicos e à internet. Ou seja: a ideia de que o que aparece na internet é verdadeiro, mas não é bem assim. As pessoas estão perdendo seu senso crítico. Antes de sair para o exílio, meu pai trabalhou na UFPE. Ele usou projetores trazidos da Polônia e, para vocês terem um número, eram três mil, e sobrou um, então tem 2.999 projetores enterrados no solo brasileiro, principalmente no sertão e em Pernambuco. Tenho certeza de que se hoje estivesse vivo ele estaria maravilhado com essa coisa da tecnologia. Mas ele ia dizer: olha, vamos utilizar isso para alfabetizar, para conscientizar, para brigar contra essa injustiça no Brasil. Ele não levaria em conta o que se leva em conta hoje, que é o entretenimento, o consumo, a publicidade, os usos para comentários racistas, as pessoas agredindo umas às outras. Isso ele criticaria com muita veemência.

Lutgardes, acredito que tivemos avanços importantes. O Fórum Social Mundial, ocasião em que você entregou para a Biblioteca Social Mundial, para o Mosaico, o livro Pedagogia do oprimido,[3] foi um dos indicativos de que a situação estava mudando. Claro, com a revalorização de Freire e desses espaços, aparecem os que contestam…

Lutgardes Freire: Sim, mas falta mais, porque falta a prática, a alfabetização, a conscientização, a humanização, a educação cultural, a educação política, todos as diferentes vertentes do pensamento Paulo Freire faltam ser trabalhados no Brasil.

O que você pode me dizer de Lutgardes Freire?

Lutgardes Freire: Lutgardes Freire é um pensador, uma pessoa que se preocupa com seu país, que se preocupa com seu vizinho, que se preocupa com o mundo. Sou uma pessoa extremamente generosa, já dei muita coisa minha para os outros, não me apego às coisas a não ser muito pouco, tento não me apegar. Sou professor de idiomas, estudei Ciências Sociais na PUC-SP (1980-86) quando retornei ao Brasil. Sou um cara que adora música, que adora escutar música popular brasileira, especialmente Chico Buarque, Milton Nascimento, Elis Regina… Tenho família, tenho uma filha linda de 19 anos, uma mulher fantástica que me ajuda muito, a Celia, e vou vivendo a vida, vou fazendo o que eu posso fazer para levar adiante o pensamento do meu pai, mas jamais para congelar o seu pensamento, sempre vê-lo como um momento de repensamento, de continuação do pensamento dentro da história. Nós temos realmente que reinventar Paulo Freire.

 


 

* Margarita Victoria Gómez é pesquisadora visitante do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ). Atua em pesquisa sobre Educação Superior e Migração no Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (NUPRI) e no Centro de Estudos Rurais e Urbanos (CERU) na Universidade de São Paulo. Coordena a Virtus Educação e Pedagogia da virtualidade. Publicou vários artigos, livros e vídeos. Email: mvgomez07@gmail.com.

 

Notas

[1] São Paulo, 9 dez. 2017. O vídeo gravado será publicado no Youtube, canal Virtus educação: https://www.youtube.com/channel/UCHx77GT6UAXXFdbF2oOUJ6Q

[2] Parafraseando Euclides da Cunha: “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”.

[3] Entrega de fac-símiles dos originais de Pedagogia do oprimido: 10 de outubro de 2001.