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Fingimentos | de José Carlos Avelar

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.
Fernando Pessoa, Autopsicografia

Resumir o que acontece no filme mexicano La tarea (1991) deixa quem não o conhece meio desconfiado. Um filme de um plano só e de apenas dois personagens, a câmera todo o tempo numa única posição, enquanto dois personagens conversam, parece indicar um espetáculo mais próximo de teatro ou de novela de televisão que de cinema, porque um filme, o espectador sabe até de olhos fechados, se faz com muitas imagens e muitas ações mostradas de diferentes e variados ângulos; filme que é filme, assim parece, não perde nada de vista e vê quase tudo o que há para ver no mundo. Quase hora e meia sem movimento, muita conversa e pouca ação, não parece coisa de cinema. Pode não parecer, mas é, porque nada neste filme de Jaime Humberto Hermosillo é assim como parece.

Um plano só – e de certo modo todos participamos de sua preparação. Antes do começo da história, uma imagem breve: antes do plano que de fato faz o filme, uma mulher se ajeita para receber uma visita e esconde uma câmera de vídeo em baixo da mesa, por trás de uma cadeira. A câmera é ligada e a partir daí passamos a ver como se estivéssemos olhando pelo visor desta câmera de vídeo, no chão, de baixo para cima: vemos o pé da cadeira perto da mesa, as almofadas encostadas na parede à direita, um pedaço da estante à esquerda e ao fundo a porta que dá para a sala. A mulher entra em quadro, já pronta, com o vestido vermelho para receber a visita, mas ainda de óculos, para ver se a câmera está mesmo bem escondida. A campainha anuncia a chegada da visita, ela coloca os sapatos de salto alto e sai de quadro para abrir a porta em algum lugar à direita do quadro. Começa então a história de Virgínia e de Marcelo: um reencontro de namorados que não se viam há algum tempo a chamado dela, para conversar, para ver como andavam as coisas.

O prólogo prepara a tensão que alimenta o filme. O espectador sabe que o encontro está sendo filmado e participa dos inúmeros artifícios armados pela mulher para que o homem não perceba a câmera nem prejudique a imagem, cobrindo a visão com o paletó, preferindo a cadeira fora de quadro em lugar das almofadas arrumadas no chão, ou sugerindo o mais confortável sofá da sala, que a câmera não pode ver.

O espectador se diverte porque participa de um jogo de saber das coisas pela metade: ele sabe que a câmera está filmando o homem, que não sabe que está sendo filmado. Sabe que a mulher está nervosa, mas não sabe por que ela está filmando às escondidas aquela conversa mole de quem sabe muito bem o que pretende com aquele encontro e sublinha o pretendido, fingindo não saber o que os manteve afastados: Marcelo esqueceu de telefonar, Virgínia esqueceu de telefonar para perguntar por que ele não telefonava; ele não sabe por que esqueceu, pois na verdade até teve vontade de telefonar para voltar a vê-la; timidez, falta de jeito masculina talvez. Ela não sabe por que esqueceu de telefonar, pois na verdade só tinha boas lembranças dele; timidez, inibição feminina talvez. E agora, o telefonema depois de tanto esquecimento, ela não sabia por que tinha feito o convite, ele já se esquecera por que tinha aceitado.

Ninguém sabe de nada com um jeito de quem sabe de tudo.

Virgínia, Marcelo, a câmera e o espectador formam um triângulo de quatro lados fingidores: ela finge que está à vontade, mas na verdade está preocupada; não quer que ele perceba a câmera debaixo da mesa. Ele finge que está à vontade, mas alguma coisa o incomoda: não sabe o que é; sente a desagradável sensação de estar sendo observado. E o espectador, que para melhor se divertir com a sensação agradável de observar, desde há muito tempo se acostumou a fingir que não está num cinema, finge tão completamente que finge que nem existe. Finge que é a câmera: espia como se estivesse escondido debaixo da mesa ao lado dos dois sabidos amantes que representam, um para o outro, o papel de ingênuos esquecidos.

Estimulado pelo grau de fingimento solicitado por tudo quanto é filme e pelo comportamento do casal em cena, o espectador desde cedo desconfia que a imagem aqui finge tanto quanto Virgínia e Marcelo. Enquanto mostra, ela encobre algo. E ao encobrir assim, mostrando, ela insinua algo do mesmo modo que sugere ou revela os outros cômodos do apartamento e a rua lá fora, ausências adivinhadas e presentes pelos muitos sinais visuais e sonoros que invadem o espaço visível. Na chegada de Marcelo, por exemplo, a ação propriamente dita se passa fora de nosso campo de visão enquanto a câmera insiste em permanecer em baixo da mesa, como se dali fosse possível ver o essencial para o perfeito entendimento da cena. Ou seja, a história começa quando Virgínia sai de quadro e deixa o espaço vazio. Começa se referindo a uma ação que não aparece imediatamente visível na imagem. Podemos ouvir, mas não vemos a chegada de Marcelo.

Este jogo faz do plano único que compõe o filme uma imagem múltipla. Ela é sempre a mesma e sempre diferente. A mesmice se altera bastante com a movimentação dos personagens: eles se aproximam, se afastam, chegam bem perto, aparecem de corpo inteiro ou quase desaparecem de cena, o que dá ao quadro desenhos bem diferentes a cada instante. Mas não vem daí a renovação disto que de fato é sempre a mesma coisa. O que de fato se movimenta e se renova é o olhar. A imagem única parece múltipla porque observada a partir de constantes mudanças no modo de ver. Primeiro ela é só o que materialmente é: o chão, o tapete, as almofadas, a parede à direita, a estante à esquerda, a porta, a sala, os dois personagens. Depois, passa a ser o que não é, os outros espaços do apartamento. Passa a ser não propriamente o que revela e sim o que encobre. Continua ali, mas não se interessa pelo que está ali – estimula o olhar a imaginar a cozinha, o banheiro, o corredor, os espaços em que se passa algo percebido só por ruídos e sombras. E finalmente, fachada que denuncia o interior que não se vê, esta mesma imagem passa a ser uma representação da conversa de Virgínia e Marcelo. Eles dizem algumas coisas para encobrir outras, mas de quando em quando se contradizem, representam mal, e desmontam esta espécie de camuflagem que usam para se proteger e se comunicar, para se esconder e se mostrar. Na realidade eles se mostram como são, gente que se esconde assim como a câmera esconde o resto da casa. Não sabemos o que a câmera esconde nem o que a conversa esconde. Ver, aqui, sugere que devemos ver o espaço diante dos olhos como incompleto, como fragmento, corte, máscara, escudo, representação, fingimento. Pedaço, sim, mas inteiro. A parte é o que melhor representa o todo. Ver cria uma tensão visual. O que vemos, desde o prólogo quando uma câmera de vídeo é escondida em baixo da mesa, não mostra: oculta. O que oculta é o que mostra. O que o espectador vê sugere que o que ele viu anteriormente talvez devesse ter sido visto de outro modo, de outro ângulo: algo se passou ao alcance dos olhos e ele não percebeu.

O cinema, a questão aqui aparece de modo bem claro, não é o que olhamos, é o olhar. Quem vê está consciente do ponto de vista de onde vê. Quem vê um filme recebe não um sentimento igual ao dos personagens que vivem a cena, mas sim o sentimento da pessoa que por trás da câmera torna a cena visível. Enquanto vê um filme o espectador não se limita a fazer um recenseamento dos objetos que compõem o cenário e dos gestos e palavras dos personagens. A ação na tela é uma projeção do olhar do realizador, ou do personagem através do qual ele narra a história. É um estímulo para o olhar do espectador. O cinema é bem este momento em que se cruzam os olhares da pessoa que fez o filme e da pessoa que vê o filme. La tarea revela e brinca com este mecanismo ao reduzir a câmera à caricatura de quem vê um filme: a câmera que Virgínia esconde em baixo da mesa é o espectador simultaneamente na platéia e na cena, imóvel, os olhos para cima. Aqui e ali ele perde parte do que acontece porque o paletó de Marcelo ou o sapato de Virgínia cobre a visão; mais ou menos assim como se um outro espectador tivesse entrado na metade da sessão e sentado na poltrona da frente. A cabeça grande que cobre um canto da tela não impede que continuemos a ver o filme passando por cima da mancha escura que apaga parte da imagem. A câmera é uma caricatura do espectador capaz de ver um filme até de olhos fechados, mas não se limita a ficar na platéia. Salta para a cena. Rouba a cena. Apesar de imóvel é a personagem que mais se movimenta em cena. Ela (ou ele, o espectador, o personagem que ela representa) é a verdadeira protagonista. E por isso, lá pela metade da história, quando a câmera de vídeo é descoberta por Marcelo – no chão, meio sem roupa, ele percebe a pequenina luz vermelha debaixo da mesa e dá um pulo para trás – é como se o espectador tivesse sido descoberto pelo filme. É como se lá da tela ele tivesse identificado o olho do espectador brilhando na platéia, pequenina luz vermelha no escuro, e recuasse envergonhado: “Estão nos olhando!”.

A história dá uma reviravolta. Marcelo (e com ele o espectador) passa a saber que estava sendo usado para um trabalho escolar, uma tarea, um dever de casa. Virgínia tinha que fazer um filme de uma imagem só para o curso de direção de cinema na universidade e decidira filmar o encontro, espécie de cinema verdade a partir de uma pequena mentira.

O novo rumo da história torna a imobilidade da câmera ainda mais divertida: a imagem que não muda, muda completamente. Muda o sentido de tudo o que o espectador viu até então, muda o que ele vê naquele instante: Marcelo, ofendido por ter sido usado para um filme quase pornográfico, agarra a câmera no chão e larga-a de qualquer jeito sobre a mesa, toda torta, pega suas roupas e se retira furioso. O quadro cuidadosamente arrumado se desarruma. Mas o que mudou muda de novo: sozinha em cena, Virgínia ajeita a câmera sobre a mesa e começa a falar para ela, a lamentar o quanto é desajeitada e torta na vida.

Com a descoberta da câmera descobre-se também uma nova cara dos personagens. A fúria de Marcelo não dura muito, o sofrimento passa logo. Virgínia nem terminara de se lamentar para a câmera, ele retorna. Finge, diz que esquecera algo, que viera só para buscar o que esquecera. Mas retoma a conversa naquele mesmo tom mole, de duplo sentido, de quem faz de conta que não sabe o que faz. Olha para a câmera, curioso, interessado. Diz que não gostaria de prejudicar o trabalho da ex-namorada e que por isso está pronto a aceitar a proposta. Entra no filme meio envaidecido. Afinal, entre inúmeras outras possibilidades, fora ele o namorado escolhido. Virgínia passa a se comportar algo mais solta e desinibida, e Marcelo, de ofendido por não ter sido previamente avisado a cheio de si com a escolha, passa a se exibir para a câmera, que ajuda a recolocar debaixo da mesa, na posição inicial. E então, os que fingiam inocência começam a fingir esperteza. Marcelo tenta representar o amante irresistível assim como se faz no cinema: cuida da aparência, controla os gestos com uma falsa e exagerada naturalidade, age para a câmera, mas pretende que ela não está ali debaixo da mesa. Virgínia também se preocupa com a câmera: disfarça a nudez porque está gorda, sugere um véu para suavizar a imagem. Ligam o monitor para controlar como vão aparecer no vídeo. Ela e ele querem aparecer bonitos e elegantes como artistas de cinema.

Não se trata aqui de levar adiante este resumo da história contada em La tarea como se pretendêssemos substituir o filme na tela por um amontoado de palavras no papel. Importa, isto sim, suge­rir o que na imagem – na imagem mesmo e não na história dentro dela –  prende a atenção do espectador.

O plano é fixo, a câmera não sai do lugar, mas muita coisa se movimenta dentro do quadro. Primeiro a luz. Depois o som. Luz e som que estão fora do espaço visível e colocam dentro da cena o que o quadro não vê. Alguma coisa se move na rua, ilumina a janela que não vemos, projeta sombras dentro do escritório que é tudo o que efetivamente vemos. Pequenos sinais, como uma rede, uma cortina, uma porta de correr, mais uns ruídos que vêm da direita ou da esquerda, definem a arquitetura do apartamento em volta do escritório: a sala ao fundo, cozinha e banheiro do lado direito, o corredor que leva ao quarto do lado esquerdo, a porta de entrada do lado direito, a janela que dá para a rua, que vemos apenas na imaginação. A ação fechada num espaço limitado, pequenino, está permanentemente se referindo a alguma coisa que acontece fora deste espaço. Incorpora ao imediatamente visível o que se encontra fora de quadro – da mesma forma que os diálogos mostram, no jeito de dizer, na pontuação, o que as palavras encobrem. Não importa quão precisas sejam estas informações: o que vale é saber que o que vemos e sabemos não é tudo o que importa.

Este plano imóvel e fechado revela uma das características mais vivas da imagem cinematográfica: o seu jeito de ser um lugar sem limites, o seu jeito de ser informação aberta para todos os lados, equilíbrio instável, recorte que chama a atenção para o fato de ser fragmento permanentemente invadido pelo que não está ali, mas que apesar de longe dos olhos está perto da ação. Todos os filmes, e este aqui mais do que todos, não são só o que o espectador efetivamente vê. São também, e principalmente, o que o espectador afetivamente vê. A imagem se movimenta mesmo quando parada. Quando Marcelo dá um empurrão na câmera e entorta o quadro torna mais evidente algo percebido desde muito antes de ficarmos sabendo por que a câmera está escondida em baixo da mesa: o desenho do quadro é mais importante que os personagens dentro dele.

O espectador vê as imagens da primeira metade de La tarea interessado em saber por que vê daquele especial ponto de vista do qual ele é duplamente cúmplice: cúmplice porque viu no prólogo a câmera colocada ali e cúmplice porque está acostumado a ver tudo quanto é filme daquele mesmo ponto de vista. No cinema, não importa saber se existem outras pessoas ao lado, o espectador se sente sozinho; sozinho e no escuro como se observasse às escondidas, como se olhasse de baixo para cima; de baixo para cima ou porque a tela está lá no alto ou porque tem dimensões enormes; de baixo para cima porque um filme, enquanto passa na tela, parece maior que a vida e mantém o espectador tão agarrado no chão e tão inclinado para cima quanto a câmera de vídeo que Virgínia escondeu debaixo da mesa. Na platéia, em qualquer platéia de cinema, estamos como no chão, no escuro, debaixo da mesa, vendo o filme que se passa lá em cima.

Repetir, como estamos fazendo aqui, que a câmera está na platéia, no lugar do espectador, e que este está na cena, no lugar da câmera, coloca a questão no papel tal como o filme a coloca na tela. Este artifício de composição é tão comum na dramaturgia cinematográfica mais amplamente divulgada que já nem é percebido como um artifício, e a insistência em mostrá-lo, mantendo a câmera imóvel ou girando o texto em torno dele, permite analisar o efeito mais comumente obtido com o fingimento de que a câmera é uma extensão natural do olho humano: o cinema parece, então, um fato tão natural quanto a visão. O público de cinema discute com freqüência com os personagens em cena, mas raramente com o ponto de vista de onde os personagens são vistos porque está convencido de que a câmera vê sempre do ponto de vista correto, e por isso natural.

La tarea tem uma estrutura de composição apoiada bem no limite entre a visão mais natural e objetiva possível (a que permanece quieta, neutra, a que não interfere na ação) e a mais antinatural possível (a imobilidade que recusa o trabalho de seleção e montagem que o olho humano, atraído por uma forma, cor ou movimento, faz diante de qualquer cena real). Esta solução parece resultar, ao mesmo tempo, de uma preocupação expressiva – questionar a posição do espectador – e de uma preocupação econômica, a busca de um esquema capaz de garantir, pela rapidez de execução e pelo custo reduzido de produção, a realização de filmes com regularidade em sociedades como as nossas, condicionadas, pelo subdesenvolvimento, a existir imobilizadas, como espectadoras dos produtos dos grandes centros industriais.

O filme foi completado em apenas três semanas: “El rodaje en sí fueron cinco dias. Hubo una semana de ensayos previos, pero con cámara y negativo fueron cinco dias de trabajo“, contou Hermosillo em entrevista a Nelson Carro para a revista mexicana Dicine. O diretor repetia então a solução usada pouco antes em Intimidades en un cuarto de baño,(1989) que narra, também com a câmera fixa numa única posição  – por trás do espelho do banheiro do apartamento de uma família de classe média –  a história de dois casais: um mais velho, um mais jovem, um espelhando o outro, o primeiro uma visão antecipada do futuro do segundo. O texto e os movimentos da cena foram cuidadosamente estudados antes do início da filmagem, e assim o registro das cenas pode ser feito em apenas quatro dias: “El plan de trabajo era para cinco dias y lo hicimos en cuatro; el equipo se alquiló por una semana y se regresó incluso un día antes de lo que se habia previsto. Practicamente filmamos uno a uno; gastamos menos de diez mil pies de material. Todavia nos sobró negativo para los créditos“.

O plano único, solução de linguagem e de produção, é também uma transcrição para o cinema de agora de uma tradição narrativa popular que vem se expressando entre os mexicanos desde sempre através da novela de rádio, da música que chora infelicidades amorosas, da dramaticidade e das grandes dimensões da pintura mural e do cinema de grandes rasgos dramáticos feito em estúdios para melhor situar seus personagens num espaço ideal, de sonho, de ficção melodramática. O hábito de trabalhar em cenários artificiais, que durante os anos 60 e 70 deu aos filmes mexicanos uma forma particular no quadro do Novo Cinema Latino Americano (então principalmente feito em exteriores, com a câmera na mão e um tom de documentário), o hábito de trabalhar em estúdios uma estrutura melodramática, é um dos pontos de partida de La tarea. O filme de Hermosillo brinca com a tradição, propõe uma transcrição crítica, ri do sofrimento dos personagens, revela a comicidade do fingido melodrama que eles representam para si mesmos. E ao rir do que os personagens vivem a sério, o filme coloca o espectador ainda mais dentro da cena, parte integrante e central dela, personagem principal. O que de fato se traduz na imobilidade da câmera é o sentimento de quem vê um melodrama: uma sensação de que nenhuma ação é possível, porque uma qualquer lógica vizinha da tragédia comanda o sofrimento dos personagens e porque o sofrimento na tela não provoca mais sofrimento no espectador. O espectador não sofre: finge que sofre; olha, vê, presencia. Finge sentir que é dor o prazer que deveras sente. Sai da projeção mais leve, pois no espaço mágico do filme os heróis já sofreram tudo por ele.

Convém repetir uma vez mais: o verdadeiro protagonista de La tarea não é propriamente a câmera que Virgínia esconde por baixo da mesa, mas o personagem que ela representa em cena, o espectador. E a imobilidade da câmera de vídeo representa não propriamente a atitude do espectador naquele instante em que, meio acordado meio dormindo, vê o filme. Representa o sentimento. Ele é um olhar que sente. Não se identifica com os personagens na cena, não sofre o mesmo que eles. O espectador de fato se identifica é com o ponto de vista de onde foi feita a imagem.

Nesta brincadeira que se refere ao melodrama do cinema mexicano dos anos 40 e 50, a câmera observa a lição dos espectadores e os atores observam a lição dos heróis daquele período, que como deuses vieram ao nosso mundo para sofrer ao extremo e assim nos livrar de todo o mal. Não por acaso a história se encerra com uma grande fotografia de Pedro Armendáriz: Quando Marcelo, que não se chamava Marcelo, e Virgínia, que não se chamava Virgínia, param de fingir de todo (ou pelo menos assim parece) e fecham a porta do escritório, até então aberta, revelam o grande cartaz em preto e branco com a imagem do ator tantas vezes usado para figurar o herói típico dos melodramas mexicanos. Fecha-se ainda mais o espaço físico, o cenário fica ainda menor, abre-se ainda mais o espaço da representação. Uma última e decisiva informação sugere para o espectador que o que ele de fato viu não foi nada daquilo que pensou que estava vendo. Marcelo e Virgínia são de fato José Partida e Maria Partida, um casal, o marido tentando ajudar a mulher a preparar um dever de casa, a mulher tentando terminar o trabalho antes da chegada dos filhos. O marido, interessado em experimentar o dever de casa com outra mulher, diz que deveriam repetir tudo com uma atriz de verdade, pois assim ele poderia atuar melhor. A mulher, interessada em ampliar o tempo para suas reflexões no meio e no final da história, também pensa em filmar tudo de novo, porque ele voltara muito rápido e ela nem teve tempo de dizer todo seu texto depois da “descoberta” da câmera. E no final, as crianças chegaram antes do previsto e atrapalharam tudo. Nem tudo saiu como previsto, mas marido e mulher se divertem ao imaginar que este dever de casa poderia ser refeito e apresentado como um filme pornográfico, para tentar salvar o casamento do tédio e melhorar a economia da família Partida.

Con los actores yo hacía el comentario de quel subtítulo de La tarea, o de cómo la pornografía salvo del tedio y mejoró la economía de la familia Partida, en realidad era una broma. Porque no consideraba pornografía lo que estaban haciendo“, explicou Hermosillo na entrevista a Nelson Carro. “En realidad, el subtitulo real debía ser: La tarea o de cómo la creatividad salvo del tedio y mejoró la economía de la familia Partida. Porque la pareja que se muestra en la película es una pareja con la cual la instituición matrimonial con todas sus pretenciones de fidelidad, etcétera, etcétera, lleva obligadamemte al aburrimiento marital. Y entonces, una de las salidas puede ser jugar con un video, para hacerse la ilusión de que son otros. Algo que hacen muchas parejas, a veces no grabándose en video, pero si encontrándose en la calle y yéndose a un hotel como si no se conocieran. Esas fantasías son muy comunes. En el caso de La tarea, como ambos tienen inquietudes artísticas, ella como realizadora y él porque deveras le atrae la cosa de la actuación, encuentran a través de su trabajo una salida a esa rutina sexual y matrimonial“.

O espectador talvez tivesse observado de outro modo detalhes que passaram como coisa de pouca importância se conhecesse de antemão o que só se revela no final. Muda tudo quando se revela o mecanismo da representação. O que o espectador viu como certo estava errado. Mas ele não se enganou nem foi enganado. Sabia desde o começo (fingia esquecer, mas sabia) que estava diante de uma representação onde o divertido é não saber de nada com um jeito de quem sabe de tudo. Revelação feita, terminada a projeção, é como se o filme começasse de novo. O prazer de presenciar o espetáculo se renova na análise da coisa vista. Desloca-se a atenção da câmera para os atores que contracenaram com e para ela. Para serem fiéis aos seus personagens, um homem e uma mulher que fingem que são outros, os atores vivem uma representação dupla: cada um deles representa para o outro, José faz de conta que é Marcelo, Maria que é Virgínia; os dois representam para a câmera – e de quando em quando os atores fazem como se estivessem interpretando mal, como se fossem maus atores: como se José tivesse errado um gesto de seu Marcelo e Maria um diálogo de sua Virgínia. O erro é a melhor maneira de mostrar o casal que faz o dever de casa: revela a representação enquanto tal, mexe uma outra vez com o olhar do espectador: o que ele viu como errado estava certo, porque os atores do filme de Hermosillo fingiam que não sabiam representar o filme que José e Maria estavam fazendo sobre o casal de namorados Marcelo e Virgínia.

Esta reflexão em torno do espectador a partir do modelo de relação estabelecida entre o público e o melodrama (melhor: todo o cinema que trabalha a tradição do melodrama) apenas se esboça em La tarea. Quando o espectador imagina que já viu tudo, quando está ainda reorganizando as imagens na memória, a questão se reabre e se amplia em La tarea prohibida (1992). E aqui resumir o que se passa deixa o espectador ainda mais desconfiado. Primeiro vem a sensação de que se trata da repetição de uma fórmula de produção que deu certo e foi bem recebida: no terraço de uma casa, um jovem se ajeita para receber uma visita e esconde uma câmera de vídeo por trás da pequenina janela de um cômodo que serve de armário ou depósito. Liga a câmera, ajusta a zoom para enquadrar todo o terraço, verifica se os microfones funcionam e grava um teste para se certificar de que está tudo pronto. A visita chega. É uma atriz mais velha, há algum tempo afastada do teatro e do cinema. Vem ajudá-lo a fazer um dever de casa para o seu curso de cinema – um filme de um plano só. E a história surge mais ou menos como a de Virgínia e Marcelo com os papéis invertidos, ou seja, começa uma conversa fingida, e não demora muito para que comecemos a desconfiar que o fingimento é um jogo de conquista. O jovem estudante de cinema tenta reconquistar a atriz exatamente assim como a Virgínia do primeiro dever de casa fez para seduzir o antigo namorado: se mostra frágil e desajeitado. E a atriz recusa e consente, comanda e ao mesmo tempo se deixa comandar, ameaça ir embora  mas se deixa ficar, assim como Marcelo no filme anterior. As semelhanças entre as duas tareas são muitas e evidentemente intencionais, porque também aqui se discute o olhar do espectador a partir de uma relação familiar. Por isso o verdadeiro ponto comum entre estes dois filmes não está no que primeiro aparece, na semelhança da ação, mas no idêntico modo de ver, no olhar sugerido pela ação, no deslocamento da atenção do drama imediatamente visível no terraço para aquele outro, mais forte, que se estabelece na relação entre o olhar do espectador e a cena em que ele vê.

La tarea prohibida conta com o conhecimento do filme anterior, ou pelo menos por filmes de narrativa melodramática, e se encontra, por isso, em posição mais cômoda para seguir a história assim como ela se apresenta  – conhecida, igual, fácil de seguir, familiar aos olhos. No primeiro filme a câmera permanecia imóvel. Agora a história é que não se mexe, que aparentemente repete o mesmo conflito como se escrita como referência direta ou espelho da anterior. No instante em que, por exemplo, a atriz propõe ao jovem realizador uma grande coberta de plástico semitransparente para suavizar a nudez na cena de sexo é impossível deixar de pensar na sugestão de Virgínia para suavizar a cena de sexo em La tarea, cobrir a câmera com um véu. Mas uma outra vez o realizador faz um filme onde nada é assim como parece.

O prólogo que coloca em destaque toda a aparelhagem cinematográfica antes da filmagem do plano inicial – os atores, o diretor e os técnicos se espalham pelo cenário, e quando está tudo pronto se retiram para que o filme comece. O espectador não é mais apenas o que espia escondido por trás do visor do vídeo: vê através dos olhos de toda a gente de cinema, da equipe e do público do melodrama, público habitualmente à vontade diante de uma câmera que repete com diferentes imagens uma história parecida com outra contada anteriormente. E o epílogo, mais longo que o do primeiro dever de casa, impõe um redimensionamento mais profundo da coisa vista. Do tom de brincadeira sobre o melodrama saltamos bruscamente para uma solução melodramática.

A partir do instante em que, como no filme anterior, o espaço fechado da representação é invadido por personagens alheios à cena, o espectador percebe que não está, e aqui nunca esteve, no centro da ação, mas o fingimento neste caso não é uma ilusão de ótica dirigida apenas para ele, para brincar com sua condição de indivíduo que espia. O fingimento aqui é o único comportamento possível para os personagens. Só através do fingimento eles podem dizer o que de verdade querem dizer um ao outro. E para ser realmente verdadeiro e sincero, o fingimento, aqui, precisa ser mal fingido.

É bastante provável que em alguns momentos desta segunda tarea o espectador se sinta inquieto diante de soluções na aparência francamente simplórias: por que tanto interesse na canção de amor que o jovem estudante de cinema canta com uma voz desafinada para tentar conquistar a atriz mais velha que ele? Por que a câmera se aproxima do rosto deste cantor desajeitado como se quisesse produzir imagem igual à que num antigo musical de Hollywood se conseguia com um cantor de verdade, ou dublando com uma boa voz o rosto do ator? Por que, se nem o rosto nem a voz do ator parecem especialmente expressivos para garantir o tempo da imagem? E por que, ao fazer a atriz mais velha diante do quase garoto que canta desajeitadamente, a intérprete fixa o olhar no rosto do jovem ainda mais carinhosa e atenta que a câmera? E, sobretudo, por que uma vez terminada a canção começa logo em seguida um novo número musical? Por que repetir uma cena que não tem coreografia nem musicalidade elaborada?

Até que terminada a projeção seja possível reorganizar o filme na memória as respostas a estas perguntas parecem imediatas: os intérpretes perderam o pé, o diretor perdeu a cabeça.

Só quando conta com todos os dados à mão é que o espectador percebe que na verdade viu duas pessoas fingindo sentir o que de verdade sentiam: a atriz mais velha e o estudante de cinema eram de verdade mãe e filho. Ela uma antiga atriz mesmo. Ele um estudante de cinema mesmo, precisando da ajuda da mãe para fazer um dever de casa, um filme de uma imagem só. No filme ela deveria fingir que era o que de fato é, uma atriz que abandonou o teatro e o cinema para se dedicar à família. Ele deveria fingir que era o que de fato é, um estudante de cinema apaixonado pela velha atriz. A história do filme dever de casa, um estudante de cinema apaixonado pela atriz, fingia a verdade, o filho apaixonado pela mãe. A filmagem foi o meio de expressar a paixão incestuosa através de um mecanismo capaz de ser aceito pelas censuras de mãe e filho: um e outro fingem que estão fingindo. E duplamente: fingem que estão fingindo um para o outro e que estão fingindo para a câmera, para o espectador – agora não mais um observador imóvel, ponto de vista precisamente identificado, mas sim espectador coletivo, múltiplo, cheio de olhos que cercam mãe e filho com uma ameaça de condenação e impõem o fingimento.

O que mãe e filho fingem no terraço se interrompe bruscamente quando o fingimento escapa do controle pouco antes da chegada do pai e da filha mais nova, que haviam saído a passeio. Começa então um outro fingimento, a mulher pretendendo que está tudo bem enquanto prepara nervosa o jantar para o marido e a filha  – ação narrada em poucas imagens, tensas, quase sem ação e sem diálogos, espécie de entreato feito só para os olhos. Entreato, porque o trecho final de La tarea prohibida age como uma pausa que prepara o segundo ato do filme, uma reorganização das imagens vistas até então que começa na cabeça do espectador tão logo termina o se passa na tela. Repete-se o mecanismo do primeiro dever de casa, mas com maior intensidade. E possivelmente o que primeiro se acende na memória é o filme realizado entre as duas tareasEncuentro inEsperado (1993), título que se desenha na tela bem assim, para funcionar como imagem ambígua, para sugerir logo que o inesperado do encontro era só um fingimento.

Também aqui a ação se passa num único cenário e entre duas personagens fingidoras: uma atriz de cinema e uma arrumadeira – mãe e filha. Uma finge que é ainda a estrela famosa de tempos atrás, a outra finge que é uma arrumadeira para reencontrar a mãe que a abandonou quando ela era ainda uma recém-nascida e jamais quis saber dela. Este primeiro fingimento logo se desmonta para dar lugar a um outro mais complexo: a mãe diz que nunca teve filha alguma, embora admita ter tido um amante com o mesmo nome do pai da arrumadeira; a filha diz que não se interessa pelo reconhecimento da mãe, quer apenas que ela vá ver o pai muito doente. A conversa tensa aqui é seguida por um olhar que se mexe quase todo o tempo em movimentos laterais por dentro da casa, com a imagem em formato longo, horizontal, acentuando a horizontalidade do cenário, a cama no quarto, os sofás na sala e as cadeiras esticadas em torno da piscina, e mantendo mãe e filha quase todo o tempo dentro do quadro numa mesma imagem, a mãe fingindo que não vê a filha, a filha fingindo que só tem olhos para o pai que deixou em casa. É possível que a estrutura dramática da segunda tarea tenha nascido aqui – mais precisamente, que as duas estruturas tenham nascidas de um mesmo impulso comum, a construção da imagem como um espaço meio-armadilha, meio-gaiola, meio-prisão aberta onde os personagens se debatem e não sabem como escapar. Mãe e filha que se odeiam como introdução para mãe e filho que se amam e como continuação da família Partida que pensa em sair do tédio pela pornografia.

Três filmes que fazem-de-conta que se interessam só pelo pequeno melodrama familiar que ocupa a imagem para estimular o imaginário a perceber melhor o que pressiona certos fingimentos sociais. Talvez, diante deles, enquanto finge ver apenas um melodrama como qualquer outro, meio distante do seu cotidiano, o espectador perceba sem dificuldade a presença de uma série de sinais que invadem a cena para sugerir que a sociedade se relaciona com seus filhos deste mesmo modo, incestuosamente. Talvez enquanto finge que vê só os fingimentos como se eles não fingissem nada, o espectador perceba em silêncio o exagero gritado do melodrama como um meio de dizer, através de um artifício aceito pela censura social, o que, em nome da mãe pátria e de uma união fraterna, o subdesenvolvimento exige de seus filhos.

* * *

Nenhum filme de Jaime Humberto Hermosillo chegou a ser exibido no Brasil. Nem estes três citados aqui, nem quaisquer outros dos muitos que ele realizou antes e depois desta trilogia. Discutir, como proposto aqui, três filmes que o espectador brasileiro não conhece, e dedicar a estes filmes não exibidos uma discussão um pouco mais longa, é um modo de revelar a relação que estabelecemos com o cinema dos outros países latino-americanos, a partir do que o mercado audiovisual nos impõe sob o fingimento de que segue o exemplo do mundo desenvolvido e procura fazer bem a lição de casa.

*José Carlos Avellar é crítico de cinema, colaborador das revistas CinemaisEl ojo que piensahttp://www.elojoquepiensa.udg.mx/espanol/ . Tem ensaios publicados em livros como: The cinema of Latin America, organização de Alberto Elena (Wallflower Press); Anos 70, ainda sob a tempestade (Ed. Aeroplano) e Framing Latin American cinema, organização de Aan Marie Stock (University of Minnesota Press). É autor, entre outros, de A ponte clandestina, teorias de cinemas na América Latina (Ed. 34/USP) e Deus e o diabo na terra do sol (Ed. Rocco).