Sinônimo de neutralidade e oposto à subjetividade, espaço tradicionalmente reservado à ficção, o conceito de objetividade jornalística vem sendo minado desde o século passado pela propaganda política fascista (que mostrou como era possível manipular qualquer fato ou número), pelas teorias psicanalíticas (que demonstraram o quanto o inconsciente influencia nossa interpretação do mundo) e até mesmo pela própria capacidade de simulação da literatura realista. Mas foi preciso que um novo surto de jornalismo-mentira, a partir dos anos 80, revelasse sua fragilidade, mostrando que a objetividade jornalística é antes de mais nada um artifício. Os vários escândalos que abalaram a credibilidade da imprensa levaram o público a perceber, na prática, que o status de ficcional ou factual depende de um contrato implícito. No caso do jornalismo, o de narrar um fato verdadeiro. No da literatura, o de privilegiar a imaginação e a concepção estética.
Ficou claro que a convenção que determina a exclusão de conteúdos não-ficcionais da literatura e de elementos subjetivos da reportagem interfere profundamente na forma de recepção de um texto. Às vezes, basta mudar seu suporte material. Uma reportagem pode ganhar status literário quando impressa em livro. Ou um texto ficcional simular uma reportagem a ponto de enganar jurados experientes de prêmios como o Pulitzer.
Isso faz com que se coloque em jogo a própria distinção entre o que é jornalismo e o que é literatura, seus graus de separação e contaminação. O fato é que, historicamente produzidas, e devidamente naturalizadas, as definições de objeto literário e objeto jornalístico têm variado ao longo do tempo, conforme as convenções narrativas. Isso acontece porque os diferentes graus de separação entre jornalismo e literatura correspondem à divisão em dois modos distintos de produzir, publicar, difundir, ensinar, ler e criticar os textos, baseados nos mitos da objetividade da imprensa e o da autonomia da ficção como uma categoria estética. Essa divisão instaura convenções narrativas diferentes para a literatura e para o jornalismo, estabelecendo um contrato de leitura entre emissor e receptor que está na base da polarização entre os dois campos. São essas convenções que regulam o estatuto social do escritor, a forma de consumo e os critérios estéticos para apreciação de um texto.
A principal convenção que rege o jornalismo contemporâneo certamente é o compromisso com a realidade. Convencionou-se que a narrativa jornalística trata de um fato real e não imaginário. Já à literatura, o critério de veracidade não se aplicaria. Um segundo critério distinguiria os dois gêneros: a linguagem. Em oposição ao discurso literário, o jornalismo daria ênfase ao aspecto utilitário da linguagem, sua transitividade, voltada para a compreensão do leitor, e em sua transparência, o meio pelo qual as informações são passadas da forma mais objetiva possível. Esse efeito é produzido na medida em que o narrador jamais intervém, apagando as marcas de sua subjetividade. Mas seria a escolha do pronome pessoal apenas um álibi retórico, um artifício literário como outro qualquer?
Não se quer aqui negar as diferenças entre um gênero e outro. Nem defender a volta do jornalismo mentira. Mas discutir se estas diferenças estariam baseadas em estruturas profundas, formas universais. Ou seriam “apenas depósitos de cultura (ainda que pareçam muito antigos)”, como sugere Roland Barthes: repetições, não fundamentos; citações, não expressões, estereótipos, não arquétipos?
É necessário, portanto, levantar quais são as “mitologias” que vão regular os critérios críticos e os modos de produção, difusão e consumo de um texto. E até mesmo o valor comercial ou intelectual de seu autor. A partir de que momento as categorias literatura e jornalismo são naturalizadas e a fronteira entre os dois campos definida? O fato é que, se as fronteiras entre jornalismo e literatura foram construídas _ a partir de valores bipolares como realidade e imaginação, objetividade e subjetividade, linguagem utilitária e expressiva, significante e significado _ ou se fazem parte da essência dos dois gêneros, o fato é que elas são visíveis.
A ideia de objetividade jornalística, que prevê a separação radical entre real e ficcional, levou tanto o jornalismo quanto a literatura contemporâneos a um impasse. De um lado, os romances apelam para o formato de making of, que relata o processo de apuração de uma reportagem, misturando realidade e imaginação, dados objetivos e impressões subjetivas, como é o caso de Nove noites, de Bernardo Carvalho, Inveja, de Zuenir Ventura, e Santa Evita, de Tomás Eloy Martinez. De outro, ressurge o chamado “jornalismo ficcional”, conceito criado a partir da onda de reportagens falsas que abalaram a credibilidade da imprensa mundial a partir dos anos 80.
Autor do livro Hiroshima, a reportagem editada na revista New Yorker, em 1946, que se tornou um dos maiores clássicos do jornalismo literário, John Hersey definiu a principal diferença entre ficção e não-ficção. “Há uma regra sagrada no jornalismo. O repórter não pode inventar”, afirmou num ensaio publicado em 1980. Para Hersey, a legenda implícita da imprensa deveria ser: “Nada disso foi criado”. Foi a primeira reação pública a uma série de denúncias que, a partir do início da década de 80, iria minar a credibilidade dos jornais.
O primeiro caso diagnosticado foi o da repórter Janet Cooke, autora de uma grande reportagem publicada no jornal The Washington Post, intitulada “Jimmy’s world”, sobre o dramático cotidiano de um garoto de 8 anos de classe média viciado em heroína. Janet Cooke descreveu em detalhes seu rosto de anjo, assim como as marcas das picadas em seu braço. E não poupou o leitor de cenas chocantes, como quando o namorado da mãe de Jimmy, um traficante de drogas, injeta heroína em suas veias. A reportagem correu mundo e mobilizou uma força especial de policiais e assistentes sociais de Washington para localizar o garoto, que a repórter se negava a identificar, alegando respeito às fontes. A verdade só veio à tona quando ela ganhou o Pulitzer e sua biografia foi divulgada. Boa parte do currículo de Janet Cooke tinha sido inventada, assim como a história de Jimmy.
A jornalista poderia ter conquistado o Pulitzer de ficção, mas, em vez disso, foi execrada. O affair Janet Cooke repercutiu em todo mundo, por ter destruído um dos pilares do jornalismo contemporâneo: o compromisso com a realidade. Apesar de exemplarmente condenada pelos colegas e pela opinião pública, casos semelhantes proliferaram na imprensa americana, ameaçando virar uma epidemia. Em 1981, o jornalista Christopher Jones publicou uma reportagem de capa no jornal The New York Times, em que narrava sua experiência de conviver durante um mês, nas selvas do Camboja, com guerrilheiros do Khmer Vermelho. Choveram cartas de leitores e experts no assunto, apontando erros factuais e geográficos grosseiros na reportagem, a ponto de um personagem feminino supostamente entrevistado ser descrito como um homem. Após checar todos os dados, o NYTconcluiu que Jones não esteve com os rebeldes cambojanos nem entrevistou as pessoas citadas. O jornal Village Voice foi mais além: demonstrou que o repórter não tirou a reportagem do nada. Surpreendentemente, parte dela foi plagiada da literatura, mais exatamente de um romance de André Malraux, de 1930.
Outros casos foram relatados, em jornais de menor importância, até que o affairJason Blair veio à tona. Em 2003, mesmo escaldado pelo caso Jones, o New York Times acabou publicando quatro páginas com correções das reportagens de Blair. O escândalo teve várias consequências, entre elas a saída do diretor-executivo do jornal. “Eu menti, menti e menti um pouco mais. Eu menti sobre onde estive, eu menti sobre onde obtive as informações, eu menti sobre como escrevi reportagens”, confessou o repórter, na primeira página de seu livro Burning down my master`s house: my life at The New York Times.
O livro foi lançado em março de 2004 com uma campanha de marketing digna dos maiores autores de best-sellers: tiragem inicial de 100 mil exemplares (que, insuficiente, exigiu uma segunda, de 20 mil, na semana seguinte), audiobook, entrevistas nos principais programas da televisão americana e um adiantamento de US$ 500 mil. Seu autor não procurou se defender das acusações de falta de ética profissional. Simplesmente contou toda a “verdade” sobre suas mentiras e explicou como, afinal, nem o maior jornal do mundo é capaz de garantir a veracidade de suas notícias.
Enquanto o jornalismo reage ultrajado ao descumprimento de seu mandamento número 1, o compromisso com o real, fonte de toda a sua credibilidade, o conceito de literatura também vem sendo relativizado, dissolvendo a oposição entre ficção e não-ficção numa nova ordem de discursos. Se a crise da narrativa, expressa pela teoria literária pós-moderna, mina a noção romântica do texto como uma obra de arte que expressa a subjetividade do autor como uma persona literária coerente, por parte do jornalismo ela faz o caminho inverso, destruindo a ilusão de uma objetividade isenta de contaminações, como em experiências de laboratório que jamais se reproduzem na vida real. No mundo contemporâneo, a morte do autor como um ser casto e incorruptível corresponde à morte do repórter como produtor de verdade.
A literatura, especialmente a partir dos anos 90, também se dedicou a embaralhar as categorias de ficção e não-ficção. Um dos melhores exemplos é o premiado romance Nove noites, do jornalista Bernardo Carvalho, uma espécie de making ofde uma grande reportagem. Híbrido, o livro eventualmente se aproxima da reportagem e da biografia, inventariando documentos, arquivos e depoimentos reais, misturados a personagens e cartas imaginadas e às próprias lembranças do autor e sua relação problemática com o pai. O formato making of está presente, ainda, em Inveja: o mal secreto, de Zuenir Ventura; Santa Evita, do jornalista argentino Tomaz Eloy Martinez, e O ladrão de orquídeas, da jornalista americana Susan Orlean, entre outros jornalistas escritores.
Na forma de cruzar as fronteiras entre literatura e jornalismo, o modelo do making of se distancia completamente de experiências como o romance-reportagem, que ficcionaliza a informação, e mesmo do new journalism, que injetou técnicas literárias no texto jornalístico. Ao colocar em cena os bastidores da apuração, sua construção em forma de tentativa e erro, o modelo acaba por mostrar ser impossível separar fato de ficção, real de imaginação, dados objetivos da subjetividade do autor, o repórter do escritor moldado por suas influências literárias.
Mas há grandes diferenças entre o velho romance realista _ quase sempre na terceira pessoa, impessoal, cujo projeto é esconder do leitor o ato deliberado de construção literária _ e o novo _ desconstrucionista, na primeira pessoa, que revela não só os andaimes da imaginação, mas o processo de apuração do jornalismo. A função objetiva (embora nem sempre consciente) do romance making of é minar a ilusão de verdade. Mostrar que o fato também é uma construção discursiva, uma ilusão referencial. A tensão que provoca entre os aspectos jornalísticos e literários introduz ambiguidades e dúvidas na narrativa, levando o leitor a se confundir sobre o que é factual e o que é ficcional. E mostra como ele pode ser facilmente iludido.
Convenções narrativas diferentes para a literatura e para o jornalismo estabelecem um contrato de leitura entre emissor e receptor que está na base da polarização entre os dois campos. São essas convenções que regulam o estatuto social do escritor, a forma de consumo e os critérios estéticos para apreciação de um texto que precisam ser rediscutidas.
A confusão provocada por crossover texts, como o jornalismo ficcional e o making of literário, revela que essas convenções narrativas têm uma autoridade muito maior do que aparentam, como produtoras de real. No caso da imprensa, não é apenas o poder de declarar a verdade sobre os acontecimentos, mas de ditar até mesmo a forma como um discurso pode ser lido como verdadeiro. Uma vez naturalizada, essa tecnologia cognitiva pode ser facilmente manipulada. E, com isso, a obsessão pela objetividade dos meios de comunicação ser usada para esconder, por exemplo, o uso do jornalismo como veículo de propaganda, disfarçado pela voz imparcial, neutra, da terceira pessoa do singular.
Jornalismo e literatura teriam raízes em comum ou duas genealogias distintas? Para compreender isso, é preciso voltar ao ponto em que news (notícias) e novels (romances) se separam, dando origem a campos diferentes. E levantar quando surge a definição da literatura como um discurso exclusivamente ficcional, origem do modelo de romance moderno. Segundo Raymond Williams, o processo de especialização literária é quem vai provocar uma distinção de outros tipos de escrita – filosofia, ensaio, história e jornalismo – que podem ou não possuir mérito literário (significando que, além de seu intrínseco interesse específico, eles são bem-escritos). Mas que não são normalmente descritos como literatura, que pode ser entendida como “livros bem-escritos de um tipo imaginativo ou criativo”.
Sob a Renascença, o sentido de “litterae humanae” distinguia os textos seculares dos religiosos. Mas com a crescente especialização da literatura em direção à ficção, a um texto produzido exclusivamente pela imaginação, foi lançada uma das bases do romantismo: a consagração da figura do autor. Hoje, para se desconstruir esse processo, o conceito fechado de literatura deve ser abandonado em prol de outros mais abertos, como texto, escritura ou discurso, “que tentam recobrar o senso mais ativo e geral que a extrema especialização parece ter excluído”.
A percepção do leitor sobre o que é literatura e o que é jornalismo é dada, antes de mais nada, por categorias discursivas que pouco a pouco entraram para o senso comum, como objetividade e subjetividade. Algo socialmente construído, mais do que naturalmente dado pelo texto em si. Portanto, não é à toa que seja justamente na fronteira entre os dois campos que estão sendo realizadas algumas das mais interessantes experimentações narrativas da contemporaneidade.
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* Cristiane Costa é doutora em Comunicação e Cultura pela Eco-UFRJ, onde é professora adjunta de jornalismo. Foi editora do Caderno Ideias, o suplemento literário do Jornal do Brasil, do Portal Literal e da Revista Nossa História, além de uma das curadoras do evento “Laboratório do Escritor”, do Centro Cultural Banco do Brasil. É autora de Pena de aluguel: escritores jornalistas no Brasil – 1904/2004 (Companhia das Letras).