Heloisa Buarque de Hollanda: George, sua intervenção como intelectual é tão polivalente que é difícil adivinhar qual foi sua formação. Afinal o que você estudou?
George Yúdice: Eu estudei Química, Artes e Letras simultaneamente na Cunny University. Depois fiz mestrado e doutorado em Letras.
HBH: Com quem?
GY: O doutorado foi com Silvia Molloy, lá em Princeton, com quem fiz a tese sobre Vicente Huidobro, poeta chileno, o grande mestre de Haroldo de Campos. Depois disso, estudei também sociolingüística, coisas de sociologia e comecei a trabalhar com o grupo de Fredric Jameson.
HBH: É interessante você ter feito uma tese sobre Huidobro. Como era essa tese?
GY: É um estudo semiótico muito formal, que analisa Huidobro em relação às vanguardas estéticas dos anos 20, 30, no contexto de Paris e América Latina. E abrange também as artes, porque ele era um artista multimídia. O resultado na época foi ótimo. A tese foi publicada imediatamente e ainda hoje as pessoas dizem que é muito boa. A Beatriz Sarlo falou que é a melhor coisa escrita sobre esse tema.
HBH: Isso mostra que nessa época você já tinha suas dúvidas sobre trabalhar dentro dos limites rígidos da literatura.
GY: Claro. Mas como Huidobro era um poeta em certos momentos muito sistemático, toda a questão científica e o interesse pela semiótica vieram por aí. Mas logo fiquei cheio disso também e comecei a colaborar com o grupo do Jameson, no final dos anos 70.
HBH: E pelo que conheço de vocês dois, esse encontro com Jameson deve ter marcado bastante sua trajetória. Como você o conheceu?
GY: Marcou muito. Tudo começou porque comecei a participar do grupo de Estudos Literários Marxistas, onde o Jameson era o chefão. Ele estava em Yale e eu estava trabalhando com Stanley Aronovitch. Através desse grupo de estudos, entramos em contato com o pessoal de Birmingham, conhecido como berço dos estudos culturais. Conhecemos Stuart Hall e outros profissionais que trabalhavam com um mistura de Gramsci, psicanálise, história, foi incrível. Eles traziam uma nova metodologia crítica, analítica, multidisciplinar.
HBH: Esse grupo funcionava em Nova York?
GY: Não, o grupo se reunia a cada verão, em lugares diferentes. Todos nós pagávamos a própria passagem e as universidades conseguiam alojamento, porque no verão não havia alunos. E fazíamos grandes debates durante horas a fio. Foi quando os estudos culturais começam a se formar nos Estados Unidos, no início dos anos 80, quando foi lançada a primeira versão do livro Late capitalism and marxism studies. Logo depois fizemos um segundo congresso, em 1988, quando saiu aquele tijolão Cultural Studies. Nessa época eu estava trabalhando com a Social Text, uma revista que começou em 1979 e teve bastante repercussão. Resumindo, os anos 80 foram para mim anos de muita aprendizagem, de exercício de crítica cultural e política. Foi ainda por essa época que migrei oficialmente da área de Letras para um tipo de crítica cultural, que foi batizada como Estudos Culturais. E eu logo não gostei dessa grife.
HBH: Por que todo mundo tem medo dessa grife?
GY: Porque nos Estados Unidos os estudos culturais viraram uma tendência de mercado, o mercado acadêmico. Por exemplo, você pode até tentar, mas não vai conseguir publicar um livro sobre um autor. É impossível. Mas se você escreve sobre uma lésbica, é muito fácil. E vende bem.
HBH: E um tipo de livro como esse que você está lançando, A conveniência da cultura.
GY: Esse já vendeu 5 mil exemplares e está indo para uma segunda tiragem. Acho que esse sucesso é porque ele extrapola o universo acadêmico. Pessoas que estão mexendo em gestão cultural, multicultural estão comprando. Pessoas de estudos culturais compram, mas outras pessoas de arte, também.
HBH: Mas o George desse livro não é o dos anos 80. Há um claro salto de local, de tema, de campo de estudos. O que chamou a sua atenção para seu redirecionamento para o debate mais voltado para as políticas públicas, para a discussão do Estado neoliberal, para as questões da economia da cultura?
GY: Foi a própria virada dos anos 90 na área da cultura, era uma coisa muito evidente. Me dei conta de que toda cultura precisa de um sistema de financiamento, de apoio. Eu estava também trabalhando em fundações o que me levou a me ligar nesses assuntos.
HBH: Houve alguma influência do Nestor Canclini nessa virada?
GY: Houve. Eu conheci o Canclini no começo dos anos 90, em um congresso em 1993 no México. Ele me ajudou muito nessa transição. Quando organizamos aquele congresso no Mexico, com você, inclusive, era para falar sobre estudos culturais nas Américas. Vieram pessoas dos Estados Unidos, do Canadá, da América Latina. Eu me lembro que vi lá, pela televisão, que havia uma preparação para o Nafta (Tratado de Livre Comércio da América do Norte). Na televisão, havia propagandas do tipo “Mexicanos, vamos entrar para o primeiro mundo, não sujem as ruas, entrem no trabalho na hora”. Esse tipo de mensagem pública. E isso era muito esquisito. Só comecei a falar dessas coisas no ano seguinte. Depois de fazer o contato com o Canclini neste congresso, ele me pediu para fazer um estudo do impacto do livre comércio nos Estados Unidos. E eu fiz um ensaio em 1994. Entrei na comissão da Fundação México-Estados Unidos e comecei a pesquisar mais sobre esses sistemas de financiamento. Nos Estados Unidos, eu já tinha feito parte do Conselho de Arte de Nova York, e me dei conta de como funcionava essa engrenagem. Nos Estados Unidos, a questão privada é muito mais importante em termos de financiamento do que a área pública. Foi a partir daí que propus um projeto para a Fundação Rockefeller sobre os impactos do fenômeno da privatização da cultura. Inclusive, publiquei, na Social Text, um ensaio chamado “A Privatização da Cultura”. Comecei também a fazer trabalhos práticos, não só estudos analíticos, mas também propositivos. Começou ali na metade dos anos 90. No ano de 1998, eu já escrevia textos sobre esses fenômenos. Mas o livro levou muito mais tempo, porque eu tinha que pensar nas grandes mudanças macros do mundo, para compreender as mudanças micro de fundações, financiamentos e também na cultura. As fundações queriam que esses financiamentos tivessem uma repercussão social.
HBH: Marketing social?
GY: É isso mas não só isso, há também uma preocupação com a repercussão em torno da mudança da realidade desses grupos sociais. Depois, eles mesmos se deram conta de que somente a cultura não vai necessariamente reduzir a pobreza, a cultura não tem esse poder. Os projetos culturais que pretendiam aumentar a auto-estima dos favelados em nome de resultados concretos como a busca de formação profissional, de obtenção de empregos e trabalhos não mostraram a eficácia imediata pretendida.
HBH: Eu sinto que nunca houve um momento tão bom para o intelectual como hoje e olha que eu estou na cena desde 1960… Como se forma um intelectual público hoje?
GY: Eu venho percebendo isso nestes últimos cinco, seis anos através de minha participação em conselhos, assessorias e consultorias com empresas, com o governo, com as ONGs. Muitas pessoas que eu achava que eram só intelectuais da área de estudos culturais, agora estão se engajando cada vez mais messe tipo de trabalho.
HBH: Existe uma migração ótima nessa cena pública.
GY: Mas infelizmente nos Estados Unidos isso não acontece. É por isso eu prefiro trabalhar com a América Latina e com a Europa. Nos Estados Unidos, os únicos intelectuais que têm força são os de direita. Os outros estão muito marginalizados.
HBH: Talvez porque na América Latina há muito consolidada a tradição do intelectual como sendo de esquerda.
GY: Lá, eles são quase censurados. Bom, sendo uma pessoa de esquerda, por exemplo, eu acho difícil dizer que Condoleezza Rice é uma intelectual. Mas ela é uma acadêmica, era colega da Mary Pratt em Stanford. Agora, ela é a grande chefona da política externa dos Estados Unidos, e é um horror…
HBH: Mas voltando ao assunto, quando você localiza a emergência das novas possibilidades de ação para o intelectual do século XXI?
GY: Eu tenho uma análise no livro sobre isso. Depois da queda do muro de Berlim e da União Soviética, nos Estados Unidos tornou-se difícil descobrir formas de legitimação para a arte e para a cultura. Até então, a arte nos Estados Unidos era legitimada pela arte em si, sem propósitos externos, supostamente, ao contrário da arte soviética do Partido Comunista, que era uma arte social realista. Nesses últimos anos, surge um tipo arte que respondia diretamente ao sistema de financiamento, que era uma arte com propósito comunitário, social, civil e que serviria para os fins da economia e do desenvolvimento. Era uma política de governos estaduais e municipais, de empresas privadas, de fundações e doadores. A grana vinha daí, não do âmbito federal. Uma arte voltada para o social, para comunidades. O material eram as pessoas.
HBH: Nos anos 60 também era assim.
GY: A grande diferença é que agora esse projeto artístico não é ideologizado. Nos anos 90, não se encontram nesses projetos nada de socialista, de marxista. Na realidade eram projetos neoliberais no sentido em que a sociedade civil assumia a função de resolver problemas sociais. E então, era preciso articular os grupos sociais com os sistemas de financiamento. Os artistas eram dinamizadores da sociedade civil. Isso ainda continua um pouco. Grupos como o Afro Reggae têm explorado essa idéia, até em suas músicas, o assunto é cidadania. Porque cidadania vende para as fundações. Nos Estados Unidos nunca se faria um CD que falasse sobre cidadania. O rapper lá não fala sobre cidadania. Ele fala em como ser homem, em como enriquecer.
HBH: A Nega Giza aqui flagra isso quando declara que o rap americano é “babinha music”. É só baba, não funciona, não diz nada. Mas sempre existe um Eminem para desafinar…
GY: O Eminem conseguiu entrar na mídia porque ele tem muita repercussão, muito público. Mas a maioria realmente só fala em ter ouro, mulheres. Por exemplo, o Snoop Dogg, ele tem vídeos pornográficos, com mulheres mostrando suas bundas. Isso vende milhões.
HBH: Voltando ao assunto, você parece que ainda defende uma estética menos instrumentalizada. É isso mesmo?
GY: Realmente eu sempre fui muito crítico do uso da arte para fins práticos. Mas eu acho que a essa altura eu vou ter que mudar. Já sinto que estou pensando de uma maneira diferente. A arte vai ser usada queira eu ou não. A minha idéia agora é que a cultura seja um recurso. E quando você pensa que a cultura é recurso, o único jogo que existe é o do gerenciamento, da gestão dos recursos. É como na ecologia. Eu poderia continuar com a idéia de arte para transcendência, uma arte para fins não instrumentais, mas mesmo assim a arte vai continuar sendo usada. Eu posso ser artista “puro”, mas quando eu colocar minha arte em um museu, estarei contribuindo com orçamento do PIB da cidade. Quando as pessoas pensam em criar um museu, elas justificam o museu pela arte, mas esse museu vai certamente contribuir para a economia da cidade. Então, queira eu ou não, a arte será sempre um recurso.
HBH: E que papel tem um intelectual hoje?
GY: Eu acho que o intelectual hoje é uma pessoa que intervém. Quanto a mim, estou trabalhando com grupos como o Afro Reggae, venho acompanhando o que eles fazem, mas não na qualidade de assessor. Assessorias estou dando na Costa Rica e El Salvador. De uma maneira mais underground, por exemplo, eu já vejo a diferença entre eu e o Canclini. O Canclini é um assessor mais macro. E eu estou trabalhando com um pé no macro e outro no micro.
HBH: E na universidade?
GY: Estou criando cursos e consegui, agora que sou diretor dos Estudos Latinos Americanos e do Caribe, criar uma nova disciplina onde eu dou dois cursos que são pré-requisitos. O primeiro é estudos de paradigmas de análise, que introduz o aluno em uma série de temas e campos de pesquisa. O segundo curso analisa a estrutura dos discursos dos Direitos Humanos, do Desenvolvimento e da Gestão. Esses cursos têm a ver com Cultura e Economia. É um programa para mestrandos.
HBH: Você está formando gestores?
GY: Claro, mas gestores e também com uma perspectiva crítica. E tudo feito a partir das teorias.
HBH: Estaríamos assistindo o fim do intelectual confinado na universidade?
GY: Depende. No contexto norte-americano, este intelectual vai continuar porque faz parte do nosso projeto de universidade. Mas seu impacto social é bem pequeno. Eu acho que na América Latina e na Europa a intervenção do intelectual na sociedade vem aumentando. O Canclini é um exemplo. Também Otávio Getino. Ele fez o filme A hora dos sinos, com Fernando Solanas, na década de 60. Como é cineasta, ele também se preocupou de onde ia sair a grana para fazer o filme. Em certo momento, ele disse: “A pessoa que faz filme também é empresária, tem que ter orçamento, tem que empregar pessoas”. Agora ele está coordenando estudos de cultura e economia. Ele é incrível, uma maravilha. Está em Buenos Aires. Ele fez grandes estudos sobre indústrias culturais para a Argentina. Fez também um grande estudo da economia das indústrias culturais para o Mercosul.
HBH: A sociedade civil está diferente? Será que o neoliberalismo ajudou essas novas ações e intervenções?
GY: Quanto à sociedade civil, acho que ela está mais “onguizada”. Quanto ao neoliberalismo, acho que ele fez as duas coisas, ajudou e atrapalhou. Permitiu a entrada de muito mais ONGs e cooperação internacional. Em alguns casos, o Estado está quase desaparecendo dos financiamentos para trabalhos nessas comunidades. Esses grupos se “onguizaram”, se fizeram ONG. E as ONGs têm uma maneira de operar, são monitoradas, têm estruturas burocráticas a serem seguidas, muitos papéis a serem preenchidos, requerimentos a serem encaminhados. Isso existe mesmo em grupos como o Afro Reggae.
HBH: Seria bom você definir mais concretamente esse seu conceito chave de “cultura como recurso”.
GY: O discurso é o seguinte: cultura já não é mais arte. A arte é só a ponta do iceberg da cultura. A verdadeira cultura é a criatividade humana. Esse é um discurso que já vem desde a década de 90 e é quase hegemônico. A questão é como dinamizar essa criatividade, viabilizar, para ter uma série de resultados: auto-estima, emprego, fim do racismo. E isso está muito vinculado ao trabalho das ONGs e à cooperação internacional. E a cultura é o lugar onde mais se manifesta essa criatividade. Então, por sua natureza a cultura serve para alavancar a criatividade. Esse discurso é do Blair. Nós queremos criar aquilo que existe na Inglaterra, que é incentivar as indústrias criativas. Indústria criativa inclui além das culturais bem conhecidas: edição de livro, televisão, filme, música. Inclui todas as indústrias que precisam de criatividade, que pode ser desenho, publicidade, software, artesanato etc. Eu estou trabalhando nisso e tenho tentado introduzir essa idéia em El Salvador, que é um governo de direita, e acho que eles estão gostando desse discurso.
HBH: E a questão autoria, que para mim é a questão mais fascinante desse novo momento, como fica? Até onde o mercado suporta noções como Creative Commmons, pirataria criativa ou copyleft?
GY: Copyright é para vender. O direito de cópia. E isso produz muita riqueza. Por isso, as grandes empresas estão sempre estendendo o período do copyright. Hoje em dia, com a pós-modernidade, a tecnologia e a globalização, muito do que se considera criatividade é, na realidade, puro sampler, é o uso de criações alheias. Então, alguns estão propondo que é preciso um sistema flexível, que de uma parte forneça ao autor um ingresso à criação alheia, mas que também o resultado dessa nova obra volte para o domínio público, para o uso de todo mundo. Então é aí que começa uma briga entre os interesses econômicos.
HBH: Mas fora a idéia do direito, tem também o problema da noção de autoria, de autenticidade que é reativa à mudanças, o autor, que era o autêntico.
GY: Sabe como economista vê isso? Como você faz para ter mais autores, para criar uma Hollywood? Ou uma indústria de broadcast como em Nova York? Com uma massa crítica de criadores, sejam de cultura ou de softwares ou de indústrias criativas. O que produz lucro não é a manufatura, é a idéia. Por isso o direito sobre a propriedade.
HBH: Do ponto de vista textual, uma perspectiva de mudança como essa não tem também conseqüências no próprio fazer do autor?
GY: Eu acho que cada vez é mais evidente a organização dos criadores por umas instâncias maiores, superiores. Por exemplo, o produtor que mexe com artistas e vai assessorando, e quase criando o produto deles com eles. Na arte, a figura mais importante não é o artista, é o curador e o diretor de museu, de bienal. Essas são as pessoas importantes, porque o artista é um recurso útil para os curadores.
HBH: Como você está avaliando isso?
GY: Eu ainda nem sei se isso vai para frente ou para trás, eu sei somente que as coisas estão mudando. E por isso o melhor é fazer como na ecologia, com a questão da sustentabilidade. E por isso, a gente precisa formar gestores que ajudem a encontrar pontos de equilíbrio entre os diversos participantes desse tipo de criação, na arte, literatura, cinema, dança, rituais indígenas. Tudo isso precisa de uma coordenação para que se promova uma sustentabilidade, para que essas pessoas não virem simulacros de si mesmas. Estamos num momento de industrialização e “proprietarização”, mas também de luta em relação ao poder econômico da criatividade. Eu acho que o material agora é a criatividade e o jogo e a luta são em torno da propriedade dessa criatividade e sua abertura para o domínio público.
HBH: Um nome para esse momento?
GY: Acho que seria a sustentabilidade cultural.
HBH: Uma previsão?
GY: Eu acho que o que vai acontecer é maior consciência e formação de negociadores e intermediários.
HBH: E em relação à idéia de cultura e literatura?
GY: Eu acho que isso os conteúdos não vão mudar muito. A grande mudança é na estrutura que não é só produtiva, mas também criativa e distributiva. Você tem que pensar em tudo isso sistemicamente: criação, produção, distribuição, domínio público.
HBH: Como é o nome disso?
GY: Ecologia cultural.