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História do Futuro | de Milton Machado*

…le transitoire, le fugitif, le contingent, la moitié de l’art, don’t l’autre moitié est l’éternel et l’immuable…” (Baudelaire)

 

Prólogoi

Teoria e prática

 

Fragmentação, os leitores poderão pensar, seria uma imperfeição deste texto. E argumentar que História do Futuro – trabalho ao qual o texto e seu título se referem – é sobre a fragmentação seria uma justificativa imperfeita. O trabalho História do Futuro não é apenas sobre a fragmentação, e fragmentação não é a única imperfeição deste texto. História do Futuro é também sobre as imperfeições, mas todas as imperfeições deste texto são (d)este texto. Para além das justificativas, História do Futuro tem se desenvolvido, de fato, por meio de fragmentos; e entre outras coisas trata-se, afinal, de um trabalho sobre a fragmentação. Este texto é um fragmento daquele trabalho-em-progresso.

Iniciei História do Futuro (HF) em 1978, com duas séries de desenhos a lápis sobre papel e um Texto Descritivo. Em 1985, História do Futuro foi tema de minha dissertação de mestrado em planejamento urbano (MSc., IPPUR/UFRJ 1985), escrita bem mais elaborada do que minhas descrições preliminares, em que tive que acomodar, não sem dificuldades, as fictícias Cidades-Mais-que-Perfeitas, o imenso cubo Módulo de Destruição, os diminutos e esféricos Nômades e outros elementos e personagens imaginários de HF com cidades reais, edifícios reais, habitantes reais e problemas reais do planejamento urbano.

Em 1991, mais uma vez precisei submeter as ficções de HF a testes de produtividade nos laboratórios do real, quando o trabalho ganhou a forma de uma instalação, com desenhos, esculturas e fotografias, todos relacionados a HF, em Interventi, exposição individual no Museo Civico Gibellina, na Sicília, Itália. História do Futuro parte de narrativas sobre cataclismos, desta vez reais, que a ciência indica terem de fato ocorrido, mas tanto tempo atrás – no período Cambriano – que os vestígios de sua história chegam a nós, neste presente, inevitavelmente borrados pelos informes contornos de nossa imaginação. E HF também fala da destruição de cidades – desta vez imaginárias – e de sua reconstrução. Pois a pequena nova cidade real de Gibellina, onde a exposição e meu trabalho partindo de narrativas sobre cataclismos vieram a ocorrer, é justamente uma cidade reconstruída: em 1968, a pequena velha cidade real de Gibellina foi totalmente destruída por um terremoto. Se minhas ficções passarem no teste, e se minhas analogias provarem ser produtivas, os bravos habitantes da grande Cidade-Mais-que-Perfeita de Gibellina poderão muito bem exemplificar os meus Nômades.

Pois eis aí uma fragmentária cronologia de HF: 1978-1985-1991… E aqui e agora, em Londres, 1999ii, eis a tese “After History of the Future“. “After History of the Future” é este texto. Complementa-o, correspondendo a demandas acadêmicas, uma apresentação de desenhos e fotografias a ele relacionadosiii. Este texto, estes desenhos e fotografias e esta tese são fragmentos do trabalho História do Futuro. Em plena continuidade.

História do Futuro é um trabalho sobre muitas coisas. É sobre terremotos, entre outros cataclismos, reais e imaginários. É um trabalho sobre as crises. Sobre fissuras, sobre rupturas. É sobre terras, campos, territórios, sobre a separação de campos e de territórios. É sobre o anseio pela unidade e sobre projetos de reunificação. É sobre desterritorializações e reterritorializações. É sobre as pontes, sobre a constituição de conexões [throwing brigdes], sobre a efemeridade e a permanência das pontes e das conexões. É sobre as imperfeições e incompletudes de nossos projetos e sobre nosso anseio pelas completudes e pelas perfeições. É sobre construção, destruição e reconstrução. É sobre margens, fronteiras e limites, sobre advertências de que “os limites não devem ser ultrapassados” (“… as margens estritas de meus papéis de desenho”) e sobre a exigência de que “todos os limites devem ser ultrapassados”, quando nos for exigido conhecer os limites e conhecer aquilo que delimitam. É sobre a lei e a relatividade das leis. É sobre a norma, as proibições e as transgressões. É sobre o movimento e sobre a diferença, sobre a diferença como causa do movimento. É sobre cavernas, sobre habitações e desabitações. É sobre o sedentarismo e o nomadismo. Sobre a atividade e a passividade, sobre ação e reação, vida e morte. É sobre as trajetórias, sobre não saber para onde ir e seguir sempre seguindo. É sobre a mobilidade e a velocidade. Sobre as perseguições, as escapadas, sobre brincar de gato e rato, de esconder e de pegar. É sobre os jogos, e poderia muito bem ser sobre computer games. É sobre as redes, os sistemas, os complexos. É sobre geometria e perspectiva. Sobre esferas e cubos, sobre esferas que atravessam cubos, sobre bolas de pingue-pongue que atravessam paredes de concreto. É sobre planejamentos e sobre colocar os planos em perspectiva. Sobre arquitetura e sobre “arquitetos sem medidas”. Sobre cidades, sobre a fundação de cidades. É sobre migrar de uma cidade para outra. É sobre lugares, sobre perder o lugar, sobre encontrar e reencontrar lugares, sobre eventos fundadores de lugares. É sobre o tempo, sobre a passagem do tempo, sobre perder-se tempo. É sobre o espaço, sobre “o liso e o estriado” (Deleuze e Guattari). É sobre encontros, reuniões e intercursos, sobre desencontros e conflitos. É sobre as exemplificações, as ilustrações, as representações. Sobre metáforas e metafísicas. Sobre modelos e sobre a insuficiência dos modelos. É sobre cifras e números. Sobre a contagem e o dar-se conta, sobre a promessa e o débito. É sobre a continuidade e a interrupção, sobre corrimentos e escorrimentos, fluxos e refluxos. É sobre os começos, sobre os fins, sobre os intervalos, sobre as modulações. Sobre os adiamentos, as transferências, as demoras. É sobre os tiques, sobre os tique-taques. É sobre analogias. Sobre as analogias e as conexões entre começos e fins. É sobre as origens. Sobre as narrativas. Sobre a criatividade. Sobre o excesso. É sobre o personagem conceitual Nômade como “figura emblemática do homem como criador”. É sobre artistas, e é sobre arte. É sobre a fragmentação e a imperfeição. E, naturalmente, é sobre as histórias e sobre os futuros.

História do Futuro é um trabalho sobre muitas coisas e sobre trabalhos que pretendem ser sobre muitas coisas. História do Futuro é sobre aquilo que é, assim como é. História do Futuro é sobre sua exterioridade. Assim como este texto, que é sobre muitas coisas, além de ser sobre o que não é. Este texto é sobre, é exterior a, e depois é, ou terá sido História do Futuro. Este texto fragmentário pretende registrar uma trajetória essencialmente pessoal de um leitor/pesquisador buscando/rebuscando, movendo-se de um texto a outro. Esse mover-se de-a, esse to-and-fro, é uma lógica deste trabalho em progresso.

Jacques Derrida diz que “a leitura é transformadora”. Se as analogias de HF mais uma vez provarem ser produtivas, cada um desses textos terá sido como uma Cidade Mais-que-Perfeita. E se minha escritura provar ser transformadora, terei viajado através desses textos como os Nômades. No entanto, a única garantia imperfeita é de que se trata, este, de um texto de artista – o que garante muito pouco.

Abaixo, forneço uma descrição dos elementos, mecanismos, funcionamentos e personagens de HF. Os textos descritivos são ilustrados com reproduções reduzidas dos desenhos originais, a lápis sobre papel, de 1978. Os desenhos originais jamais foram expostos.iv v

 

História do Futuro

Notas do Texto Descritivo de 1978, com expansões.

Essa seção é ilustrada com reproduções de 11 dos 14 desenhos originais de HF, também de 1978.

 

Introdução

História do Futuro (HF) é um trabalho em progresso, iniciado em 1978 com uma série de 14 desenhos a lápis sobre papel. Os três primeiros desenhos são, mais precisamente, um texto manuscrito ilustrado com diagramas, nos quais os elementos de representação, suas configurações e organização espacial, os movimentos e mecanismos que ativam esse universo ficcional são devidamente nomeados e descritos. Em 1985, o trabalho foi objeto – e forneceu o título – de uma dissertação de mestrado em planejamento urbano (MSc., IPPUR-UFRJ, 1985). Entre dezembro de 1990 e janeiro de 1991, uma série de esculturas, painéis fotográficos e desenhos, além de textos incluídos no catálogo (de minha autoria e do crítico Achille Bonito Oliva), todos relacionados com o trabalho, foram produzidos para a exposição individual Interventi, no Museo Civico Gibellina, Sicília, Itália.

Origens

As primeiras ideias, fundadoras do trabalho, vieram com a leitura do livro “A Escripta Pré-histórica no Brazilvi, do paleontólogo Alfredo Brandão, do qual encontrei um desgastado exemplar em um sebo do Rio de Janeiro. A partir da observação e comparação entre desenhos rupestres encontrados no Brasil e na África e brindando o leitor com fascinantes narrativas, propunha-se o autor a fornecer provas da existência do Pangea, o continente único cercado por oceanos que teria constituído a superfície da Terra no período cambriano: uma proposição que, na época – o livro é de 1937 – era ainda hipotética e especulativa. Depois de sucessivas divisões e separações de territórios, resultantes de cataclismos naturais causados por fissuras da crosta terrestre (que o autor refere, em francês, como os plissements), a configuração geral do planeta se modificou, “fazendo surgir mares de onde era terra, e terra emergir de onde eram mares”.

Meus planos iniciais, projetos de um “arquiteto sem medidasvii, eram de conceber e desenhar um sistema de pontes gigantescas, artefatos humanos destinados a re-unir os continentes atualmente separados, de modo a restabelecer, gradual, progressiva e artificialmente, a primitiva unidade natural do Pangea.

Nos desenhos de 1 a 5 da série I, um modelo arquetípico de ponte – uma simples estrutura de pilares, vigas e lajes – é representado, servindo de ligação entre duas porções de terra. Essa Ponte Simbólica foi mantida nas representações de HF como uma espécie de marco arquitetônico, mas também como memória de minhas primeiras ideias – marco conceitual inaugural – antes mesmo da existência concreta do trabalho.

A ideia de um projeto de restituição da unidade física entre continentes, que inicialmente gerou e justificou as representações gráficas do universo de três mundos superpostos de HF e seus personagens fictícios, expandiu-se significativamente: da mera descrição da mecânica, ou melhor da dinâmica dos movimentos descritos, para reflexões críticas sobre a ideia de unidade como enunciado geral – portanto com caráter de idealidade, de grande narrativa – subjacente ao projeto de afirmação da própria condição humana (idealidade já contida no tratamento dessa mesma condição, necessariamente fragmentária, recorrentemente “como um todo”), e sobre a ideia de progresso – em que a persecução de ideais de perfeição fornece paradigma e método – que empresta ao processo cognitivo (“como um todo”, por assim dizer) um caráter, também, de idealidade.

Assim, aos já pouco modestos desígnios de um “arquiteto sem medidas” incorporaram-se as pretensões de um “filósofo do desmesurado”; mais do que isso, dando lugar a projetos de um filósofo-amador (embora PhD) que é artista-de-ofício (embora auto-didata), às voltas com complexas investigações multidisciplinares. Seria acurado dizer, por exemplo, que foi o rigor necessário ao empreendimento o que me levou (de 1978 a 1980) a frequentar um curso de especialização em urbanismo; depois (de 1980 a 1985) um programa de mestrado em planejamento urbano. Da mesma forma quando, procurando tomar emprestado ao Nômade um pouco de sua redonda mobilidade, transferi-me para a Inglaterra, onde passei 7 anos (de 1994 a 2001) dedicado a meu doutoramento em Artes Visuais.

 

Notas sobre o Mundo Mais-que-Perfeito, o Mundo Perfeito e o Mundo Imperfeitoviii (do Texto Descritivo de 1978)

 

Mundo Mais-que-Perfeito

O Mundo Mais-que-Perfeito é formado pelas Cidades-Mais-que-Perfeitas e pelos Módulos de Destruição. As representações das Cidades Mais-que-Perfeitas (no Mundo Mais-que-Perfeito) não diferem muito das representações de cidades reais. Isso se justifica pelo fato de as Cidades Mais-que-Perfeitas serem desconhecidas (pois não existem), não podendo ser devidamente representadas, como em um retrato. Toda tentativa de representação desse mundo será necessariamente imperfeita e imprecisa. No Texto Descritivo de 1978, diz-se desse mundo que ele mimetiza as configurações do Mundo Imperfeito e do Mundo Perfeito, aos quais se superpõe.

O Mundo Mais-que-Perfeito é um mundo que escapa das categorizações, exceto que é um mundo imaginário. O Mundo Mais-que-Perfeito é uma necessária invenção. Foi necessário inventá-lo para que eu pudesse falar do Mundo Imperfeito e do Mundo Perfeito. E para poder olhar tais mundos em perspectiva, como que à distância. Todos os mundos de HF são metafóricos; mas sem o Mundo Imperfeito e o Mundo Perfeito como metáforas, não seria possível dizer de quê o Mundo Mais-que-Perfeito é uma metáfora.

Mundo Perfeito

Metáfora: Nos textos descritivos de 1978, diz-se do Mundo Perfeito (formado por Pilares do Novo Mundo, Pontes Efêmeras e Plano Ideal) que este é o mundo do Estado.

Tudo nesse mundo é superlativo. Entre o imperfeito e o mais-que-perfeito, esse mundo é o perfeito intermediário. Tudo muda constantemente nos outros dois. Aqui, sempre é o Mesmo. O Mundo Perfeito é idêntico a si mesmo.

Mundo Imperfeito

O Mundo Imperfeito é constituído por continentes, oceanos e pela Ponte Simbólica.

Nos textos descritivos de 1978, diz-se deste mundo que seus habitantes compartilham um projeto comum, dedicando-se a uma busca permanente da perfeição.

A Ponte Simbólica é um símbolo dessa necessidade e dessa causa.

Metáfora: O Mundo Imperfeito é um mundo de produções e trabalhos.

Cavernas

As Cavernas conectam o Mundo Mais-que-Perfeito ao Mundo Imperfeito, atravessando os três elementos constituintes do Mundo Perfeito. As entradas das Cavernas podem ser encontradas no Mundo Mais-que-Perfeito. Suas saídas podem ser encontradas no Mundo Imperfeito. O Mundo Imperfeito é a saída [way-out]. Não há retorno possível – não através das Cavernas – do Mundo Imperfeito para o Mundo Mais-que-Perfeito. Se houver a possibilidade de retornos, estes serão de outro tipo, e por outros meios.

Outros elementos de História do Futuro. Personagens, habitantes, ocupantes

A data: agosto de 2126. Dia do Juízo Final. O lugar: a Terra. Por todo o planeta, uma população angustiada busca esconderijos. Para bilhões, não há para onde ir. Alguns escapam para as profundezas, desesperadamente à procura de cavernas e minas desativadas, ou lançam-se ao mar em submarinos. Outros, descontrolados e às cegas, agem como assassinos. Muitos simplesmente sentam-se, imóveis, esperando pelo fim.” (Paul Davies, Countdown to Doomsday, jornal The Independent (suplemento Science), Londres, 25 de setembro de 1994).ix

 

A citação é de uma história de um futuro bastante diferente de HF (é pouco provável que minha História do Futuro venha a ser publicada no suplemento científico de um jornal; e, apesar das aparências, HF é também sobre o otimismo, em sua produtiva forma de pessimismo). Mas a passagem fornece descrições que podem ser incorporadas – metaforicamente – pelas ficções de HF.

Diz-se, nos textos descritivos de 1978, que as Cidades Mais-que-Perfeitas são habitadas. Os personagens imaginários de HF são nomeados de acordo com as três diferentes ações (ou reações) que possam ter, diante do processo de destruição ativado pela passagem do Módulo de Destruição, durante um Ciclo de Destruição. Tais habitantes são de três tipos:

1. O sujeito da Morte Vulgar

Poderia ser dito deste personagem que ele “simplesmente se senta, imóvel, esperando pelo fim”. Em HF, o sujeito da Morte Vulgar morre com a Cidade Mais-que-Perfeita. Em HF, as ações deste personagem são do tipo passivo.

2. O Sedentário

Poderia ser dito do Sedentário que este personagem “escapa para as profundezas, à procura de cavernas e minas desativadas, ou lança-se ao mar em submarinos”.

O Sedentário busca as entradas das Cavernas, onde encontra refúgio. Através das Cavernas, o Sedentário deixa o Mundo Mais-que-Perfeito, cruza o Mundo Perfeito, para daí chegar ao Mundo Imperfeito. Chegando ao Mundo Imperfeito, o Sedentário se une a outros habitantes desse mundo em sua permanente busca pela perfeição (Texto Descritivo, 1978).

Em HF, as ações do Sedentário são do tipo reativo.

3. O Nômade

O Nômade se move. Em HF, as ações do Nômade são do tipo ativo.

(em diferentes histórias de diferentes futuros, os Nômades poderiam ser descritos como “outros [que], descontrolados e às cegas, agem como assassinos”. Mas esta seria uma descrição imperfeita – e injusta – dos Nômades de HF).

O Nômade se transfere de uma Cidade-Mais-que-Perfeita que acabou de passar por seu Ciclo de Vida e cujo Ciclo de Destruição está para começar. O Nômade se move de um Ciclo de Vida para um outro, próximo, Ciclo de Vida. O Nômade vive em, e vive com as Cidades-Mais-que-Perfeitas.

Se o Nômade conseguir manter sua mobilidade e sua trajetória de uma a outra Cidade-Mais-que-Perfeita, este [it]x conquistará para si mesmo uma forma de eternidade (analogia: no sentido, talvez, da “forma móvel de eternidade” referida por Platão. Uma condição que as criaturas humanas – os personagens de Platão são seres humanos, não diminutas esferas – conquistam através da produção de filhos, dos discursos, dos trabalhos, da política).xi

A existência do Nômade é de um tipo mais-que-perfeito. Nômades são, em princípio, desconhecidos (pois não existem), e não podem ser adequadamente representados, como em um retrato.

Mais será dito sobre o Nômade, abaixo.

Representação dos personagens

O sujeito da Morte Vulgar é representado por vazios, lacunas, vãos, páginas em branco. Isso equivale a dizer que esse personagem é desprovido de representação (ou que suas representações são simplesmente omitidas).

O Sedentário é representado pelo contorno de uma figura antropomórfica (mas não pretende, em princípio, representar uma mulher ou um homem).

O Nômade é representado por uma pequena esfera.

Mais a respeito do Nômade e do Módulo de Destruição

O Nômade se move, transfere-se de uma Cidade-Mais-que-Perfeita para outra, de um para outro Ciclo de Vida. Mas essa ação não pode ser consumada antes de o Ciclo de Construção da Cidade-Mais-que-Perfeita para a qual o Nômade está se transferindo ter sido completado; isto é, quando os três ciclos simultâneos – Construção, Vida e Destruição – estiverem completos. Esta é a situação-limite representada nos desenhos 7 e 11 da Série II: quando os três ciclos simultâneos chegam ao fim, os Módulos de Destruição encontram-se na Posição Alfa de suas respectivas cidades.

Se a Posição Alfa é onde o Módulo de Destruição se encontra imobilizado – por um período infinitesimal de tempo, antes que se inicie a próxima sequência de ciclos simultâneos – o Nômade terá que “negociar” a Posição Alfa com o Módulo de Destruição.

“Negociar uma posição” são termos simplificados para se referir ao encontro entre Módulos de Destruição e Nômades. Outros termos poderiam ser:

Afetar e ser afetado. Atravessar e ser atravessado. Penetrar e ser penetrado. Possuir e ser possuído. Experimentar todo tipo de intercurso. Combater e ser combatido. Confrontar e ser confrontado. Mudar [change] e trocar [exchange]. Provocar. Desafiar. Conflitar-se com. Fazer acordos com. Trair. Trapacear. Romper, romper com. Rebelar-se contra. Diferir. Identificar-se com. Fazer-se um com. Jogar com. Ativar… [etc.com]

O Módulo de Destruição é um imenso cubo.

O Nômade é uma esfera diminuta.

Nômades e Módulos de Destruição se relacionam na base de suas diferenças.

O Nômade desliza quando o Módulo de Destruição estaciona.

O Nômade é o rato, o Módulo de Destruição é o gato.

O Nômade põe o Módulo de Destruição para correr.

O Módulo de Destruição põe o Nômade para correr.

As ações do Módulo de Destruição são ativas em relação às Cidades-Mais-que-Perfeitas, que o Módulo destrói, constrói ou deixa viver. Mas são reativas em relação às ações do Nômade.

Penetrando (etc. etc.) o Módulo de Destruição, o Nômade coloca o universo inteiro (i.e., o universo fragmentário de HF) em movimento (põe o universo para correr), transformando-o. Causa ativa: em História do Futuro, O Nômade é o verdadeiro motor e a causa de todos os movimentos.

 

Fast forward

O Nômade se move.
A motivação do Nômade é a motividade.
O Nômade é uma invenção.
O Nômade é um fundador de cidades.
O Nômade é um iniciador.
O futuro do Nômade é iniciar o presente de uma cidade.
O Nômade é um tradutor [translator].
Os movimentos do Nômade são vetoriais, não direcionais.
O Nômade age por meio de permanentes desterritorializações.
O Nômade age por meio de permanentes reterritorializações.
O Nômade age por meio de permanentes transgressões.
O Nômade age por meio de permanentes incorporações.
O Nômade age por meio de negações e excessos.
O Nômade age por meio de variações, expansões, conquistas, capturas, ramificações.
O Nômade coleciona, mas não constitui álbuns.
O Nômade não é particularmente chegado às generalidades.
O Nômade não é particularmente chegado a generais.
O Nômade é um produtor de mapas dos quais ele constantemente se desprende.
O Nômade age por meio da repetição e da afirmação da diferença (mais de um milhão de vezes).
O Nômade está sempre no meio (“dans le milieu“), mesmo quando está no início ou no fim.
O Nômade está sempre nos espaços-entre.
O Nômade está sempre in-between.
O Nômade vê as coisas como pela primeira vez.

 

“Onde você vai? De onde você vem? O que espera encontrar mais além?” Para o Nômade, “essas perguntas são totalmente inúteis.xii

 

O Nômade é um passante [passer-by].

 

Uma coisa é a geografia do habitante. Outra é a geografia do passante. Um passante faz com que as distâncias se aproximem. Mas logo ali, e outra vez, eis a Distância.

Um passante exercita uma espécie de maestria sobre as dimensões. Dimensões tornam-se perspectiva, geometria. Mas logo ali, e outra vez, eis o Horizonte. Nem sempre pode um passante ter alguma coisa à mão. Mas ele/a sempre tem alguma coisa em vista. Para que um passante possa ter algo em vista, escalar montanhas ou subir em árvores (como o grego Theoros, que escalava montanhas e subia em árvores para liderar o exército para mais além da geografia) pode constituir uma medida lucrativa.

Para um passante, “uma medida lucrativa” é uma noção totalmente diferente da noção que um proprietário de terras tem de “uma medida lucrativa”. Passantes não pertencem a lugar nenhum. As etiquetas do passante relativas à propriedade [propriety] e à posse [property] são reguladas por uma economia própria do próprio. Passar por um campo de flores e subir em árvores podem ser razões suficientes para o passante ser alvejado por tiros. A passagem pode ser facilmente confundida com a invasão.

Um passante tem dificuldades de imediatamente reconhecer os limites e os intervalos (ainda que ele/a imediatamente reconheça quando está sendo alvejado/a!); mas isso não impede que ele/a articule teorias sobre os limites e os intervalos (geo-metria, perspectiva…).

Nos dramas de HF, o Nômade é o protagonista.

 

Analogias. Margens e molduras

Diz-se no Texto Descritivo de 1978 que este universo só faz sentido dentro das margens estritas de meus papéis de desenho.

O Nômade, o Sedentário e o sujeito da Morte Vulgar são personagens conceituais (Deleuze e Guattari) de HF. No entanto, pode vir a ser necessário fazer analogias entre os personagens de HF e o mundo real de pessoas reais, nossas cidades, nossos trabalhos, movimentos, projetos, sonhos e desejos. Com nossas histórias e nossos futuros. Margens devem então ser abertas, e os enquadramentos [frames] expandidos. Toda nova ocorrência do trabalho é uma tentativa de articular novas analogias, de romper os limites da margem, de expandir o alcance dos enquadramentos. As analogias abrem o trabalho para sua exterioridade.

Em uma analogia proposta pelo trabalho História do Futuro, o Nômade é identificado como a “figura emblemática do homem como criador”. Um artista, mas no sentido de que “todo homem é artista” (como desejado por Joseph Beuys).

Mas, se o Nômade fosse humano, da mesma maneira o seriam o Sedentário e o sujeito da Morte Vulgar. Se analogias vierem a ser feitas, todos os três identificariam um mesmo homem, ou uma mesma mulher. Apenas nesse caso poderiam ser referidos como “ele”, ou “ela”. Eles e elas, como nós.

 

 

Milton Machado é artista plástico. Arquiteto pela FAU / UFRJ (1970), mestre em Planejamento Urbano pelo IPPUR / UFRJ (1985) e doutor em Artes Visuais pelo Goldsmiths College University of London (2000). Desde 1970, tem participado de diversas exposições individuais e coletivas no Brasil e no exterior. Possui textos publicados em livros, revistas, jornais e websites. É professor associado do Departamento de História e Teoria da Arte e do PPGAV-Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes EBA / UFRJ. É pesquisador do CNPq.

Informações curriculares mais detalhadas podem ser encontradas em:

http://www.iniva.org/library/archive/people/m/machado_milton
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&cd_verbete=2810&cd_idioma=28555&cd_item=1
http://www.nararoesler.com.br/artistas/milton-machado

 

 

i Este texto foi traduzido de uma seção da tese After History of the Future: (art) and its exteriority, PhD Fine Arts, Goldsmiths College University of London, 2000. Aparece aqui com algumas modificações.

ii Londres e 1999 fazem parte de histórias do futuro.

iii O programa de doutorado que cursei (PhD Fine Arts, Goldsmiths College University of London) conjugava produções de estúdio e produções teóricas.

iv Os desenhos incluídos em Interventi eram novos originais, produzidos em Gibellina, portanto datados de 1990, numa tentativa de reproduzir os originais de 1978, inevitavelmente incorporando novas imperfeições.

v Os 14 desenhos originais, assim como diversos outros itens do trabalho, foram finalmente expostos no Brasil em 2010, na 29ª Bienal de São Paulo, da qual o artista participou como convidado.

vi Alfredo Brandão, A Escripta Pré-histórica no Brazil, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1937.

vii Nessa época eu estava especialmente interessado e atento às propostas de arquitetura conceitual de grupos como Archigram, Superstudio, de Yona Friedman, entre outros que me influenciaram.

viii A dissertação História do Futuro, de 1985, desenvolve e expande, com maior rigor, o que no Texto Descritivo de 1978 vem proposto como enunciações meramente mecânicas. São descrições, propriamente, de um universo inventado, e como tal serão aqui reproduzidas.

ix “The date: August 2126, Doomsday. The place: Earth. Across the Earth a despairing population attempts to hide. For billions there is nowhere to go. Some people flee deep underground, desperately seeking out caves and disused mine shafts, or take to the sea in submarines. Others go on the rampage, murderous and uncaring. Most just sit, waiting for the end.”

x No original em inglês, os personagens de HF são referidos pelo pronome de terceira pessoa do singular “it“. Tratamento adequado, por exemplo, quando se trata de diminutas esferas, como é o caso do Nômade.

xi É sempre com especial cautela que faço notar que o Nômade de História do Futuro (assim como o Sedentário), cuja “tarefa” principal seria a afirmação da diferença, de modo a conquistar e garantir a continuidade do (seu) movimento, antecede em 2 anos o lançamento editorial de Mille Plateaux, obra essencial de Gilles Deleuze e Felix Guattari (Les Éditions de Minuit, Paris 1980). Qualquer leitor familiarizado com este livro lembrará a atenção que os autores dão ao nômade, importante personagem conceitual de suas reflexões, e à afirmação da diferença como condição fundamental para o devir, o movimento e a transformação. Para além da necessária cautela, assinalo a honrosa sintonia com especial regozijo.

xii Tais perguntas são de Deleuze e Guattari. A passagem de onde provêm – um trecho mais longo em que os autores procuram “sintetizar as principais características do rizoma” – é a seguinte: “Onde você vai? De onde você vem? O que espera encontrar mais além? Estas são perguntas totalmente inúteis. Fazer tábula-rasa, iniciar ou começar de novo do grau-zero, buscar uma origem ou um fundamento – tudo isso implica uma falsa concepção da viagem e do movimento (uma concepção metodológica, pedagógica, iniciatória, simbólica…). Mas Kleist, Lenz e Büchner vislumbram uma outra modalidade de viagem e de movimento: prosseguindo do meio, através do meio, ir e vir ao invés de começar e terminar… O meio não é, de modo algum, uma média; ao contrário, é onde as coisas adquirem velocidade.” Gilles DELEUZE e Felix GUATTARI, “One Thousand Plateaus”, tr. Brian MASSUMI, Athlone Press, 1988, p22-25.