Prezados leitores da Z,
O objetivo primeiro deste artigo é ajudar a fomentar o debate sobre o instigante e notável tema hora em tela (pós-humano), juntamente com suas indissolúveis implicações socioculturais, no sentido de propor uma reflexão mais aprofundada acerca da matéria, bem como trazer à baila as perpectivas e inquietações que surgem toda vez que o termo pós-humano é pronunciado como vetor de novas significações para os acontecimentos da pós-modernidade. Nesse sentido, não desejo apresentar verdades absolutas sobre o assunto analisado, mas sim ampliar os horizontes de debate, especialmente no que tange nossa essência humana que, junto a esses mesmos fenômenos, poderia encontrar-se ameaçada. Por fim e em última análise, trata-se pura e simplesmente de tentarmos responder à importantíssima e mais seminal pergunta que sempre nos acompanhou desde que existimos: Quem somos nós?
1. Deslumbramento, incerteza e responsabilidade
Vivemos um momento ímpar de deslumbramento e incerteza. Deslumbramento diante das possibilidades bionanotecnocientíficas que se abrem diante de nós, e incerteza quanto ao potencial ambíguo dessas mesmas possibilidades. Esse exacerbado desenvolvimento se dá como continuidade de um longuíssimo processo de domínio, subjugação e exploração do mundo e da natureza à nossa volta, culminando hoje com o determinismo tecnológico que pode ser identificado em tudo que realizamos no mundo desde a aurora imemorial dos tempos na Terra.
Recursivamente, perpetuamos através dos tempos uma dinâmica singular de extrema complexidade: criamos a cultura que nos cria, cultura essa que criamos ao sermos criados por ela, continuamente. Até aí, seria óbvio. Todavia essa dinâmica intensifica-se de modo exponencial nos últimos duzentos, e mais especificamente nos últimos cinquenta anos. Esse processo sociocultural torna-se relevante justamente quando essa velocidade fenomenal ultrapassa nossa capacidade de refletir sobre esse mesmo e recursivo imprinting tecnicista que determina não só a cultura, mas também o modo de enxergarmos e pensarmos o mundo; ou, devido à dispendiosa e célere ascensão de tais práticas, o modo de não conseguirmos fazê-lo.
De fato, e isto é notório e sabido, essa dinâmica de extrema importância para a consubstancialização da cultura foge totalmente de nosso controle. Alguns – e eu não me deterei em enumerar as suas possíveis motivações – acreditam que controlar ou influenciar essa dinâmica não nos compete, pois creem em uma espécie improvável de intenção ‘consciente’ que poderia estar por trás de tais fenômenos. Outros, bastante envolvidos no próprio fomento prático desses mesmos fenômenos e viciados nessas relações, pregam uma espécie igualmente improvável de legalidade moral fundamentadora, no mínimo questionável, na qual – em tese – o próprio fenômeno do avanço e do desenvolvimento seria responsável por tudo de valoroso, valioso e desejável em termos de progresso para a humanidade, reclamando para sua causa o controle da ‘locomotiva’ da história, tornando-se assim alvo e objetivo de toda a civilização moderna e pós-moderna. Aqui há uma armadilha significativamente perigosa: ambas as concepções apresentadas pretendem uma ingerência descabida, especialmente se considerarmos nossa ampla parcela de responsabilidade. Além disso, trazem um distanciamento e descomprometimento ético irreal e improcedente com a contrução da realidade, juntamente a um olhar equivocado e prepotente de assenhoramento, próprio do controle que sempre – mesmo diante da vida – vê e concebe tudo como ‘coisa’.
Hans Jonas é claro quanto a isto em seu livro O princípio responsabilidade – Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica:
Creio que certas transformações em nossas capacidades acarretaram uma mudança na natureza do agir humano. E, já que a ética tem a ver com o agir, a consequência lógica disso é que a natureza modificada do agir humano também impõe uma modificação na ética (JONAS 2006:29).
A natureza como uma responsabilidade humana é seguramente um novum sobre o qual uma nova teoria ética deve ser pensada (JONAS 2006:39).
Questões que nunca foram antes objeto de legislação ingressam no circuito das leis que a ‘cidade’ global tem de formular, para que possa existir um mundo para as próximas gerações de homens (JONAS 2006:44).
De certo que as antigas prescrições da ética ‘do próximo’ – as prescrições da justiça, da misericórdia, da honradez etc. – ainda são válidas, em sua imediaticidade íntima, para a esfera mais próxima, cotidiana, da interação humana. Mas essa esfera torna-se ensombrecida pelo crescente domínio do fazer coletivo, no qual ator, ação e efeito não são mais os mesmos da esfera próxima. Isso impõe à ética, pela enormidade de suas forças, uma nova dimensão, nunca antes sonhada, de responsabilidade (JONAS 2006:39).
Essa forma mais responsável, por assim dizer, de conceber o mundo à nossa volta e estabelecer relações com ele, que esse filósofo alemão nos propõe, traz uma intimidade com o fato em si (pós-humano) muito mais legítima, tendo em vista que tal fenômeno não se consolida aleatoriamente por si, mas depende, em última análise, de nossa participação direta – mesmo que involuntária e inconsciente – para poder vir às vias de fato e acontecer no mundo do real, o que por sua própria força configura nosso vínculo sólido de responsabilidade para com o fenômeno.
Assim – mesmo que à primeira vista imaginemo-nos inaptos, impotentes e até mesmo desvinculados no que tange influenciar tais acontecimentos; seja pela velocidade que estes acontecimentos venham a apresentar ou seja pela complexidade que realmente tenham por ultrapassarem as gerações, suplantando as perspectivas temporais individuais através da própria história –, podemos então postular: não é possível esquivarmo-nos de nossa participação direta e responsável em tais processos e fenômenos que dizem tanto a respeito de nós mesmos.
Jürgen Habermas em seu livro O futuro da natureza humana é convergente:
Tememos, não sem razão, que surja uma densa corrente de ações entre as gerações, pela qual ninguém poderá ser responsabilizado, já que ela transpassa de forma unilateral e na direção vertical as redes de interação contemporâneas (HABERMAS 2007:02).
Nesse sentido, enquanto escrevo este artigo, e enquanto você, prezado leitor e internauta, o lê, tal dinâmica tecnicista determinante desse imprinting segue sempre adiante, independentemente de nossa capacidade prática de refletir sobre ela, e os conflitos assim não tardam em aparecer. O primeiro deles, sem dúvida, é o descontrole do controle.
2. Um controle descontrolado
Hoje vivemos uma profunda angústia que tem sua origem no descontrole do controle tecnicista, controle esse perpetuado por nossa civilização e que agora nos ameaça cruzando todas as barreiras sólidas e até então estabelecidas no que diz respeito à nossa própria humanidade. E, esse sentimento desconfortável e perturbador é bastante bem fundado tendo sua origem em nossas próprias ações no mundo a nosso redor. Estamos num tempo singular chamado pós-modernidade, e esse nos apresenta agora impositivamente seu filho mais pródigo, fecundo e viril: o pós-humano. O pós-humano filho do humano nasce da impotência que experimentamos ao nos confrontarmos com nossas próprias e desmedidas capacidades bionanotecnocientíficas de realização, potencializadas. De fato, somos capazes de replicar animais, modificar a vida no nível biomolecular através das nanotecnociências e do ‘bioengenheiramento’, transformá-la, reconfigurá-la, misturá-la e até mesmo fundi-la a outras formas vivas, mas não somos ainda capazes de mensurar os possíveis impactos que isso gerará em nossa cultura e em nossa própria espécie. Novas tecnologias moderníssimas como a clonagem, a transgenia, as nanotecnologias, a genômica entre muitas outras, surgem ininterruptamente, mas velhos problemas sociais como a fome e a miséria continuam a nos atormentar desafiando nossa capacidade bioética, política e criativa. Todavia, não nos iludamos: todos esses avanços tecnocientíficos estão atrelados indissoluvelmente ao capital financeiro internacional que é necessário para seu fomento e desenvolvimento, e por isso muitas outras ações importantes como combate à desigualdade social, por exemplo, são deixadas de lado, pois o capital financeiro só se ocupa de si, sua concentração, seu aumento e sua multiplicação. Ou seja, além da dinâmica célere e aparentemente descontrolada que opera tais mudanças, existe ainda um certo interesse por parte destes mesmos grupos elitistas que fomentam tais avanços para que todo o processo siga sempre assim descontrolado, tentando tornar qualquer especulação a respeito de riscos e impactos negativos em meras projeções de lunáticos e paranoicos tecnofóbicos e inconsequentes. Ou seja, desimportantes.
Assim sendo, e independentemente de uma pretensa crítica social, é facílimo sentirmos a manifestação desse sentimento de angústia como algo pertinente, e pressentirmos a presença de uma série de conflitos e crises bioéticos que vão se acumulando em nossos horizontes futuros, cujo enfrentamento somos desafiados a assumir sob pena de por a perder a própria aventura humana na Terra, inviabilizando nossa permanência enquanto espécie, destruindo o meio ambiente e suprimindo, além disso, as possibilidades e oportunidades potenciais das futuras gerações.
Neste contexto, o fenômeno pós-humano surge como signo indicativo de transformação a partir da soma e convergência de diversos fatores socioculturais distintos e confluentes dentro de um mesmo momentuum, e assume relevância especial para nossa análise reflexiva neste artigo, pois é algo que se dá na prática involuntária e independentemente de nossa vontade e consciência objetiva, fugindo assim, talvez irreversivelmente, de nosso controle como fenômeno intersubjetivo e difuso. Um destes fatores mais eminentes na atualidade é a possibilidade bastante concreta de nos degenerarmos enquanto espécie distinta das demais, e a possibilidade no mínimo aterradora de nos fundirmos às nossas próprias criações: as máquinas. Seríamos então simbiontes: meio-maquínicos-meio-orgânicos.
Quanto a isto, Joël de Rosnay, em seu livro O homem simbiótico – Perspectivas para o terceiro milênio, informa-nos o seguinte:
...o simbiotente e sua vida trepidante podem aparecer como uma excrecência parasitária específica ao mundo industrializado, uma espécie de câncer das sociedades desenvolvidas, drenando em seu proveito fluxos cada vez mais densos de energia, informação e materiais (ROSNAY, 1997:22).
Certo, esta fusão com as máquinas já está acontecendo pois somos dependentes e mediados por elas em quase tudo que fazemos em nossas vidas cotidianas, e atualmente não conseguimos nos relacionar com a realidade senão através delas. Todavia, a intrusividade de próteses mecânicas e informacionais, ou seja, a incorporação indiscriminada dessas próteses no organismo – considerando incorporação como tornar normal e aceito incluir no corpo tais suplementos artificiais – já é uma realidade e aponta para uma exponencialização tão fenomenal, que ameaça abalar as estruturas de nosso pensamento habitual a respeito do que significa ser humano.
Eis aqui, coloquialmente, o “x” da questão: o humano está em metamorfose. Os parâmetros e as contingências que garantiam essas certezas ontogênicas, antes tão sólidas e estáveis, estão se rompendo. Não é mais possível dizer com precisão se é natural ou não clonar células e ‘fabricar’ biomolecularmente órgãos suplementares, se já cultivamos órgãos em cavidades toráxicas de porcos e vacas para, posteriormente, reintroduzi-los em corpos humanos, e ainda se todo esse processo poderia ser considerado humano ou não. Da mesma maneira, não sabemos mais diferenciar nossos olhos de nossas lentes de contacto ou óculos, pois já os incorporamos à nossa fisiologia e à nossa cultura como algo natural, e, em breve possivelmente, não reconheceremos mais a diferença entre nossos cérebros e nossas máquinas computadoras hiperinteligentes conectados a eles.
3. O humano-pós-humano
O pós-humano é ainda, em diversos sentidos, também humano. Mesmo que transformado em outro tipo de entidade cujas influências externas sobrepugem e transcendam os parâmetros que culturalmente foram estabelecidos para determinar e conceber o humano. Além disso, nossa civilização pós-moderna – de um modo ou de outro – é diretamente responsável por essa desmedida potencialização dos dilemas e crises do humano. O desencantamento com o mundo e com a vida que experimentamos sob a força das bionanotecnociências, a desmitificação da natureza e até de Deus, a tecnicização, o determinismo tecnológico extremado são exemplos claros desse mal-estar e dessa inquietação angustiosa que nos deixa perplexos e nos impulsiona adiante, onde humano e não-humano se fundem e se confundem, e se constituem enquanto representação simbólica nova, já que o pós-humano é em todos os sentidos: inaugurador e neoparadigmático.
Francis Fukuyama em seu livro Nosso futuro pós-humano não tem dúvidas quanto à nossa argumentação e afirma:
Poderíamos assim emergir do outro lado de uma grande linha divisória entre história humana e pós-humana sem nem mesmo perceber que o divisor de águas fora rompido porque teríamos sido cegos ao que era essa essência (FUKUYAMA 2003:111).
Quanto à definição do termo pós-humano, enquanto vetor de novas significações das consequências da pós-modernidade, a professora Lucia Santaella, em seu livro Cultura e artes do pós-humano, cita Robert Pepperell (1995), elencando os três sentidos em que ele emprega a expressão pós-humano como referência:
…em primeiro lugar, para marcar o fim do período de desenvolvimento social conhecido como humanismo, de modo que pós-humano vem a significar ‘depois do humanismo’; em segundo lugar, a expressão sinaliza que nossa visão do que constitui o humano está passando por profundas transformações, o que significa sermos humanos hoje não é mais pensado da mesma maneira em que o era anteriormente; em terceiro lugar, ‘pós-humano’ refere-se a uma convergência geral dos organismos com as tecnologias até o ponto de tornarem-se indistinguíveis (SANTAELLA 2009:109-110)
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4. A última tentação
A última tentação humana é o desejo incontrolável de superar a morte. Seja através de técnicas improváveis de suportes maquínicos, que em tese poderiam amparar nossa consciência num ambiente não-orgânico que certamente configura uma concepção obsolescente do corpo; seja preservando e adicionando a esse mesmo corpo todo tipo de drogas, acessórios, próteses, órgãos bioengenheirados, mecanismos e dispositivos artificiais de toda ordem, transformando o corpo humano numa plataforma viva a partir da qual se constituiriam outras formas de interface e consciência que, de certa maneira, também concebem o aparato orgânico humano como algo ‘incompleto’ e carente de ‘melhoramento’, e que também nos remetem a uma concepção de obsolescência do que consideramos humano.
Ser vivo é ter que morrer mais cedo ou mais tarde, pois dentro da natureza onde se desenrolam as delicadas e complexas coreografias da vida, tais fenômenos são imbricados e subsequentes dentro de uma ordem de complexidade que se retroalimenta contínua e sistemicamente. Assim, o ser humano-pós-humano perplexo diante de tamanha adversidade (a morte) passa a querer permanecer a todo o custo e por essa razão luta por postergar e, em seus desejos egoístas mais primordiais, não consegue se conformar à sua própria condição mortal, rebelando-se contra o próprio sistema natural que o gerou, subjugando cada vez mais esse mesmo sistema através da artificialidade tecnicista em busca se não de uma imortalidade, pelo menos de sua permanência estendida ao máximo possível. A própria técnica de clonagem animal – cuja motivação se esconde atrás de uma pretensa servilidade funcional reabilitativa, terapêutica e regenerativa futura, teoricamente benéfica em alguns sentidos restritos como produzir pele para vítimas de queimaduras, por exemplo – também disponibilizaria a clonagem como possibilidade técnica de indivíduos replicarem-se a si mesmos por desejos descontrolados de permanência e apego a essa existência singular, lançando um raio incidental de esperança na sombria senda de retorno irreversível ao Uno primordial que é a morte.
Talvez, nesse momento (2010), seja prematuro falar de imortalidade, é verdade, mas o prolongamento, quem sabe indeterminado da vida humana, já é uma possibilidade bastante plausível nos horizontes de nossa civilização tecnológia de controle e instrumentalização. Nesse sentido, o humano que sempre instrumentalizou tudo à sua volta, agora faz de si seu próprio objeto de manipulação, instrumentalização e controle.
Hans Jonas não deixa dúvidas quanto a isso: “O Homo faber aplica sua arte sobre si mesmo e se habilita a refabricar inventivamente o inventor e confeccionador e todo o resto” (JONAS 2006:57).
O Homo faber ergue-se diante do Homo sapiens (que se torna, por sua vez, instrumento daquele), e o poder externo aparece como o supremo bem – para a espécie, obviamente, não para os indivíduos (JONAS 2006:272).
O que Jonas quer nos dizer é que mesmo que tais práticas representem teórica e simbolicamente avanço tecnológico para a espécie, tais avanços – se é que poderíamos considerá-los avanços e não retrocessos – não chegariam a ser benéficos para a coletividade humana, servindo apenas como instrumento de uma minoria elitista e sofisticada que poderia surfar na crista da onda bionanotecnocientífias e pagar por suas benesses.
Aqui recaímos numa mesma armadilha da rasa lógica capitalista de mercado: tecnologias sempre vêm à luz amalgamadas a seus contextos e conjunturas culturais específicas. O que vale dizer que, por serem patrocionadas por grupos de elite (do ponto de vista da abastança material) representam, indubitavelmente, os interesses de seus fomentadores e investidores, até porque há que se ter muito dinheiro para fomentar tais P&Ds de altíssima complexidade e altíssimo custo financeiro.
5. Flagelos e perspectivas de um ser em metamorfose
Um notável flagelo autoimposto do humano-pós-humano a si mesmo é a perda de sua essência fundamental. Não numa concepção abstrata e representativa especular, mas sim no sentido da perda objetiva de caracteristicas tão determinantes como orgânico e inorgânico, por exemplo, de especificidades tão intrínsecas à nossa própria estrutura biológica e intelectiva que, ontologicamente, tornaríamo-nos outra espécie diferente da humana. O mesmo vale para o prolongamento indeterminado da vida humana numa medida muito significativamente maior. Num certo sentido, esse tipo de alteração na longevidade, muito exponencial e determinante, modifica drasticamente o acoplamento estrutural da espécie e sua própria autocompreensão. Além dos problemas práticos e óbvios que podemos de imediato imaginar, como imprevistos, acidentes e descontroles, podemos antever também possíveis estratificações sociais mais sectarizadas ainda do que são hoje, dando origem no topo da cadeia a uma raça diferente e mais ‘elevada’ de seres por assim dizer ‘melhorados e superiores’, ‘mais aptos’, em contraste gritante e absoluto com os ‘não-melhorados’, ‘inferiores’, ‘menos aptos’. Isso seria a replicação nefasta do modelo de categorização e discriminação social que já se manifesta através da classificação entre ricos e pobres, só que desta vez tais predicados e defeitos estariam mais intimamente associados às complexidades dos organismos individuais.
Jürgen Habermas corrobora tal compreensão e afirma que fazer da humanidade um meio, seja de transformação, ‘melhoramento’, desfiguração, exploração ou descaracterização implica, inevitavelmente, na quebra desta simetria e na morte da igualdade secular entre as pessoas. A ideia da humanidade, por si, obriga-nos – nos diz ele – a adotar aquela perspectiva do nós, a partir da qual nos consideramos uns aos outros como membros de uma comunidade inclusiva, que não exclui ninguém (HABERMAS 2004:78).
6. A consciência maquínica e o ciberespaço
Talvez a mais notável e fabulosa prótese pós-humana que se avizinha de nós em termos de possibilidades e realizações tecnocientíficas sejam os computadores – não inteligentes ainda, mas com capacidades espantosas de processamento de dados iguais ou superiores às do cérebro humano. Isso, em última análise, pode significar que, mesmo que não inteligentes num primeiro momento, esses aparatos artificiais poderão – pelo menos em tese – operar sistemas complexos de considerações e alternativas múltiplas, análogas às existentes em nossas próprias mentes, já que nossos computadores são concebidos e construídos à nossa imagem e semelhança. Aí, nesse momento, bastaria ligar essas supermáquinas à rede internacional de computadores, munindo-as de softwares, algoritmos evolucionários e redes neuronais complexíssimos, o que possibilitaria que elas aprendessem a aprender.
Um fator perturbador e agravante deste cenário hipotético futuro é a habilidade que as máquinas possuem de compartilhamento dos dados e informações a elas fornecidos. Num caso extremado como esse, surge a perturbadora questão: o que impedirá que as máquinas venham a nos superar em habilidades e dons, e ou mesmo se rebelar contra nós?
O ciberespaço, neste sentido, não seria apenas e tão somente uma espécie de hiperconsciência planetária, mas também um veículo extremamente eficiente que, em última análise, poderia servir a qualquer causa; inclusive – se fosse o caso – à das máquinas. Ou seja, além de nos mediar – orquestrar nossas finanças em nível global, entre outras atividades estratégicas, absorver, tratar e transportar nossas informações, e lembremos que informação é poder – ela (world wide web) se consolida como uma grande biblioteca viva da história e do conhecimento humano, disponível nessa grande consciência coletiva viajando à velocidade da luz.
Quanto a isso Joël de Rosnay é categórico:
Damos-lhe o nome de economias, mercados, rodovias, redes de comunicação ou estradas eletrônicas; no entanto, trata-se de órgãos e sistemas vitais de um superorganismo em vias de emergir. Irá modificar o futuro da humanidade e condicionar seu desenvolvimento no decorrer do próximo milênio (ROSNAY 1997:17).
Como enzimas de uma protocélula com as dimensões do planeta, trabalhamos sem plano de conjunto, sem intenção real, de maneira caótica, na construção de um edifício que nos supera (ROSNAY 1997:21)
Conclusão: Quem realmente somos nós?
Pergunta/problema final sobre nossa humanidade: Quem realmente somos nós? Somos tudo isso que criamos? Ou tudo isso que criamos transforma fundamentalmente o que somos?
Bem, a resposta exata parece inexistir. Talvez sejamos ambas as coisas ao mesmo tempo, e quem sabe até mais. Nossa metamorfose pode ter começado lá atrás quando nos despregamos do mundo natural comum dos demais animais vivos sob a força da pedra lascada e do domínio do fogo como as primeiras tecnologias de intrumentalização e controle primitivos; e daí para a frente teríamos seguido sempre adiante nesse progressivo processo, configurando-o como algo inerente à nossa própria natureza humana mais essencial, o que certamente justificaria toda essa violência e devastação que tanto primamos em desenvolver e melhorar em busca de nossa permanência e capacidade de prevalecer e sobressair.
Ou então, ao contrário, nessa mesma ocasião longínqua de nosso passado primitivo, teríamos nós – sem nem mesmo termos consciência disso – desviado-nos irreversivelmente de nossa essência e relação de pertencimento mais primordial com a natureza, provocando o acionamento de toda essa sequência de fatos, fenômenos e acontecimentos que culminam hoje nesses conflitos e crises bioéticos sem precedentes, que de fato abalam e podem até mesmo destruir nossa essência e nossa identidade, enquanto seguem igualmente também devastando e extinguindo as demais espécies vivas e o próprio ambiente que nos abriga a todos.
Nesse sentido, é inapropriado enxergar o fenômeno pós-humano como algo alheio a nós, mesmo que esse fenômeno se apresente exponencialmente livre de nossa vontade e reflexão intencionais. Prescrutá-lo em sua identidade neoparadigmática, verificar sua interface com a cultura que o gera, identificar seus possíveis pontos nodais significa, certo, debruçarmo-nos por sobre nossa própria essência enquanto humanidade.
Referências bibliográficas
FUKUYAMA, Francis (2003). Nosso Futuro Pós-humano – Consequências da revolução da biotecnologia. Rio de Janeiro: Rocco.
HABERMAS, Jürgen (2004). O Futuro da Natureza Humana. São Paulo: Martins Fontes.
JONAS, Hans (1979). O princípio responsabilidade – Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: PUC, 2006.
ROSNAY, JOËL DE (1997). O homem simbiótico – Perspectivas para o terceiro milênio. Petrópolis: Vozes, 1995.
SANTAELLA, Lucia (2003). Culturas e artes do pós-humano. São Paulo: Paulus, 2004.
*Alexandre Quaresma é paulistano, escritor, ambientalista e pesquisador de nanotecnologias e impactos sociais. Autor dos livros “Nanocaos e a Responsabilidade Global” e “Nanotecnologias: Zênite ou Nadir?”. Atualmente pesquisa sobre o fenômeno Pós-Humano e suas diversas facetas de interação dentro da sociedade e da cultura contemporâneas, tema central de sua nova publicação prevista para 2011. E-mail: a-quaresma@hotmail.com http://blog-do-escriba.blogspot.com/