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“Iracema” de José Maria de Medeiros – entre pintura histórica e pintura de paisagem | de Ana Maria Tavares Cavalcanti

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.

O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.

[José de Alencar, 1865]

O jovem açoriano José Maria de Medeiros (1849-1925 ou 26)1 chegou ao Brasil em 1865, ano em que José de Alencar publicou Iracema. Quase vinte anos mais tarde, já então professor de Desenho Figurado da Academia Imperial das Belas Artes, Medeiros escolheu um trecho do romance de Alencar para tema da pintura que apresentou na Exposição Geral de 1884 (fig.1).

Os professores da Academia, Mafra, Victor Meirelles e Pedro Américo, elogiaram a tela:

Sem que seja movida pela natural simpatia entre colegas que se estimam, não pode a Comissão deixar de assinalar o quadro do Sr. professor José Maria de Medeiros, intitulado = Iracema = , como um dos melhores da atual exposição, não tanto pela protagonista do drama, como principalmente pelo teatro em que se passa aquela cena que com tanto talento descreveu José de Alencar. É uma paisagem pintada por mão de mestre: desenho correto, colorido brilhante e harmonioso, perfeita observação dos efeitos de perspectiva aérea dão a essa paisagem, verdadeiramente tropical, um céu luminoso e profundo, uma vegetação luxuriosa e cheia de vida, e águas da mais límpida transparência, especialmente naquela onda que arrebenta no primeiro plano do quadro.1

Com o aval do corpo acadêmico, o quadro foi adquirido pelo governo para figurar na Pinacoteca da Academia e hoje integra o acervo do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro.

Se proponho algumas reflexões a partir dessa tela é porque, de modo inesperado e nada intencional, ela sinaliza uma mudança no meio artístico carioca em meados da década de 1880: a perda de prestígio da pintura histórica e sua substituição, na preferência do público e da crítica, pela pintura de paisagem, cada vez mais valorizada como signo de modernidade e brasilidade.

Porém, antes de discutir a recepção crítica do quadro de José Maria de Medeiros, procuremos distinguir as escolhas do pintor e compreender o projeto artístico que fundamenta sua Iracema. Sem dúvida, o quadro foi pensado para a Exposição Geral, de modo que, uma das preocupações do artista era não passar despercebido em meio a tantas outras pinturas. Nota-se o cuidado de Medeiros ao pintar com minúcias as pequenas pedrinhas na areia da praia, o brilho da onda do mar, as gaivotas voando ao longe, a vegetação abundante, criando um efeito de realidade para satisfazer o espectador, envolvendo-o nas dimensões da tela como num cenário.

A figura da índia demonstra outra preocupação do artista: manter-se fiel à sua formação acadêmica, aos ensinamentos do mestre Victor Meirelles. A pose de Iracema – com a mão sobre o peito e uma das pernas levemente dobrada – nos faz pensar na estatuária clássica (fig.2) e mantém o decoro de um nu oficial, mesmo que adaptado ao realismo vigente. Se estivesse pintada em tamanho natural, Iracema pareceria muito próxima de nós, mas assim como se apresenta sugere uma distância respeitosa e adequada.

Esse mesmo decoro se percebe na escolha do tema retirado do romance de José de Alencar, consenso nacional que pode ser resumido como uma alegoria do processo de colonização. O nome de Iracema é um anagrama de “América”, e Martim, nome do personagem português pelo qual a índia se apaixona, uma referência a Marte, o deus grego da guerra. O encontro entre os dois traz desordem e sofrimento. Mas o triste fim de Iracema é também o início da formação do povo brasileiro, simbolizado em Moacir, seu filho com Martim.

Da narrativa do romance, Medeiros só podia pintar um pequeno instante. O catálogo da Exposição traz uma descrição do momento escolhido:

Inquieta Iracema pela ausência do esposo, sai em busca dele e chega à beira do lago, já quando as doces sombras da tarde vestiam os campos. Encontrando ali fincada, na areia da praia, a flecha do guerreiro transpassando um guaiamum, e de que pende um ramo de maracujá, enchem-se-lhe os olhos de lágrimas, interpretando as ordens que aquele símbolo lhe revela – como o guaiamum deve ela andar para trás, e como o maracujá, que guarda a flor até morrer, conservar a lembrança do esposo.

Sem volver o corpo nem desviar os olhos da simbólica flecha, a filha dos Tabajaras retrai lentamente os passos.3

As palavras são bem próximas das escritas por Alencar4. Nessa passagem está sintetizada a impossibilidade de um encontro feliz entre índios e portugueses. Iracema compreende a mensagem codificada na flecha fincada na areia, deve respeitar a vontade de Martim e deixá-lo partir. Há um aspecto muito significativo na escolha de José Maria de Medeiros: ele expõe uma mensagem cifrada, usa a imagem já pronta deixada pelo escritor, e faz a alegoria de uma alegoria. Se levarmos adiante esse pensamento, podemos afirmar que Iracema, ao retrair os passos no quadro de Medeiros, além de retirar-se da vida de Martim, está também “deixando a cena” para que reste apenas a paisagem, o que de fato estava ocorrendo na pintura brasileira naquele ano de 1884. Mas afinal, como começou essa história? Que papel coube à pintura de paisagem na produção artística brasileira no século XIX?

Ao ler os catálogos das Exposições Gerais da Academia, constatamos que as paisagens estiveram presentes em todas elas. Para sermos mais exatos, é necessário dizer que mesmo antes da instituição das Exposições Gerais, já na primeira exposição de alunos e professores organizada por Debret em 1829, o público viu paisagens.5

Nas mostras oitocentistas nacionais, figuraram diversos tipos de pintura de paisagem. Grande parte era composta por paisagens brasileiras, especialmente vistas do Rio de Janeiro, realizadas por pintores nacionais ou estrangeiros. Também eram apresentadas paisagens produzidas por alunos da Academia como trabalhos de curso. Os catálogos especificam que muitos desses estudos eram feitos “do natural”, ou indicam o local de onde a vista foi “tomada”. Por exemplo, em 1866, consta que o aluno Antônio Araújo de Souza Lobo expôs uma “Paisagem: vista de uma parte da cidade no Rio de Janeiro, tomada da Praia Vermelha, ao pôr-do-sol”, conforme texto do catálogo.6

Outra fonte importante para a pesquisa são os jornais cariocas do período, pois ajudam a compreender a relação do público com as exposições de belas artes. Embora o maior destaque coubesse aos eventos teatrais e musicais da cidade, as artes plásticas não deixaram de ser assunto de cronistas e cartunistas. Nas crônicas do dia a dia, grande parte das obras comentadas eram paisagens. Uma charge de Ângelo Agostini sobre a exposição de trabalhos dos alunos da Academia em 1883 (Fig.3) demonstra a acolhida que o público em geral, e os jornalistas em particular, davam aos paisagistas. Na legenda do desenho, após ironizar os quadros do concurso de pintura histórica dos alunos de Zeferino da Costa (representando São Jerônimo), Agostini afirma:

Os únicos trabalhos dignos de serem vistos e admirados, foram os dos alunos Vasquez e Caron, discípulos de Grimm, e que hoje acham-se expostos à rua Sete de Setembro, casa De Wilde.

Mestre Grimm entendeu e muito bem que a verdadeira escola de paisagem é a natureza, e não as paredes da Academia, como julgaram até hoje os professores que lá ensinavam.7

Esse comentário é representativo da opinião da crítica – a pintura de paisagem ao ar livre era elogiada e contraposta aos princípios acadêmicos que davam preferência aos assuntos históricos, religiosos ou mitológicos.

Essa oposição entre paisagistas e pintores de história foi assunto repetido em inúmeros artigos jornalísticos, e acentuou-se no final do século, após a Proclamação da República. Vejamos, por exemplo, alguns trechos de um artigo sobre a Exposição Geral de 1890, a última organizada pelos antigos mestres e inaugurada em março daquele ano:

Quem visita a nossa Academia de Belas Artes não sente a impressão agradável do viajante que volta à sua terra, do homem que entra em sua casa. O ar que ali se respira não é o nosso ar, aqueles não são os nossos costumes, não é aquela a nossa gente, não é assim a nossa paisagem, e portanto, aquela não é a nossa arte, não é a arte nacional, não é a fixação na tela e no mármore da vida, da alma brasileira.

Na galeria em que estão expostos os quadros novos, em cuja honra foram abertas as portas do velho edifício, que ali vive esquecido em um beco, há aqui e acolá umas abertas para esse céu; (…) é preciso procurar a nossa natureza numa pequena paisagem que Hypolito Caron pintou em Juiz de Fora, em uma outra de Pombal, de Rodolpho Amoedo, e em outras de França Junior, de Visconti, de Baptista da Costa, e de poucos mais.

(…), vê-se que os nossos artistas vão fugindo à inspiração que dominava a geração a que sucedem e que está representada nos quadros da galeria n.2, em tempo classificados na Academia como constituindo a arte nacional. O que é que inspirava então os nossos artistas, e lá está representado? Era a Morte de Sócrates, S. João Baptista no cárcere, a degolação do referido S. João, a flagelação de Cristo (que ainda há pouco mais de um ano serviu de tema para concurso), Eliezer e Rebeca, um lavrador dos campos… de Farsália, Sócrates afastando Alcebíades do vício (esta questão palpitante de interesse inspirou nada menos que dois artistas), Caim amaldiçoado, Moisés recebendo as tábuas da lei, Jugurta, Telêmaco, toda a mitologia, todo o catecismo, toda a história de Roma.

E o público não ia ver as galerias, dizia-se. Para que? Que se importa o público com Sócrates, e com Moisés, e com Telêmaco?8

O mesmo autor continua o comentário na semana seguinte:

O que consola, na atual exposição de pintura, à falta de cor local, é a independência que vão revelando os pintores. O confronto dela com a galeria da chamada escola nacional dá esperanças de futuro lisonjeiro, e demonstra a reação espontânea dos moços contra a rotina que sempre predominou na Academia.

Basta ver os paisagistas. O bom Grimm arrancou-os das salas sem luz, onde eles copiavam paisagens de litografias baratas e levou-os para o campo, pô-los na escola da natureza; aí eles aprenderam a pintar por si, como Vasquez, como Caron, como Ribeiro, como França Junior, como Parreiras, e a princípio todos eles tinham mais ou menos a maneira do mestre; mas, ao fim de algum tempo, até dessa influência se libertaram, e hoje cada um deles tem a sua individualidade.9

O articulista da Gazeta de Notícias associa a pintura de paisagem à originalidade e à expressão nacional. Na verdade, essas ideias começaram a ganhar força na década de 1850, quando Manuel de Araújo Porto Alegre, então diretor da Academia (1854-57), se esforçava para «despertar nos estudantes a consciência de que uma ‘pintura nacional’ floresceria mediante a observação sistemática da natureza brasileira. (…), a substituição de modelos europeus pela contemplação da natureza viva [seria uma forma] de fomentar a ‘arte nacional’».10

Essa função atribuída à pintura de paisagem – representar a nação brasileira – propiciou uma diferença em relação ao contexto europeu. Na hierarquia acadêmica engendrada na Europa, vinham em ordem decrescente de valor a pintura histórica, a pintura de paisagens e as naturezas-mortas. No decorrer do século XIX, nota-se um desinteresse progressivo do público dos Salões parisienses pela pintura histórica e uma valorização da pintura de paisagem.

Essa valorização foi compreendida como um prenúncio da pintura moderna, já que indicaria a conquista de uma autonomia da arte. Ao pintar paisagens, o artista já não estaria preocupado em divulgar ideias ou contar histórias, mas em transmitir suas impressões estéticas, sensações visuais e sentimentos diante da natureza.

Procurando refrear essa tendência, que levaria ao fim da pintura histórica, as Academias de Belas Artes em todo o mundo reafirmaram a hierarquia neoclássica dos gêneros, baseando-se na convicção de que o essencial da arte da pintura era a representação das nobres ações humanas. Essa mesma concepção estava presente na Academia Imperial de Belas Artes, no Brasil. No entanto, já em 1816, ano da chegada ao Rio de Janeiro dos artistas que compunham a Missão Artística Francesa, seu chefe, Lebreton, reconhecia a importância que a pintura de paisagem teria em nosso país. Em carta ao Conde da Barca, após definir o gênero histórico como o “grande gênero”, diferenciando-o da simplesmente denominada “pintura de gênero” que abarcaria “a paisagem, as cenas familiares e até os mínimos pormenores da natureza”, Lebreton afirmava:

É fora de dúvida que a pintura de gênero é útil e agradável: penso ainda que em país como este, ao qual a natureza prodigalizou todas as riquezas, os Pintores de gênero terão uma mina inesgotável de assuntos de quadros, e que o gosto dos particulares sentirá e encorajará de preferência a pintura de gênero, em vez da outra.11

Embora quase deplorando o fato, já que defendia a superioridade da pintura histórica, Lebreton percebia a inevitável preferência que os particulares iriam dedicar à pintura de paisagem no Brasil.

Entre os brasileiros, os próprios mestres acadêmicos tomaram atitudes contraditórias, mesmo que em teoria considerassem menor a pintura de paisagem.

Ora, no caso do Brasil, uma particularidade interferiu na doutrina acadêmica. O nacionalismo típico do neoclassicismo, que em cada país estimulou a glorificação de heróis e cenas históricas, aqui fomentou o enaltecimento da natureza. Não foi apenas a pintura histórica a encarregada de retratar o país e exaltar a brasilidade, esse papel também coube à pintura de paisagem. Havia uma relação estreita entre os dois gêneros, pois um dos orgulhos nacionais sempre foi a exuberância e beleza das paisagens naturais. É inegável que grande parte de nossas pinturas históricas situa-se ao ar livre e a natureza é “personagem” que participa da composição.

Esse é o caso da tela de José Maria de Medeiros, ora analisada. Vejamos o que sobre ela escreveram alguns críticos seus contemporâneos: Oscar Guanabarino, Angelo Agostini e Gonzaga Duque.

No Jornal do Commercio de 28 de agosto de 1884, Guanabarino informa que no salão principal da Exposição vemos, “em primeiro lugar, a tela do Sr. José Maria de Medeiros, professor de desenho figurado na Academia”12. Agostini, escrevendo em 26 de outubro na Revista Illustrada, também menciona o cargo de professor de Medeiros que, “como tal, tem obrigação de fazer os maiores esforços para apresentar quadros dignos da sua posição”13. Gonzaga Duque, em seu livro A Arte Brasileira, cuja primeira edição é de 1888, logo antes de tratar da Iracema de Medeiros, afirma que o “professor de desenho figurado na Academia (…) tem-se mostrado um artista modesto e tímido”14. O fato dos três mencionarem a ligação de Medeiros com a Academia indica o quanto essa informação era considerada importante. Num ambiente marcado pela presença da instituição que era palco de disputas e polêmicas, a posição de um artista não era indiferente. Mas continuemos a ler os críticos.

Quanto à figura de Iracema, Oscar Guanabarino se mostra insatisfeito e aponta inúmeros defeitos:

Iracema está completamente deslocada do seu centro de gravidade. Fazendo um movimento lento de recuar, acha-se com a perna direita fora da perpendicular devendo atuar o peso do corpo e forçosamente sobre o pé esquerdo que no entanto não se apóia no chão. Notamos também ausência de expressão fisionômica.15

Angelo Agostini é mais generoso, apesar do humor ferino quando se refere a outra tela do mesmo pintor:

O Sr. Medeiros expôs só um quadro, Iracema, e, lá para que digamos, não se saiu muito mal. Se bem que a figura não seja capaz de inspirar-nos uma paixão, todavia reconhecemos na sua execução bastante progresso e uma diferença enorme de uma célebre Lindóia ou Pinóia que o mesmo expôs no Liceu de Artes e Ofícios.16

Dos três, o mais lacônico e contundente é Gonzaga Duque:

Esta figura de forma alguma satisfaz ao espectador. É roliça e inútil.17

Percebe-se nas críticas dos dois últimos (Agostini e Gonzaga Duque) o desencanto com a figura feminina que nada tem de sedutora. Lembremo-nos que também os professores da Academia se abstiveram de elogiar “a protagonista do drama”, conforme citado anteriormente. Não esqueçamos que na exposição de 1884, outros nus femininos, expressivos e sensuais, foram muito admirados. Estudo de mulher de Rodolpho Amoedo, e O Descanso do Modelo de Almeida Junior, para mencionar os mais conhecidos, foram expostos pela primeira vez e receberam muitos aplausos. Em comparação, a índia de Medeiros aparecia sem graça e insatisfatória.

Mas se a figura de Iracema não agradou, os críticos elogiaram a paisagem, “o palco em que se passa a cena”, para usar as palavras dos mestres encarregados do parecer sobre a Exposição.18 Vejamos os comentários de Guanabarino:

O fundo em compensação tem uma vegetação bem tratada, a areia da praia é muito boa e o mar, soprado por viração fresca, encrespa-se com bastante naturalidade e forma uma onda, quebrada em parte, que se move bem.

O esforço de Medeiros foi bem sucedido, os detalhes que reproduzem a textura da areia, os efeitos do vento no mar, foram percebidos e admirados. No mesmo tom, escreve Angelo Agostini:

Não sendo obrigado a ficar em êxtase diante da Iracema, os nossos olhos percorreram o resto do quadro e admiraram o vasto horizonte, o céu, o mar, a vegetação, a praia, e, digamo-lo em honra do Sr. Medeiros: ficamos muito satisfeitos; nem esperávamos tanto.20

Também Gonzaga Duque reconhece o valor da paisagem, pois “o fundo, e o primeiro plano, em que há uma onda que se afasta da praia, são perfeitamente pintados, magistralmente pintados”xxi, diz ele.

Em janeiro de 1888, José Maria de Medeiros pediu transferência da cadeira de Desenho Figurado para a de Paisagem, Flores e Animais alegando que a última “está mais de acordo com a vocação do suplicante, (…) na qual poderá prestar maior serviço ao estudo da arte”21. Num primeiro momento, o Diretor Antonio Nicolau Tolentino manifestou-se a favor da transferência, escrevendo em ofício ao Conselheiro Barão de Cotegipe, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império:

O serviço público nada perderá com a requerida transferência do professor, persuado-me que pelo contrário poderá ganhar, em conseqüência da natural disposição e gosto do peticionário para a pintura de paisagem manifestados no quadro denominado “Iracema”, de propriedade desta Academia, e que lhe mereceu do Governo Imperial ser promovido a Oficial da Ordem da Rosa.22

Através desses documentos, ficamos sabendo que Iracema foi considerada uma prova do talento de Medeiros para a pintura de paisagem, vocação declarada pelo próprio pintor. Assim, embora se classifique como pintura histórica, Iracema é, de fato, um compromisso entre a pintura de história e a paisagem.

Essa tela é também o marco da passagem do tempo. Quando foi exposta, já parecia antiquada em seu propósito. Se Gonzaga Duque escreveu que era “uma obra concluída com cuidado, mas infeliz”23, é porque Iracema cumpriu, na tela de Medeiros, o destino escrito por José de Alencar:

Era sempre com emoção que o esposo de Iracema revia as plagas onde fora tão feliz, e as verdes folhas a cuja sombra dormia a formosa tabajara.

Muitas vezes ia sentarse naquelas doces areias, para cismar e acalentar no peito a agra saudade.

A jandaia cantava ainda no olho do coqueiro; mas não repetia já o mavioso nome de Iracema.

Tudo passa sobre a terra.24

O mesmo destino teve a Iracema na pintura. Foi-se a personagem, ficou a paisagem.

Numa charge publicada na Revista Illustrada em 31 de agosto de 1884 (fig.4), Agostini brinca com a situação da personagem:

Iracema vendo uma flecha fincada na areia procura imitar-lhe a posição vertical. Porém, à vista da flor de maracujá e da ginástica inesperada de um caranguejo trepado na flecha, a índia admirada recua pé atrás pé, para não perturbar o crustáceo nos seus exercícios acrobáticos.25

A alegoria que no romance de José de Alencar fora aceita com tranquilidade, na pintura se tornara motivo de riso, por ser artificial. Nada além da natureza, sem construções intelectuais, seria apropriado para expressar o caráter nacional e moderno desejado para a arte brasileira no final do século XIX.

 

Figura 1 - José Maria de Medeiros – Iracema, 1884 óleo s/tela – 167,5 x 250,2 cm Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas Artes
Figura 2 - Vênus de Médicis
Figura 3 - Angelo AGOSTINI. Revista Illustrada, ano 8, n.365. Rio de Janeiro, 27 de dezembro de 1883.
Figura 4 - Angelo Agostini. Revista Illustrada, ano 9, n.389. Rio de Janeiro, 31 de agosto de 1884, p.5 (detalhe)

 

* Ana Maria Tavares Cavalcanti, professora de História da Arte da Escola de Belas Artes da UFRJ, é doutora em História da Arte pela Université de Paris 1 Panthéon-Sorbonne.

Texto apresentado originalmente no Simpósio Internacional “Paisagem e iconografia nacional na América Latina”. FAU-USP, novembro de 2007.

NOTAS

[1]  Não há consenso entre os autores quanto ao ano de morte de Medeiros. Alguns mencionam 1925, outros 1926.

[2]   Ata da Sessão em 17 de Dezembro de 1884. Atas das Sessões do Corpo Docente da Academia Imperial das Belas Artes – 1882 – 1890, p.14. Arquivo do Museu D. João VI da EBA/UFRJ. [transcrição disponível em http://www.dezenovevinte.net/documentos/Atas_de_1883_a_1885.pdf contribuição de Ana M. T. Cavalcanti]

[3]  LEVY, C.R. Exposições Gerais da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1990, p .271.

[4]  Iracema de José de Alencar está disponível em  <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>

[5]   Os dados coletados em catálogos e jornais e analisados pela autora são resultado da pesquisa intitulada Pintura de paisagem, modernidade e o meio artístico carioca no final do século XIX financiada pela FAPERJ e realizada entre 2002 e 2003. Ver também o artigo: CAVALCANTI, A. M. T. A pintura de paisagem ao ar livre e o anseio por modernidade no meio artístico carioca no final do século XIX. Cadernos de Pós-Graduação (IAR/UNICAMP), v.6, p.28 – 34, 2002.

[6]  LEVY, C.R. Exposições Gerais da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1990, p.169.

[7]  AGOSTINI, Ângelo. Charge na  Revista Illustrada. Rio de Janeiro, 27 de dezembro de 1883. Coleção Biblioteca Nacional.

[8]  Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 31 de março de 1890, p.1. Autor anônimo. [Acervo da Biblioteca Nacional, Microfilme PR-SPR 00061].

[9] Gazeta de Notícias. 7 de Abril de 1890, p.1.

[10]  SQUEFF, Letícia Coelho. Entre o urbano e o selvagem : a paisagem brasileira no pensamento de Araújo Porto Alegre. Comunicação no I Colóquio Internacional de História da Arte – CBHA / CIHA, São Paulo, 5 – 10 de setembro de 1999.

[11]  Carta de Lebreton, datada de 12 de junho de 1816 e endereçada ao Conde da Barca. In: BARATA, Mário. “Um manuscrito inédito de Lebreton”. In: Revista do SPHAN, n.14, 1959, p. 287.

[12] GUANABARINO, Oscar. A Exposição de Bellas-Artes. FOLHETIM DO JORNAL DO COMMERCIO de 28 de agosto de 1884. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 1 de setembro de 1884 – Ano 63 – N. 240, p. 1. [transcrição por Fabiana Guerra Granjeia disponível em http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/guanabarino_1884.htm]

[13]  AGOSTINI, Angelo. Salão de 1884 – IV. Revista Illustrada. Rio de Janeiro, 26 de outubro de 1884 – Ano 9, n. 393, p.3. [Biblioteca Nacional (RJ) Seção de Obras Raras, Microfilme – PR – SOR 00167 (5)]

[14]  GONZAGA DUQUE. A Arte Brasileira. Introdução e notas de Tadeu Chiarelli. Campinas: Mercado das Letras, 1995, p. 205.

[15]  GUANABARINO, p.1.

[16]  AGOSTINI, p.3.

[17]  GONZAGA DUQUE, p.205-206.

[18] Ata da Sessão em 17 de Dezembro de 1884. Ver nota 3 desse texto.

[19] AGOSTINI, p.3.

[20] GONZAGA DUQUE, p.206.

[21] Carta de Medeiros à Princesa Isabel, reproduzida em ofício dirigido pelo Ministro do Império ao Diretor da  Academia, em 14 de janeiro de 1888. Acervo do Museu D. João VI da EBA/UFRJ.

[22] Carta de Tolentino ao Barão de Cotegipe, datada de 17 de janeiro de 1888. Acervo do Museu D. João VI da EBA/UFRJ.

[23] GONZAGA DUQUE, p.206.

[24] ALENCAR, José de. Iracema. São Paulo: Ática, 2002, p.82.

[25] AGOSTINI, Angelo. « O Salão de 1884 – 1o». Revista Illustrada – Ano 9 – n.389. Rio de Janeiro, 31 de agosto de  1884, p.4-5.