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Metaforametria – Notas sobre o quadrante zerodimensional | de Noeli Batista Santos

Foi na manhã de 10 de agosto, do ano de 2010, que a paciente foi ao Hospital S.T. na cidade de Goiânia, realizar seu mapa, tão revelador quanto poderia o ser, caso fosse o que se chama, de mapa astral. Sua recém-necessidade de um mapa de campimetria deu-se, pela solicitação de uma série de exames, condição sine qua non para tomar posse no concurso, para o qual recentemente havia sido convocada.

Após o retorno ao consultório oftalmológico para, desta vez, reparar o esquecimento (seu e do médico que a atendera dois dias antes) na solicitação do já citado exame, teve início a saga da procura para um local possível de concretizar o mapa de campimetria. As primeiras dez ligações, na busca por um local que pudesse, em tempo recorde (menos de três dias úteis), realizar o exame e consequentemente a entrega de seu res

ultado, foram desanimadoras. Ao que parece a paciente passou a partilhar da fila do grupo dos “sem mapas de campimetria”, devido à descoberta das filas de agendamento e a previsão da demora na entrega de um suposto resultado. A paciente percebeu que durante as ligações, o adjetivo computadorizado, fora várias vezes citado, sendo uma espécie de atestado de eficiência, sofisticação e porque não dizer, contemporaneidade.

Em uma das ligações, que se seguiram após a décima, eis que ela encontrou um local que pudesse atender à sua necessidade imediata.

Por favor, necessito de uma informação.
— Sim…
—Vocês fazem o exame de campimetria?
— Sim…
— Computadorizada? (
antecipando a intenção do item qualidade)
— Sim…
— Qual o prazo mais rápido para entrega do resultado?
— No mesmo dia.
(este fato foi animador).
— Que ótimo! Para quando vocês têm vaga?
— Hoje não dá mais tempo
(por volta das 17h30). Mas pode agendar para amanhã. É preciso chegar cedo.
— E o resultado, sai no mesmo dia?
— Depende…
— Depende de que?
— Se você consegue finalizá-lo no mesmo dia…
— Mas… O que, por exemplo, poderia acontecer para que eu não consiga realizá-lo no mesmo dia?
— Bom… Há pessoas que não conseguem. Alguns dormem, outros ficam agitados, depende de cada um. Em alguns casos precisam retornar no outro dia. O procedimento é demorado.
— Certo…
(temerosa). Digamos que eu consiga realizar o exame no mesmo dia, e o resultado?
— Se você conseguir, o resultado será entregue, no máximo uma hora depois da finalização do procedimento.
— Certo
(decidida).
— Mais uma pergunta: a pupila é dilatada
(prevendo a necessidade de um acompanhante)?
— Não.
— Então quero agendar o exame para amanhã
(decidida e temerosa).
— Tenho um paciente às 7h da manhã. Você será a segunda. Descanse, alimente-se bem, durma cedo.
— Certo
(mesmo sem compreender a necessidade das recomendações em relação ao procedimento que seria realizado).

Na manhã já citada, lá estava ela, às 9h30, horário indicado pela técnica responsável por realizar o procedimento. Enquanto aguardava o exame, imaginava o primeiro paciente. Se ele estaria saindo-se bem, se conseguiria concluir o exame no mesmo dia. Tinha pena e perseverança, percebeu que a condição que os unia acabara por estabelecer um laço de companheirismo, torcida e temor. Durante a espera recordou-se do agendamento e da conversa do dia anterior: “há pessoas que não conseguem”…

O exercício de adivinhar quem seria o primeiro paciente do dia (debilitado do pós-campimetria), ao sair da porta que interliga o interior do hospital ao espaço da recepção, acabou por distraí-la durante os 30 minutos que se seguiram após o horário previsto.

Finalmente fora chamada para a pequena sala, espaço no qual seria realizado o exame. Após os cumprimentos iniciais, a técnica de características franzinas, de expressão sisuda, fechou a porta pediu que a paciente sentasse no banco posicionado frente a um aparelho, que, a julgar pela quantidade de teclas e visores, seria o carrasco da vez.

Seu pedido de exame.
— Aqui está. (
Disse ela entregando à técnica a folha do receituário indicada pelo médico oftalmologista).
— Campimetria computadorizada?
(Questionou-se a técnica ao ler o receituário). Em seguida, uma nova pergunta:
— Este exame é para qual finalidade?
— Admissão em concurso público…
— Não tem cabimento. Fico revoltada com a falta de responsabilidade de alguns profissionais. Como pode solicitar um exame computadorizado para um caso como este?
(Avaliou a técnica)

Enquanto isso a paciente lembrava-se da conversa do dia anterior, das dificuldades do exame, e torceu (na verdade, implorou para os céus) para que o mau humor da técnica não se prolongasse.

— Você fará o exame de campimetria manual. Não faz sentido um exame computadorizado. Afirmou a técnica.

A paciente concordou, embora no plano de fundo dos seus pensamentos mais otimistas, se questionasse sobre qual seria a pior opção: computadorizado ou manual. 

— E o resultado, também sai no mesmo dia? (Perguntou a paciente).

Balançando a cabeça em sinal positivo a técnica disse:

— Entre, por favor… (Indicando a porta da pequena sala escura).

Não que ela teve medo, é que à primeira vista, a penumbra instaurada na sala que acabara de entrar revelou um misto de filme “trash” com laboratório de cientista louco. Enquanto sua pupila adequava-se à penumbra instaurada pela luz-ambiente, quer dizer, pela quase totalidade da ausência dela, observou que a “coisa” (Figura 1) instaurada à frente do pequeno banco estava imprensada entre a prateleira repleta de livros (lado esquerdo) e, uma porta lateral (lado direito). Pelo que a paciente compreendeu esta porta lateral indicava acesso ao consultório do médico que assinaria o laudo, do até então, “desejado” exame.

Figura 1. Campimetro de Goldman

Enquanto a técnica franzina e sisuda tampava com algodão e esparadrapo o olho esquerdo da paciente, sua voz lenta e pausada defendeu a intenção deflagrada pela escolha do exame denominado Campimetria de Goldman.

— Hoje em dia, são poucas as clínicas e profissionais, nesta cidade, que conseguem fazer o exame de campimetria, manualmente. É absurdo pensar que a experiência profissional, o grau de interpretação, e o ser humano estão pouco a pouco sendo substituídos por máquinas que são incapazes de interpretar os sinais e “manias” sinalizados pelo paciente durante o exame. Realizo as etapas do procedimento quantas vezes forem necessárias para analisar se de fato há alguma “anomalia” indicada nos sinais emitidos pelo paciente. No exame de campimetria computadorizado, a máquina é incapaz de compreender as variações subjetivas indicadas pelo ser humano à sua frente.

Durante o exame, enquanto a luz da lanterna aparecia e desaparecia no campo escuro do fundo infinito do Campimetro de Goldman (anteriormente denominado de “a coisa”), a paciente pensou em Flusser e nas questões que envolvem a produção e a manutenção do universo das imagens técnicas. Pensou na condição existencial da profissional responsável por seu diagnóstico, e porque não dizer, seu diferencial humano em relação ao programa inserido no aparelho. Neste misto de pensamentos, mesclado ao lento ritmo dos sinais para indicar o aparecimento e o desaparecimento da luz em seu campo de visão, a paciente piscou os olhos e quando os abriu…

Notas Sobre a Legião Subversiva…

Milhares de aparelhos produtores de imagens são diariamente inseridos em diferentes contextos, sejam eles no campo da ação doméstica, seja em formatos industriais e/ou educacionais. Milhares de seres humanos, atualmente deslocam-se da condição de sujeitos criadores, para a condição de funcionários destes mesmos aparelhos. Os governos, para mediarem as ações deliberadas em tais contextos, estabelecem normatizações de proibição do uso de aparelhos construtores de imagens em contextos, por exemplo, educativos. Uma maioria de seres humanos, seja por questões culturais, seja por falta de acesso econômico ou mesmo por resistência ideológica, mantém-se na condição de funcionários dos aparelhos produtores de imagens.

A dependência de funcionários e consumidores a estes aparelhos produziu uma espécie de geração zumbi. Tais funcionários zumbis adentram a chamada rede telemática, retroalimentando o universo das imagens técnicas, produtor desta condição funcional. Imagens técnicas neste contexto são imagens produzidas por aparelhos que possuem em seu interior programas definidos por códigos binários, frutos da lógica cartesiana.

Esta breve viagem tem por objetivo apresentar a Metaforametria, ou seja, o procedimento avaliativo que estuda o campo de produção de metáforas visuais por meio da sensibilização do olhar. Tal procedimento afirma a necessidade de avaliar e promover a capacidade criadora de um ser humano, por meio da representação metafórica dos diferentes contextos do qual faz parte.
Ao considerar que o campo visual é uma área espacial dentro da qual todos os filtros sociais são vistos simultaneamente, o campo metafórico de construção de imagens, neste contexto, divide-se em quatro quadrantes: abstração tridimensional, abstração bidimensional, abstração unidimensional e o quarto quadrante indicado por Flusser (2008), de zerodimensional.

O quadrante tridimensional refere-se ao gesto que manipula volumes, abstraindo o tempo ao seu entorno, na construção, por exemplo, de esculturas e objetos. O quadrante bidimensional relaciona-se à visão, que percebe o volume ao seu entorno, abstraindo tempo e espaço, imaginando cenas bidimensionais, tais como um desenho, ou mesmo uma gravura. Por quadrante unidimensional, compreende-se o gesto de abstrair as três dimensões: tempo, espaço e volume, na produção de textos. O quadrante zerodimensional refere-se à abstração do próprio ser humano, na construção de tais imagens.

O quadrante zerodimensional é um composto de programas inseridos no interior de aparelhos. Tais imagens são abstrações organizadas por meio de fórmulas matemáticas, convertidas em códigos binários. Os mesmos códigos que se revelaram ícones representativos das chamadas tecnologias de transmissão e armazenamento de dados.

O quarto quadrante, por agir como um câncer em meio às célulasmetaforaretinianas, multiplica-se randomicamente, inibindo a produção e integração de imagens por meio dos demais quadrantes. Neste contexto, para subverter a condição de abstração do ser que as produz, indica-se a possibilidade de relacionar os três primeiros quadrantes, de forma hibrida na produção de imagens zerodimensionais, ou imagens técnicas. Sobre o quarto quadrante, segue um breve histórico.

No processo evolutivo da condição humana, em relação aos diferentes quadrantes ou níveis de abstração do campo da produção de metáforas, o quarto quadrante foi aquele que melhor integrou os anseios do pensamento cartesiano, em relação ao afastamento dos saberes sensíveis, até então, condição essencial na produção de imagens. A facilidade com a qual o campo visual metafórico foi condicionado no contato com as imagens técnicas, provocou confusões de ordem perceptiva, tanto em seus produtores, quanto em seus observadores. Neste sentido, imagens zerodimensionais, não raras vezes, são confundidas com a própria realidade circundante, ao assumirem a condição de sombras da caverna platoniana, por mais relativo que o conceito de realidade possa ser compreendido.

metaforametria relaciona-se aos referenciais antropológicos, dos Estudos Culturais e, também, dos jogos de pensamento abordados pela cultura visual. Este diagnóstico, há tempos, vem sendo formulado pela conceituada linha da História da Arte. Contudo, profissionais das mais diferentes linhas de pesquisa, indicam as falhas críticas nesta linha de estudo, uma vez que esta não problematiza questões de gênero, classe, e outras problemáticas inerentes aos processos de afirmação e práticas hegemônicas na construção de um ideário social relacionado às visualidades presentes no contexto contemporâneo.

Metaforametria configura-se num dos possíveis meios para que se possam localizar consciências libertárias, que, no momento, encontram-se imersas no campo da construção de imagens técnicas. As implicações sobre a presença ou ausência destes genes libertários indicam a fragilidade do sistema do qual fazem parte. Este diagnóstico pode indicar duas classes de uma mesma espécie, neste contexto indicada por jogadores libertários. São elas: apertadores de teclas engajados ou programadores subversivos.

Os estudos sobre metaforantropologia apresentam indícios referentes à produção de imagens Eva (2009), apontando para a possibilidade subversiva desta ação. Este ato ao ser instaurado promove a ruptura com ambientes proibitivos, na busca pela libertação do reality show, instituído no paraíso castrador. No jogo da criação, Adão é uma máquina e Eva sua criação imagética. Eva em contato com a serpente e motivada por ações subjetivas, ao alimentar-se do fruto proibido, conquistou a liberdade para si, e também, para a máquina que a criou. Por ações subjetivas compreendem-se a metáfora da serpente, enquanto vírus subversivo, ou ruídos inseridos no interior do repertório, e porque não dizer, da estrutura inicial de sua criação. Tal vírus, neste contexto, passa a ser elemento inspirador para os sujeitos que desejam romper com a condição alienante presente no Universo das Imagens Técnicas.

Vilém Flusser, uma das mentes subversivas a este contexto, indicou em seus escritos, a existência de seres subversivos, indivíduos de crença zero (1967). Em suas primeiras investigações, ele os denominou de fotógrafos experimentais (2002), posteriormente de jogadores (2008). No contexto de produção e transmissão das imagens técnicas, a indicação de tais sujeitos foi ampliada para o que Santos, na elaboração do seu Jogo Antropofágico, passou a denominar de Jogadores Libertários (2010). Para exemplificar tal processo de ampliação, os membros da legião subversiva, indicados pelos pseudônimos de Cindy Sherman e Waldemar Cordeiro entraram em cena para subverter, por meio de sua prática artística, o jogo nulo instaurado pelo universo industrial.

A agente N. em contato com os membros da legião subversiva sinalizou a possibilidade de sistematização de um procedimento capaz de diagnosticar um possível resgate de seres humanos em condição de nulidade ante os aparelhos produtores de imagem. Metaforametria é a denominação dada a este procedimento investigativo e formativo, uma vez que sua ação não se resume à descoberta, mas paralelamente, à construção de espaços formativos de jogadores libertários. Neste processo, na produção de visualidades contemporâneas, torna-se possível indicar diferentes níveis de subversão no que se refere ao quadrante zerodimensional.

Cindy Sherman, por exemplo, ao apropriar-se da obra Sick Bacchus, de Caravaggio (Figura 2), exemplo do quadrante bidimensional, desenvolveu um projeto artístico cujo foco fora a produção de imagem técnica, enquanto produto artístico (Figura 3), diferindo-se da intenção documental, ou do mero registro materializado por códigos matemáticos.

Figura 2. Caravaggio. Sick Bacchus. 1593. Oléo sobre tela, 67 X 53 cm. Galleria Borghese, Roma. Fonte: http://artinvest2000.com/caravaggio_sick_baccus_.htm. Acesso em 4 fev. 2010.
Figura 3. Cindy Sherman. Untitled # 224. Fotografia. 1990. Fonte: www.artnet.com . Acesso em 4 fev. 2010.

Conforme explicitado anteriormente, no exemplo de Cindy Sherman, o aparelho não criou metáforas, porém, ao ser trapaceado pela artista, o produto do cálculo foi modificado, uma vez que a imagem não indicou reflexos do mundo (conforme pretensão cartesiana), mas sim, metáforas desse mundo previamente elaboradas por sua criadora, com finalidade de enganar o aparelho. Nessa dinâmica, o aparelho tornou-se instrumento da artista, e seu produto, irrealidade declarada.

Na elaboração da obra Derivadas de Uma Imagem (Figuras 4, 5 e 6), Waldemar Cordeiro em parceria com o físico italiano Giorgio Moscati, desenvolveu um programa capaz de digitalizar uma imagem fotográfica, a partir da transformação de algoritmos matemáticos. Neste exemplo, não foi o código binário, o responsável por construir as imagens, mas sim, a intenção do artista, ao corromper a lógica de programação cartesiana. No caso de programas desenvolvidos por jogadores libertários, o cálculo vazio continuará a ser processado, no entanto, a intenção criadora de seu programador será explicitada por meio de suas metáforas, conforme é possível observar na figura 7.

 

Derivadas de uma imagem. Waldemar Cordeiro/ Giorgio Moscati, USP. 1969. Coleção Família Cordeiro. Figura 4: Transformação em zero grau press out put, 47 X 34,5 cm. Figura 5: Transformação em 1 grau press out put, 47 X 34,5 cm. Figura 6: Transformação em 2 grau press out put, 47 X 34, 5 cm.

Figura 7. Gráfico da dinâmica do programador rebelde.

Enquanto as ações de Cindy Sherman sinalizaram a condição de apertadores de teclas engajados, Waldemar Cordeiro assumiu a condição de programador rebelde, uma vez que suas ações interagiram no interior do próprio aparelho, ao inserir intenção artística, no contexto objetivo dos códigos binários.

metaforametria, nestes casos, indica em que medida cada um dos sujeitos, inseridos no contexto do Universo das Imagens Técnicas, pode potencialmente tornar-se um jogador libertário, seja na condição de apertadores de teclas engajados, seja na condição de programadores rebeldes, ou na integração de ambos.

O exercício do olhar a partir de um retângulo, seja por meio dos visores de aparelhos captadores ou projetores de imagens do quadrante zerodimensional, indica a necessidade de três critérios: motivação, consciência e ação. A motivação indica a dinâmica de participar de um jogo. A consciência sinaliza a capacidade de reconhecer-se jogador neste jogo. Por ação compreende-se a capacidade de gerar situações e contextos que possam motivar novos sujeitos a tornarem-se jogadores libertários.

Edgar Morin em suas escritas desenvolvidas no quadrante unidimensional, intitulado Introdução ao pensamento complexo (2007), analisa a necessidade de uma tomada de consciência radical em relação à forma de organização do conhecimento na busca da superação da cegueira instituída pelo modelo de pensamento cartesiano. Esta tomada de consciência, segundo ele, indica a tentativa de religar saberes e sentidos, no desenvolvimento de projetos que integrem sistemas vivos, capazes de se auto-organizar e de autorrefletir. A metaforametria, neste sentido, assume-se enquanto contexto deflagrador de esclarecimentos e possibilidades no que se refere à humanização na produção de imagens presentes no quadrante zerodimensional.

É possível que este diagnóstico ocorra em diferentes espaços formativos, mas uma possibilidade concreta é que se desenvolva no contexto do ensino de arte, ao articular saberes e integrar sujeitos dispostos a romper com estruturas pré-determinadas. Efland (2008), outro integrante da categoria mentes subversivas, indica que tais possibilidades traduzem-se em uma abordagem dos âmbitos individual para o coletivo e do coletivo para o individual. O papel das metáforas, nesse contexto, seria o de estabelecer conexões entre objetos e eventos que, aparentemente, não se relacionam nessa dinâmica. Ao ensino de arte indica-se a responsabilidade de integrar imaginação e criação na produção de sentidos pessoais e culturais.

Notas sobre um laudo de campimetria…

A paciente piscou os olhos e quando os abriu percebeu, que na verdade, a demora do exame, e toda a descrição que o antecedeu, se dão, devido ao ser humano, frente ao Campimetro de Goldman. Aparelhos geradores de imagens técnicas não se comunicam por meio da troca de sentidos, os programas inseridos em seu interior são alheios a estas compreensões. Os diagnósticos computadorizados não refletem sobre a sua condição, não avaliam o contexto no qual estão inseridos, não avaliam a sensibilidade e subjetividade de outros seres por eles analisados.

Neste piscar de olhos, ela percebeu que a demora do exame é parte de uma condição poética, em resposta ao imediatismo cartesiano. Talvez alguns pacientes necessitem retornar outros dias, para que possam continuar a prosa, aprender ou apreender um pouco mais das histórias, quem sabe ler de relance os títulos dos livros de oftalmologia empilhados na prateleira da “sala de filme trash”. Quem sabe retornam para descansar os olhos dos bombardeios de imagens a que todos estão imersos em seu cotidiano. Talvez o exame de campimetria manual, possa ser um foco de resistência capaz de não apenas avaliar o campo visual de um paciente, mas em conjunto, ampliar o olhar no que se refere à condição do sujeito e da sua luta para manter sua condição humana num mundo cada vez mais robótico.

Pronto. O exame acabou.
— Nossa, pensei que fosse demorar mais.
(aliviada)
— Percebi alguns indícios de pressão “fora do normal” em seu olho esquerdo. É bom que você retorne para uma avaliação mais detalhada.
— Nossa… Retornarei, sim.
(aliviada)
— E o resultado?
— Pode esperar na recepção ao lado da porta. Vou redigir as observações e apresentar ao doutor para que ele avalie e emita o laudo.
— Obrigada. Gostei muito da sua avaliação. Ah… Também, gostei muito da conversa.
— Até logo…
— Até logo.

Após alguns minutos a paciente recebeu o seguinte laudo:

A Campimetria de Goldman da paciente, RG: XXXXXX/ 2ª Via DGPC,GO, apresenta isópteras dentro da normalidade, estando a paciente, do ponto de vista campimétrico, apta para trabalho que exija bom Campo Visual”. (10/08/2010)

Finalmente de posse do laudo, a paciente respirou aliviada. Mas no fundo do seu campo metafórico, gostou mesmo foi da conversa. Gostou também dos desenhos da Via Láctea, indicados nos dois mapas (olho esquerdo e olho direito), marcados pelo ser humano que acabara de conhecer.

Desenho da Via Láctea do olho esquerdo.
Desenho da Via Láctea do olho direito.

Referências Bibliográficas

EFLAND, Arthur D. “Imaginação na cognição: o propósito da arte”. Trad.: Leda Guimarães. In: Arte/ Educação Contemporânea – Consonâncias internacionais (Org. Ana Mae Barbosa). São Paulo: Cortez, 2008.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. 2. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

_____. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008.

_____. Jogos. Suplemento Literário OESP – 09/12/1967. Disponível em:
http://www.cisc.org.br/portal/biblioteca/jogos.pdf > Acesso em: 04 fev.

MARTINS, Alice Fátima & SANTOS, Noeli Batista. A Imagem Eva. In Revista Digital do LAV. Ano II – Número 02 – Março 2009. Santa Maria: UFSM. Disp. em <http://www.ufsm.br/lav/>. Acesso em 25 mai. 2009.

MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Trad. Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2007.

SANTOS, Noeli Batista. 2010. Imagens Técnicas e o ensino de arte: um jogo antropofágico. Mestrado. Dissertação, Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Artes Visuais.

 

* Noeli Batista Santos é bacharel e licenciada em Artes Visuais pela Universidade Federal de Goiás e mestre em Cultura Visual. Professora Assistente na Faculdade de Artes Visuais/UFG, atua nos cursos de Licenciatura em Artes Visuais na modalidade a distância e presencial. Pesquisa contextos de formação de professores mediados pelas TICs e intervenções poético-pedagógicas envolvendo ensino de arte e a produção de imagens técnicas.