Tradução de Maria Clara Vigorito
A morte traumatizante de George Floyd não será em vão. A de Breonna Taylor não será em vão. Nossa luta, nossa guerra, é por todas as vítimas da brutalidade policial racista. Escutem nosso choro, nosso grito, são carregados pela fé de que, um dia, não haverá mais vítimas. É tempo e nosso dever fazê-lo acontecer.
2020 – George Floyd – Breonna Taylor – 2019 – Atatiana Jefferson – 2018 – Stephon Clark – Botham Jean – 2016 – Philanda Castille – Alton Sterling – 2015 – Michelle Cusseaux – Freddie Gray – Janisha Fonville – 2014 – Eric Garner – Aura Rosser – Akai Gurley – Gabriella Nevarez – Tamir Rice – Michael Brown – Tanisha Anderson.
Esses nomes honram algumas das vítimas da brutalidade policial. Nós os lemos, nós os dizemos, nós os compartilhamos porque essas vítimas, essas famílias, merecem reconhecimento. Se ao menos um dos policiais nas cenas tivesse dado a eles o respeito que eles merecem, essas vítimas poderiam ter sido sobreviventes. Nós dizemos seus nomes para lembrar; dizemos seus nomes para alimentar nossa paixão; dizemos seus nomes para, um dia, não ter mais de dizê-los.
A escravidão moderna é real e institucionalizada na suposta terra dos livres. 1º de janeiro de 1863 marca a abolição da escravidão e o começo da busca dos supremacistas brancos por outras maneiras de excluir pessoas negras. Na 13ª emenda da constituição, aprovada no início de 1865, efetivamente a primeira de muitas táticas para legalizar uma conduta análoga à escravidão, lê-se: “Nem escravidão nem servidão involuntária, exceto como punição por um crime em que o acusado há de ser devidamente condenado, existirá nos Estados Unidos, ou em qualquer lugar sujeito a sua jurisdição.” O “exceto” aqui funciona como uma saída legal para escravizar os “menos-que” (less-than), os “3/5s”[1].Escravidão e segregação são responsáveis pela imagem criada pela mídia do homem negro como um inimigo público. Elas são a razão pela qual Nixon conseguiu instituir a guerra às drogas como uma guerra contra pessoas negras. O encarceramento em massa de pessoas de cor[2] não é novo e cresce exponencialmente desde 1970. A população carcerária dos Estados Unidos equivale a 25% da população carcerária do mundo, enquanto a população do país equivale a 5% da mundial.
Em um momento em que pessoas negras, afro-americanas, eram consideradas três-quintos de uma pessoa, elas eram escravizadas, presas por crimes insignificantes que levavam a sentenças longas em campos de trabalho. Depois, lhes diziam aonde sentar, em que escola estudar, onde não poderiam usar o banheiro. Eram chutadas e cuspidas nas ruas, linchadas nas florestas, perseguidas. Hoje, pessoas negras são consideradas inteiras, mas são forçadas a viver com medo, são presas por crimes insignificantes que levam a sentenças longas; lhes dizem para deitar no chão, joelhos brancos sobre suas nucas; levam mata-leões; são ignoradas quando dizem “eu não consigo respirar”; linchadas nas ruas por aqueles que deveriam servir e proteger; perseguidas nas florestas pela K.K.K..
O racismo sistêmico é central para o desenvolvimento dos Estados Unidos. Apesar do movimento Vidas Negras Importam existir desde 2013, nunca havia ressoado tão fortemente. Depois dos assassinatos de Michael Brown em Ferguson e Eric Garner em Staten Island, a comunidade negra e seus aliados berraram por meses. Por algum motivo, dessa vez, com George Floyd, o sentimento é diferente. Nós cantamos “já basta” nas ruas, nós choramos em nossas casas; desta vez, nós estamos com mais raiva do que nunca e, desta vez, acreditamos que vamos vencer. George Floyd foi assassinado em 25 de maio, protestos locais começaram no dia seguinte, espalhando-se pelo país um dia depois, e, em 29 de maio, Derek Chauvin foi acusado por homicídio de terceiro grau. Demorou quatro dias após seu assassinato para o assassino de George Floyd ser acusado. No que diz respeito a Eric Garner, que morreu em 17 de julho de 2014, demorou quase seis meses para o grande júri decidir não indiciar seu assassino.
Nós acolhemos o progresso, mas afirmamos que não é suficiente, e não vamos recuar enquanto não recebermos o que nos é devido. Desde seu começo violento, os protestos vêm se tornando mais pacíficos, já que a polícia é forçada a recuar. No começo, manifestantes eram arrastados, espancados, bombas de efeito moral e gás de pimenta eram usados pela polícia… Não importava se éramos jovens ou velhos, negros ou brancos, a própria desobediência era suficiente para os homens de azul justificarem seu o uso excessivo de força. Agora a polícia espera em volta enquanto manifestantes irrompem cantando em uníssono. Protestar aqui na cidade de Nova York enche nosso coletivo de felicidade, orgulho, compaixão, solidariedade e poder. Aqueles que são, têm orgulho de serem negros, e aqueles que não são, têm orgulho de serem aliados. Enquanto o ódio destrói, a boa luta reúne.
Ouvindo nossos colegas manifestantes…
Ada, que frequentemente sai de casa com garrafas de água e lanches para os colegas que marcham, nos diz: “Os protestos do Vidas Negras Importam se tornaram uma comunidade unida como nenhuma outra. Distribui lanches, água e suprimentos de limpeza. Nós somos unidos. Nós ajudamos uns aos outros. É assim que provamos à polícia que não precisamos deles. Quando manifestantes são intoxicados por gás de pimenta ou lacrimogêneo, pessoas gritam: ‘Guardanapo!’ ‘Leite!’ ‘Água!’.” Ela continua, denunciar a mentalidade racista, homofóbica, transfóbica e sexista dos “porcos”[3]. Ela ressalta que vamos perseverar na nossa luta para cortar o financiamento da polícia porque “aquele dinheiro é necessário em áreas de justiça social”.
Claudia enfatiza que podemos ver que o movimento tem progredido ao se “internacionalizar e afetar” todo o mundo. “Nos últimos meses, nós finalmente admitimos que isso não é só um problema dos Estados Unidos, mas que o racismo se perpetua em toda sociedade. Protestos começaram em todos os continentes, muitos deles desafiando as restrições por conta do coronavírus. Homens e mulheres negras em outros países que morreram sob custódia da polícia ou cujas mortes não foram investigadas estão aparecendo na mídia convencional.”
Colombe relata o significado de ser negro nos Estados Unidos: “lembrado constantemente do que está fora em vez do que está dentro… Policiais realmente se orgulham da sensação de poder que o distintivo lhes confere. Alguns até sorriem pra você”. Apesar de sentir que está em guerra, ela se orgulha de estar do “lado certo da história”, um que “saberá que estou aqui, negra, linda, orgulhosa, queer, mulher, e que eu importo”.
Circé, uma jovem afro-americana, descreve como “ser mestiça em momentos como esse nos lembra da nossa negritude e de que nem tanto mudou. Meu pai marchou em Washington – o movimento original dos direitos civis não foi há tanto tempo assim e também não acabou”. Ela continua compartilhando como “ser afro-americana é uma experiência estranha e única. Constantemente te dizem que você não é americana ou que seu lugar não é aqui, mas sua cultura e história foram completamente apagadas. Você nunca sabe de ONDE você vem”.
Wankee nos diz que, “como um afro-latino vivendo nesses tempos turbulentos, é mais importante que nunca estar ao lado de nossos irmãos e irmãs negras que lideram o ataque pelo fim do racismo sistêmico e da brutalidade policial. Protestos têm um papel importante em finalmente quebrar o ciclo interminável de ódio baseado na cor da pele.”
Cantem conosco…
Protestar é uma forma feroz, ousada e poderosa não só de expressar nosso sentimento, mas, mais importante, de exigir o que nos é devido.
Nós cantamos:
“As ruas são de quem? São nossas ruas” e
“Sem justiça, sem paz, fo***-se essa polícia racista!”
Levantando nossas mãos em solidariedade, nós dizemos: “mãos pra cima, não atirem!”
Nós cantamos:
“O que nós queremos? Justiça! Quando nós queremos? Agora! Se não tivermos… Fechem tudo! Se não tivermoooos… FECHEM TUDO!”, nós exigimos!
Nós somos empoderados quando gritamos: “acredito que vamos vencer!” Quando olhamos policiais diretamente nos olhos e gritamos: “larguem seus empregos”, nós nos unimos. Encontramos conforto em saber que estamos do lado certo da história.
Essa luta é legítima, essa luta é correta, estamos nessa luta contra o racismo sistêmico há séculos. Dessa vez nós abraçamos nossa fé, nós abraçamos o futuro, nós acreditamos que a justiça irá prevalecer, e não vamos desistir até que a igualdade domine.
* Iman M’Fah-Traoré é estudante de Global Studies na New School, NYC. Este artigo foi originalmente publicado na revista Never Apart em 8 de julho de 2020. Disponível em https://www.neverapart.com/features/i-cant-breathe-blacklivesmatter/.”
[1] “3/5s” se refere à maneira como os escravizados passaram a ser contados a partir de 1787 na hora de determinar quantos assentos um estado teria na Câmara dos Representantes. Ou seja, três em cada cinco escravizados eram contados como pessoas. (N.T.)
[2] No original, “people of color”, pessoas não brancas. (N.T.)
[3] Gíria para policiais. (N.T.)