Ano XIII 0201
2º semestre de 2018
dossiê
Tempo de leitura estimado: 30 minutos

NARRATIVAS NÃO SÃO MENTIRAS

Resumo: O objetivo deste trabalho é problematizar parte do pensamento crítico contemporâneo que tende a qualificar como falsa qualquer narrativa em que haja um procedimento de síntese histórica.  A partir de um mergulho empírico no clássico de Lima Barreto Triste fim de Policarpo Quaresma e da investigação de meu objeto primordial de estudo, que é a Música Popular Brasileira, procuro demonstrar que tal procedimento – quando exercido de modo pouco rigoroso – serve aos que negam o valor cultural das especificidades do desenvolvimento histórico brasileiro, em prol de um pretenso “alto saber universal”. Narrativas não são mentiras; são produção de discursos simbólicos que, quando verdadeiramente amparados em processos sociais legítimos, constroem o peso de um passado real com o qual temos de aprender a lidar.

Palavras-chave: Narrativas; música Popular Brasileira; Lima Barreto; canção; tradição.

Abstract: The objective of this work is to problematize part of the contemporary critical thinking that tends to qualify as false any narrative in which there is a procedure of historical synthesis.  From an empirical digging into the classic of the Brazilian writer Lima Barreto Triste Fim de Policarpo Quaresma and the investigation of my primary object of study, which is the Brazilian popular music, I try to demonstrate that this procedure – when exercised in a very strict way – serves just to encourage those who deny the cultural value of the specificities of Brazilian historical development, in favor of an alleged “high universal knowledge”. Narratives are not lies. They are the production of symbolic discourses that, when truly supported in legitimate social processes, build the weight of a real past which we must learn to cope.

Keywords: Narratives; Brazilian popular music; Lima Barreto; songs; tradition.

A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem.
 (Sergio Buarque de Holanda)

Léguas de ser um projeto que eleve à perfeição o tipo de civilização que representamos (se é que representamos alguma fora esta), o processo de desenvolvimento da música popular no Brasil – sobretudo aquele que gira em torno à estranha amálgama a que chamamos canção – provavelmente foi o mais próximo que conseguimos chegar no campo da cultura – ao menos no século XX – de uma “contribuição original”, como diria Caetano Veloso, que enriqueça nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos. Embora cada vez menos, apesar da dor, eu vislumbre uma trilha clara para o meu Brasil, tampouco creio que, por causa disso, “devamos tapar o próprio sol com uma peneira rasgada” desconstruindo, seja por vaidade intelectual, seja por necessidade de marcarmos nosso espaço no campo das reflexões críticas, o fato de que a canção no Brasil foi, senão a melhor, uma das melhores, mais contínuas e mais sólidas construções artísticas que conseguimos levar a cabo até hoje, no país.

Se fosse apenas isso, já estaria bom, mas não é. A música popular, seu entorno e seu processo histórico, sobretudo seu desenvolvimento dentro das engrenagens industriais do século XX, pode nos ajudar a entender, um pouco melhor, questões referentes à sociedade brasileira, às formas como interagimos uns com os outros e com as estruturas institucionais, assim como nossas potências, aspirações e fraquezas. Do mesmo modo, a derrocada mercadológica gradativa, intensificada na transição do século XX para o XXI, de um braço da canção – em alguns momentos dominante, todavia sempre presente – que se enxergava (ou melhor, se escutava) como linguagem artística questionadora, sociológica, experimental (sem abrir mão dos privilégios de produto de massa) também é documento vivo para refletirmos sobre o século XXI e a crise dos processos conciliatórios via social democracia que, de forma tácita, sempre pairou sobre as cabeças criadoras e criativas dos artífices da cultura brasileira.

Sei que muitas direções poderiam ser tomadas para refletirmos sobre nós mesmos utilizando como lente a música popular, contudo me aterei especialmente à observação privilegiada de um aspecto que me interessa sobremaneira: as disputas narrativas por um protagonismo simbólico de “representação do nacional”, presente em nossa canção desde antes da fixação do rádio como meio de comunicação de massas. Sem entrar no mérito de qual narrativa possui legitimidade e qual não, quero demonstrar tão somente que esta disputa vem de priscas eras e só abandona a canção em fins do século passado, quando a própria ideia de nacional é violentamente recalcada e reprimida na consciência social coletiva, vindo a tornar-se potência latente no imaginário político, que a ativa e a faz retornar nos tempos atuais sob a égide de preceitos morais extremamente duvidosos.

Assim – ora identificada com regimes autoritários, ora identificada com a resistência e a liberdade de existir enquanto especificidade cultural – a luta pela imagem de símbolo cultural representativo da identidade brasileira (com tudo que isso apresenta de problemático) já é debatida na música popular muito antes da proposição de Sérgio Buarque de Holanda a respeito de uma inadequação entre aquilo que “nas origens da sociedade brasileira” programaticamente aspirávamos a ser e as possibilidades reais, materiais, geográficas daquilo que, de fato, poderíamos ser.

Em Triste fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto nos dá a prova cabal dessa imbricação entre construção da identidade nacional e música popular, viva desde os primórdios da República. Materializada na figura do compositor, cantor e violonista Ricardo Coração dos Outros, personagem documentadamente inspirado no consagrado artista Catulo da Paixão Cearense, as virtudes e contradições de um projeto cultural aos moldes do que mais tarde virá a ser conhecido como nacional-popular são habilmente exploradas pelo escritor, num movimento pendular que inclina-se tanto para o lado de desqualificar a empreitada de Ricardo (problematizando-a quase a ponto de torná-la ridícula), quanto se deixando enredar pelo charme e afeto do músico-artífice (quase a ponto de se deixar cooptar).

No livro de Lima, Coração-dos-Outros é um artista absolutamente apaixonado pelo gênero denominado “Modinha”. O estilo musical, que mobiliza por inteiro a força de seus afetos, impulsiona-o rumo a um ideal claro e transparente: dar forma à alma brasileira ou, nas palavras do Major Policarpo, refletir “a mais genuína expressão da poesia nacional”.  Sarcasmos à parte, não cairei neste artigo na tentação de repetir a operação que – com muito mais perícia e carinho do que a imensa maioria de trabalhos sobre este livro que já me deparei em minhas leituras – o escritor levou a termo: a denúncia do quanto de histriônico existe no recorte do nacional; do tanto de voluntarismo presente no desejo de apontar o autóctone; ou da falta de critérios para julgarmos quando um processo histórico pode definir a solidificação de manifestações artísticas sempre moventes. Prefiro, em vez disso, focar minha atenção na investigação dos processos sociais que legitimam tais narrativas, nas estratégias discursivas que as sustentam e nos argumentos de ordem estética que fundamentam tais escolhas.

Portanto, ao invés de me colocar em contrapelo a essa ou àquela narrativa, desejo investigar de que modo acontecem esses recortes, pois acredito que, boa parte das vezes, dentro do contexto histórico da música popular e da canção, não foi apenas por veleidade oportunista de um punhado de “formadores de opinião” que as narrativas culturais nasceram, cresceram e ganharam fôlego. A bem da verdade, muitas das narrativas sedimentadas na descrição histórica da música popular (por exemplo: a que coloca o choro como uma das matrizes fundadoras da música popular brasileira ou atribui ao samba a capacidade de “encarnar” o Brasil urbano-popular) recuperam processos históricos reais, profundos e legítimos, cuja deslegitimação, embora em um primeiro momento possa ter parecido democratizante, quando não vem acompanhada de rigor histórico, serve apenas para emprestar fôlego a um elã universalizante e conservador, para quem toda especificidade do desenvolvimento cultural e artístico do Brasil não passaria de um delírio sociológico (ou pior, um recorte folclorista), cujo objetivo precípuo seria, em última análise, disfarçar nossa suposta mediocridade perante o concerto das nações.

Obviamente, não estou sustentando aqui que qualquer revisão histórica está eivada de intenções imperialistas (ou fascistas), mas afirmo sim que o revisionismo histórico baseado somente em voluntarismos, opiniões de gosto ou em um desejo mal disfarçado de criar um contracampo no qual o acadêmico contracampista assoma-se como figura de relevo serve aos piores interesses daqueles que, diferentemente de Sérgio Buarque de Holanda, parecem somente desejar “participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem”. Dito de outro modo, o que defendo sem tergiversação é que o ato de denunciar as arbitrariedades de tais narrativas sem apontar suas fragilidades – escorando-se tão somente no fato de tais narrativas haverem sido inventadas, como se alguma narrativa fundadora aqui ou em alhures não fosse uma construção social – é uma forma farsesca de transformar em mentira algo que, na medida do truísmo humano (baseado em evidências históricas impossíveis de serem provadas cientificamente), mostra-se verdadeiro. O que ocorre na realidade é que muitos dos acontecimentos históricos que se fixaram como narrativa na música popular brasileira não pagam tributo a uma operação metafísica que possa ser explicada pela remissão abstrata a algum marco fundador universal (como acontece em inúmeros discursos filosóficos e nos discursos artísticos ligados ao conceito fascista de “alta cultura”), eles são evidências de um embate de forças e vetores oriundos de um processo histórico ativo de sujeitos sociais os quais, mesmo em condição subalternizada, foram capazes de agenciar socialmente suas manifestações e fazê-las valer como símbolo de uma nação, seja pela sua força estética, seja pela resiliência combativa com que moldaram suas inserções culturais. Por certo que tais vitórias foram moldadas com alianças, cooptações, sincretismos e todas as modalidades estratégicas que constituem qualquer movimento político (mesmo que cultural), mas o fato é que tais empreitadas – contínuas e por vezes heroicas – acabaram por sedimentar no tecido social aquela costura inconsútil que, por falta de uma palavra melhor, chamamos de tradição.

Ao me colocar claramente em favor daqueles que reivindicam certos marcos fundadores na tradição da música brasileira, não nego que tais marcos fundadores constituam narrativas específicas criadas por determinados grupos sociais; o que rechaço é que se desautorize tais narrativas pelo simples fato de serem narrativas, como se qualquer atribuição de sentido, mesmo embasada no estudo de longos períodos de desenvolvimento histórico, fosse em si uma desonestidade intelectual. Defendo exatamente o oposto: há um alto grau de desonestidade intelectual em muitos discursos retóricos que, aparentemente, pretendem desconstruir narrativas embasadas em dinâmicas coletivas reais, a partir do argumento falacioso de que são discursos inventados: são discursos inventados apenas na medida em que qualquer discurso é uma construção; contudo, para vários desses mesmos acusadores basta haver um deslocamento espacial e geográfico (e passarmos a falar de Europa ou mesmo dos Estados Unidos) para ninguém duvidar de premissas como as de que o Blues e o Jazz são marcos fundadores do ethos musical norte-americano ou que certas modalidades de música de orquestra representam pilares artísticos próprios da cultura alemã, francesa, russa etc.

Bem aqui neste ponto, gostaria de propor uma digressão do debate teórico puramente conceitual para retornar ao mergulho empírico no clássico de Lima Barreto Triste fim de Policarpo Quaresma. Minha insistência no reexame dessa obra, escrita no início do século passado, mas cuja trama se desenrola no final do retrasado (no período seguinte à proclamação da República), deve-se ao fato de que já estavam colocadas ali, em formato de romance, muitas das questões que ainda hoje debatemos nas humanidades, o que leva a supor que, já em fins do século XIX, havia uma pulsante reflexão, ao menos em determinados setores da sociedade, a respeito do valor ou desvalia da ideia de brasilidade, identidade nacional, cultura local, música popular, cultura brasileira etc. Tal inferência denota, por conseguinte, que os espaços de poder concernentes a tais narrativas também já se encontravam em disputa. Daí, serem tantos os trechos do livro a demonstrar que o nacional-simbólico e a música popular já andavam de braços dados por esta época.

Para fins de exemplificação, começarei amalgamando alguns diálogos em que a importância da música popular na formação cultural do Brasil é reconhecida tanto pelos personagens principais (embora, por vezes, com distanciamento irônico do narrador), quanto questionadas pelos secundários. No exemplo inicial, vemos Adelaide, irmã do major Quaresma, questionando-o em razão de sua decisão de tomar lições de violão, o que, na visão dela, caracterizaria uma conduta moral duvidável. Em seguida, temos a resposta do major que, refutando tal acusação, defenderá a importância do instrumento e da modinha ancorando-se para tanto em seus valores nacionalistas:

– Policarpo, você precisa tomar juízo. Um homem de idade, com posição, respeitável, como você é, andar metido com esse seresteiro, um quase capadócio – não é bonito!

– É preconceito supor-se que todo homem que toca violão é um desclassificado. A modinha é a mais genuína expressão da poesia nacional e o violão é o instrumento que ela pede. Nós é que temos abandonado o gênero, mas ele já esteve em honra, em Lisboa, no século passado, com o Padre Caldas que teve um auditório de fidalgas. Beckford, um inglês, muito o elogia (grifos nossos) (Barreto, 1911, p. 11-12).

O trecho acima é uma condensação das questões fundamentais apresentadas nesse texto; explico por quê. Primeiramente, Policarpo associa um gênero de música, a modinha, ao conceito de “genuinidade”, que difere um pouco do conceito de “autenticidade”, pois enquanto autenticidade está ligada a ideia de originalidade – algo que é único, singular, raro – “genuinidade” aproxima-se da ideia de “tradição” – algo que, por meio de um processo de maturação social e cultural, passa a reunir os atributos necessários para simbolizar no imaginário uma projeção que guarda relação direta com o real. Embora ambas tragam em si a vontade de definir uma verdade objetiva, a diferença principal consiste no fato de que dizer que algo é genuíno implica necessariamente justificar historicamente o porquê. E é exatamente por essa razão que o major, logo em seguida a sua proposição a respeito do caráter genuíno da modinha, fará uma curta afirmação que traz em si o anteparo de uma pesquisa musicológica, etnográfica ou coisa que o valha. Domingos Caldas Barbosa, o “Padre Caldas”, foi de fato um personagem histórico do século XVIII. Cantor de modinhas, empunhava com sua viola de arame, trovas improvisadas que aproximavam o lundu da moda portuguesa e mesmo fundiam-nas, numa amálgama que foi muito apreciada pela corte portuguesa. Filho de um branco português com uma negra angolana, possuía formação acadêmica, tendo se sagrado mestre de Artes no Colégio dos Jesuítas, no Rio de Janeiro, e posteriormente mestre em Leis e Cânones pela Universidade de Coimbra. Boêmio inveterado gozou de vasta popularidade nas terras lusitanas, ajudando a disseminar o gênero em variadas camadas sociais, tornando-se, pois, o primeiro artista brasileiro a alcançar fama internacional e, ao mesmo tempo, um artífice inconteste e documento vivo do poder da tal gaia-ciência da canção de que nos fala José Miguel Wisnik, em seu livro Sem receita: ensaios e canções.

Dito de outro modo, Policarpo não escolhe o gênero que lhe dá na veneta para designar como genuíno: escolhe a historicizada, antropofagicizada e longeva modinha. O personagem escolhe como seu arquétipo de brasilidade um tipo de música que, nas palavras de Mozart do Araújo, deixou “aos poucos a luz dos candelabros, para se expandir sob o céu das noites enluaradas. E desprezava o contraponto do cravo, pelo contracanto dos baixos melódicos dos violões seresteiros”. Se pensarmos que esse “aos poucos” foi um período de dois séculos, durante o qual a modinha – que recebe esse nome, aliás, na Bahia – conseguiu, em meio a tantas influências (a moda portuguesa e o lundu principalmente, mas também a ópera italiana e até a valsa) se estabilizar como gênero; concluiremos que não há nada de absurdo, aleatório ou arbitrário na reivindicação de Quaresma. O que parece haver, já naquele momento, é uma disputa pela narratividade mais adequada a este ou aquele projeto de Brasil, que precisará, exatamente como estratégia de poder, deslegitimar outras narrativas para então substituí-las no campo das ideias. Assim, se há alguma contradição a ser apontada no pensamento de Policarpo não é certamente o recorte que ele faz da modinha como um gênero nacional, e sim sua hesitação em aceitar o valor estético da modinha em sua especificidade, sem precisar recorrer a “valores pretensamente universais” para legitimá-la. Senão, vejamos:

Quaresma estivera muito tempo a meditar qual seria a expressão poético-musical característica da alma nacional. Consultou historiadores, cronistas e filósofos e adquiriu certeza que era a modinha acompanhada pelo violão. Seguro dessa verdade, não teve dúvidas: tratou de aprender o instrumento genuinamente brasileiro e entrar nos segredos da modinha. Estava nisso tudo a quo, mas procurou saber quem era o primeiro executor e cantor da cidade e tomou lições com ele. O seu fim era disciplinar a modinha e tirar dela um forte motivo original de arte (grifos nossos) (Barreto, 1911, p. 31).

Aqui sim, vemos um Quaresma colonizado (talvez um Lima colonizado?) que nos remete à citação de Sérgio Buarque de Holanda, na epígrafe deste trabalho. Disciplinar a modinha não seria, pois, aplicá-la no positivismo branco de Comte, tão em voga em fins do século XIX, subtraindo-a de seu componente mais negro, “deslundunizando-a”, tornando-a mais branca, mais europeia novamente? Será que neste momento nosso herói nacionalista não está exatamente querendo adequar o gênero, que se abrasileirou na fusão de modalidades musicais díspares, em “um forte motivo original de arte” (leia-se arte europeia)? Mais uma vez meu pensamento reafirma uma das forças propulsoras deste trabalho: a atitude contraditória do major reafirma a potência de verdade da narrativa histórica que reconhece a modinha como um gênero nacional, um marco fundador, pois é justamente porque nos sentimos uns “desterrados em nossa terra”, que não conseguimos aceitar quando algo que fazemos coletivamente, ao longo do tempo, adquire uma singularidade que parece não “participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem”.

Ao me propor a escrever o texto que ora redijo, afastando-me um pouco do meu mote de estudo principal que gira sobretudo e com imenso prazer em torno da voz, da vocalidade, da interface música e palavra etc. é porque me incomoda sobremaneira o fato de ainda termos dificuldade para aceitar a responsabilidade de convivermos com um passado histórico, uma tradição. Muitas vezes me deparo com textos que, sem uma pesquisa robusta ou um argumento concreto, desejam, simplesmente por veleidade do autor (ou por uma paradoxal iconoclastia conservadora) derrubar, desconstruir, deslegitimar processos que representaram no plano individual lutas pessoais de vida ou morte; nas dinâmicas coletivas agenciamentos extremamente custosos; no contexto de um país racista como somos dificuldades transpostas a duras penas. O Choro Negro (saravá Paulinho da Viola) do maestro Anacleto de Medeiros, do virtuoso Irineu de Almeida, do mestre dos mestres Pixinguinha não pode, de uma hora para outra, numa canetada e sem maiores explicações, ser transformada em música branca por brancos que não gostam de fixar raízes, porque se sentem aprisionados por dinâmicas sociais que lhes ultrapassam. Do mesmo modo, o samba como identidade nacional não deve virar, somente em razão de uma autoadulação intelectual, um projeto modernista, abraçado politicamente por Getúlio Vargas. O que proponho ao longo deste texto é uma operação intelectual inversa: pensarmos se não foi a negritude do choro que domesticou a música branca. Se não foi a força estética do samba e a capacidade de seus artífices de fazerem valer suas estratégias de inserção que motivaram os modernistas e intelectuais a posteriormente escolher o samba como objeto privilegiado de seus projetos de construção de Brasil.

Ao contrário do que possa parecer, não estou discutindo essas coisas por achar que devamos andar por aí “cultivando tradição embalsamada”, como diria Tom Zé. A razão pela qual me remonto ao período-chave do início da República e do século XX é que nesta janela de duas décadas as contradições de se inventar um país pós-colonial e periférico aparecem com toda força. O livro de Lima é um meta-livro no sentido de, ainda no olho do furacão e em meio ao processo de construção de uma identidade nacional, lançar-se em uma reflexão ferina sobre o próprio processo em andamento. Contudo, a ambiguidade reflexiva presente no livro foi completamente abandonada no imaginário de nós leitores: Triste fim de Policarpo Quaresma aparece sempre apenas em sua primeira faceta, como crítica a um nacionalismo ingênuo (o que de fato é) mas nunca em sua segunda faceta, como denúncia das mazelas, fraqueza e desmandos que impedem, no plano do real, a sólida fixação de uma imagem simbólica de país com a qual possamos lidar de maneira menos traumática e mais bem resolvida.

Daí a razão de ser deste artigo, sua principal motivação: contribuir para um debate acerca dessa dificuldade do intelectual brasileiro (e quiçá também do não intelectual) em se olhar no espelho da história e ser capaz de lidar com o próprio reflexo. Tal dificuldade acaba provocando o desejo incontrolável, maníaco e incessante de trocar (ou quebrar) o vidro do espelho apenas para não ter de lidar com a imagem refletida. Seria desnecessário dizer, mas digo, que a imagem no espelho não é o verdadeiro ser refletido; porém tampouco a quebra do espelho (ou sua troca por outro menos acurado) resolverá o incômodo mental do sujeito que, narciso às avessas, não suporta perceber-se a si enquanto imagem (ainda que projeção), porque não tolera a dinâmica do real que o antecede.

Importa-me, pois, esse debate, embora não seja o meu foco principal nos estudos da canção – como pontuei acima, meu projeto principal é um estudo sincrônico das vocalidades na canção, seja no Brasil ou em qualquer outro país em que os atributos vocais me chamem atenção –, porque percebo que entramos definitivamente no século XXI e no terceiro milênio (não apenas cronologicamente mas de modo definitivo e irrevogável nas formas de se relacionar, consumir e se dispor do corpo, no mundo do trabalho e do lazer). No campo da cultura, após quase duas décadas de muito revisionismo, histeria retrô e uma quase obsessão por passar a limpo o século XX (materializada de muitas maneiras no campo cultural), parece-me que as experiências com as novas formas de sociabilidade (não tão novas para o tempo tecnológico, mas novas do ponto de vista histórico) finalmente estão se impondo de modo definitivo, inviabilizando antigos paradigmas para construir outros (nem de todo bons, nem de todo maus, contudo, diversos).

Hoje, as informações culturais encontram-se na web à disposição de quem delas quiser dispor, em quantidade quase ilimitada, mas a forma de procurá-las na rede mundial e o interesse que despertam (e, portanto, a relevância que possuem) não são simplesmente franqueadas a um ser-humano-tábula-rasa, que faz escolhas livres e conscientes, a partir de um grande cardápio de bens culturais que lhe é oferecido. A coisa é bem mais complexa. Mais uma vez as narrativas disputam espaços de forma estratégica impulsionando conteúdos simbólicos que representam determinadas matrizes culturais mais do que outras e não me parece justo nem honesto afirmar que há um equilíbrio de culturas na produção e difusão de tais conteúdos (isso para não entrar no debate acerca das origens nacionais das plataformas digitais mais acessadas do mundo). A influência dos algoritmos sobre as escolhas estéticas e os modos de transitar na rede já são parte vital de nossa vida cotidiana e ninguém mais que seja minimamente informado pode negar sua importância ou apostar em uma suposta aleatoriedade/neutralidade digital. A aceleração do fluxo de informações e seus novos regimes de distribuição são parte de um enorme processo de mudanças sociais genericamente (e um tanto esmaecidamente) denominado globalização, que interfere tanto nas relações individuais quanto nas construções culturais (o que implica dizer que estamos a reconstruir de maneira radical a nossa imagem simbólica para trás e para frente). Nesse contexto, em que as referências culturais tradicionais, sobretudo as periféricas se enfraquecem e se diluem, perdidas num mar de informações que, longe de boiar no éden, são agenciadas algoritmicamente por superempresas como a Google, o Facebook, a Amazon etc., a especificidade cultural da canção popular no Brasil e o manancial de conhecimento (e sedução) que elas evocam/provocam representam uma possibilidade (sutil mas existente) de desafinar o cybercoro dos neocontentes, matizando outras paisagens com tons randomizados que não fazem parte da palheta das cores eleitas.

Assim, do mesmo modo que está “léguas de ser um projeto que eleve à perfeição o tipo de civilização que representamos (se é que representamos alguma fora esta)”, este exemplo multifacetado de desenvolvimento cultural repleto de especificidades, que alcunhamos com o signo “música popular brasileira”, também está longe de ser um projeto cultural irrelevante, ou mesmo tão somente um patrimônio nacional confinado ao século XX, que possamos seguir brincando de desconstruir, relativizar e em última instância “deixar pra lá”, como se nenhuma contribuição oferecesse para a cultura mundial.  A música popular brasileira é tanto uma matriz de conhecimentos individuais agenciados social e economicamente, quanto a contribuição cultural de uma miríade de artistas, pensadores e público para um projeto coletivo de país.

Pixinguinha, João da Baiana e Donga. Foto de Alberto Jacob Fonte: https://radiobatuta.com.br/programa/donga-e-joao-da-baiana/

Elaborada em sua concretude pelos músicos, ouvintes, produtores, empresários que, mesmo em constante embate e tensão, conseguiram alcançar um ponto de equilíbrio que tornou possível, cerca de 40 anos apenas após a abolição da escravatura no Brasil, viabilizar um complexo sistema de comunicação e arte que reuniu indústria fonográfica e radiodifusão, a música popular brasileira esteve, continuamente e sem jamais perder sua força, atrelada, durante todo o desenvolvimento da república, à ideia de construção de uma identidade (ou de identidades) nacional(ais) repleta(s) de especificidade.

Empreendedores como Frederico Figner, fundador das casas Edison (loja de venda de discos, partituras, artigos eletrônicos e primeira gravadora da América Latina) e mais tarde da Odeon, primeira fábrica de discos do país, deram o pontapé inicial para o surgimento do negócio fonográfico ainda na primeira década do século XX. Se pensarmos que o Brasil daquela época não era mais que um grande exportador de café e que o fonógrafo havia sido patenteado por Thomas Edison somente em 1878, perceberemos que não era uma consequência óbvia de nosso desenvolvimento econômico darmos início a um processo industrial de veiculação musical. É mais curioso ainda, se atentamos para o fato de que que as primeiras gravações fonográficas no Brasil optaram pela produção local, não apenas com músicos locais (o que por si só poderia indicar mais falta de mão-de-obra qualificada do que interesse em privilegiar o autóctone), mas com composições locais. O que, para leitores desinformados pode parecer um mero acidente, em meu entendimento demonstra o “aproveitamento ótimo” de um emaranhado cultural que contava com uma teia já bastante avançada de músicos profissionais e semiprofissionais; e de um público que os prestigiava nos cafés, saraus, festas populares e concertos.

Conquanto eivada de contradições, apropriações e disputas, podemos, ainda assim, perceber na própria estrutura do mercado musical brasileiro e seu desenvolvimento uma porosidade que, mesmo léguas de ser justa e irrestrita, foi durante décadas mais permeável às classes populares do que a imensa outra gama de atividades econômicas (se citarmos as culturais então, como o cinema, a literatura, as artes plásticas nem se fala) que se desenvolveram no Brasil. Desde muito cedo essa porosidade foi percebida por músicos populares e artistas como Donga, João da Baiana, Pixinguinha e uma boa parte dos sambistas e chorões pertencentes às classes média-baixa e classes pobres (mas não miseráveis) que se tornaram sujeitos ativos, como percebido por Muniz Sodré, de uma movimentação estratégica (se é que não poderíamos chamar de movimento) de inserção no mercado nascente. A anedota verídica envolvendo o pandeiro de João da Baiana (autografado pelo senador-general Pinheiro Machado, evitando assim o confisco do instrumento nas constantes batidas policiais), a batalha em torno da autoria de “Pelo telefone”, a busca incessante de Pixinguinha e de muitos outros compositores e arranjadores em alcançar formatos de regionais e formas de arranjo que se coadunassem com o espaço radiofônico mostram que o campo de trabalho para a música popular permitiu, em dado momento, que grupos subalternizados agenciassem uma ocupação de espaço, até então inédita, no tecido cultural brasileiro.

Sem querer me arvorar (mesmo porque seria ridículo) a dar uma “palavra final” sobre um processo histórico-cultural complexo e, portanto, sempre vulnerável à construção de narrativas múltiplas, ponho minha “cara a tapa”, como se diz popularmente, para desafiar os pares que ainda se dedicam ao tema a se deixar transpassar pelo afeto e pela vontade de construir narrativas responsáveis no campo dos estudos da canção, que sirvam de inspiração para as novas gerações.  Não há motivo para taparmos o próprio sol com uma peneira rasgada: a canção no Brasil foi, digo e repito, senão a melhor, uma das melhores, mais contínuas e mais sólidas construções artísticas que conseguimos levar a cabo até hoje. E continua a ser, em pleno século XXI, uma contribuição original (e de fôlego) ao caótico (des)concerto das nações.


* Formado em Comunicação pela UFRJ, Gustavo Sant’Anna (Mouro) é cancionista e doutorando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. Mestre em Letras, também pela PUC-Rio, sua dissertação de mestrado A insurreição da voz tem lançamento em formato livro previsto para março de 2019. Em sua pesquisa, o autor/compositor investiga os elementos não-lexicais, todavia produtores de sentido dentro do campo da canção.

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