RESUMO
Desde que a chamada Sociedade da Informação começou a se consolidar, não faltam vozes triunfalistas saudando o avanço social supostamente tornado possível pelas novas Tecnologias da Informação e da Comunicação, as TICs. Mais do que melhorias efetivas, o advento da sociedade em rede traz incertezas e talvez exageros. Ao mesmo tempo que facilita, amplia e promove o consumo, a internet cria expectativas otimistas quanto ao potencial que teria para reforçar e amplificar a cidadania e melhorar os processos educativos. No entanto, um exame mais rigoroso revela que, ao contrário do que seria esperado, cidadania e educação estão longe de ser consideradas satisfatórias, especialmente no Brasil. A primeira questão investigada aqui é até que ponto a popularização do uso das novas TICs contribui para a melhoria da educação de seus usuários? A outra questão relevante é por que as facilidades e possibilidades de comunicação hoje disponíveis não permitiram até agora um exercício mais consistente da cidadania?
Palavras-chave: cidadania; educação; novas TICs.
A universalização do acesso
Na constante histórica da desigualdade social brasileira, há duas bases de sustentação solidamente construídas: a concentração da propriedade da terra e o acesso desigual à educação. Darcy Ribeiro dizia com refinada ironia que a elite brasileira foi muito competente ao implantar o ensino universalizante no Brasil, pois garantiu que a educação ficaria restrita à própria elite e jamais seria de fato estendida a toda a população. Enquanto a educação superior ficou a cargo do governo federal, a educação fundamental e média foi entregue a estados e municípios e, portanto, ficou sujeita à subordinação dos interesses das elites locais. Sobre o Mobral, programa de alfabetização de adultos posto em prática durante os governos militares, Darcy dizia que sem ele a classe dominante estaria perdida, pois o analfabetismo poderia terminar no ano 2000. Nas palavras dele:
Imagine-se o ano 2000 sem analfabetos no Brasil! Seria um absurdo! Não, graças à providência de criar para alfabetizar um órgão que não alfabetiza, de não gastar os escassos recursos destinados à educação onde se deveria gastar, de não investir onde se deveria investir – se o propósito fosse generalizar a educação primária – podemos contar com a garantia plena de que manteremos crescente o número absoluto de analfabetos de nosso país.1
A advertência contida nas palavras de Darcy Ribeiro pode ser dirigida à pretendida universalização do acesso ao mundo dos computadores. A ideia dominante na contemporaneidade é a de que a inclusão digital é uma forma de realização da justiça social. Conforme Cazeloto,2 o acesso às máquinas informáticas é visto como sinônimo de participação sociopolítica, em vez de mera submissão às exigências do próprio capitalismo, em vias de expansão promovida por setores internacionais dominantes, incluídas em tais setores a “elite mundial da megainfoburocracia” e as elites locais, afinadas com as “formas de produção da cibercultura”. O central na ideia de cibercultura, segundo Cazeloto, é a imbricação entre economia, cultura e tecnologia. Doravante, a estratificação social irá depender não apenas do acesso às novas tecnologias, mas principalmente da capacidade de substituir, de atualizar, ou seja, de acompanhar a velocidade das inovações constantes.
Mas não basta se informatizar, isto é, ter e saber usar um computador. É preciso também estar conectado à internet. O Programa Nacional de Banda Larga, criado em 2010, começa com a seguinte afirmação: “A construção do caminho para superar o abismo social que divide a sociedade brasileira é o grande objetivo do Programa Nacional de Banda Larga”. O documento informa que a inclusão digital representa garantia de que os cidadãos e instituições disponham de meios e capacitação para acessar, utilizar, produzir e distribuir informações e conhecimento, por meio das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), de forma que possam participar de maneira efetiva e crítica da sociedade da informação. Ainda segundo o texto, é preciso criar uma infraestrutura de banda larga para permitir acesso à internet em alta velocidade, pois “a massificação da banda larga deve ser vista como um instrumento de efetivação de direitos dos cidadãos da era digital”.
O documento reconhece, no entanto, que há ressalvas importantes, como quando observa que “a inclusão digital apenas servirá ao país se for pensada, planejada e executada como meio de inclusão social, e não apenas como um fim em si mesma”.3 Pois é justamente da relevância de ressalvas como essa que este artigo trata. Especialmente das ressalvas ofuscadas e suavizadas pela mistificação do discurso triunfalista que apresenta as novas TICs como panaceia para os problemas sociais brasileiros. De tal modo que, em nome de uma suposta inclusão urgente e indispensável, para a qual deveriam ser direcionados todos os recursos e esforços possíveis, pode-se estar contribuindo, na verdade, para a perpetuação da desigualdade, dos desequilíbrios e da concentração de renda que fundam e marcam a história da sociedade brasileira.
Nossa intenção é contribuir para um conjunto de reflexões, associadas à afirmação de Edilson Cazeloto, para quem, atualmente, “a proliferação dos programas de inclusão digital pode ser interpretada como uma forma de intervenção imperial destinada a criar o ambiente necessário à elite cibercultural pela saturação midiática e pela informatização do cotidiano”.4 O mesmo autor observa que as novas tecnologias digitais atuam sobre todas as classes de cima para baixo, com intensidade semelhante. Assim, elas tendem a consolidar ou ampliar fossos sociais e desigualdades, reforçando exclusões preexistentes, muito mais do que oferecendo chances de ascensão ou de inclusão social.
Reflexões necessárias
Segundo José Eisenberg e Marco Cepik, as iniciativas governamentais voltadas para a implantação das novas TICs têm crescido rapidamente, sem ser acompanhadas de uma reflexão mais sistemática acerca dos possíveis impactos e consequências de tais iniciativas, ou dos resultados obtidos em outros contextos.5 O mesmo pode ser dito da maneira como a mídia tem tratado do assunto e como o senso comum tende a reproduzir a pregação triunfalista.
O intento aqui é chamar atenção para a falta de crítica ou para a passividade com que se tem aceitado a repetição de discursos que pretendem glamorizar o potencial democratizante das novas TICs e da internet, mesmo que a realidade continue fornecendo sistematicamente evidências de que os avanços na área da cidadania e da educação estão longe do que seria possível ou esperado com o advento das novas tecnologias.
O eixo transversal, a questão que estrutura essa reflexão, diz respeito a quais são os limites, as distorções e equívocos que impedem que as novas mídias e linguagens produzam novas práticas sociais capazes de reforçar, ampliar e garantir a cidadania democrática, ou seja, permitir que os direitos de cidadania sejam alcançados por todos os cidadãos. O discurso mercadológico solicita políticas públicas e investimento estatal com base em alegações nem sempre garantidamente verdadeiras. E deixa sem resposta questões como:
a) As novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) contribuem para o fortalecimento da cidadania, aqui entendida como igualdade de oportunidades?
b) Ou, ao contrário, tendem a cristalizar desequilíbrios e iniquidades e ampliar o fosso que separa as classes sociais?
c) Modificam a configuração das relações sociais sem alterar estruturalmente a realidade, embora façam parecer que sim?
d) Quem ganha e a quem interessa o clima festivo e triunfalista a respeito do potencial das novas tecnologias?
e) O que fazer – e como fazer – para garantir que as TICs sirvam à causa da cidadania?
f) Como a educação (a escola) pode interferir nisso?
g) As redes sociais são evidência de maior participação ou apenas espaço experimental para coleta de informações e monitoramento do comportamento de consumidores, visando melhorar a eficiência das estratégias de vendas?
Números que impressionam
Em geral, quando se trata de novas tecnologias e internet, os números costumam causar impacto. Pela velocidade, pela quantidade de usuários e principalmente pelos valores mobilizados. A seguir, algumas dessas cifras que frequentam os meios de comunicação e slides de palestras sobre a internet.
O número de usuários de computador ultrapassou a marca de 2 bilhões de pessoas em 2011, segundo a Internet World Stats.6 No Brasil, de acordo com o Ibope, o acesso à internet em qualquer ambiente (domicílios, trabalho, escolas, lan houses ou outros locais) atingiu 77,8 milhões de pessoas no segundo trimestre de 2011.7
O Programa Nacional de Banda Larga menciona um estudo elaborado pelo Banco Mundial, segundo o qual, para um investimento de 5 bilhões de dólares em infraestrutura de telecomunicações, são criados de 100 mil a 250 mil empregos diretos e algo em torno de 2,5 milhões de empregos indiretos.8
De acordo com o jornal Meio e Mensagem, o crescimento da internet na América Latina foi de mais de mil por cento na última década. Dados do Ibope Nielsen Online colocam o Brasil na terceira posição mundial em número de usuários ativos na internet, com uma média de acesso de 47 horas mensais.9
Limites
Em contrapartida, vale observar que, pelo menos até cinco anos atrás, a conexão discada era mais difundida que a banda larga, segundo o Pnad do IBGE. A melhora da inclusão digital está ocorrendo vagarosamente. Até 2005, ainda segundo o IBGE, 79% dos brasileiros nunca tinham acessado a internet.10 Há limites ligados ao acesso, como o acesso aos meios, à linguagem, às possibilidades, e outros ligados ao uso. Daí existirem pessoas que não têm nem podem usar as TICs; outras que têm mas não sabem usar; as que sabem mas não usam; e as que usam e abusam.
Dados do Cetic.br apontam que 85% dos lares urbanos brasileiros não possuem acesso à internet em banda larga. A diferença entre o número de domicílios com computador e acesso à internet e aqueles com computador, mas sem acesso à internet, é cada vez maior.11
Segundo dados do Ipea, o custo do uso da banda larga no Brasil é alto para a realidade socioeconômica brasileira. O gasto com banda larga representa 4,5% da renda mensal per capita brasileira. Na Rússia, ele representa 1,68% e, nos países desenvolvidos, 0,5%.12
Muito mais evidente que qualquer iniciativa de fortalecimento da esfera pública ou da participação política é o bom desempenho do comércio eletrônico. Os buscadores, portais e comunidades virtuais atraem 94% dos internautas para os sites de comércio eletrônico, alcançando 70% dos usuários, segundo dados de outubro de 2011 do Ibope Nielsen Online.13
O comércio eletrônico aprimora seus instrumentos e amplia a eficácia de suas estratégias, comparecendo e marcando presença ao lado de seus consumidores, isto é, participando das redes sociais. Por outro lado, intensifica e sofistica seus mecanismos de coleta de informações sobre o que esse consumidor vê, busca, compra e onde ele realiza todas essas ações. O sistema há muito já percebeu que a compreensão dessas informações sobre o comportamento do consumidor será o passo mais importante para o crescimento do comércio eletrônico no Brasil e no mundo.
Redes sociais e democracia virtual
Sobre webdemocracia, democracia virtual, esfera pública virtual e outras formas de denominar o exercício político mediado pela internet, vejamos estas chamadas jornalísticas:
“Webcidadania” avança no Brasil e muda o foco da participação política.
Ferramentas induzem o cidadão a assumir papel ativo na vida pública.
Redes sociais e banco de dados ajudam a cobrar e fiscalizar políticos.
No momento em que as campanhas eleitorais no Brasil parecem acordar para o potencial da internet, montando estratégias e equipes para fisgar o voto na rede, iniciativas na web sem vínculo partidário ajudam o cidadão a participar da vida pública e fiscalizar a classe política.
São ferramentas digitais que invertem o eixo da participação na vida pública: de simples receptores das mensagens de políticos e partidos, os cidadãos passam a ter voz ativa na organização de suas demandas.
O que antes tomava papel, telefone, carros de som e horas de reuniões hoje pode ser feito em poucos cliques – de listar problemas do bairro a monitorar o trabalho de deputados e senadores em Brasília.
Sites e movimentos que promovem a chamada cidadania na web avançam no país e mostram resultados.14
As afirmações, publicadas no famoso portal de notícias G1 (um dos mais acessados do país), estão carregadas de entusiasmo e expectativas sobre as vantagens e possibilidades trazidas pela web. Ao abordar a internet como esfera pública virtual, Rousiley Maia afirma que não há dúvida de que as comunidades virtuais estão criando plataformas importantes para a participação política. A autora, no entanto, adverte para o fato de que boa parte da literatura vinculada à ciberdemocracia ou à democracia digital costuma exagerar sobre o potencial que as novas tecnologias teriam de revitalizar as instituições e práticas democráticas. Segundo Maia, estruturas comunicacionais eficientes podem ajudar a fortalecer a democracia, mas não bastam. É preciso também haver motivação correta, interesse e disponibilidade dos próprios cidadãos para se engajar em debates.15
Ao refletir sobre as interações entre política e cibercultura, Cazeloto16 observa que existe uma percepção do senso comum, normalmente incentivada pela elite e pela própria mídia, segundo a qual “o acesso às ferramentas informáticas tornou-se uma questão-chave para o processo de participação nas sociedades contemporâneas e para a atualização das garantias democráticas”.
Embora tenham sido incensadas como novos instrumentos de exercício da vontade e da democracia dos cidadãos, sobretudo pelo que a mídia enxergou nas mudanças políticas ocorridas no mundo árabe recentemente, não é possível afirmar com certeza que o potencial emancipador das redes sociais verificou-se também no Brasil. Não obstante algumas campanhas, como a do “ficha limpa” e a campanha contra a corrupção, o desinteresse da população pela política – partidária, vista como degradante, alvo de programas humorísticos e desprezo aparente da opinião pública – permanece alto.
Segundo Marcos Coimbra, as evidências mostram que a maioria das pessoas não costuma dedicar ao tema atenção constante, não se envolve emocionalmente com ele e só o acompanha de vez em quando. Para elas, política é uma coisa chata e aborrecida, da qual, simplesmente, não gostam. Não percebem sua relevância e não entendem aqueles para quem ela é uma preocupação importante.17
Sobre as redes sociais, o que se pode dizer é que, assim como a inclusão vem acompanhada de aceitação, elas são decantadas como revolucionárias, mas pouco analisadas criticamente. A subcategoria comunidades, que é como o Ibope classifica os sites de redes sociais, fóruns, blogs, microblogs e outras páginas de relacionamento, chegou a 39,3 milhões de pessoas, equivalente a um alcance de 87% dos internautas brasileiros em 2011. Em média, cada usuário brasileiro de redes sociais conecta-se a esses sites por um tempo de 7 horas e 14 minutos mensais.18
Nos Estados Unidos, segundo Malcolm Gladwell, as redes sociais têm sido tratadas indevidamente como exemplos de ativismo social. Gladwell cita dois exemplos recentes. Em 2009, quando 10 mil pessoas saíram às ruas em protesto contra o governo comunista, em Moldova, no Leste Europeu, a ação foi chamada de revolução via Twitter, porque supostamente os manifestantes teriam sido mobilizados por aquela rede social. Meses depois, protestos estudantis abalaram Teerã, capital do Irã e o ex-assessor de segurança nacional, Mark Pfeifle, sugeriu que o Twitter ganhasse o Prêmio Nobel da Paz porque, segundo ele, “sem o Twitter, o povo do Irã não se teria sentido capaz e confiante o bastante para sair em defesa da liberdade e da democracia”. Os dois episódios, no entanto, foram postos em dúvida. Segundo Evgeny Morozov, pesquisador da Universidade de Stanford, a importância do Twitter é quase nula na Moldova, onde existem pouquíssimas contas do serviço. Já no caso do Irã, informa Gladwell, as pessoas que usaram o Twitter viviam quase todas fora do país. Ele conclui seu artigo afirmando que “os instrumentos de redes sociais estão aptos a tornar a ordem social existente mais eficiente”, mas “não são inimigos naturais do status quo”.19
Cazeloto20 adverte para o fato de que a informatização da sociedade termina por reforçar a própria necessidade do computador. Isto é, quanto mais os serviços estatais, as formas de diálogo democráticas, a atividade política e as práticas culturais em geral migram para o ciberespaço, maior é, naturalmente, o apelo para que o cidadão seja convertido em usuário da tecnologia informática. E, quanto mais cidadãos atendem a esse apelo, maior é a legitimação obtida, fazendo com que, cada vez mais, a cidadania mediada pelo computador ou pela internet se torne a forma hegemônica da participação civil, excluindo um persistente “resto”, que vê sua condição marginalizada cada vez mais radicalizada.
Aqui, vale atentar para o que diz Dênis de Moraes21 ao analisar a inovação e a saturação na mídia. Diante da celebração de que “a humanidade nunca dispôs de tanta informação e entretenimento”, o autor lembra que é preciso avaliar “quem controla essa variedade de ofertas, qual é a sua natureza ideológico-cultural, quais são as linhas dos conteúdos e das programações”. Em contraponto à multiplicação da oferta de informação e diversão, há um processo perverso de centralização das fontes emissoras dos conteúdos multimídias e de geração de valor mercantil ampliado, para alimentar os padrões de acumulação e de rentabilidade das grandes empresas do setor. O usufruto de dados, sonhos e imagens depende de acessos e capacidades cognitivas frequentemente desiguais.
Cidadania e educação mediadas pelo computador
Os benefícios à democracia comumente alardeados como próprios das novas TICs costumam também ser sugeridos para a educação. De tal modo que, cada vez mais, as escolas passam a ser vistas como lugares estratégicos, essenciais para a implantação de computadores, à custa do Estado.
Para refletir um pouco mais sobre as vantagens que as novas tecnologias podem trazer à cidadania e à educação, ou à cidadania pela educação, vale a pena atentar para algumas das considerações que Magda Soares22 faz a respeito da relação umbilical entre educação e cidadania, ou mais especificamente entre alfabetização e cidadania. A autora explica que tal vinculação faz parte do senso comum, já que “só quem sabe ler e escrever é capaz de agir politicamente, de participar, de ser livre, responsável, consciente – de ser homem histórico e político: de ser cidadão”.
A comparação já aqui começa a fazer sentido. Pois também consta no senso comum que para ser cidadão é preciso estar incluído digitalmente. Mas continuemos com Soares. Ela afirma que não é o simples acesso à leitura e à escrita – nem mesmo a educação ou a escola – que conduzirá o povo à conquista da cidadania. Em vez disso, a construção da cidadania depende da prática social e política, dos movimentos de reivindicação das organizações populares, ou seja, do povo “participando, lutando por seus direitos sociais, civis, políticos, agindo como sujeito histórico, fazendo-se cidadão”.
A educadora lembra ainda que as sociedades modernas são grafocêntricas e, nelas, a escrita não apenas é muito valorizada como também é mitificada, a ponto, por exemplo, de ser frequente a suposição de que na escrita é que estaria o discurso da verdade e que só a escrita seria o repositório do saber legítimo. Nesse contexto, diz Soares: “A alfabetização é um instrumento necessário à vivência e até mesmo à sobrevivência política, econômica, social, e é também um bem simbólico, um bem cultural, instância privilegiada e valorizada de prestígio e de poder”.
Aqui cabem duas linhas de comparação. A inclusão digital também tem sido valorizada como instância de sobrevivência e de prestígio e poder, ainda que de maneira aparentemente exagerada ou equivocada, quando se supõe que prestígio e poder estejam ao alcance de todos. Mas há outra comparação relevante a ser feita entre a mitificação da escrita e a louvação da internet como repositório de quantidades infinitas e generosas de conhecimento. A preocupação no que diz respeito à educação repousa nos possíveis usos dessa abundância de informações. Cada vez parece mais fácil e prático copiar e colar, consultar sem confrontar e acessar sem precisar produzir conhecimento para ser encaminhado à rede mundial. No caso dos trabalhos escolares de pesquisa, na produção de monografias, por exemplo, a possibilidade facilitada de encontrar textos prontos parece criar outra cultura, na qual, talvez, a produção autoral seja cada vez menos incentivada, em nome de um consumo puro e simples, isto é, o uso e a repetição do que está pronto.
Magda Soares afirma que, embora se tenha permitido ao povo que aprendesse a ler e a escrever, “não se lhe tem permitido que se torne leitor e produtor de textos”. Assim, segundo ela, a posse e o uso plenos da leitura e da escrita permanecem privilégio de determinadas classes, assumindo o papel de arma para o exercício do poder, para a legitimação da dominação econômica, social, cultural e se tornando instrumento de discriminação e exclusão.
Do mesmo modo, por mais que se incluam digitalmente todas as pessoas, isso por si não poderá garantir que todos irão se expressar; assim como a produção de aplicativos, periféricos, softwares e hardwares permanece nas mãos de algumas corporações, os conteúdos consumidos via internet também parecem ainda concentrados em monopólios.
Finalmente, a autora observa que a introdução tanto da criança quanto do adulto no mundo da escrita – e, diríamos nós, no mundo da informática e da internet – vem-se fazendo, quase sempre, mais para controlar, regular o exercício da cidadania que para liberar para esse exercício. Alfabetiza-se, diz ela, “para que o indivíduo seja mais produtivo ao sistema, não para que se aproprie de um bem cultural fundamental à conquista da cidadania”. O mesmo poderia ser dito da inclusão digital.
Considerações finais
Para continuar existindo, o sistema capitalista precisa se renovar ou modificar suas características. É o que está acontecendo em relação às novas tecnologias da informação e da comunicação. Ocorre que para realizar sua estratégia com êxito, o sistema tem que contar com a cooperação da sociedade e do próprio Estado. A fim de persuadir e convencer, ele tenta apresentar um discurso, uma pregação publicitária, que apregoe os benefícios e vantagens: por um lado, é preciso apresentar a nova ordem como um desígnio natural do avanço e da evolução humana; por outro, é necessário convencer o senso comum de que todos poderão ser beneficiados e, por isso mesmo, é natural que todos aceitem, compactuem e se submetam às novas regras, já que não podem nem devem ser detidas ou postas em dúvida. A postura em relação às novas TICs tem sido a de uma inevitável subordinação, como se a única maneira de não ficar de fora, de não ser excluído, fosse fazer o que o próprio sistema demandasse.
Como recomenda Brittos (2011),23 não se trata de propor uma atitude antitecnológica. O que se sugere aqui é a expansão do olhar na hora de se analisarem os reflexos e implicações sociais, econômicas e culturais da nova ordem tecnológica que se tenta impor sem questionamentos. Como diz o autor, aceitar as determinações do sistema capitalista é como “esperar que o mercado aja como filtro, para avaliar as reais necessidades da coletividade”. Seria como aceitar um cenário no qual “a oferta e a demanda serão o termômetro para definir o que é importante ou não à sociedade, o que pode pôr em risco as liberdades individuais, em vez de ampliá-las”.
Cidadania, participação política e educação costumam andar muito próximas. Tanto quanto é possível apontar limitações das novas TICs na área de cidadania, é igualmente possível questionar sua colaboração para a educação. A internet e as redes sociais, em princípio, seriam instrumentos poderosos para se ampliarem as reflexões, os debates, o compartilhamento de conhecimentos. No entanto, a presença de tais tecnologias na escola não tem se mostrado capaz de acelerar processos de aprendizado ou de torná-los mais eficientes, pelo menos não de modo definitivo. O Programa Um Computador por Aluno – Prouca, cujo objetivo era ser “um projeto educacional utilizando tecnologia, inclusão digital e adensamento da cadeia produtiva comercial no Brasil”,24 tem quatro anos de existência e, embora tenha acertado em algumas coisas, registra erros como a falta de treinamento de professores e a compra de equipamentos inadequados. Segundo artigo de Elio Gaspari,25 150 mil máquinas foram entregues e outras 450 mil encomendadas. Em 2012, surgem notícias de que o governo federal pretende abrir licitação para a compra de mais 300 mil tablets. Segundo Gaspari, a cidade de Nova York, com 1,1 milhão de estudantes na rede pública, comprou apenas 2 mil iPads para professores e alunos. O articulista arremata com a observação de que 300 mil é exatamente o número de professores que faltam nas escolas do Brasil.26
Durante o acompanhamento de uma experiência de utilização de um blog como instrumento educativo por estudantes de comunicação no Rio de Janeiro, foi possível constatar que há, pela ordem, as seguintes dificuldades ou limitações:27
– Falta de autonomia. Boa parte dos alunos não está acostumada a cuidar de um espaço como o que o blog oferece.
– Falta de equipamento. Às vezes o aluno tem computador em casa, mas não tem como arcar com o custo da conexão discada. Outras vezes, mora em lugares onde não existe a opção de banda larga ou ela é também muito cara. No caso da conexão discada, a perda de qualidade, em geral, compromete as possibilidades de utilização de um blog. A saída é a lan house, mas essa também é paga.
– Falta de hábito. Embora esteja associado aos mais jovens, às novas gerações, é preciso considerar as restrições de classe social, não apenas pela limitação financeira, mas também pelos hábitos culturais, pelo repertório, ou pelos próprios valores estimulados pelas famílias. Isto é, nem todo mundo convive com pessoas – amigos, parentes, vizinhos – que lidem ou falem sobre internet.
– Falta de habilidade. Nem sempre o aluno terá tido uma escolarização ou aprendido a lidar com as possibilidades tecnológicas de que dispõe o blog. Isto é, embora seja muito comum alunos com perfil no Orkut, no caso do blog a expectativa é que esse internauta leia mais, conheça mais sobre a rede e saiba utilizar minimamente os recursos disponíveis para fotos, vídeos, áudio e texto.
Para finalizar, vale a pena contar uma pequena história, ocorrida há alguns anos, em Miguel Pereira. No centro cultural da cidade havia uma videoteca e, no acervo, estava O encouraçado Potemkin, de Sergei Einsenstein. O visitante pediu para assistir ao filme, mas havia na sala de vídeo um adolescente com a TV ligada num daqueles programas da tarde que tratam de celebridades. Ele costumava ir ao lugar porque em casa sua família, por motivos religiosos, não permitia televisão. Com gentileza, a funcionária do centro cultural explicou ao menino que a preferência era para quem iria assistir a vídeo. O menino não apenas consentiu como quis ver o filme e acabou conhecendo, por acaso, uma obra do cinema russo de importância mundialmente reconhecida. Ou seja, entre a disponibilidade dos recursos e o bom aproveitamento de seu potencial, é preciso uma bem-pensada mediação ou boa sorte.
Ovidio Mota Peixoto é Doutor em Comunicação Social pela UFRJ. Coordenador e professor do curso de Comunicação Social da Unisuam. E-mail: ovidiomota@gmail.com.
Notas
1. RIBEIRO, Darcy. Introdução. In: CANELA, Guilherme (org.) Políticas públicas sociais e os desafios para o jornalismo. ANDI – Agência de Notícias dos Direitos da Infância. São Paulo: Cortez, 2008. p. 32-45.
2. CAZELOTO, Edilson. Inclusão digital, uma visão crítica. São Paulo: Senac, 2008. p. 197-199.
3. Comitê Gestor do Programa de Inclusão Digital (CGPID) – Secretaria-Executiva
Programa Nacional de Banda Larga, 2010. p. 6-7. Versão eletrônica:
www.planalto.gov.br/brasilconectado. Arquivo:
http://www4.planalto.gov.br/brasilconectado/forum-brasil-conectado/documentos/3o-fbc/documento-base-do-programa-nacional-de-banda-larga[R2] .
4. CAZELOTO, op. cit., p. 120-121.
5. José Eisenberg e Marco Cepik (org.). Internet e política. Teoria e prática da democracia eletrônica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 12.
6. Eram 2.095.006.005 pessoas, segundo dados de março de 2011, disponíveis em http://www.internetworldstats.com/stats.htm. Acesso em:26 dez. 2011.
7. Ibope Nielsen Online. Disponível em: http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?temp=5&proj=PortalIBOPE&pub=T&db=caldb&comp=Not%EDcias&docid=C2A2CAE41B62E75E83257907000EC04F[R3] .
8. Comitê Gestor do Programa de Inclusão Digital (CGPID) – Secretaria-Executiva
Programa Nacional de Banda Larga, 2010. p. 9.
9. Fonte: Comércio eletrônico – avaliação 360º. Meio e Mensagem,19 dez. 2011. Disponível em:
http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?temp=6&proj=PortalIBOPE&pub=T&nome=home_materia&db=caldb&docid=0AADE4C29DC53A458325796D0050A2DD[R4] .
10. Pnad, 2005. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=846[R5]
11. Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação (Cetic). Pesquisa sobre o uso das Tecnologias da Informação e da Comunicação no Brasil 2009. Disponível em: <http://www.cetic.br/>
12 e 13. Programa Nacional de Banda Larga, 2010, p. 12 e 13, respectivamente.13. Ibope Nielsen Online. Disponível em: http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?temp=5&proj=PortalIBOPE&pub=T&db=caldb&comp=Not%EDcias&docid=C2A2CAE41B62E75E83257907000EC04F[R6] .
14. Thiago Guimarães. Portal G1. Disponível em:
http://g1.globo.com/especiais/eleicoes-2010/noticia/2010/06/webcidadania-avanca-no-brasil-e-muda-o-foco-da-participacao-politica.html[R7] .
15. MAIA, Rousiley C. M. Democracia e a internet como esfera pública virtual: aproximando as condições do discurso e da deliberação. Em MOTTA, Luiz Gonzaga et al. Estratégias e culturas da comunicação. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. p. 108-109.
16. CAZELOTO, op. cit., p. 169.
17. COIMBRA, Marcos. O (des)interesse dos eleitores. Deu no Correio Braziliense. Disponível em: <http://www.oglobo.globo.com/pais/noblat>. Acesso em: 2 maio 2010.
18. Ibope Nielsen Online. Disponível em: <http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?temp=5&proj=PortalIBOPE&pub=T&db=caldb&comp=Not%EDcias&docid=C2A2CAE41B62E75E83257907000EC04F[R8] >.
19. GLADWELL, Malcolm. A revolução não será tuitada: os limites do ativismo político nas redes sociais. Trad. de Paulo Migliacci. Folha de S.Paulo, São Paulo, 12 dez. 2010. Ilustríssima, p. 3-5.
20. CAZELOTO, op. cit., p. 166.
21. MORAES, Dênis. A batalha da mídia: governos progressistas e políticas de comunicação na América Latina e outros ensaios. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2009. p. 87.
22. SOARES, Magda. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2011. p. 54-60.
23. BRITTOS, Valério Cruz. Para entender a TV digital: tecnologia, economia e sociedade no século XXI. São Paulo: Intercom, 2011. p. 58.
24. Fonte: MEC. Disponível em: <http://www.uca.gov.br/institucional/projeto.jsp>. Acesso em: 2 jan. 2012.
25. Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 28 dez. 2011. Também disponível no clipping Secom Mídia, Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República. Acesso em: 28 dez. 2011, no endereço: <http://www.secom.gov.br/sobre-a-secom/imprensa/clipping>.
26. GASPARI, Elio. Coluna do Elio Gaspari. Folha de S.Paulo. São Paulo, 1 jan. 2012. Poder, p. A8.
27. Experiência iniciada em agosto de 2009 que permanece em funcionamento, com o blog da comunicação: http://comunicacaounisuam.com/.
[M1]Não seria “web democracia” (palavras separadas)?
[R2]Falta a data do acesso.
[R3]Falta a data de acesso.
[R4]Falta a data de acesso.
[R5]Data de acesso.
[R6]Falta a data de acesso.
[R7]Falta a data de acesso.
[R8]Falta a data de acesso.