Estou tomando emprestado como título do artigo o título de um livro de João Barrento (2010) sobre o ensaio. Para mim, realmente a escrita do diário se aproxima da escrita do ensaio pela reflexão que constrói, que é fragmentária, não tem certezas, mas questões irrespondíveis. O diário não quer dar conta de uma estória, mas é justamente essa reflexão constante sobre os momentos vividos, em que pensamento, imaginação e sensibilidade se conjugam. É um pensamento movido pelo desejo. Não há necessidade de se chegar a nenhum ponto, o movimento é o que importa. Como Barrento fala da deambulação do ensaio, comparando-o a uma dança, o movimento aqui é intensificado.
Sempre escrevi diários, i.e, desde os quatorze anos. Inclusive publiquei recentemente Desejo de escrita (2013), um livro em que faço a montagem de passagens desses diários, indo e voltando no tempo. E, em relação à escrita desses diários, tenho uma lembrança difícil. Estudante, ainda no ginásio, levava o caderno do diário para a escola. Um dia, na aula de inglês, achando a aula chata, coloquei o diário no colo e comecei a escrever sobre o que estava pensando de um garoto sentado à minha frente. Falava dele, mas escrevia apenas a inicial de seu nome. O professor viu, pegou meu diário, leu a passagem para a turma e mandou o caderno para o diretor, como se eu estivesse fazendo algo proibido. Comecei a chorar e, no final da aula, ainda aos prantos, fui buscar o caderno na sala do diretor, que também reprovou meu comportamento.
Este ano, tinha pensado em montar na faculdade uma discussão sobre a escrita do diário, pois tenho visto um interesse crescente pelo gênero, muita gente escrevendo sobre o que se tem chamado de escrita de si ou autoficção e privilegiando os diários de escritores. Cito os livros de Myriam Ávila (2016), Rafael Gutierrez (2017), Alberto Giordano (2017), Felipe Charbel (2018), publicados recentemente.
Mas aqui vou tentar uma teorização, que me atrai, do diário como gênero, além de híbrido, uma espécie de ensaio. E que tem algo do ficcional também, pois o que se vive se transforma na escrita. Há uma elaboração do vivido pela linguagem, que é reflexão e imaginação. Próximo do ensaio e do fragmento, o diário tem algo de inacabado e indecidível.
Não se escreve todo dia; às vezes, sim. Eu, por exemplo, passei de uma escrita em alguns dias para uma escrita obsessiva – que me acompanha todos os dias e o dia todo. Acordo e, às vezes, antes do café, escrevo o que se passou à noite, ou o que estou, no momento, sentindo e pensando. Não consigo começar o dia sem rabiscar alguma coisa no papel.
A escrita do diário é também um diálogo de quem escreve consigo mesmo. Reflexão constante sobre os momentos vividos, não precisa dar conta de uma estória, embora às vezes narre algo que se passou, acontecimentos. É dessa necessidade de se debruçar sobre o que se passa em movimentos mínimos, no íntimo ou fora, como acontecimento que nasce a escrita do diário. Vejo-a como uma deambulação, uma dança mesmo.
Meus diários são entremeados de poemas. Especialmente agora. Nesses tempos de pandemia, tenho vivido no sofá, onde escrevo as páginas do diário e, de vez em quando, as sensações se transformam em versos e acontece um poema. Recentemente publiquei um livro de poemas com o título de Poemas do Arquivo, pois foi uma reunião do que estava espalhado em páginas de antigos diários. Agora, quando tenho um poema no diário, passo-o para uma caderneta, pensando num próximo livro.
Sempre falo com minhas três netas, quando estão preocupadas, tensas, para escreverem, lançarem mão da caneta e do papel. Estou preparando um segundo volume de Desejo de escrita, sobre minha vida com as meninas. Nele conto momentos partilhados com elas, quando ficavam dias na minha casa. O que hoje é raro, pois a mais velha já tem dezesseis anos. Transcrevo o que escreviam – fragmentos ou poemas. Descobri duas cadernetas que dei para elas, em que escreveram alguns poemas, alguns comigo, outros, sozinhas.
Agora, na quarentena, já se foram dois cadernos meus. Escrevo em cadernos sem pauta, porque para mim essa escrita é muito visual também. Me espalho no branco da página sem o limite das pautas. Aconteceram também vários poemas sobre a janela, de manhã ou ao pôr do sol. Inclusive tirei algumas fotos do que via, as nuvens, as cores, o mundo visto da janela. Comecei a acompanhar o movimento das ruas vazias, sem a multidão de Baudelaire, mas com alguns passantes, alguns conhecidos meus ou outros desconhecidos, como uma mendiga arrastando um carrinho.
domingo de manhã
vou à janela
respirar
na rua vazia
passa uma pequena senhora
sem máscara
com um carrinho cheio
do que andou catando
pelas ruas infectas –
o mundo não mudou
vai mudar?
A janela passou a ser um importante elemento de relação com o mundo, no isolamento em que estamos vivendo, minorando a solidão.
agora
da janela
gosto de olhar o céu
de manhã
nuvens brancas
e um azul forte
a que às vezes
se junta o cinza
ao pôr do sol
do azul e rosa
chega ao vermelho –
intenso jogo de cores
como a vida
Também passei a fotografar as nuvens, o pôr do sol, um mundo visto da janela, de dia e de noite.
olho da janela
a noite –
a rua se ilumina
luzes nas casas
nas janelas do prédio em frente
nos postes
mas
continua o vazio
Mais um, são muitos:
vim pra janela
olhar o mundo
sábado, sete da manhã
ninguém
alguns vultos
nas janelas vizinhas
barulhos
tudo mínimo
só a minha dor
se espalha
Descobri também, nesse período de quarentena, mexendo em minhas estantes, um livro que não me lembro quando comprei, mas não o tinha lido ainda. Afinal, o que viemos fazer em Paris?, de Alberto Villas (2007), é uma combinação de páginas de diário, cartas, e uma escrita memorialística muito interessante. Com essa combinação, ele escreve a história dos anos 1970 no Brasil – a ditadura, a contracultura, os exílios e autoexílios na Europa. É uma escrita permeada de fotos documentais, imagens desenhadas, sem uma ordem narrativa rígida. E me impactou, pois são os anos em que também parti para a Europa, não Paris, mas Munique, Alemanha. E também pelas lembranças do que vivi depois, na volta. Ele ficou de 1972 a 1980, eu voltei antes, em 1976.
No livro, o autor está em Paris, mas sonha com o Brasil que deixou e o procura nas livrarias, perambulando pelos sebos, nos correios e em encontros casuais. Depois se torna correspondente do jornal Movimento. Com isso vai mostrando tanto o que acontecia no país que deixara como na cidade europeia em que vivia. Descobre inclusive a publicação do livro de Heloísa Buarque, 26 poetas hoje. Não explica como o conseguiu, diz que caiu em suas mãos, mas traz a foto da capa.
Todo o livro parece um diário sem datas, mas com capítulos com títulos, como “Estrada da vida”. “Diário de bordo, Oriente Médio” é um capítulo que conta sua viagem pelo Oriente. Vai até o Líbano, de mochila nas costas, muitas vezes apelando para caronas na beira da estrada, como fazíamos na época. Mas sua escrita não é só um diário, embora haja momentos em que diga “meu querido diário”. É uma narrativa que combina várias modalidades de escrita, inclusive a jornalística. Por exemplo, quando comenta o espetáculo do Grupo Corpo em Paris, e põe uma foto do cartaz, tem algo de jornalístico. Quando conta o nascimento dos filhos pelo método Leboyer, que era muito procurado na época, faz uma narrativa autobiográfica. Nas cartas, que são uma segunda parte, coloca o lugar de onde escreve, Paris, e as datas, mas não diz para quem está escrevendo. E são todas sobre o que está acontecendo no Brasil, através do que recebe de notícias e revistas, e em Paris, o que está vivendo e conhecendo. Comenta os discos e livros brasileiros que consegue e as notícias do país. Termina, voltando a Belo Horizonte, em 1980, comentando o que encontra e falando das saudades de Paris.
O livro radicaliza essas possibilidades do diário, mesclando-o com uma escrita jornalística, talvez. Mas, pela reflexão, se aproxima do ensaio, da narrativa histórica, da biografia. E esse é o aspecto interessante da criação de escritas híbridas, que colocam em questão, em suspenso, qualquer caracterização de gênero.
Talvez, por isso mesmo, cresça o interesse pela reflexão sobre a escrita do diário como um exercício de liberdade. Lembro o diário de Anne Frank, a liberdade de pensar, mesmo no enclausuramento extremo. Uma interrogação constante sobre a relação entre o eu e o mundo, que rompe com qualquer clausura, o diário tem seu lado de indignação e teimosia. O livro de Alberto Villas é um exemplo – mais do que testemunho, o caráter ensaístico do diário ou desse tipo de memórias como escrita em movimento, intranquila, promove uma interrogação constante sobre o mundo em que vivemos.
* Vera Lins é professora titular da Faculdade de Letras da UFRJ e autora de Gonzaga Duque: a estratégia do franco-atirador (Tempo Brasileiro, 1991), Novos pierrôs, velhos saltimbancos (EdUerj, 2009), Ingeborg Bachmann (coleção Ciranda da Poesia, EdUerj, 2013) e Desejo de escrita (7Letras, 2013), entre outros livros. Fotos da autora.
Referências
ÁVILA, Myriam. Diários de escritores. Belo Horizonte: ABRE, 2016.
BARRENTO, João. O gênero intranqüilo, anatomia do ensaio e do fragmento. Lisboa:Assírio &Alvim, 2010.
CHARBEL, Felipe. Janelas irreais, um diário de releituras. Belo Horizonte: Relicário, 2018.
GIORDANO, Alberto. A senha dos solitários, diários de escritores. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2017.
GUTIEREZ, Rafael. Formas híbridas. Rio de Janeiro: Editora Circuito, 2017.
LINS, Vera. Desejo de escrita. Rio de Janeiro, Sete Letras, 2013.
VILLAS, Alberto. Afinal, o que viemos fazer em Paris?. São Paulo: Globo, 2007.