No momento em que se torna cada vez mais freqüente a comparação internacional sobre desigualdades de gênero, é inadiável problematizar os indicadores que vêm sendo comumente utilizados pelas agências internacionais de desenvolvimento, tendo em vista o impacto das informações coletadas sobre as políticas públicas em nível nacional e global.
Nesse sentido, é interessante analisar algumas variáveis apresentadas nos Relatórios de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas e sugerir que os indicadores escolhidos não são suficientemente sensíveis às variações nacionais e às formas como as desigualdades de gênero se reproduzem nas sociedades contemporâneas.
Desde o início dos anos 90, os Relatórios de Desenvolvimento Humano produzidos pelas Nações Unidas passaram a ser uma importante referência para as pesquisas quantitativas de gênero. A partir de 1995, com a Conferência Internacional da ONU sobre Mulheres, realizada em Beijin, cresceu significativamente o volume de informações quantitativas e comparativas sobre a situação das mulheres no mundo. Esse processo se intensificou a partir de 2000, com a Declaração do Milênio das Nações Unidas quando foram estabelecidas metas concretas e mesuráveis de desenvolvimento e de empoderamento das mulheres, a serem alcançadas pelos países signatários da declaração. Essas metas são avaliadas e comparadas em escalas nacional, regional e global.
Essas iniciativas sem dúvida contribuíram para aumentar o nosso conhecimento sobre a situação das mulheres e para a disseminação da problemática da desigualdade de gênero que antes estava mais restrita a pequenos círculos acadêmicos e de ativistas feministas.
Mais ainda no Brasil essas iniciativas foram muito positivas, pois estimularam o desenvolvimento de uma perspectiva comparativa num país caracterizado por uma identidade nacional com traços de forte insularidade e pouco afeito à auto-reflexão a partir do olhar que leve em conta a experiência de outros países, até mesmo daqueles geograficamente mais próximos.
O principal desafio que os estudos comparativos colocam é como escapar, por um lado, de uma postura de absoluto relativismo, segundo a qual, nada é comparável porque todas as interações sociais dependem dos significados que a história, instituições e culturas locais lhes atribuem e, por outro, como evitar a utilização de indicadores universais e abstratos que ignoram a complexidade das configurações nacionais, onde uma mesma variável pode ocultar práticas que estão em franca contradição com aquilo que se pretende medir. Tendo em vista esse desafio vou problematizar algumas variáveis recorrentemente utilizadas nos Relatórios de Desenvolvimento Humano elaborados pelas Nações Unidas.
Os RDH´s, quando dedicados à questão de gênero, têm como objetivo captar o chamado empoderamento das mulheres. Esse termo, apesar das diferentes definições que comporta, vem sendo normalmente usado para designar a capacidade das mulheres de ganhar controle sobre suas decisões e recursos, tendo em vista ampliar os direitos das mulheres e promover a igualdade de gênero.
Vou comentar três indicadores que me parecem problemáticos:
1- “participação política das mulheres no parlamento”. Esse indicador pretende, segundo os RDH, aferir as oportunidades de participação política das mulheres no processo de tomada de decisões e quanto mais mulheres participarem do parlamento, relativamente aos homens, mais próximo estará o país de alcançar a igualdade de gênero.
A dificuldade no uso universal desse indicador, “participação política das mulheres no parlamento”, como revelador do empoderamento, pode ser observada num caso extremo: a eleição de nove deputadas ao parlamento iraniano em 2004, na qual oito delas pertencem ao partido conservador “Developers of Islamic Iran Party”. A líder desse grupo declarou na ocasião da sua eleição “queremos educar as mulheres segundo os preceitos especificados por Deus. Nós vemos as mulheres como portadoras de três obrigações: individual, familiar e social. Se o cumprimento da obrigação social causa a interrupção das obrigações individuais e familiares, isso constitui opressão da mulher”. Em outro momento ela declara; “Para que a nação alcance prosperidade, as pessoas devem pensar nos seus deveres religiosos e não ‘legais’ ”. Ela continua argumentando nesta declaração que o conceito de lei (direitos humanos) é importado do Ocidente e, portanto, deve ser eliminado da discussão política.
Nesse caso extremo, há uma enorme defasagem entre o indicador que identifica o nível de participação política das mulheres no parlamento e aquilo que ele deveria estar medindo, os avanços feitos pelas mulheres em termos da conquista de direitos e de igualdade de gênero.
Como é possível este tipo de divergência? Provavelmente porque estamos diante de duas acepções do termo gênero que vem sendo utilizadas indistintamente. Numa das acepções, precisamente com a qual essas pesquisas comparativas trabalham, gênero se refere a uma categoria empírica composta de “mulheres” e “homens”, associada às diferenças biológicas que distinguem corpos masculinos e femininos. Homens e mulheres formariam grupos ou coletividades de alcance universal. Nesta acepção, as pesquisas comparativas aqui mencionadas são de caráter bio-sociográfico, i.e, exploram a participação relativa de cada um dos gêneros na distribuição de recursos e de oportunidades sociais, econômicas e políticas.
Em outra acepção, associada aos estudos de gênero e feministas, gênero se refere a um sistema de relações de poder fundado em padrões culturais institucionalizados, que diferem entre sociedades. O sistema de gênero supõe a presença de hierarquias e relações de poder entre os atributos associados à masculinidade, que são valorizados, e os atributos associados à feminilidade (ou ao feminino), que são desvalorizados. Um dos principais atributos do feminino, que tem uma abrangência quase universal, é a ideologia que associa o feminino à domesticidade e a subordinação. Certamente as mulheres tem sido o principal campo de operação dos atributos depreciados do feminino, mas não são apenas elas. Gays, travestis, transgêneros e outros homens que não correspondem ao padrão de masculinidade prevalecente são facilmente vistos como “femininos”.
Deste modo, não há uma correspondência linear entre atributos considerados femininos e as “mulheres” como categoria corporal/biológica. É importante também destacar que os padrões de distribuição e controle de posições de poder na política, na economia e no lar, não são fixos de tal forma que a oposição masculino/feminino é constantemente modificada e reinventada.
O exemplo das mulheres eleitas para o parlamento iraniano ilustra a dissociação que existe entre gênero como categoria empírica, biológica, corporal e gênero enquanto categoria de análise das relações de poder entre homens e mulheres. Neste caso, o indicador “participação das mulheres no parlamento” dificilmente implica empoderamento (que é finalmente o que o indicador pretende medir) das mulheres, ou seja, uma melhoria relativa da posição das mulheres no processo de tomada de decisões. Em certos contextos políticos, culturais e religiosos essa participação pode diluir, quando não conspirar, contra os efeitos do empoderamento, quando as posições “de poder” ocupadas pelas mulheres sustentam projetos político-culturais que objetivam a manutenção da representação patriarcal do feminino.
2- a segunda variável comumente utilizada nas pesquisas comparativas das Nações Unidas é “taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho”, que visa igualmente medir o empoderamento das mulheres: supõe-se que quanto mais as mulheres participam do mercado de trabalho mais desfrutam de autonomia, independência e poder. O problema com esse indicador é que ele é tratado, em geral, de maneira isolada.
Como entender em termos de empoderamento (igualdade, autonomia, capacidade de decisão) o aumento da participação das mães no mercado de trabalho no Brasil nas últimas décadas, sem relacionar esse fato ao contexto da ausência de suportes públicos para a conciliação entre trabalho e vida familiar ou da fraca participação dos homens nos afazeres domésticos?
Será que a participação no mercado de trabalho tem o mesmo significado, o mesmo efeito em termos de autonomização, individualização e de capacidade de exercer escolhas para mulheres que dele participam em sociedades com um robusto welfare state e para mulheres cuja participação no mercado de trabalho implica enormes tensões para a conciliação entre trabalho e família? Muito provavelmente, para essas últimas, sobrecarregadas pelo acúmulo do trabalho remunerado e não-remunerado, a participação no mercado de trabalho pode ter, entre outras conseqüências, o fortalecimento do ideal de domesticidade, de dependência econômica e da maternagem.
Não estou pretendendo negar que a participação no mercado de trabalho tenha efeitos positivos sobre a autonomia e aumento do poder de decisão das mulheres. Todavia, esse efeito não está assegurado, varia entre as classes sociais em um mesmo país e depende de outros arranjos institucionais que não são captados nos relatórios internacionais.
3- o terceiro indicador freqüentemente usado para medir o nível de igualdade de gênero, existente nos diferentes países abrangidos nas comparações internacionais, se refere à “divisão sexual do trabalho doméstico”. Apesar da importância deste indicador, a forma como é construído mostra-se muito limitada e pouco sensível para captar as novas formas que as desigualdades de gênero assumem no espaço doméstico.
As pesquisas mostram que houve um aumento da participação masculina na divisão do trabalho doméstico, muito tímido, mas houve. Todavia, menos freqüentes são os esforços para apreender de forma sistemática as novas assimetrias que emergiram nesta esfera como, por exemplo: homens concentrando-se em apenas algumas atividades (concertos de equipamentos domésticos, cozinha, compras e atividades de lazer da família) e as mulheres engajadas num leque mais amplo de tarefas (compras, lavar, passar, cuidar dos doentes, arrumar a casa, relação com a escola dos filhos, etc.).
No que diz respeito à desigualdade de gênero, tão importante quanto quantificar a distribuição de tarefas é analisar o princípio que organiza esta nova distribuição. Esse pode ser resumido no seguinte princípio: os homens escolhem aquilo que querem fazer e as mulheres se ocupam do resto, i.e., daquilo que eles não querem fazer. Assim, mantém-se em operação a assimetria de gênero, na qual o exercício da escolha é uma prerrogativa apenas masculina.
A nova divisão do trabalho doméstico na qual os homens passaram a realizar tarefas antes realizadas exclusivamente pelas mulheres envolve um processo de ressignificação dessas tarefas. Assim, por exemplo, a atividade de cozinhar feita pelos homens, ou pelo “novo homem” que aparece atualmente na mídia, foi transformada em uma atividade impregnada de valor, de sofisticação que se inscreve como uma prática mais próxima das formas de expressão artística, escapando, assim, do sentido banal, trivial e repetitivo associado ao cozinhar feminino. A atividade masculina de cozinhar passou a ser um exercício de auto-expressão, de desenvolvimento pessoal dos homens enquanto que a mesma atividade conjugada no feminino continua intrinsecamente associada ao caring dos outros.
Deste modo, os indicadores sobre divisão sexual do trabalho doméstico que apenas quantificam as tarefas e sua distribuição por gênero não conseguem captar os novos sentidos que a repartição de tarefas vem assumindo e que só parcialmente apontam para uma maior igualdade de gênero.
Finalmente eu gostaria de fazer algumas considerações sobre o que a perspectiva analítica de gênero pode contribuir para o aprimoramento das pesquisas comparativas internacionais.
Em primeiro lugar, a perspectiva analítica de gênero confirma a importância de se criar indicadores sociais mais sensíveis às configurações sociais, econômicas, políticas, religiosas e institucionais dos estados nacionais tornando-os mais “realistas” e confiáveis a partir daquilo que esta se pretendendo medir.
Em segundo lugar, o tratamento isolado de algumas variáveis, como se elas pudessem indicar alguma direção incontestável no desenvolvimento das sociedades, mostra-se muito precário, na medida em que a informação captada por uma variável pode distorcer a realidade, se não se levar em conta outros parâmetros correlatos.
Finalmente, as reflexões sobre gênero nos ajudam a pensar que todas as comparações internacionais estão pautadas por algum horizonte político e normativo que definem o valor heurístico dos indicadores. Talvez as pesquisas comparativas de gênero, principalmente as promovidas pelas Nações Unidas, e as inúmeras pesquisas que decorrem dos parâmetros fornecidos por ela, apresentam isso de maneira mais transparente declarando com clareza quais são os pressupostos morais, políticos, conceituais e empíricos que servem de inspiração para a comparação que realizam.
*Bila Sorj é Professora Titular de Sociologia do IFCS/UFRJ. Autora, entre outros trabalhos, de Israel Terra em Transe. Democracia ou Teocracia? Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000 (com Guila Flint);Identidades Judaicas no Brasil Contemporâneo, Rio de Janeiro, Imago, 1997; O Trabalho Invisível: estudos sobre trabalhadores a domicílio no Brasil, Editora. Rio Fundo, RJ, 1993 (com Alice Rangel de Paiva Abreu).
NOTAS
1Trabalho apresentado na mesa-redonda “Gênero: perspectivas comparadas” no XIII Congresso Brasileiro de Sociologia, Recife, 29/05/2007 a 01/06/2007.