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Publicidade comunitária: uma ferramenta atual de resgate e fortalecimento dos princípios comunitários | de Patrícia Gonçalves Saldanha

Introdução

O objetivo do presente texto é refletir teoricamente sobre a possibilidade que uma associação tem de resgatar o sentido de comunidade a partir da sua reconfiguração decorrente da apropriação da técnica, por seus membros, para benefício do próprio lugar.

Partindo do pressuposto de que uma associação tem sua formação estrutural compatível com as exigências de mercado e a comunidade não, põe-se a seguinte questão: de que maneira uma comunidade seria capaz de constatar a presença de formas de resistência à modelização societária que tenta, a todo tempo, sem limites de custo, normatizar, homogeneizar e individualizar o sujeito social, por intermédio da produção do consenso gerado pela mídia global, sustentada, por sua vez, pelo financiamento do mercado transnacional por meio das práticas publicitárias?

É necessário, portanto, delimitar alguns pontos basilares do texto. Primeiramente, a noção de lugar e local são absolutamente compatíveis. Já a de mídia não se limita aos meios de comunicação de massa, e sim abrange as formas de produção de sentido que se descolam dos meios comunicacionais (de massa ou não) e ganham vida própria em territórios diversos, conduzindo os hábitos e costumes, bem como os comportamentos e até mesmo os gostos de povos distintos para um interesse comum: o consumismo.

Outro ponto fundamental para essa reflexão é a diferenciação conceitual entre comunidade e associação que parte da concepção tönniesiana e chega à atualidade discutindo novas versões de comunidade. Para complementar o caminho proposto pela pergunta-eixo do texto, vale considerar o papel da comunicação comunitária evidenciando a publicidade, apesar de, num primeiro momento, a conjunção publicidade comunitária parecer antagônica.

As gerações de sentido que costumam agir na ordem da cultura são legitimadas por uma série de políticas supranacionais que, por sua vez, são viabilizadas pelas estruturas econômicas das corporações de comunicação financiadoras do todo-poderoso capital.

Na outra ponta do mesmo cenário, temos a esfera local que se subdivide em três tipos: um primeiro que acaba aderindo à lógica hegemônica, ainda que se empenhe em sustentar um discurso de resistência; outro que realmente resiste radicalmente às forças do mercado, fortificando o cisma entre incluídos e excluídos do sistema que baliza a sociedade civil; e, na contrapartida dos dois primeiros modelos, o terceiro, composto por comunidades representantes da esfera local que fazem questão de se incluir na sociedade civil, sem se desvincular, todavia, de seus princípios fundadores.

É com o terceiro viés que iremos dialogar. Com comunidades cuja postura contra-hegemônica é um alicerce, que lhes permite avaliar criticamente o cenário em que estão inseridas; ao mesmo tempo que lhes impulsiona para sair do discurso e partir para a ação prática, transformando positivamente seu próprio lugar. São comunidades locais que se empenham na apropriação das tecnologias de comunicação cuja finalidade é trazer benefícios para o próprio lugar.

Quando os moradores de um local, de fato, se apropriam das ferramentas comunicativas e as utilizam em benefício próprio, além de não valorizarem o aspecto técnico, costumam colocar essas ferramentas a seu serviço para ressaltar e reforçar as características identitárias de sua localidade em vez de sucumbir ao senso comum previamente produzido. Ao contrário, unem-se e pressionam tanto o poder público quanto o de mercado para reverter qualquer proposta de isolamento ou “guetificação” econômica, política ou sociocultural. Para Manuel Castells, o terceiro modelo se refere à construção de uma “identidade de projeto”, que se concretiza

quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social […] Obviamente, identidades que começam como resistência e podem acabar resultando em projetos.[1]

Na possibilidade da existência de “identidades de resistência” e “identidades de projeto” contemporâneas, percebe-se que não nos encontramos numa situação plenamente societária e que há chances de os indivíduos voltarem às suas condições de sujeitos sociais, cuja identidade consiste “em um projeto de uma vida diferente […] expandindo-se no sentido da transformação da sociedade”.[2]

Nesse diapasão, deparamo-nos com um grande desafio: tentar constatar de que formas o desenvolvimento das práticas comunicacionais, mais especificamente publicitárias, a partir da apropriação das TICs, pode atuar como dispositivo de incremento de sociabilidade vinculativa, característica da vida comunitária, e projetar realizações locais (sem abalar seu fortalecimento identitário) para a esfera globalizada da sociedade civil.

De volta às comunidades em plena sociedade global

A formação da sociedade civil atual já é uma das consequências da Revolução Industrial. Inicialmente houve uma mudança na estrutura social, na transição do final do século XIX para o século XX, ou seja, na passagem da sociedade moderna para a sociedade de massa. Exatamente nessa época e em dois momentos distintos, o sociólogo e filósofo alemão Ferdinand Tönnies[3] se debruçou sobre a diferenciação dos conceitos de comunidade e de associação. Em 1887, sua obra Gemeinschaft und Gesellschaft surgiu como um divisor de águas teórico, pois “circunscreveu os termos comunidade e sociedade (como a palavra Gesellschaft é em geral traduzida), colocando-os em contraste, atando-os pelo mútuo antagonismo de significados”.[4]

Além da atualização da obra, o contraste dos termos talvez tenha proporcionado a grande popularidade adquirida no lançamento de sua segunda edição, em 1912, pois, naquela época, já se percebia uma mudança no espírito das novas formas de organização dos agrupamentos humanos. Os grupos que se deslocavam dos centros rurais, onde a família solidificava o sentimento de comunidade, para os centros urbanos, onde as pessoas mal tinham tempo de se ver em função das longas horas dedicadas ao trabalho nas fábricas, demonstravam que as sociedades que emergiam, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, decorriam das alterações econômicas provenientes do ímpeto arrebatador das novas concepções produtivas. A aglutinação populacional nas cidades se tornou visível e, a partir daí, surgiram novas formações de grupos, cujas características já se diferenciavam do perfil da Gemeinschaft rural. Surgiram as

organizações ditas de massa: partidos, associações, sindicatos […] com suas reivindicações coletivas. Isso sem falar em outras manifestações como o espetáculo e o esporte, que vão nesse mesmo sentido, como o cinema e o futebol. Nesses novos espaços as massas populacionais deixam de ser camponesas e passam a ser caracterizadas pelo novo trabalho. Karl Marx irá assentar sua reflexão sobre essas novas maneiras de produzir riquezas, ou modos de produção, tendo no centro o proletariado urbano, os trabalhadores da cidade.[5]

Acompanhando a demanda econômica que serviu de sustentáculo para a reorganização da sociedade, o destaque às questões políticas[6] também colaborou para que a segunda edição se tornasse “um best-seller na Alemanha, naquela época arrebatada pelas ideias nacionalistas”.[7]

Todavia, mais do que o aspecto histórico-político, a observação das mudanças nas aglomerações massivas da sociedade da época e de sua própria história de vida foi decisiva para que Tönnies pudesse perceber as diferenças estruturantes entre os conceitos em debate.

Ferdinand Tönnies nasceu em 1855 numa granja junto ao Mar do Norte, em Schlewig Holstein, e foi criado na vizinhança de Husum. A intimidade com as questões do campo, em função da sua origem e de sua experiência profissional (na fundação de duas importantes associações de sociologia), sensibilizou-o para perceber o contraponto dos dois conceitos: os laços vinculativos que fortalecem organicamente o espírito comunitário, bem como a superficialidade com que as alianças contratuais mantêm o mecanicismo das associações.

A verificação da transição das formações comunitárias às associativas se origina quando Tönnies se dá conta de que os valores instituídos nos bens são transferidos para a atividade da permuta. Fica claro que, em vez de se valorizarem os bens produzidos, o que vai adquirindo maior importância no processo é não só o intercâmbio, como também o documento que torna tal atividade legítima: o contrato. “Independentemente das esferas e dos campos de vontade separados, a garantia e a unificação são feitas pelo contrato, pelo documento que é reconhecido, legitimado e validado pela lei. E isso se encontra implícito no consenso geral das associações.”[8] Mais do que isso, o consenso referente à importância do contrato fica impregnado no próprio espírito da sociedade civil. A mudança sígnica real acontece quando “a diferença de tradição, a convenção, não se conserva como herança dos antepassados. Em consequência, as palavras, as palavras de tradição e costume se ajustam ao sentido de convenção”.[9]

Tal modificação se torna patente na sociedade civil e advém da alteração ocorrida no nexo que passou a direcionar o comportamento dos homens. Se antes ele era conduzido pela vinculação e pelo pertencimento ao grupo, quando se ligou às associações foi assumindo uma postura individualista em que cada um passou a cuidar de si e de seus interesses. Assim, o sujeito foi se metamorfoseando e passou a ser um indivíduo.

O indivíduo é, portanto, aquele que não se divide mais. Torna-se um corpúsculo com vida na medida certa para produzir e consumir, mas se conservando no estado de solidão suficiente, sem entrar em contato com o outro para que não contate outrem. Apático, por conta da falta de troca com o próximo, tem o pensamento enfraquecido no tocante a mudanças e preocupações com o coletivo. Quanto mais isolado, melhor.

Enfim, uma forma resumida de diferenciar a sociedade (Gesellschaft) da comunidade (Gemeinschaft) e de considerá-la um protótipo de comunidade, segundo o filósofo canadense Kenneth Schmitz, é entender a

Gemeinschaft como família, da qual surgiram formas comunais de associação que se estenderam, como a aldeia e a vizinhança, a fazenda familiar, o tipo antigo de paróquia e a guilda mais ou menos hereditária. A unidade de tais grupos existe anteriormente a seus membros atuais, que recebem a forma comunal e seus valores pela tradição como um modo de vida já dado. Em contraste com esses laços de parentesco e amizade, supõe-se a Gesellschaft como a construção artificial de um agregado de seres humanos […] [enquanto] na Gemeinschaft eles [os indivíduos] permanecem essencialmente unidos a despeito de todos os fatores que os separam […] [na] Gesellschaft […] é cada um por si e estão isolados, e há uma condição de tensão contra todos os outros.[10]

Dentre as diversas visões que partem do tratado de Ferdinand Tönnies para discutir o conceito de comunidade, Schmitz, em seu texto Comunidade, a unidade ilusória, nota que uma das possibilidades de reflexão sobre a comunidade é percebê-la como instituição. Isso porque a instituição é capaz de propiciar as identificações, representar as vontades coletivas e garantir a segurança para determinado grupo do tecido social, ainda que esse grupo não se refira apenas às formações camponesas tradicionais.

Há, portanto, uma inovação na leitura que o filósofo canadense faz da obra de Tönnies, pois propõe a possibilidade de manutenção do bem comum nas comunidades, mas também a considera possível nas associações. O que nos permite pensar que uma associação pode direcionar seus membros ao resgate do sentimento comunitário a partir do nexo que os vincula.

De toda forma, é absolutamente necessário atentar para as ponderações que o autor faz sem perder o senso crítico, uma vez que não se rende ao discurso das associações, ainda que denominadas de instituições. Para o autor, o ponto chave da institucionalização de uma associação é o princípio que a move e não o formato como ela se apresenta. Schmitz admite que hoje “desconfia-se muito das instituições, consideradas meros grupos de interesses privados, além de não conseguirem reter crédito social suficiente que justifique sua atuação. Nesse quadro está imerso inclusive o poder central, que não consegue possuir um mínimo de operacionalidade”.[11]

Percebe-se, que ele não se refere à associação de forma generalizante. Não se pode comparar uma associação de moradores com a Associação dos Banqueiros Suíços, por exemplo. As instituições efetivas são aquelas que podem incentivar seus membros à busca do sentido comunitário; são formas estáveis e relativamente definidas para caracterizar crenças e ideias, uma vez que exemplificam hábitos e costumes sociais estabelecidos enquanto reais, existentes e providos de um ideal em determinadas associações modernas.[12] Com efeito, os novos hábitos que começaram a se institucionalizar nas associações foram resultantes de uma mescla entre a conservação do ritmo dos costumes tradicionais e o novo compasso de vida que vinha se intensificando na sociedade.

 

Seria possível a publicidade, que ajudou a construir o processo globalizante, reconverter suas formas de atuação?

Na sociedade de massa, consolidaram-se novos propósitos nos agrupamentos humanos. A partir da entrada do Estado-nação como regulador da sociedade civil, o sujeito passou a estabelecer com o trabalho produtivo uma relação que não era mais em prol de garantir a sua subsistência, mas sim a da produção que objetivava a fortificação do Estado. Já se indiciava, portanto, um distanciamento do ideal de manutenção da continuidade de sua comunidade em prol do primeiro setor. O processo contínuo das transformações foi potencializado, na sociedade globalizada, desde a queda do muro de Berlim até os dias de hoje, com o auxílio de duas ferramentas fundamentais: os meios de transporte e os meios de comunicação. Os primeiros eram responsáveis pela distribuição de produtos, serviços e pela expansão da ideologia capitalista pelo globo, e os segundos, pela divulgação dos novos serviços/produtos e formas de comercialização, incluindo os de ordem imaterial, enfatizando, assim, a valoração das marcas pela mídia e com massificação garantida pelas práticas/negociações publicitárias. Influindo diretamente nos arranjos sociais, principalmente no que alerta ao sujeito sobre o reconhecimento dos direitos sociopolíticos.

Mais especificamente no cenário brasileiro contemporâneo, os arranjos sociais têm se apresentado de forma tão disparatada e com consequências tão desumanas, que a “simples” existência de um discurso do que vem a ser cidadão já se torna suficiente para suprir a falta momentânea ou mesmo a inexistência da prática do exercício civil e político do sujeito atual. O esvaziamento do sentido de cidadania dissipado pela proliferação da ordem de discursos, reverberado pela mídia, tem como consequência a expressão do perfil do que poderia vir a configurar um cidadão no gozo dos seus direitos perante a lei. Entretanto, a realidade dos discursos proferidos é incompatível com o que acontece na prática cotidiana do sujeito social. Fato que, consequentemente, afasta o cidadão da possibilidade de pensar em “conquistar definitivamente os seus direitos sociais”.[13]

A busca pela conquista do direito social tem sido desviada por algumas ideias que se autodivulgam democráticas e que, em geral, outorgam um novo sentido para este ser-cidadão, nivelando-o, habilmente, a um ser-consumidor. Conduzindo o indivíduo a lutar pelo direito de consumir.  Resultando, por conseguinte, na redução da questão da conquista pela igualdade e pela justiça social no contexto político à questão da possibilidade e do direito ao consumo, somados à disponibilidade do acesso à informação. Como se a inclusão via consumo fosse o fator principal ou, segundo alguns, o único caminho para a inserção dos excluídos na sociedade globalizada.

Nesse caso, o consumo passa a assumir contornos até então impensáveis, desvinculando-se de sua ordem originária: a necessidade. O consumo passa de consequência à causa, assumindo, inclusive, o estatuto de procedimento libertário por alguns teóricos (como o mexicano Néstor Canclini), que conseguem mesmo atrelá-lo ao exercício da cidadania.[14]

Logo, o discurso de democratização e de possibilidade de acesso tem caracterizado e viabilizado a agilização do fluxo de expansão capitalista da sociedade atual, dominando ideologicamente o mundo em suas ordens de organização: política, econômica e sociocultural.

Todavia, é necessário considerar que é possível localizar movimentos de resistência em algumas comunidades. Tanto comunidades do interior quanto favelas, entre outras, têm saído do estágio de letargia profunda que as tornava apáticas e vêm investindo na tentativa de dar visibilidade positiva a seu éthos. Além disso, pretendem também se projetar para níveis nacionais e internacionais, ocupando seu lugar no mundo de forma legítima, sem abalos identitários.

Para o economista Ladislau Dawbor, é na organização comunitária, como “espaço local” ou “espaço de vida”, que se torna possível a recuperação do “controle por parte do cidadão no seu bairro e na sua comunidade”.[15] Assim, a estrutura comunitária teria o propósito de resgate da cidadania com contornos políticos na esfera de Unidade de Gerência e Pressão, onde pensar em comunidade significa pensar o coletivo, politicamente, e lutar, de forma organizada, por melhorias concretas para o lugar em questão. E é nessa esfera que alguns moradores têm investido na prática da produção da comunicação comunitária, mais especificamente, nas etapas de criação, produção e veiculação da publicidade comunitária, a fim de movimentar e aquecer a economia local com a autonomia de produção.

No cenário da resistência, o papel da comunicação comunitária é imprescindível, pois, além de quebrar a homogeneização resultante da propagação do ideal midiático, pode alterar a lógica societal, incluindo o diálogo entre os membros das diversas comunidades, além de colaborar com a construção da produção de uma comunicação vinculada ao real histórico de seu espaço. Ao conectar o conceito de comunicação com o de comunidade, que tem se diluído no estado líquido das relações, pode-se perceber a existência de uma alternativa de reinserção no mundo ou mesmo de uma proposta precisa de recuperação da vivência comunitária. Então, para que a comunicação comunitária haja de fato, é imprescindível que seus veículos tenham adequação a um projeto mais amplo.

Esse entendimento é importante para a compreensão da mídia a ser escolhida, bem como a utilização de mais de um veículo, a linguagem a ser adotada e a programação. Além do assentimento por parte dos integrantes do grupo, já que o poder decisório […] abstrai o determinante técnico, que selecionava dentre os membros apenas aqueles com conhecimento para opinar.[16]

A comunitária é diferente da comunicação massiva divulgada pela mídia, que prioriza o capital, pois dentro

de um esquema de comunicação comunitária – aquela orientada não por uma lógica puramente empresarial, mas principalmente por determinações grupais e comunais – importam muito mais os objetivos e o comprometimento entre as partes, para se alcançar metas programadas, do que o uso de x ou y sistema de comunicação.[17]

A comunicação comunitária se concentra no resgate e na valorização do território e, por isso mesmo, precisa ser entendida “no contexto da sociedade de massa” globalizada. Se a comunicação acontece no momento em que a partilha de sentido se torna comum tanto para quem emite como para quem recebe – e um dos espaços para a concretização do ato comunicacional é a comunidade –, é possível reconhecer a ligação da comunidade no campo da comunicação social. Da mesma forma, a publicidade pode ser pensada no ambiente comunitário, mesmo que aparentemente tenham princípios contraditórios.

Geralmente, a primeira afirmação que se faz sobre “publicidade comunitária” é que ambos os termos estão em oposição. Talvez, se esse esforço estivesse direcionado para a propaganda, fosse mais fácil, principalmente porque a publicidade difere da propaganda exatamente por suas fundamentações. Apesar de ambas terem capacidade informativa e se fundarem na persuasão como estratégia de divulgação, a propaganda tem caráter ideológico e a publicidade, caráter comercial. Então, a propaganda de que a publicidade descaracteriza um meio comunitário foi executada com tanta eficiência, que os próprios meios comunitários e as pessoas que o fazem funcionar se impregnaram de tal ideia.

Assim, convencionou-se que um meio comunitário não pode ser regido nem por atividades comerciais nem por sua propagação, ainda que as atividades comerciais pertençam ao território em questão. Esse pensamento foi assimilado como verdade indiscutível tanto por quem trabalhou para seu alastramento quanto pelos próprios moradores dos lugares onde os meios comunitários foram iniciados, que, por conseguinte, passaram a ser os mais prejudicados com a absorção dessa verdade fabricada.  Em vista disso, aceitar uma publicidade, mesmo que local (desde a produção à veiculação), passou a ser o mesmo que trair um ideal, além de configurar crime, uma vez que inserção publicitária nas veiculações comunitárias viola a lei penal.

Contudo, é urgente que se pense que a questão da comunicação comunitária não se encerra na existência ou não de publicidade em seus meios (a não ser por questões legislativas, que podem ser alteradas), mas se inicia pela utilização da linguagem que viabiliza, de forma clara, o entendimento dos ouvintes locais em função de suas necessidades diárias, pela participação dos moradores locais, pelo desenvolvimento do conteúdo informativo de utilidade para a comunidade, que é desenvolvido a partir da leitura crítica da grande mídia, pela perspectiva educativa e, enfim, pela força de trabalho voluntário que deve acontecer para manter o veículo funcionando, uma vez que TV, rádio ou jornal não podem sequer constituir renda. Essa realidade resulta na dispersão de pessoas que poderiam dedicar seu tempo para consubstanciar os meios de comunicação tão importantes para avigorar vínculos da comunicação com as questões cotidianas do território, que mantêm os meios comunitários vivos.

Por exemplo, uma TV ou uma rádio comunitária só se configuram como meios comunitários se forem pensados, elaborados e tiverem seus conteúdos distribuídos pelos membros da comunidade na qual se inserem. No entanto, é preponderante que os meios sobrevivam diariamente às pressões econômicas. É habitual presenciar o fechamento de veículos comunitários,  após poucas semanas de existência, por  motivos como a falta de dinheiro, de autonomia sustentável, ou mesmo por força coercitiva da polícia, por desrespeitarem a lei e funcionarem sem licença ou, ainda, por veicularem publicidade.

Para robustecer o quadro de dificuldades para o funcionamento, as pessoas que se dedicam ao trabalho em veículos comunitários só podem fazê-lo parcialmente e por algum tempo, pois precisam manter seus empregos paralelos, por conta de sua subsistência e a de seus familiares. E, como a publicidade é proibida por lei, ativistas comunitários e pessoas de bem que poderiam se dedicar à manutenção desses meios tão importantes para suas comunidades não podem se arriscar e, por isso, não permitem a entrada da publicidade. Porém mais grave do que isso é não colocarem em discussão a lei que impõe essa proibição, porque sequer pararam para pensar nisso. Em consequência, por falta de fôlego econômico, os meios, na maioria das vezes, encerram suas atividades.

Então, como sustentar os meios? Outra questão é: qual é o limite ético para haver publicidade em meios comunitários? Por que não divulgar a “empadinha” fabricada na vizinhança, ou o mecânico, ou a costureira, já que são reconhecidos pelo nome? Talvez  os responsáveis pela elaboração e implementação dessas leis que têm, até então, segurado, pelo medo de punição legal, a vontade de exceder seus limites possam responder a essas questões. Os limites legislativos são firmados por membros do Senado Federal e pela Câmara dos Deputados, que, por sua vez, fazem  as regras que proíbem a publicidade em meios comunitários, pois não querem concorrentes que atuem diretamente, com os seus próprios meios de comunicação, nas pequenas localidades. No interior das grandes metrópoles ou em cidades cuja atividade econômica é basicamente agrícola, por exemplo, os meios de comunicação comunitários muitas vezes têm o mesmo tamanho de um meio de comunicação puramente comercial.  Mas essa discussão ficará para outro momento.

Considerações finais

É possível pensar, com algumas ressalvas, que a publicidade poder vir a resgatar laços e utilizar as ferramentas tecnológicas como dispositivos de incremento de sociabilidade vinculativa, quando é analisada na perspectiva da ordem técnica e trata de movimentar o sustento da comunidade que também depende do comércio tanto quanto as associações.  Para Tönnies,

existe a comunidade de idioma, de costumes, de  crenças; mas também, para que sirva de contraste, a sociedade financeira, científica […] As sociedades (Gesellschaft) comerciais têm especial importância, já que pode existir certa familiaridade entre os membros. Por isso, até poderá ser chamada, a duras penas, de comunidade (entre os membros). Propor a frase “Gemeinschaft de acionistas” será abominável. Por outra parte, existe a Gemeinschaft de propriedade de cultivos, bosques e pastos. A Gemeinschaft (comunidade) de bens que mantém marido e mulher não pode ser denominada Gesellschaft de bens. Desse modo se esclarecem muitas diferenças.[18]

Então, quando uma comunidade cuida de sua sobrevivência, não está corrompendo seus ideais, mas uma vez que ela entra no cenário da comunicação sob novas configurações paradigmáticas, em função dos movimentos populares e das novas formas de reconhecimento do que uma comunidade pode vir a ser, a discussão que começa a vir à tona com muita força se refere ao sustento dos projetos de comunicação comunitária, como as rádios. Dessa forma, reconhecer que há uma nova leitura para a publicidade que, auxiliada diretamente pelas NTIC, tem atuado no microâmbito comunitário como alternativa de sustentabilidade para projetos de várias ordens, inclusive os publicitários, que são pensados, organizados e conduzidos pela própria comunidade, não desconfigura os projetos comunitários e ainda pode servir como ferramenta de resgate do sentimento comunitário em determinadas associações, desde que sejam enraizadas no local.

 

Notas


[1] CASTELLS, 1999, p. 24.

[2] Ibid., p. 26.

[3] Ferdinand Tönnies fundou a Associação Alemã de Sociologia e, mais tarde, associações internacionais de outros países que o elegeram membro honorário. Foi também parte ativa e influente do círculo de intelectuais impulsionado por Weber. Em 1877 doutorou-se em filosofia clássica e ensinou na Universidade de Kiel por quatro anos. Porém, como não gostava muito de lecionar, dedicou-se a atividades políticas, principalmente apoiando o movimento proletário. De 1921 a 1933 voltou a lecionar, mas foi expulso pelos nazistas, já que tinha aderido ao Partido Social-Democrata alemão em 1932. Assumindo sua paixão pela teoria social e pelas ideias políticas e filosóficas, prosseguiu com os estudos sobre o campo, desfrutando de um grande prestígio científico até sua morte em 1936.

[4] SCHMITZ, 1995, p. 177-178.

[5] FERREIRA, 2001 ,p.101.

[6] “Com o advento do regime hitlerista, por motivos aparentemente óbvios, as ideias comunitaristas passaram a ser estigmatizadas pelo campo acadêmico, sendo deixadas de lado por um longo período.” (PAIVA, 2003, p. 9).

[7] PAIVA, 2003, p. 9.

[8] TÖNNIES, 1979, p. 79.

[9] Ibid., p. 80.

SCHMITZ, 1995, p. 177.

[11] PAIVA, 1998, p. 133.

[12] Aquelas que não se deslocaram de sua razão fundadora e não perderam a noção de que deveriam servir ao bem comum.

[13] Ibid., p.287.

[14] PAIVA,  1998, p. 31-32.

[15] DOWBOR, 1998, p. 370.

[16] Ibid., p.48.

[17] Ibid., p. 48.

[18] TÖNNIES, 1979.

 

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WEBGRAFIA

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http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=460IPB005

 

 

 

 


[R1]Nome do autor? Incluir também sua qualificação

[M2]retiramos a nota, ok?

[R3]Falta a página na referência.