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Sobre a ideia de liberdade, a propósito da autorreferência como enciclopédia livre, pela Wikipedia, na rede mundial de computadores | de Alice Fátima Martins

O que significa a condição de liberdade? Quando se qualifica alguma pessoa, comunidade, projeto ou ação como livre, que qualidades estão sendo evocadas?

O verbete livre, no dicionário Houaiss (organizado pelo sapientíssimo Prof. Antonio Houaiss, também responsável pela edição das Enciclopédias Delta-Larousse e Mirador Internacional), traz uma relação de acepções, dentre as quais destaco as seguintes:

1. Que não está sob o jugo de outrem
2. Que goza de independência política
3. Isento de restrições, controle ou limitações
4. Que não sofre a influência de grupos de interesse
Faço, aqui, a escolha de não avançar rumo à seara filosófica do significado de liberdade, tampouco os terrenos múltiplos das abordagens sociológicas possíveis, restringindo-me, assim, às acepções listadas para o verbete, com o intuito de compartilhar algumas indagações, inevitáveis, a partir do episódio ocorrido junto à Wikipedia, no mês de julho último, que passo a relatar.

O episódio da censura na Wikipedia

Em atendimento ao solicitado pelo Programa de Pós-Doutorado do PACC, tendo publicado um artigo em revista online, tendo apresentado o relatório final de pesquisa no dia 24 de junho último, tomei as providências para fazer a inserção de verbete no portal da Wikipedia. Observando as instruções para tal empreitada – o que envolve muitos passos, advertências, recomendações, e ferramentas –, fiz o cadastro, gerei senha, e preparei o texto para publicar. Tinha decidido disponibilizar algumas informações sobre o Sr. José Luis Zagati, um dos sujeitos da minha pesquisa. Seguindo as recomendações, levei a cabo uma pesquisa no próprio portal, com vistas a evitar repetição de informação ou tema do verbete. Constatei que não havia nada referente ao Sr. José Luiz Zagati ou ao seu trabalho na enciclopédia. Então passei a redigir o texto, que resultou de uma breve compilação de minha própria produção, o que incluiu alguns artigos já publicados (dentre os quais, o artigo na nossa Revista Z, e a página de abertura do III Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual – FAV/UFG), e trechos do próprio relatório final. Cumpridas todas as etapas, operadas todas as ferramentas do portal, o texto foi publicado. Enviei o link para a coordenadora do PACC, a Profa Heloísa Buarque de Hollanda, nossa querida Helô, e fiquei contente com a informação de que eu teria inaugurado o atendimento a essa solicitação do Programa, bem como por ter contribuído para a consolidação e divulgação do trabalho do Sr. Zagati.

Passados dois dias, recebi a notificação, via e-mail, de que meu verbete houvera sido retirado da Wikipedia. Um dos membros que integram o grupo de editores da enciclopédia, identificada como Béria Lima, localizou na internet trechos de meus textos que haviam servido de base para o verbete, e julgou que isso infringia uma das regras, segundo a qual não se pode copiar ou repetir texto já divulgado. Sua decisão não levava em conta o fato de que o texto, ou textos em questão eram de minha própria autoria. Embora a situação tenha me provocado alguma indignação, acatei o parecer, e retomei o projeto. Para tanto, elaborei novo texto para o verbete, tomando todos os cuidados no sentido de dar-lhe um tom estritamente enciclopédico, ao estilo dos demais verbetes da própria Wikipedia. Feita a inserção, mas já sem qualquer convicção de que teria minha contribuição aceita, fiquei na expectativa dos desdobramentos.

Desta vez sequer fui notificada: no dia seguinte, buscando pelo verbete, encontrei na própria enciclopédia a observação de que o mesmo teria sido censurado, por ser considerado impróprio por outro editor, no caso, o Sr. Hermógenes Teixeira Pinto Filho.

A essas alturas, muito chateada, quis compreender um pouco mais as dinâmicas dessa instituição digital Wikipedia, autorreferida como a enciclopédia livre, de onde tive excluídas minhas tentativas de inserção de informação.

Além da minha própria experiência, eu já ouvira relatos outros que davam conta do circuito fechado que seus editores vinham configurando, dentro do qual exerciam o pequeno poder de decidir as informações pertinentes ou não de serem veiculadas, de acordo com critérios próprios, nem sempre muito bem esclarecidos, nem sempre objetivos, tampouco efetivamente abertos à multiplicidade de enfoques, naturezas de informações, e diversidade de pontos de vista que caracterizam a cultura contemporânea.

Levantando mais informações sobre o cenário, descobri alguns dados interessantes, que em geral ficam fora do circuito de acesso ao grande público, usuários ou não do portal. Vale a pena trazer alguns a este relato:

1. A Wikipedia é o 4º site mais visitado atualmente. A enorme demanda gera ameaças para o projeto, que resiste em contratar publicidade para bancar provedores e toda a infraestrutura técnica que garanta não só manter disponíveis todas as informações, como renová-las e atender ao grande número de acessos que se amplia em progressão geométrica.

2. Nesse contexto, manter algum controle no conteúdo disponibilizado representa um desafio a mais. E equívocos podem ser cometidos nessa direção.

3. 95% dos editores brasileiros da Wikipedia são homens. Assim, não posso deixar de considerar que me coube a honra de ter meu texto excluído, na primeira tentativa de inserção do verbete, por uma das poucas representantes femininas do fechado círculo de editores: uma mulher em pleno exercício de conhecimento e poder num território hegemonicamente masculino.

4. A versão brasileira da enciclopédia, com alguma frequência tem sido referência para as versões em outras línguas, num sentido negativo. Em outras palavras, quando isso ocorre, é como exemplo a não ser seguido, porquanto os padrões dos verbetes sejam considerados chatos, redundantes muitas vezes, cujas prioridades restringem-se a determinadas áreas temáticas em detrimento de outras. Ou seja: pecam pela falta de isenção. Por exemplo: facilmente pode ser encontrado o histórico de todos os gols de cada jogador de alguns times de futebol brasileiros, enquanto muitas informações referentes à cultura popular são consideradas desimportantes, menores, ou impróprias para serem inseridas.

5. Embora o número de consulta venha aumentando consideravelmente, na contrapartida tem-se observado uma diminuição das iniciativas de colaboração pelos usuários em geral. Como resultado, ocorre uma redução da diversidade, e a concentração da produção de verbetes num grupo menor de pessoas. O que descaracteriza a pretendida multiplicidade e liberdade de pontos de vista, que deveriam ser suas marcas.

6. Nessa direção, muitos pesquisadores de renome, respeitados e experientes tanto nos seus campos de pesquisa e estudo, quanto no trabalho em publicações das mais variadas naturezas, têm tido suas colaborações excluídas pelo fechado grupo de editores da Wikipedia brasileira. Basta que um deles considere de menor relevância a temática em questão, para que o corte seja levado a cabo.

Para fechar o relato, e dar espaço às reflexões propriamente ditas, vale a pena, também, fornecer algumas breves informações a respeito dos dois editores responsáveis pela exclusão do verbete cuja tentativa de inserção foi frustrada.

A Sra Béria Lima, apelido Beh, representante dos parcos 5% formados por mulheres no grupo de editores, teve uma postura cortês: devo lhe fazer justiça. A enciclopédia é o principal espaço ao qual dedica sua produção intelectual. No perfil que consta da sua página na enciclopédia, lista projetos voltados para questões religiosas, relativas à Bíblia, além do projeto em curso no qual desenvolve uma lista de autores de obras eróticas. Mas também é responsável por outros portais, a exemplo do Portal do Cristianismo, do Islamismo, e da Religião. No fórum de discussão, parece estabelecer diálogos cordiais com usuários em geral: há solicitações de orientação, informação, conselhos, agradecimentos etc. Ao se declarar colaboradora do site Pensares, observa, bem humorada: “Afinal, quem pensares junto, pensa mió”.

O Sr. Hermógenes Teixeira Pinto Filho, por sua vez, tem um perfil mais autoritário e polêmico. No fórum de discussão, além das mensagens de rotina, encontram-se mensagens indignadas a ele dirigidas, algumas chegam a ser grosseiras. O resultado de pesquisas na internet também aponta para uma atuação dedicada principalmente à Wikipedia, onde assina um grande número de contribuições, em português, espanhol, francês e inglês. É membro do Rotary Club, declara-se interessado pela Marinha (navios da Marinha brasileira, porta-aviões etc.), por ciclismo, automobilismo e sistemas de metrô. Seu atual projeto, em curso, tem como assunto as Forças Armadas e sistemas de manutenção.

Foi com base nesse perfil, campo de interesses e atuação que este senhor considerou impróprio o verbete que inseri, apagando-o. Uma questão inevitável se coloca: teria sido considerado impróprio por fazer referência ao fato do Sr José Zagati ser catador de sucatas? Teria o Sr. José Zagati sido discriminado ali também, em razão da natureza do seu trabalho? Seria, o ambiente da Wikipedia, mais fechado e elitista do que a própria academia universitária, tendo-se em conta que, em 9 de junho de 2010, o Sr. José Zagati proferiu a palestra de abertura de um evento de pós-graduação, de âmbito nacional, organizado pela Universidade Federal de Goiás?

Ponderações

É preciso não se perder de vista que a rede mundial de computadores não constitui um mundo à parte, uma segunda realidade, de natureza diferenciada da realidade natural e social em que estamos inseridos. Ao contrário, a despeito do estabelecimento das redes de comunicação rizomáticas por ela propiciado, com fluxos intensos de informações, ferramentas de organização e armazenamento de dados, entre outras possibilidades, a rede mundial de computadores é parte integrante das malhas sociais, está inserida em suas dinâmicas, tensões, conflitos, disputas de poder. Fazendo uso de suas ferramentas, organizam-se comunidades solidárias e cometem-se crimes, iniciam-se guerras ou clama-se por paz.
Algumas abordagens mais entusiasmadas, marcadas pelo excesso de otimismo prematuro, defendiam a ideia de que nesse ambiente se teria assegurada a abertura de territórios efetivamente democráticos e livres, onde todos poderiam expressar-se, sem restrições ou discriminações, apresentando ou não informações que correspondessem às informações circulantes nas relações presenciais (aqui, tomo como referência o binômio virtual/presencial, ao lado do binômio virtual/atual…). Ao decurso do tempo, e com a ampliação sempre progressiva dos recursos tecnológicos, também se ampliaram os modos de regulação, além da implementação de sistemas quase imperceptíveis de controle e captação de informação, dos quais a maior parte dos usuários não tem ideia (o que os torna, portanto, ainda mais vulneráveis). Assim, são estabelecidos conjuntos normativos e hierarquias de poder ajustados aos projetos da rede de informações e comunidades ali constituídas.

Nesse sentido – e não seria diferente – faz-se uso da rede observando-se os mesmos padrões e patamares de quaisquer outros modos de comunicação e interação nos contextos mais diversos das instituições sociais.

É nesse aspecto que o relato do ocorrido com a Wikipedia aponta para o estabelecimento de um circuito de poder cuja principal matéria prima é a informação a ser disponibilizada no portal da enciclopédia. Tal poder é exercido por reduzido grupo de pessoas que evocam para si autoridade para aprovar, censurar, excluir ou incluir.

Por certo, não está em questão qualquer desqualificação de uma iniciativa como a Wikipedia, responsável por disponibilizar um leque extenso de informações ao grande público. Não por acaso o portal ocupa o 4º lugar em número de acessos, no cenário internacional. Mas há que se ressaltar: não se trata de uma enciclopédia livre. Não passa de mais uma coletânea de verbetes organizada a partir dos pontos de vista de grupos fechados de editores que, eventualmente, acolhem a colaboração de outrem, desde que esta corresponda às suas orientações, ideários e exercícios de poder…

Há vários títulos disponíveis no mercado, entre impressos e digitais. Façamos, deles, pois, bom uso. Mas não nos restrinjamos a eles. Produzamos pensamento de modo efetivamente dialogal. Busquemos aprender a partir das nossas diferenças. Sem, jamais, perder a elegância ou a civilidade. Preferencialmente, sem perder de vista a possibilidade da liberdade.

A tal liberdade, certa diferonça, e uma provocação para nos fazer pensar…
Revi, recentemente, a Trilogia das cores: azul, branco, vermelho, de Kieslowski. O ideário da Revolução Francesa é colocado em questão pelo cineasta, que duvida das utopias, e formula narrativas densas a partir do humano, do imensa e contraditoriamente humano. A versão brasileira do primeiro filme declara, já no título, que a liberdade é azul. Em inglês, a palavra blue (bleu), além de significar azul, evoca também o profundo sentimento de tristeza. Ali, estar livre é ter perdido os vínculos, e não desejar mais estabelecer relações. Liberdade é também isolamento. O cineasta pergunta: “As pessoas realmente querem liberdade, igualdade e fraternidade? Não é só uma figura de linguagem?”

Mas eu não me delongarei, aqui, sobre essa discussão. Já é suficiente pensar que a ideia de liberdade é escorregadia, e nos escapará entre os dedos toda vez que pretendamos defini-la, retê-la em nós… nada mais coerente, afinal…

Recentemente reli, também, o material que vem sendo produzido desde 1997 e disponibilizado, no formato WIKI, na rede mundial de computadores, intitulado Projeto AmaZone, ou, A onça e a diferença, daí, a diferonça. Desenvolvido no Núcleo de Transformações Indígenas, o NUTI, vinculado ao Museu Nacional da UFRJ, o projeto é coordenado e moderado pelo antropólogo e etnólogo Eduardo Viveiros de Castro. Ali, uma das palavras de ordem é alteridade.

Sem entrar no mérito das ideias veiculadas (que são, no mínimo, muito instigantes), ou em quaisquer outros méritos, gostaria de chamar a atenção para o formato WIKI, e para o fato de que o projeto está em contínua construção, em relação de diálogo entre os colaboradores que tenham alguma relação com o grupo de pesquisa. Há conteúdos que foram iniciados, mas ainda carecem de formatação. Alguns permanecem ali, fermentando, por anos… seus links indicam que ainda estão em construção. Outros tomam forma rapidamente, e estruturam de modo mais articulado os conceitos e informações de que pretendam dar conta. Não se trata de um projeto aberto a qualquer colaboração, de modo indiscriminado. Não se propõe a isso. Nem poderia. Mas se trata de um projeto aberto, na medida em que vai sendo construído no decurso do tempo, dos trabalhos de campo, dos estudos em desenvolvimento. Dessa forma, vai ganhando envergadura, complexidade. Além disso, está disponível ao grande público, dissemina informação e conhecimento. Seu formato também é flexível no sentido da própria escritura: alterna as línguas portuguesa, inglesa, espanhola; acolhe artigos e relatos de pesquisa cujas temáticas são afins, apresentando uma teia de produções muito interessante.

Quem sabe, a partir da diferonça não seja possível pensar/buscar/encontrar caminhos mais efetivos de compartilhamento e disseminação de ideários, pensamento, conhecimento, saberes que fervilham, em diversidade de pontos de vista, a partir das pesquisas e encontros que têm abrigo no PACC?

http://amazone.wikia.com/wiki/Projeto_AmaZone

E viva a diferença! Melhor: viva a diferonça, no melhor exercício de liberalteridade, se é que seja realmente possível alguma!

* Alice Fátima Martins é professora do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual, na Faculdade de Artes Visuais da UFG, com pesquisa de pós-doutorado desenvolvida no Programa Avançado em Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ), financiada pela FAPERJ.