“O Brasil é bom deveria ter sido mais notado na época, porque está cheio de profecias”, brinca André Sant’Anna ao comentar como alguns dos personagens de seu último livro, publicado em 2014, parecem anunciar debates que hoje tomam conta do Brasil, como a crítica aos “direitos humanos”, a nostalgia da ditadura civil-militar e a cordialidade violenta do brasileiro de bem. Nesta entrevista, feita em 11 de agosto, André – autor ainda de Amor (1998), O paraíso é bem bacana (2006), Sexo e amizade (2007) e Inverdades (2009) – comenta sua trajetória e o Brasil contemporâneo, além da relação literária e afetiva com o pai, Sérgio Sant’Anna. Um dos grandes nomes da ficção brasileira da segunda metade do século XX e um dos contistas mais influentes de sua geração, Sérgio morreu em 10 de maio de 2020 em decorrência da Covid-19.
Lucas Bandeira: Começo com uma pergunta que todo jornalista faz quando vai entrevistar você: como é ser um escritor sendo filho do Sérgio Sant’Anna? Como ele te influenciou? É uma pergunta que sempre te fizeram, mas acho que o significado dela mudou um pouco neste ano, principalmente depois do falecimento do seu pai.
André Sant’Anna: São muitas coisas. Eu tenho uma influência antiliterária porque de temperamento eu sempre fui muito diferente do meu pai. E a própria questão de escrever mesmo. O meu pai é um artesão da literatura, aquela pessoa que tira o prazer dela, não sei nem se é prazer, se ele sentia muito prazer com isso. Aliás, não sentia, ele sempre reclamou muito. Eu sempre via o meu pai trancado. As minhas memórias de infância são ele trancado no quarto com o barulho da máquina de datilografar e ele sempre muito angustiado com o livro, sempre reclamando muito da profissão. Uma coisa que ele sempre falava era que a literatura só tem dois momentos que dão prazer, que é quando ele tem a boa ideia e quando o livro acabou de ficar pronto. E, mesmo assim, essa do livro ficar pronto dura uma semana. Uma semana depois, ele já acha que é ruim, já quer recolher o livro e não ler mais. Ele tem uma péssima impressão dos livros anteriores. Então, eu nunca quis aquilo para mim. De fato, eu nunca sonhei em ser um escritor, em lançar livros. Era algo em que eu não pensava.
Eu, na minha adolescência, fiz muitas coisas, teatro, música, cinema, participava de um cineclube. Eu sempre fui muito confuso com isso de o que vou fazer na vida. Eu sabia que era meio artista, mas não sabia o que ia fazer. E sei que a literatura, ali, na fila, era a última coisa que eu queria fazer. Mas o meu pai também me despertou [o interesse], e não só ele, a família dele, o pai, os irmãos, uma família que sempre teve muito livro. Eu morava em Belo Horizonte, depois em Ubatuba, e ia passar as férias no Rio de Janeiro, na casa do meu avô. Eram épocas em que eu lia muito, tinha muitos livros, e livros muito legais. Sempre gostei de ler e de escrever. Eu gostava de fazer redação na escola. Escrever sempre acompanhou tudo, mas eu nunca pensei em escrever como sendo escritor.
À medida que o tempo foi passando, fazendo curso de teatro na escola, eu acabava escrevendo textos de teatro para o grupo. Aí eu comecei a fazer música. O meu grupo era meio experimental, multimídia, tinha muitos textos, inclusive teatrais, que eu escrevia. E sempre guardava tudo no meu caderno.
Eu acho que a literatura do meu pai me influenciou em praticamente nada na maneira de escrever. Eu sempre tentei tornar a escrita um prazer, não ter esse sofrimento de ficar varando a madrugada tentando encontrar a frase correta. Eu escrevo um pouco improvisando. A escrita do meu pai é pensada, cada frase é muito bem construída. Então, não há uma influência direta, literária.
Depois que os meus pais se separaram, eu morei um tempo com a minha mãe no litoral de Ubatuba, e depois fui morar com o meu pai. Eu saía muito com ele, íamos beber, mesmo sendo muito novo para isso. Eu tive essa convivência com o meu pai de chegar no fim do dia da escola e sair com ele, ver teatro, ir ao boteco. Meu pai sempre foi um cara muito disciplinado, ele nunca foi muito “botequeiro”.
Em Ubatuba, eu estudava na escola pública, uma bem ruim na época. A cidade era pequena e chegava a ficar um ano sem aula de matemática, e, quando eu me mudei para o Rio de Janeiro, não conseguia acompanhar o colégio. Nessa época, meu pai era muito amigo do Antunes Filho, que estava no Rio de Janeiro com o Macunaíma, o primeiro, o do Cacá [Carvalho]. E o meu pai me autorizava a faltar aula para ir ao Teatro João Caetano e assistir ao Antunes ensaiando. E eu sempre acompanhando muito esse tipo de coisa, o olho sempre aberto.
Em 1979, na época do verão de abertura – foi o meu primeiro verão no Rio de Janeiro –, o meu pai ia muito à praia no domingo. A gente ficava vendo o [Fernando] Gabeira de sunga de crochê, o [Jards] Macalé empinando pipa, o Glauber Rocha fazendo discurso. Esse tipo de má influência o meu pai passou para mim.
Beatriz Resende: Quando você publicou o Amor [1998], você era bem jovem. Começou, afinal, cedo, não é?
AS: Pois é. Para eu virar escritor aconteceu o seguinte: eu fui morar na Alemanha, saí do Rio de Janeiro. Tinha um grupo de música em que estava começando a tocar profissionalmente, fazendo gravações, acompanhando cantores, mas deu uma confusão. Uma crise econômica junto da nossa idade, a gente achava que já tinha que ganhar a própria vida, e tocar música de vanguarda não estava dando muito certo.
Eu fui morar na Alemanha quando teve o Plano Collor e voltei um ano depois do plano. Assim que voltei, a economia brasileira estava péssima. Eu tinha começado a trabalhar com publicidade e vim morar em São Paulo, porque o mercado de publicidade no Rio de Janeiro tinha acabado. Comecei a trabalhar em uma agência em São Paulo e fiquei sem turma. Eu conhecia todo mundo no Rio de Janeiro, os grupos de música, eu era ligado ao Circo Voador, tinha uma vida intensa nesse meio. Em São Paulo, era uma solidão. E eu trabalhava junto da minha mulher, que é diretora de arte, e ela sempre ficava até mais tarde trabalhando. Foi aí que eu virei escritor, comecei a escrever enquanto esperava ela.
O Amor veio de umas anotações de quando eu ainda morava no Rio de Janeiro. Um dia eu tirei isso da gaveta, olhei e achei que dava jogo, comecei a fazer. Foi a primeira vez que meu pai, por exemplo, aceitou [um texto meu]. Quer dizer, eu sempre mandei as minhas coisas para ele, mas ele era muito crítico, sempre falava que eu tinha boas ideias, que era criativo, mas que precisava aperfeiçoar a escrita, ter um pouco mais de concentração na hora de construir as coisas, que eu nem sempre estava conseguindo dizer aquilo que queria. Às vezes, você quer dizer algo muito interessante, mas não está conseguindo. Quando eu enviei o Amor, ele disse: “Agora você tem um livro.”
BR: Que professor que você teve!
AS: Sim. Ele comentava o que eu fazia, até carta de quando eu morava na Alemanha. Não tinha internet, então, na época em que eu fiquei na Alemanha, não existia nada em português, não tinha jornal brasileiro em Berlim. Eu fui perdendo um pouco o português e, quando escrevia cartas, cometia erros de português terríveis, ele corrigia tudo. O Amor foi a primeira vez que eu enviei um texto para ele e ele considerou um trabalho maduro.
BR: O Lucas estava comentando antes da entrevista que o Sérgio usava as artes plásticas nos livros cada vez mais. Primeiro foi o teatro, o cinema e depois as artes plásticas. E você não. Você tem um aspecto rítmico, repetições, bordões. O Lucas comentou que o Notas de Manfredo Rangel, repórter [1973] parece um filme do Glauber Rocha. E que você tem a questão do ritmo. Procede?
AS: Procede. Eu acho até que eu faço de tudo nos ramos da arte, de alguma forma. Eu trabalho com cinema, teatro, escrevo, sou músico. E, ao mesmo tempo, isso sempre foi uma angústia, porque se você não tem uma especialidade, é difícil. Na verdade, eu sou escritor porque, um dia, alguém escreveu no jornal que o André Sant’Anna é escritor. Mesmo depois de eu ter lançado o Amor, eu não me considerava um escritor. Eu achava que era algo que eu ia fazer. Estava muito angustiado em São Paulo na agência de publicidade, sem fazer música. Eu queria conhecer gente da música, voltar a fazer música ou teatro.
Claro, quando colocaram o meu nome no jornal como escritor, eu comecei a receber algumas críticas, algumas cartas. Recebi cartas incríveis de quando o Amor lançou, do Antônio Houaiss, de todas essas pessoas que não dão entrevista, do Dalton Trevisan, do Rubem Fonseca, do Raduan Nassar. Eu fiquei meio embasbacado com esse negócio, porque eu fiz quinhentos exemplares do Amor, dei quatrocentos pelo correio e comecei a ter um retorno. Até o Bernardo Carvalho fez uma resenha na Folha [de S. Paulo].
BR: Eu fiz para uma das primeiras revistas eletrônicas, que foi o NoPonto [depois NoMínimo]. E logo depois veio o Sexo [1999], não é? E o Sexo virou Sexo e amizade [2007].
AS: Pois é, o Sexo foi consequência. Claro, depois que eu recebi as cartas e saíram as resenhas do Amor, eu pensei: “Então eu sou escritor, vou escrever algum livro.” E, na mesma agência em que eu estava trabalhando, comecei a escrever o Sexo. Eu estava vivendo de publicidade, era uma agência pequena. O dia a dia, para quem queria ser artista, era muito pesado. Todo dia eu tinha que almoçar em algum restaurante de quilo no shopping e logo depois tinha que voltar para a agência, era horrível. Eu quis me vingar um pouco daquilo. E tinha muitas piadas sexuais entre os funcionários, o chefe meio cafajeste.
A ideia inicial do Amor começou em uma festa de fim de ano da agência, em que o meu chefe me perguntou se eu já tinha visto a Marcinha de biquíni. Eu falei que não. Ele disse que ela era feia, mas tinha um rabo. Foi ali que nasceu o livro Amor, eu quis falar desse mundo, dessa coisa meio nojenta. E, como eu considero o Amor um poema, e o Sexo um romance, eu queria escrever um livro de contos. Até aí eu pensava em fazer uma trilogia, um poema, um romance e um livro de contos, depois eu pararia.
Eu comecei a escrever contos e fiz o Amizade. Na época, eu estava trabalhando com marketing político, fazendo campanhas pelo Brasil, viajava muito. Dava para escrever os contos em quartos de hotel, no avião, no aeroporto. Os contos depois viraram o Amizade. Eu queria lançar Sexo, Amor e Amizade, a ideia era essa.
Um pouco depois, a Companhia das Letras publicou O paraíso é bem bacana [2006], mas o Amor eles não quiseram publicar por causa dos nomes, eu cito muitas pessoas famosas. Não que o livro pudesse dar problemas, porque não são biografias não autorizadas, são delírios. E é um livro que, depois, eu publiquei [2014] por uma pequena editora no Rio de Janeiro, a Oito e Meio. Nunca saiu a trilogia em livro. Na posteridade, vão ter que reorganizar a minha obra.
BR: E aí você quis fazer algo mais fácil, mais leve, e escreveu O paraíso é bem bacana. Você sabia que tem muitos estudos, muitos artigos universitários sobre ele?
AS: É um livro de poucas pessoas, poucos lugares, mas tem pessoas que gostam muito. É um livro que mais os amigos, as pessoas mais próximas, leram. Os mais sinceros disseram que não aguentaram ler tudo. É um livro difícil. Eu até falo que dá para pular porque ele repete muito. Tem aquelas cenas de sexo, são repetitivas mesmo, mas tem que pular tomando cuidado, porque aquilo vai mudando sutilmente.
LB: É como se fossem variações da mesma viagem. Vai emendando uma variação na outra e o enredo vai devagar.
AS: É, eu já entrego o final da história nas três primeiras páginas e, ao mesmo tempo, é uma história meio de suspense. Eu pensava nesse livro como daqueles que você tem no banheiro, que você para e lê um pedaço. Claro, eu o leria inteiro, pulando uma coisa ou outra.
BR: A essa altura, você e o Sérgio são dois escritores. Como era isso?
AS: O paraíso é bem bacana saiu pela Companhia das Letras, e foi a primeira vez que eu mostrei algo para ele sem pedir aprovação, até mesmo não ouvindo determinadas coisas que ele me falou. É interessante, porque aconteceu uma coisa com O paraíso é bem bacana. Eu escrevi, foi indo, quinhentas páginas, e fui achando muito bom. Pensei que eu fosse fazer um livro de quatrocentas, quinhentas páginas, um desses livros grandões de estante. Eu estava muito entusiasmado com isto, com o fato de escrever um grande livro.
Eu fui levar o livro para a Companhia das Letras e o entreguei ao Luiz [Schwarcz] e à Maria Emília Bender, que era a minha editora na época. E depois o Luiz me recomendou cortar uns 20% do livro, cortar bastante das cenas de sexo, as risadas grandes. Até para ficar mais barato, para facilitar também. Muita gente diz que a Companhia das Letras interfere muito. De jeito nenhum, tudo foi falado como sugestão, para fazer como quisesse. A Maria Emília me falou que não precisaria ser 20%, mas que seria bom dar uma cortada.
Eu fui mostrar para o meu pai. Ele leu e disse que às vezes ficava difícil, outra hora estava chato, que estava muito esquemático em algumas partes. Ele fez algumas críticas. Uma crítica do meu pai me mexia profundamente. Só aí que eu fui reler e comecei a achar chato às vezes, comecei a pular. Depois eu fiquei pensando, e é isso mesmo, esse enfado faz parte do livro. É isso, a literatura acaba sendo algo para os espertos. Às vezes, uma sacada, alguma coisa que você quer dizer, que quer mostrar, e você acha que pode reproduzir aquilo para quem está lendo. Eu acho a melhor coisa que um artista pode fazer é produzir isso. Ou é produzir pensamento ou produzir aquela coisa. É até difícil dizer.
BR: Estranhamento. Incômodo mesmo, que é algo muito ao gosto dos modernos. E continua sendo.
LB: André, você falou agora sobre O paraíso é bem bacana, um pouco depois tem O Brasil é bom [2014]. Eu acho que, na mesma época, você e o seu pai começaram a trabalhar com a memória, trabalhar literariamente com alguns fragmentos de memória. Tanto em O Brasil é bom, como nos últimos livros do Sérgio.
BR: O Brasil é bom é de 2014 e é surpreendente como é antecipador. Ele é um livro dividido em duas partes. Primeiro “Histórias do Brasil”, que tem “Comentário na rede sobre tudo o que está acontecendo por aí”, isso é incrível, uma coisa que eu acho ótima é sobre os direitos humanos, que é iconoclasta. E, por outro lado, [na segunda parte] vêm os contos em que você desloca no tempo, vai George Harrisson, Glauber Rocha, mistura os locais, e aí, talvez, comece um pouco o que o Lucas falou.
LB: Só para completar o que a Beá falou, eu li um texto do Luiz Fernando Vianna, que é uma entrevista curta que ele fez com você [Época, 9 ago. 2020], e fala exatamente disso, em como parece que, infelizmente, a sua literatura antecipou muito do que a gente está assistindo.
AS: Eu trabalhei muitos anos, e talvez até trabalhe hoje em dia, não sei, com marketing de política, fiz várias campanhas. Eu trabalhei com o Duda Mendonça e com o João Santana. A primeira campanha em que eu trabalhei foi em 1998. Fiz várias, e fiz para todos os partidos, mas a maioria foi com o PT [Partido dos Trabalhadores]. E não falo do PT por nada em especial, só para dizer que está associado ali. E, por exemplo, na parte política, essa história toda do caixa dois, da corrupção, do dinheiro da Petrobras, são coisas que, na primeira campanha que eu fiz para a prefeitura, em uma cidade pequena, em Rondonópolis, a segunda maior do Mato Grosso, já se falava. E [essa campanha] não era para o PT, não. Não lembro se era para o PSDB ou PV. Na verdade, não interessa qual é o partido. Então, já tinha o dinheiro, o caixa dois, desde que eu comecei a trabalhar, sempre rolava.
Se você for fazer um programa sobre educação, eles falam para você não perder muito tempo, porque educação é importante, mas você não pode perder muito tempo com isso. O melhor programa eleitoral que eu já escrevi foi um sobre saneamento básico, mas ninguém está nem aí, é obra na rua, sujeira, ninguém sabe para que serve.
E, junto disso, a gente participa de muita pesquisa, pesquisa qualitativa, como eles chamam. A gente observa a pesquisadora fazendo perguntas para as pessoas, normalmente da classe C, como eles chamam, e D. E você vê que as pessoas não sabem absolutamente nada. O que eu acho mais horrível no Brasil de hoje é que as pessoas não sabem nada, o Brasil é um país completamente ignorante. E em todas as classes sociais, os ricos brasileiros são ignorantes também. Todo mundo é muito ignorante e não sabe nada.
Então, a maior parte desses discursos veio antes, o Bolsonaro nem existia quando eu fiz esse discurso. No livro O Brasil é bom, tem vários contos, várias crônicas, não sei o gênero, tem vários momentos de críticas a coisas relacionadas ao PT, que era o governo da época. E eu jamais poderia imaginar que a gente teria o Bolsonaro como presidente. É algo que não passava pela minha cabeça.
Tem um conto meu que se chama “Rush” [de Sexo e amizade], que é um motorista de táxi que fica falando que bom era na época da ditadura, que as mulheres não ficavam atravessando o sinal na minha frente, que já mandava matar logo. Isso eu escrevi em 2000, ou seja, nem o Lula tinha sido presidente do Brasil. É um papo que, de certa maneira, há muito tempo me horroriza, e eu fico ouvindo aqui e ali. Esse negócio de direitos humanos então, toda vez tem esses programas que passam na TV de tarde, o [José Luiz] Datena, no rádio tem muito também. Você está no táxi ouvindo rádio e sempre tem um crime, aí vem o pai da vítima e diz que a culpa é toda do safado do “direitos humanos”, que veio para o Brasil para soltar esses bandidos. Na verdade, é tudo meio pronto, são coisas que você ouve. Boa parte de O Brasil é bom são coisas que eu ouvi mesmo. Claro que eu mudo algumas coisas, mas 90% nasceu de um pequeno diálogo que eu ouvi na rua ou uma frase ou comentário do rádio.
BR: André, em O Brasil é bom, nessa primeira parte, tem a ver com Reprodução, do Bernardo Carvalho, né? Ele toma, nesse livro, essa parte de ouvir também.
AS: Sim, me parece que quase tudo que aparece é algo que ele pegou mesmo. Acho que o dele leva mais ao pé da letra do que o meu. Ele juntou mesmo, acho que ele não construiu nenhuma frase, me dá essa impressão. Eu pego uma frase ou outra.
BR: Vamos voltar para essa questão autobiográfica. Pelo que você falou, a sua obra está muito “obra-vida”, “vida-obra”, e é gozado como isso não acontece sempre no Sérgio Sant’Anna, mas há momentos. Antes de chegar ao final daquela live que a gente fez com o Marcelo Moutinho, você leu um trecho do Confissões de Ralfo [1975], que vem com o subtítulo “uma autobiografia imaginária”. Por que você escolheu aquilo?
AS: Era o conto final, achei aquilo a cara do meu pai. O personagem, na verdade, é muito diferente do que era o meu pai, ou da imagem que eu tenho dele, mas aquele final, acho que se chama “Epílogo”, parece muito com ele. Essa história de a pessoa estar escrevendo à noite, abrir a janela, fumar um cigarro, tudo o que ele vai descrevendo, o lugar onde ele desce e tem aquele corpo no chão. Tudo na vida é a literatura, tudo se transforma em literatura. O meu pai vivia muito mais a literatura do que a própria vida. A vida dele era a literatura, era uma coisa impressionante.
Eu já vi coisas escritas em livro, coisas que dizem respeito a ele mesmo, que você, que conhece a pessoa de perto, lê e sabe que o que está escrito é sobre ele. E quando eu ia comentar, ele me perguntava se achava parecido mesmo. Eu dizia que não era possível, ele fazia a exata mesma coisa que o personagem. Ele perguntava: “Eu?” E era escancaradamente um hábito dele. É como se ele tivesse dois universos.
Meu pai teve muitos problemas de saúde e já poderia ter ido há mais tempo. Na verdade, o que eu acho que o manteve vivo até agora foi a literatura. Inclusive, ultimamente, é impressionante como ele estava, de fato, entusiasmado, diferente do que eu falei no início, de que ele sofria com a literatura. Ele me ligava para falar que ia me mandar algo que ele tinha escrito e tinha achado legal. Ele sempre mandou tudo o que ele acabava de escrever, mas nunca mandou pela metade. Ele começou a enviar pela metade e me perguntar o que eu achava. Você via que ele estava em uma produção. Ele deixou um livro com vários contos.
BR: Isso que eu ia perguntar, porque os dois últimos contos que vieram a público, eu li “A dama de branco”, são uma maravilha. Tem o da trave do Fluminense [“Das memórias de uma trave de futebol em 1955”] em que ele se revisita, ele volta à própria literatura. Dá para fazer um livro com o que ficou?
AS: Dá, sim. Tem uma novela grande, umas setenta páginas, mais ou menos, uns dois contos grandes, de vinte páginas, e vários menores.
BR: É muito raro um caso assim, um escritor que vai até o último momento da vida escrevendo e escrevendo maravilhosamente. Agora, sobretudo nos últimos publicados, em O conto zero [2016], ele assume o autobiográfico mesmo. Você lembra que ele e o Ivan [Sant’Anna] contaram uma história parecida, que é a de quando eles estavam em Londres?
AS: Eu conheço a do meu pai, o Ivan escreveu uma também?
BR: O Ivan também escreveu, e apareceu em algum lugar [Em nome de sua majestade, 2006] um relato de que é aquilo mesmo. Na verdade, os fatos são os mesmos, apesar dos estilos completamente diferentes. Não só isso, o “Vibrações” [também de O conto zero], a experiência do Programa Internacional de Escritores, que realmente foi aquilo, e o “Caminhos circulares”, que tem o personagem S. Mas esse “Vibrações”, que se passa nessa maluquice, é um documento de época, ele devia ter aquilo guardado.
AS: Eu me lembro dele chegando. O tempo passa rápido. Eu lembro dos meus pais chegando e de como isso influencia tudo na vida da gente.
BR: Berlim também te influenciou?
AS: Ah, totalmente. É uma experiência que se juntou à época em que eu saí de casa. E foi logo depois que a Alemanha reunificou, eu cheguei pouco depois do muro ter caído, uns seis meses depois. Deu para pegar o finalzinho de como era o lado oriental. Isso de ver a história acontecendo na sua frente, conjecturar, conhecer o pessoal do leste europeu. Eu sempre tive uma certa fascinação pelo leste europeu. Tinha umas coisas muito boas naquelas pessoas.
Algo engraçado: outro dia, um homem estava falando que a melhor defesa que ele já viu do socialismo até hoje é a de que os alemães do leste daquela época, e os que ainda são sobreviventes da época, eram muito mais afetivos e carinhosos do que os outros. As famílias eram mais risonhas, tinha aquelas festas, todo mundo se abraçando. Também me veio à cabeça algo que algum socialista tinha me falado alguns anos antes, na época dele ainda existia a Cortina de Ferro. Ele era um senhor e eu era um jovem ainda, ele estava voltando do exílio. Ele falava isto, que, no socialismo, a relação entre as famílias é diferente quanto ao dinheiro, não é o pai que vai bancar a escola do filho. Não tem essa relação de dinheiro e eles ficam muito mais próximos. Claro, não vamos esquecer que tinha um vizinho espiando o outro e essas coisas todas, mas conhecer esse mundo foi muito interessante para mim.
E, claro, O paraíso é bem bacana foi de quando eu tive uma pancreatite aguda, hemorrágica, e eu fiquei seis meses internado em um hospital em Natal. Eu estava acabado quando cheguei em São Paulo. Tive uma neuropatia, uma encefalite, quando cheguei do hospital e fiquei sem equilíbrio, não conseguia atravessar a rua sozinho. Foi horrível. Mas, assim que eu cheguei, a Companhia das Letras entrou em contato, me encomendando um livro. Passei seis meses no hospital, eu escapei da morte mesmo. Quando a minha mulher chegou em Natal, falaram para ela que eu tinha 5% de chance de sobreviver.
Então, eu estava muito assim, pensando na morte. E foi aí que eu resolvi fazer sobre as coisas mais importantes da minha vida. Eu tive a doença, então o meu personagem está no hospital. A minha infância em Ubatuba, o período que eu passei na Alemanha e o futebol, porque eu gosto muito. Essas quatro.
LB: André, só mais uma pergunta sobre essa questão da parte autobiográfica. Eu fui reler vários contos do seu pai e, para mim, é muito impressionante como ele coloca a gente naquele lugar específico nos contos, nas novelas, nos romances. Eu reli Um romance de geração [1980] e é muito assim: o casal está em um apartamento em Copacabana. Ou o escritor sai do apartamento, anda todo dia pela rua das Laranjeiras. É isso, essa relação do Sérgio com a cidade. E nos contos passados em Belo Horizonte isto também é muito forte, uma habilidade enorme do escritor de conseguir colocar o leitor naquele lugar específico. Qual a relação do Sérgio com a cidade onde ele morou? N’O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro [1983], você aparece indo ao teatro com ele.
AS: Com o Antunes, sim. É em um desses ensaios que eu falei, os que ele me deixava matar aula para assistir.
BR: Engraçado, ele pode até escrever teatro, mas ele é contista mesmo. Eu acho engraçado O livro de Praga: Narrativas de amor e arte [2011], em que era para escrever um romance e ele trapaceou, porque não é um romance, são vários contos que ele juntou e botou ali para satisfazer o projeto.
AS: O próprio [Confissões de] Ralfo também. Sobre a cidade, também tem, para o meu pai, essa questão autobiográfica de antes e de agora. Antes, por exemplo, em Um romance de geração, eu conheço direitinho a história, sei até quem é a jornalista, sei de onde ele tirou, quando foi, mas, assim, não é ele exatamente. Ele pega uma história dele e coloca um alter ego. O meu pai não é tão histriônico quanto o personagem dele. Mas, claro, vem de uma experiência pessoal.
Agora, nesses últimos [livros], ele realmente está começando a contar as histórias dele. Eu fico até meio abalado, porque esse último que vai sair, que ele deixou, os contos, é muito isso. E principalmente falando da vida amorosa dele, as mulheres que ele teve durante a vida. Tem muito sexo. E, dessa vez, o sexo dele mesmo. Quer dizer, estou falando um pouco demais, nem todos, não é. Tem uns que são do personagem, outros em que ele nem coloca o personagem. É ele lembrando dele, das namoradas que teve, que ele traiu a minha mãe. Fico até com um grilo de mostrar para a minha mãe e para a minha irmã.
Gabriel Chagas: A gente estava falando da Alemanha e me veio à mente um conto chamado “O importado vermelho de Noé” [Sexo e amizade]. Eu lembrava da ideia de repetição, que falava: “meu carro vermelho, importado da Alemanha”. E, antes de fazer a pergunta que eu faria, me veio esse conto à mente, ele inteiro é de um parágrafo só, super bacana do ponto de vista estético, linguístico e do conteúdo. E eu gostaria de perguntar o seguinte, eu sou muito interessado por essa relação Brasil-Estados Unidos, e, nesse conto, em certa medida, existe essa dicotomia, essa oposição de estar chovendo dinheiro em Nova York. Em certa medida, existe essa dicotomia São Paulo-Nova York e me parece pertinente dizer que há uma dicotomia Brasil-Estados Unidos. Eu gostaria de saber que tipo de leitura, agora, em 2020, poderia, a partir dele, pensar nessa nossa ambígua relação Brasil-Estados Unidos hoje?
AS: Pois é, justamente. Eu digo que ele já fazia parte desses contos em que eu estava reproduzindo com exageros esse comportamento. A inspiração é de um dono de agência de publicidade de marketing político, que não é o Duda Mendonça nem o João Santana, um outro que falou, um dia, na agência em que a gente trabalhava, que ele precisava chegar logo no aeroporto, que pegar o Tietê estava uma merda, cheio de preto e crioulo na rua enchendo o saco. A partir dessa frase, eu fui desenvolvendo esse texto, a partir desse tipo de gente asquerosa. Até me causa problema às vezes, porque as pessoas confundem o que eu penso com esses personagens. Eu vivo discutindo isso. No Facebook, eu tinha um monte de amigos de direita e me abandonaram quando eu comecei a xingar o Bolsonaro, eles me bloquearam. As pessoas liam isso em algum lugar e me mandavam solicitação de amizade. Eu sou amigo do Olavo de Carvalho [no Facebook]. Claro, vou perder essa chance? Eu falei lá que ele é burro, aí ele me cortou, agora eu só posso compartilhar ou curtir as publicações dele, não posso comentar.
GC: E, diga-se de passagem, no conto que eu mencionei, essa questão racial me parece mais atual do que nunca. Uma ironia ácida que aparece e é sensacional. Tem uma hora que fala que a Naomi Campbell é preta, mas é bonita. Ironiza esse imaginário, e acho que, como o debate é tratado, isso é de uma urgência, ainda mais trazido de maneira ácida e pertinente. Eu gostaria de perguntar sobre literatura brasileira contemporânea, mas não só no nosso contexto, não só no de língua portuguesa, no próprio Estados Unidos a gente vê essa tendência chegando, como nas literaturas de língua inglesa como um todo. Existe uma tendência, nos últimos anos, da última geração, que é o termo que a gente chama de “interseccionalidade”, essa ideia de entrecruzar experiências. Então, pensar, hoje, por exemplo, a experiência negra, que eu estudo um pouco mais a fundo, a gente vê cada vez mais essa questão entrecruzada das mulheres negras, o debate negro queer, o debate negro LGBT+, que também é super contemporâneo, super interessante. Eu gostaria que você falasse um pouco sobre isso, qual o lugar dessa perspectiva e experiência interseccional na atual literatura?
AS: Bom, eu acho que a primeira coisa é escrever. Há essa defasagem mesmo. Eu lembro de ter ido em uma feira em 2015, em Frankfurt, uma em que o Brasil foi o país homenageado. Lá apareceu a polêmica de que o único negro que tinha era o Paulo Lins, e que só tinha um negro e um índio. O índio era o [Daniel] Munduruku. E rolou essa conversa, de fato. E, assim, há os anos de defasagem. Eu lembro de estar com o Paulo Lins e ele estava falando: É, de fato, eu estou aqui e é porque tem poucos [autores negros] mesmo. A gente tentou fazer uma lista e chegou a vinte nomes. Na época, eu fiquei pensando como não era justo, mas, depois, com o tempo, e acho que a partir daí, ao aparecer isso, essa lista foi aumentando bastante. Eu comecei a conhecer muitos [autores negros]. E acho que, neste momento, é o momento de se fazer e apoiar da melhor maneira possível. Claro, há exageros, patrulhas, em determinados momentos, que eu acho que incomodam bastante. Mas o fato é que a partir dessa grita que houve em Frankfurt, desses vinte nomes, hoje em dia eu saberia falar bem mais.
BR: Agora, o que você está achando da literatura brasileira contemporânea?
AS: Acho que tem algo de a gente ficar esperando a novidade. Muitas vezes ela já até existe, mas a gente não teve acesso ainda. Quando eu lancei os meus primeiros livros, no final dos anos 1990, era uma época em que se falava que não existia literatura. O jovem queria tocar guitarra e ser ator da Globo. Aí foram aparecendo uns primeiros nomes, que depois foram batizados de geração noventa. Apareceram esses primeiros nomes junto da internet, foram aparecendo os primeiros blogs de literatura, as pessoas escrevendo mais, e começou a ter um certo charme ser escritor.
Claro, veio uma enxurrada de gente. Quem sou eu para selecionar o que é bom e o que é ruim? Mas vem uma enxurrada de gente, fica muita coisa. E todo mundo passou a ser escritor, meu pai sempre falava isso. Falava que o problema do Brasil é que tem escritor demais e leitor de menos. Muitas coisas se perdiam. E, com isso, a literatura, de certa maneira, subiu um patamar na sociedade.
O meu pai, quando era mais jovem, mesmo depois de vários livros, não tinha essa quantidade de convites para viajar, para participar de feira, bienal. Eu lembro que ele viajava pouquíssimo, tinha um emprego público e não podia viajar. E mesmo quando chamavam, eram raríssimas vezes. Não tinha tantos convites, agora também não tem mais.
BR: Uma coisa que ele colocou nesses livros é de quando ele foi professor da ECO [Escola de Comunicação da UFRJ], dos encontros.
AS: Foi uma medida do governo Collor que tirou ele de lá, ele não podia acumular dois empregos públicos. Depois ele descobriu que, no caso de professor, ele podia.
Eu acho que, quando ele saiu da ECO, deu uma baixada na vida social dele, porque ele era muito amigo dos alunos. Ele não tinha essa de não passar de ano, as notas eram sempre boas. A pessoa que fizesse um bom trabalho ganhava dez. A pessoa que fazia tirava nove. A pessoa que não fazia tirava oito. E ele nem fazia chamada, porque ele não queria obrigar ninguém a assistir à aula dele.
BR: Agora, no final da vida, aquelas brigas no Facebook foram muito feias.
AS: Depois que ele morreu, muita gente escreveu, né. Eu nem li muito, fiquei sem coragem. A minha irmã ficou super mal, horrorizada. Eu não vi, porque quando ele morreu tinha muita coisa para resolver, muita gente ligando. Eu abri bem no finalzinho, um pouco antes da minha irmã tirar [do ar]. Li umas três e não tive estômago para seguir. Embora, enfim, o meu pai falou, né. Eu xingo logo. O meu pai que ficava falando que desejava a morte da família Bolsonaro.
LB: Você, de certa forma, é um escritor que escreve contra certa lógica tão comum aqui, e está cheio de material, hoje em dia, para escrever. Você está escrevendo algo, tem algum projeto?
AS: O que vai ter em breve é teatro. Eu vou lançar um livro que vai misturar as peças que eu escrevi nos últimos tempos com tudo o que eu escrevi desde o último livro. São aquelas coisas que você escreve por encomenda. Eu vou reunir coisas, tem uma ou outra inédita. As peças são, sim, inéditas. Eu ainda estou conversando com a editora, porque tem um diálogo comercial de que teatro não vende. Isso é o de menos. E é difícil fazer teatro com muita coisa de teatro que eu escrevo, porque são textos longos, difíceis, monólogos, os atores sentem dificuldade de decorar. Vai ser um livro meio experimental. Eu estou na fase de conversar com o editor sobre o que vale ou não publicar.
Agora, de certa maneira, tirando a parte do teatro, é quase como O Brasil é bom número 2, que é outra coisa que, na posteridade, vai ter que ser reorganizada. Tem esses contos mais políticos, meio crônica, que falam da realidade, do “direitos humanos”, que continuou. Eu acho até que os personagens do Bolsonaro, os últimos ministros, são muito mais originais do que os meus, eles são muito mais malucos. Eu até me senti um pouco defasado. Mas também está na hora de eu mudar um pouco a conversa, já fiquei muito tempo. O Brasil é bom deveria ter sido mais notado na época, porque está cheio de profecias.
Esse livro vai ser meio que uma continuação, terá contos autobiográficos como “A história de”. Em O Brasil é bom tem “A história da Alemanha”, “A história da revolução”, “A história do rock”, “A história do futebol”. Agora vai ter “A história do Brasil”, “A história do André Sant’Anna”, “A história do meu pai”. Deveria ter um livro só com as histórias e um só com os contos políticos, mas a gente nunca sabe o dia de amanhã.
BR: E hoje em dia a gente tem um secretário de Cultura, para fomento da cultura, que é um PM. Acho que agora está mais evidente. O Brasil é bom, né?
AS: Eu já não espero mais nada.
LB: Apesar de ser um livro muito contra, ainda dá para achar um lirismo, alguma coisa positiva. Apesar de tudo, há algum otimismo em O Brasil é bom.
AS: Acho que tem alguns momentos líricos, mas está difícil ser otimista. Depois desse livro estar prontinho, cortado, editado, eu estou querendo fazer algo maior, parar e tentar escrever um romance, contar uma história grande, vários personagens.
* Beatriz Resende é editora da Revista Z Cultural; Lucas Bandeira é editor executivo da revista e faz pós-doutorado no PACC/UFRJ, com bolsa da Faperj; Gabriel Chagas é doutorando em Ciência da Literatura pela UFRJ.