A história contada no romance Em liberdade (1981), do escritor Silviano Santiago, poderia ser verdadeira, poderia corresponder ao que, de fato, aconteceu com Graciliano Ramos após a saída da prisão ― suposição alimentada por um falso diário, inscrito dentro do próprio romance, cuja história verossímil é recheada de dados biográficos. O encavalamento de suportes, do diário ao prosaico, a flutuação entre personagens e tempos históricos, a exibição exemplar de técnicas de composição alheias ou ainda os fraseados poéticos do livro não são gratuitos, prestando-se simplesmente à verborragia, mas figuram como nó górdio do experimentalismo ficcional de Silviano, a membrana que amarra os diversos núcleos narrativos que convivem e competem na prosa: um texto que aglutina, de uma só tacada, o escritor Graciliano Ramos, o poeta Cláudio Manoel da Costa, o jornalista Vladimir Herzog e o próprio autor Silviano Santiago, como tentaremos defender. De maneira a tentar reconstituir a composição do livro, devemos remontar o momento em que a ideia do romance emerge no horizonte ficcional de Silviano, salientando a forma como as instâncias narrativas foram concebidas, planejadas e montadas.
Em 1975, em plena ditadura militar brasileira, Silviano decide escrever um diário íntimo apócrifo de um escritor brasileiro cujo mote fosse o corpo encarcerado. O autor, após um longo período como professor nos Estados Unidos, andava às voltas com o romance La peste (1947), do escritor franco-argelino Albert Camus. A célebre epígrafe do livro tinha sua origem anglófona, vinda do romance Robinson Crusoé (1719), do escritor Daniel Defoe, em que se lê: “É tão válido representar um modo de aprisionamento por outro, quanto representar qualquer coisa que de fato existe por alguma coisa que não existe” (Defoe apud Camus, 1996, p. 5). O corpo aprisionado, portanto, deveria ser o motivo fundador do texto experimental.
O primeiro personagem que lhe vem à cabeça é o poeta mineiro Cláudio Manuel da Costa, figura importante do arcadismo para a formação da literatura brasileira. O que certamente atraiu os olhos do crítico foi a morte do poeta ― àquela altura, preso político sob a guarda do Estado-colônia e réu da Inconfidência Mineira no século XVIII ―, cujas versões soavam contraditórias de acordo com os Autos de devassa: nos registros feitos no Rio de Janeiro, em 1789, o poeta seria suicida, já nos documentos vindos das instâncias embarcadas em Lisboa, teria sido morto. Além disso, o auto de corpo de delito dava margem a questionamentos acerca de sua morte, como anota Laura de Mello e Souza em um perfil biográfico do poeta: “[…] a descrição do cadáver encontrado consta de um dos documentos mais discutidos da história da Inconfidência Mineira”, e continua, “[sob o aspecto] da autenticidade ― seria forjado ― à verossimilhança ― seria mentiroso, relatando um suicídio para, na verdade, encobrir um assassinato” (Souza, 2011, p. 190). Quer dizer, tratava-se de um escritor que, assim como Silviano à época, construía sua obra sob um regime de exceção.
Como era residente no exterior, Silviano viveu o golpe de 1964 e o recrudescimento da ditadura em terras estrangeiras. Longe da celeuma política, os acontecimentos-chave da vida nacional militarizada o afetaram ainda de longe, em exílio voluntário, fato que se majorou pelo convívio, na França, com intelectuais acossados pela ditadura brasileira. Somado a isso, seu irmão caçula, Haroldo, militante atuante do Partido Comunista em Belo Horizonte, foi preso e torturado em 1975, no mesmo ano em que o jornalista Vladimir Herzog foi morto pelas forças da ordem num suicídio forjado. Assim, após seu retorno definitivo ao Brasil, quando se tornou professor do recém-criado Mestrado em Literatura Brasileira da PUC-Rio, a ditadura acertou Silviano em cheio, chamando-o a pensar seu tempo histórico e, no limite, posicionar-se diante dos acontecimentos que o cercavam politicamente e o implicaram do ângulo biográfico.
A forma literária, assim desenvolvida, marcaria uma distância da narrativa realista e “engajada” ou confessional, quer dizer, a pergunta que ecoava era: como tratar da violenta relação entre Estado e intelectual sem necessariamente produzir uma literatura realista, explicitamente engajada e comprometida com a verdade dos fatos?
Os anos finais da década de 1970 foram marcados pela volta dos guerrilheiros e pelo surgimento da literatura dos resistentes à ditadura, cujas narrativas, de caráter testemunhal e de denúncia (Sant’Anna, 1979), não interessavam a Silviano por implicações ideológicas e de estilo (Santiago, 2019, pp. 424-425) ― veja-se o livro de maior expressão do período, O que é isso, companheiro? (1979), de Fernando Gabeira, lido, aqui, como tipo ideal dessa safra literária. O livro de Gabeira é lançado no ano da sanção da Lei de Anistia, mecanismo aprovado graças à pressão popular, mas que, ao que consta, apesar de trazer de volta parte dos exilados e presos políticos, favoreceu a impunidade dos militares, que se safaram dos julgamentos e condenações após a abertura política. Além disso, outros livros lançados a reboque do de Gabeira funcionaram quase como um antídoto à tímida reabertura, comprometendo-se em contar a verdade que não havia sido assentada pelo Estado, como Cartas da prisão (1977), de Frei Betto, A Festa (1976), de Ivan Ângelo, Reflexos do Baile (1976), de Antônio Callado. Em liberdade se insere dentro e fora desse quadro, já que, apesar de tentar responder às mesmas questões, ele as responde de maneira diferente.
Como foi dito, o livro de Gabeira é publicado logo após a Anistia, como anota o autor no prefácio datado de 1996 (Gabeira, 2009, p. 9), o relato autobiográfico ganha uma dimensão histórica que serve a um desenlace específico arrolado pela crítica literária. O livro de 1979, a partir de seu aspecto eminentemente informativo, teria como intuito “contar a aventura coletiva da resistência à ditadura militar no Brasil” (Gabeira, 2009, p. 9), nas palavras do próprio autor, ou como uma espécie de “informe político” (Waizbort, 2019, p. 142). Assim, O que é isso companheiro? se transformou, à luz de seu autor e de seu público leitor, numa experiência literária que traduziria o momento de liberação da abertura, abarcando o desejo represado pelos anos de chumbo e o manancial de palavras de ordem ligadas aos direitos sociais que ecoavam no mundo. As ficções ditas confessionais ou documentais tendiam a se enclausurar no tempo histórico, cristalizadas como um documento de época, revelando um certo esgotamento diante das mudanças dos arranjos políticos e sociais.
Apesar do desejo de escrever algo que estivesse intimamente ligado ao engajamento contra o regime militar, Silviano não tinha interesse no registro jornalístico de tendência testemunhal dos livros em alta. Sua mirada artística tinha outros alvos que fossem menos explícitos em seu modo de apresentar-se e mais engenhosos do ponto de vista da composição. Em relação a esse tipo de literatura produzida no final da década de 1970, Silviano parece distanciar-se propositalmente das características de composição e escrita apontadas, por exemplo, por Leopoldo Waizbort (2019, p. 143) na obra de Gabeira:
É sempre um narrador homogêneo e claro quem fala ― e, melhor ainda, sabemos que o Gabeira autor assume a forma do narrador. Essa aproximação […] cria um laço de aproximação com o leitor, nas proximidades do “pacto autobiográfico”. O estilo de Gabeira não provoca nem quer provocar tensões nesse pacto, e o leitor não encontra obstáculos: seja na leitura propriamente dita, seja no equacionamento narrador-autor-Gabeira, seja no teor de verossimilhança daí advindo.
Assim, justamente por não colocar em xeque o dito “pacto autobiográfico”, ou seja, a coincidência nominal entre autor-narrador-personagem, a obra ganha abrangência do ponto de vista de mercado, mas perde em qualidade literária. Isso tudo se agrava e se confirma se levarmos em conta o epicentro da composição de Em liberdade, quer dizer, justamente o problema da autoria e sua consequente atribuição. Dessa forma, o texto de Silviano, inscrito em um outro registro, buscava anacronicamente aproximar diferentes cenas da história do Brasil, ganhando uma expressão rica e uma embocadura singular para um livro de literatura publicado sob uma ditadura militar.
Durante entrevista ao Jornal de Letras em novembro de 1975, Silviano responde a algumas questões sobre sua, ainda incipiente, carreira como ficcionista. O crítico já tinha alcançado certa notoriedade nos círculos de literatura e crítica de cinema de Belo Horizonte antes dos anos 1960, uma relativa projeção como teórico e ensaísta graças aos seus textos publicados ainda quando professor no exterior e algum destaque como professor na PUC-Rio, com a recente vinda da French Theory de solo norte-americano. Porém, sua carreira como ficcionista estava desabrochando. Ao final da conversa, Silviano é perguntado sobre os projetos de escrita que estavam sendo gestados, momento em que conta um pouco dos seus desejos mais imediatos como escritor: “Planos de criação propriamente, tenho-os e muitos. O tempo para executá-los é que vai se encurtando. Gostaria de terminar uns contos que tenho na gaveta […], e de realmente começar um romance sobre o século XVIII mineiro (e adjacências como, por exemplo, o nosso próprio século)” (Santiago; Coelho, 2011, p. 17). Em meio a outros projetos deste período, o crítico destacou sua vontade de escrever algo ― à época, um romance ― sobre o passado mineiro. O interesse pelo período não se restringia simplesmente ao passado, mas a uma continuidade extemporânea que o conectava com o presente, com “o nosso próprio século”, implicado nele, empreitada que parece se realizar no seu Em liberdade, anos depois.
Então, o projeto ganhou concretude ainda nos anos 1970, e logo mais de trinta páginas do diário íntimo ficcional do poeta inconfidente foram escritas (Santiago, 2020, p. 45). No entanto, Silviano desistiu. Aquele texto o desagradava. A linguagem ambígua e a confusão histórica não lhe pareciam interessantes. A distância entre o século XVIII mineiro e a recente morte de Herzog, no DOI-CODI paulista pela ditadura militar, criava uma lacuna difícil de ser preenchida no espaço ficcional. Além disso, a distância poderia tornar a associação entre os dois períodos históricos e suas respectivas implicações com a vida intelectual demasiadamente cifrada ou sutil para os leitores de então, constatação que veio à tona em conversa com o poeta Geraldo Carneiro, à época aluno da graduação em Letras da PUC-Rio, onde Silviano lecionava. Portanto, faltava algo ao projeto.
Em abril de 2022, Em liberdade é relançado, agora pela editora Companhia das Letras, após quarenta anos desde sua primeira edição. O livro é comemorado com o lançamento online promovido pela editora e pela Academia Mineira de Letras. A live conta com a presença do crítico e pesquisador Wander de Melo Miranda, do escritor e jornalista Rogério Faria Tavares, além do próprio autor do livro, todos membros da Academia Mineira de Letras. Já no início do lançamento, incitado por uma provocação de Wander, Silviano conta a trajetória da ideia do livro antes propriamente de sua redação. Reconta, digamos assim, o backstage da composição, aquilo que vinha sendo gestado durante anos na cabeça do escritor até atingir a maturação correta para, enfim, tornar-se obra. Em primeiro lugar, foi por ocasião do trabalho de Silviano, como professor nos Estados Unidos, que Graciliano Ramos entrou no seu radar ainda no começo dos anos 1960. Como professor na University of New Mexico, entre 1962 e 1964, o brasileiro precisou montar alguns cursos para as turmas de que ficou encarregado. Como conta Silviano na live, é aí que surge a ideia de ministrar uma disciplina que cruzasse A rosa do povo (1945), de Carlos Drummond de Andrade, e Memórias do cárcere (1953), de Graciliano Ramos. A junção entre os dois autores brasileiros e seus diferentes livros ― inclusive em estilo e gênero ― foi oportuna pois, ao final do curso, um aluno, filho de pais mexicanos, disse desejar escrever sua dissertação de mestrado sobre o livro de Graciliano Ramos. O aluno era Carlos E. Cortés, hoje especialista em questões latino-americanas e professor emérito do Departamento de História da University of California, em Riverside. Numa recente troca de e-mails (28/07/2022), Cortés conta que conheceu Silviano no outono de 1962, em Albuquerque ― durante o primeiro ano do brasileiro como professor. Naquela época, Cortés realizava um mestrado em português e espanhol e um doutorado em história, que defendeu, respectivamente, em 1965 e 1969. Silviano acompanhou seu aluno até meados de 1964.
Dessa forma, define-se de maneira mais ou menos precisa a leitura, nos anos 1960, de Memórias do cárcere, o que permitirá, já nos anos 1970, mais especificamente 1975, que Graciliano seja acionado para resolver os impasses criados na escrita do diário apócrifo de um escritor brasileiro encarcerado.
Então, após muito matutar, o xeque-mate foi dado: a ideia formalizada era escrever o diário de Graciliano Ramos, suposto último capítulo perdido de Memórias do cárcere, que narrasse o período imediatamente após a saída da prisão, em 1937, no Rio de Janeiro, momento em que o Graciliano precisaria se haver com a estranha liberdade reconquistada. É do autor alagoano que Silviano toma emprestada a voz, dando sobrevida ao projeto interrompido, alojando-se na coincidência dos eventos políticos – a Inconfidência, o Estado Novo e a Ditadura Militar – e seu alinhamento macabro na macropolítica brasileira, dado que sopra nos ouvidos atentos de Silviano a força necessária para seu projeto engavetado. Assim, Silviano narraria a experiência da liberdade, aprisionado na grafia-de-vida de Graciliano, amordaçado pelo seu estilo ríspido e preciso. Trocando em miúdos, Silviano faria um pastiche de Graciliano Ramos, demorando-se no estudo da sua escrita, imitando-a e falando a partir de sua embocadura, tal como havia aprendido com Marcel Proust, em Pastiches et mélanges (1919), durante sua formação à la française (Barile, 2022). Estava desenhado o projeto definitivo de Em liberdade.
Silviano realizou durante seis meses uma pesquisa exaustiva sobre a escrita do autor para, assim, copiá-la. Quer escrever um diário que nunca foi escrito e, para isso, precisa escrevê-lo como Graciliano, fazendo, por exemplo, do próprio estilo um motivo do diário ficcional (Santiago, 2013b, p. 29-30).
Em entrevista para a nova edição do livro, em 2022, para o jornal Estado de Minas, Silviano conta um pouco sobre esse esforço de pesquisa: “Não era suficiente a narrativa dos fatos, banais na aparência. Tinha de conhecer bem todos os personagens que o rodearam. […] Entreguei-me à pesquisa em documentos e jornais. Reli a obra dos romancistas nordestinos. Anotei detalhes” (Barile, 2022). O projeto exigia um cuidado com os fatos para que o efeito ficcional fosse bem sucedido, o que lançava a composição do livro num paradoxo importante. Apesar de alicerçado numa ficção declarada – um diário apócrifo –, o livro precisava ser o mais verossímil possível, dado que demandou um cuidado dobrado, com close reading de guias da cidade e revistas de época (Santiago, 2002, p. 166), com anotações sobre percursos de ônibus, bondes, os tipos de árvores em cada bairro, etc.
Assim, vai registrando informações até então triviais, como o clima de cada dia, o que aconteceu em cada um deles, as manchetes de jornal, os filmes em exibição, medindo, dessa maneira, a extensão e fundura do romance. À guisa de exemplo, Silviano conta como a anotação dessas minúcias ordinárias e prosaicas deram sustentação e profundidade literária para sua empreitada:
De repente, o detalhe de que tal dia chovia acabou sendo importantíssimo. No dia em que Graciliano saiu da casa de José Lins do Rego e foi para a pensão no Catete, naquele dia, caiu um pé d’água no Rio de Janeiro. Para mim foi ótimo, porque eu queria manter a prisão como metáfora. Mesmo estando ele fora da cadeia, ainda continuava prisioneiro. O personagem é obrigado a fechar todas as janelas porque estava chovendo demais. Não me ocorreria essa mise-en-scène, se não soubesse que naquele dia tinha chovido tanto. (Santiago, 2002, p. 166)
Repetindo-em-diferença Memórias do cárcere, suplementando sua leitura, Silviano desenvolve uma escrita-pastiche e escreve, ao estilo de Graciliano, as páginas do diário apócrifo.
Então, Graciliano é ensanduichado por Cláudio Manoel e Herzog, preenchendo a lacuna temporal e de linguagem que incomodava Silviano, reduzindo o espaço entre as experiências históricas alusivas e garantindo uma outra inteligibilidade para o romance em confecção.
Já com um relativo controle da obra de Graciliano, Silviano resolve escrever o período imediatamente após a saída da prisão. É ali que reside o nó górdio da grafia-de-vida de Graciliano, o ponto oculto, nunca trabalhado pelo autor, e que, justamente por isso, torna-se tão potente. Justamente por esse vácuo literário na obra do alagoano, Silviano pôde projetar sua imaginação nesta negatividade, produzindo, a partir dela, uma outra história – apesar de falsa –, alicerçada em dados biográficos, garantindo a verossimilhança do texto, tanto em estilo como em fatos.
Memórias do cárcere é redigido anos depois da saída da prisão, um livro, portanto, fruto da memória, fruto do trabalho de anamnese do trauma, feito a duras penas. Entre a redação do livro e o evento em si, existe uma lacuna que pode ser preenchida ― mesmo que ficcionalmente. A ausência de texto sobre a experiência do cárcere no imediato após a prisão é, inclusive, tema da própria construção do diário apócrifo, quer dizer, a dificuldade de escrever e formular aquela experiência. Além disso, não há, segundo Silviano, nenhum indício, na obra de Graciliano, sobre o momento de liberdade do autor, quando sai da prisão e precisa se haver com as dificuldades emocionais, financeiras e políticas. É nessa toada que Silviano escreveu recentemente sobre a condição aparentemente paradoxal de prisioneiro: “A liberdade do prisioneiro político não depende apenas da vontade do homem. […] Fora do cárcere, o prisioneiro continuará prisioneiro” (Santiago, 2020b), e continua arrematando o raciocínio incluindo a liberdade nessa dimensão paradoxal: “Não terá a liberdade que julga poder usufruir na condição de interno que se julga inocente. Ser prisioneiro é consequência da condição linguística, e sociopolítica e econômica, do humano” (Santiago, 2020b).
Silviano, naquele período, horrorizado pela barbárie da ditadura com o assassinato do jornalista Herzog, precisava se manifestar politicamente. Sua intenção, porém, não se alinhava às opções estilísticas dos chamados romances de testemunho, em alta na época, como mencionado. Politicamente, Graciliano tinha algo de um engajamento pela escrita. Seu trabalho como político aparecia mediado pelo procedimento escritural, seja numa dimensão burocrática da redação de relatórios (Freitas, 2015) obrigatórios nas funções públicas, seja no engajamento explícito de sua obra, mais tomada pela dimensão social de fundo dito realista. Assim, dentro de um quadro específico da ficção brasileira, e interessado em mecanismos formais e de criação literária próprios, Silviano acaba por fazer uso do passado e presente políticos como matéria de composição artística, tal como precisa o crítico e professor Wander de Melo Miranda (2009, p. 18):
O recuo estratégico de Em liberdade ao passado funciona como um recurso eficaz e inventivo do qual o autor lança mão para ampliar a repercussão do seu testemunho da história recente do Brasil, indo além do registro imediato dos fatos concretos, mediante sua contextualização num decurso temporal mais abrangente e num espaço de configuração literária mais amplo e complexo.
O livro de Silviano parece suprir a vontade de se manifestar politicamente através de um uso abalizado da ferramenta escritural, produzindo, dessa maneira, um engajamento a partir da forma, da realização do estilo literário, do domínio da palavra e do fraseado alheio.
Em “Mestre Graça não é piedade”, texto de 2013, publicado no jornal O Globo, Silviano, ao discutir a política na obra e na biografia de Graciliano, sublinha a dimensão inseparável entre escrita e política para o alagoano, na qual o engajamento ou a força política não pode existir se não numa dimensão escritural:
Em Graciliano, a política é senhora de poucas palavras e mãe de muitos equívocos linguísticos que, lançados na folha de papel, devem ser imediatamente borrados e corrigidos pelo escritor atento e reflexivo. A política não pertence à família dos GPS, que querem direcionar a vida e a obra do cidadão. Ela é infatigável exercício das mãos e da caneta, unidas às evidências da criação literária, em que os defeitos/qualidades da vida cidadã e social, da vida histórica e econômica da nação, são postos à prova na folha de papel em branco. (Santiago, 2013c, p. 3)
Há aqui um detalhe importante a ser sublinhado. É no mesmo ano decisivo para a escrita do Em liberdade, 1975, que Silviano, já na condição de professor efetivo da PUC-Rio, oferece um curso de introdução a diversos autores franceses – identificados com o que ficou conhecido como pós-estruturalismo. Ao fim, o curso termina por se tornar uma espécie de introdução à obra de Jacques Derrida. O curso, tornado uma espécie de grupo de estudos, tem como resultado, no fim do semestre, a partir de uma proposta visionária do próprio Silviano, um glossário “conceitual” do pensamento de Derrida – obviamente, no que diz respeito à obra do filósofo publicada até meados de 1975. No ano seguinte, Glossário de Derrida (1976) é publicado pela editora Francisco Alves, um dos marcos dos estudos sobre Derrida fora da França, além de constar como um documento sobre a recepção do pensamento do filósofo na América Latina, em especial no Brasil. O primeiro livro apresentado para aquela turma de mestrandos em literatura brasileira foi La pharmacie de Platon (1968), texto que trata da relação entre fala e escrita – e entre escrita e verdade – a partir do Fedro de Platão. Em outubro de 2014, junto com uma série de outros textos que tratam da presença do pensamento de Derrida no Brasil, o jornal O Globo publicou um artigo de Anamaria Skinner, que fez parte do grupo de alunos que participou da feitura do Glossário de Derrida na década de 1970. A então jovem pesquisadora tinha bom domínio do francês – e foi fundamental na leitura e tradução dos trechos de Derrida citados no glossário. Mais tarde, ela se tornaria uma importante tradutora do pensamento francês, com um currículo que vai do próprio Derrida a autores como Roland Barthes e Jean Baudrillard. No seu artigo, Skinner conta, à luz dos acontecimentos políticos da época, a importância de Silviano para o florescimento de um público leitor do filósofo franco-argelino no Brasil, além de esquadrinhar rapidamente uma hipótese sobre a fertilidade de certas ideias derridianas em solo brasileiro:
Se tivesse de imaginar motivos para o sucesso de Derrida nos estudos literários, ressaltaria, sobretudo, esse primeiro contato com a filosofia, contada em prosa por Derrida, e o gesto preciso de Silviano diante do momento político brasileiro, em 1975: apresentar aos estudantes de Letras um texto em que é encenado o poder subversivo da escrita. Já que é disto que se trata. (Skinner, 2014, p. 3)
Assim, tanto a leitura de Derrida como a confecção de Em liberdade são mediadas pelo problema da ditadura, da exceção, da brutalidade e das formas de resistências possíveis num ambiente governado sob a égide da barbárie. Não apenas isso, mas uma resistência que estivesse intimamente ligada à escrita, às formas literárias de composição, aos desdobramentos dessas formas e às contaminações da experiência escritural. Assim como a política em Graciliano Ramos, a política em Derrida também precisaria estar mediada pelo gesto da escrita. Precisamos ter em mente que, em termos concretos, a palavra é o instrumento de luta do personagem/narrador de Em liberdade, já que, no momento da “falsa” feitura do diário, Graciliano ainda se via como um trabalhador do jornal , um operário do signo, que usa a escrita, ainda que ceticamente, como modo de sobreviver e lutar. Já na primeira entrada do diário existe uma importante discussão sobre o estatuto da palavra nos meios de comunicação tradicionais dos anos 1930 e sua relativa liberdade (Santiago, 2013b, p. 34). Graciliano via que, comprometido politicamente, não conseguia espaço para se sustentar nos meios de comunicação tradicionais. Além do mais, tudo o que fosse escrito precisaria passar pelo crivo dos patrões, que, em última instância, determinava o que seria ou não publicado. Dessa forma, a “liberdade” e o consequente combate que deriva da atividade laboral de escrita estariam fadados a girar em falso, uma vez que obedeceriam ideologicamente – não simplesmente de direito, mas de fato – aos ditames dos detentores dos meios de comunicação. Acredito que, tendo em vista o período de formação em que estamos nos demorando, não é de se ignorar a presença de um autor como Derrida no horizonte crítico de Silviano no momento de elaborar um diário apócrifo. Ou seja, se na frase de abertura, tornada célebre, de La pharmacie de Platon – “Um texto só é um texto se oculta ao primeiro olhar, ao primeiro que chega, a lei da sua composição e a regra do seu jogo” (Derrida, 1995, p. 257) – Derrida insiste na condição de todo texto cifrar sua própria lei de composição e as regras do seu jogo, um livro como Em liberdade parece realizar o programa derridiano: um livro que se propõe um diário apócrifo, de início parricida, já que falsifica a autoria, ao mesmo tempo, oculta diversos subtextos que precisam ser escavados e desvendados no nível da composição, evidenciando o tipo de expediente que Derrida parece demandar da escritura.
Todo o projeto de Em liberdade é baseado nos supostos capítulos finais de Memórias do cárcere. A chamada “Nota do Editor do Manuscrito”, assinada por Silviano Santiago – que, na economia interna do romance, “tratou” os manuscritos perdidos de Graciliano –, escrita na abertura do livro, explica justamente a origem daquilo que se apresenta na forma de diário. Graciliano, alguns anos antes de morrer, teria oferecido a um amigo aqueles originais, solicitando-lhe que só fossem revelados ao público vinte e cinco anos após a sua morte. Anos depois, em 1952, às vésperas de sua morte, quando já padecia de câncer no pulmão, Graciliano teria escrito para o mesmo amigo pedindo-lhe que queimasse os originais deixados, remontando ao gesto de Franz Kafka a Max Brod. Alinhado a Brod, o amigo ocultado de Graciliano não queima os papéis e preserva-os, tornando-se, ele mesmo, arconte. Anos mais tarde, a família do amigo teria entrado em contato com Silviano, à época professor na Rutgers University nos Estados Unidos, confiando-lhe aqueles originais. A escolha por Silviano se deve ao fato de ele já ter trabalhado com o tratamento de manuscritos. A nota, apesar de ficcional, tem um forte lastro biográfico.
Ainda quando graduando em Letras Neolatinas na Universidade Federal de Minas Gerais, Silviano é indicado pelo seu professor Damien Saunal a estudar na Maison de France, no Rio de Janeiro, no Centre d’Études Supérieures de Français, durante o biênio 1960-1961, curso organizado pela CAPES, que concedeu uma bolsa a Silviano para custear sua estada no Rio (Santiago, 2021, p. 181-182). O curso de especialização era uma espécie de preâmbulo para o doutorado no exterior, já que a pós-graduação estava ainda engatinhando em solo brasileiro. Durante esse período, aproxima-se de Alexandre Eulálio, que lhe conta da existência de um manuscrito inédito da chef-d’oeuvre do escritor francês André Gide, Les faux-monnayeurs (1925), no Rio de Janeiro. Informado por Eulálio, Silviano vai atrás dos manuscritos, seu passaporte de entrada para o mundo francófono e para a pesquisa genética em literatura. Por um período de seis meses durante o curso de especialização, Silviano irá se ater à pesquisa daquele manuscrito. Examinando de perto os inéditos, o autor toma gosto pelo estudo da gênese da obra e das formas de composição. O resultado parcial do período no Rio de Janeiro foi publicado, anos mais tarde, na Revista do Livro – criada por Alexandre Eulálio –, intitulado “Fragmento de Les faux-monnayeurs: (Edição de um manuscrito inédito)” (Santiago, 1966), no qual transcreve os documentos encontrados e ensaia algumas incursões na composição gideana. O doutorado realizado posteriormente terá esse problema como centro, intitulado La génèse des Faux-Monnayeurs d’André Gide (Santiago, 1968) e defendido em abril de 1968 na Université de Paris (Sorbonne), sob supervisão do professor Pierre Moreau. O período no Rio de Janeiro e o de doutoramento podem ser entrevistos no livro de 1981, como sugere a nota do editor, peça fundamental para sua compreensão.
Em artigo escrito para o jornal Folha de São Paulo, em 2007, Silviano, ao apresentar os mecanismos escriturais de Gide, explica o conceito criado para designar a chamada “estrutura em abismo” (mise-en-abyme), usada também para descrever sua própria obra:
Do ponto de vista retórico, a estrutura de Os Moedeiros Falsos se inspira […] na composição de brasões. A peça de nobreza pode trazer no seu interior, em miniatura, o desenho global. O todo se confunde com a parte. A parte se confunde com o todo. Questão de perspectiva. Em heráldica, a técnica se chama “em abismo”. Em retórica pop, o procedimento se encontra na lata de aveia Quaker. Um religioso vestido a caráter mostra uma lata de aveia. Nesta, está estampado um religioso que mostra a mesma lata de aveia. E assim infinitamente. A estrutura em abismo é comum nas obras de arte do Ocidente. Apenas os historiadores a desconheciam até a anotação de Gide no próprio diário íntimo. Lembremos alguns exemplos. “Hamlet”, de Shakespeare, em que há uma peça dentro da peça, “As Meninas”, de Velásquez, em que a pintura retrata o ato de pintar, e ainda “O Primo Basílio”, em que o personagem Ernestinho escreve uma peça sobre adultério, em tudo semelhante à trama criada por Eça de Queirós. (Santiago, 2007)
De modo a ainda recuperar sua primeira ideia de livro, Silviano, ao estilo de Gide, planejou a segunda metade do romance em mise-en-abyme, fazendo com que o seu Graciliano escrevesse um conto narrado por Cláudio Manoel da Costa, num interessante jogo de espelhos. Dessa maneira, surge, ao longo do livro, um livro dentro de um livro, no qual Graciliano, ao sonhar ser o poeta mineiro, vê-se identificado com a figura do inconfidente perseguido que, por sua vez, ressoa ainda a imagem de Herzog nos anos 1970. A morte trágica do poeta mineiro se torna musa literária do diário íntimo – desde pelo menos a entrada de 3 de março, dentro do romance ― do narrador/personagem Graciliano Ramos que sonha ser Cláudio Manuel da Costa (Santiago, 2013b, p. 215). O projeto do diário apócrifo é repensado mantendo, ao mesmo tempo, as referências a Cláudio Manuel da Costa e Vladimir Herzog. Quer dizer, o livro sobre Cláudio Manoel da Costa aparece dentro do livro sobre Graciliano que, ao mesmo tempo, contém a morte de Herzog e sua respectiva discussão histórica e política. Um livro dentro do livro, texto duplicado, estrutura em abismo. A discussão sobre a ditadura militar, por sua vez, aparece cifrada nas querelas com o governo Vargas, espelhadas também nas tensões da Inconfidência Mineira com a Monarquia portuguesa. Escrito num sábado, dia 20 de março, lê-se em Em liberdade: “Cláudio será Graciliano. Graciliano redige, mas quem escreve é Cláudio” (Santiago, 2013b, p. 252). Os personagens são também duplicados, performando um e outro, confundindo-se na prosa. É neste ponto que a engenhoca Em liberdade ganha um estatuto político e estilístico interessantes. Numa só tacada:
[…] o projeto alegórico inicial se transforma numa espécie de grande painel da história do Brasil. Em três épocas distintas, três intelectuais brasileiros padecem nas mãos de governos paranoicos, autoritários e violentos. Final do século XVIII (Cláudio falece no dia 4 de julho de 1789); década de 1930 (Graciliano passa preso o ano de 1936); década de 1970 (Herzog é suicidado no dia 25 de outubro de 1975). (Santiago, 2020a, p. 46)
Se Silviano buscou procurar na biografia e nos escritos de Graciliano Ramos ― e Cláudio Manoel da Costa ― algo que dissesse sobre o corpo, entrevendo a forma de compor o texto, caçando as intermitências da escrita, este ensaio buscou também, na composição de Silviano, nos seus textos ficcionais, a forma pela qual investigou a composição de Graciliano e investiu na escrita alheia.
Tentamos, aqui, pensar o emaranhado de circunstâncias que estavam ao redor da composição do livro Em liberdade, encontrar os pontos essenciais na biografia do autor para a constituição deste trabalho tão singular em sua carreira. Quer dizer, retrocedendo alguns anos da publicação, indo até 1975, onde parece estar o início de tudo, e escavar os acontecimentos e textos que o circundaram no período da composição. Assim, descrever como as ideias se formaram e se transformaram no cruzamento com a história, as instituições, os textos e as pessoas, garantindo uma melhor compreensão da longevidade desse livro que já completou mais de quarenta anos e que continua atual.
Silviano Santiago em “A sociedade secreta dos biógrafos”, relembra de uma passagem de Historia Universal de La Infamia (1935) de Jorge Luis Borges, na qual o escritor argentino diz fazer parte, junto a outros escritores, de uma espécie de “sociedade secreta” de devotos de Marcel Schwob, autor de Vies imaginaires (1896). Isso porque Schwob figuraria como o primeiro a retirar o gesto biográfico de um registro simplesmente histórico, de coleção de dados e comprometido com a verdade enquanto finalidade da literatura. Schwob realizou uma série de minibiografias e as eternizou no livro de 1896, no qual não estabelece uma distinção entre grandes figuras e personagens medíocres da história, e até de criminosos. Todos são passíveis de serem biografados. Não apenas isso, mas o ponto de partida dos perfis biográficos não é calcado num universalismo que daria conta de maneira absolutizante das figuras em questão, mas são antes incitadas por pequenas curiosidades, esquisitices triviais que, combinadas ao estilo do escritor e a uma certa dose de fatos reais, conseguem compor um quadro satisfatório que faz as vezes do gênero clássico da biografia. Assim, Borges seria um autor herdeiro de Schwob, que produz genealogias bastardas, biografias inventadas, que constitui sua prosa desafiando os limites entre a ficção e o mundo. Ao final do pequeno texto, após descrever alguns mecanismos de composição biográfica e apresentar de que maneira diversos autores se colocam junto a Schwob como seus herdeiros, arremata colocando-se, ele mesmo, ao lado do autor, como seu herdeiro também: “ao publicar o romance Em liberdade, assinei ficha de inscrição na sociedade secreta a que Borges se refere” (Santiago, 2013, p. 98).