A finalidade maior de um escritor é tocar o coração dos outros mostrando o próprio.
Thomas Hardy
Em 2017 — justo quando eu estava num momento bem delicado da vida: fazendo 40 anos, tendo me separado e depois conhecido uma nova pessoa, para quem eu deveria contar um pouco sobre mim mesma e sobre meu passado — meus pais seriam os anfitriões da grande festa da família Magri, comemoração anual da qual nunca participo. Mas como era o nosso núcleo familiar que receberia os outros, meus pais insistiram que eu fosse.[1]
No interior, nas grandes festas de família, faz parte da tradição oferecer aos convidados os alimentos preparados em casa. O banquete generoso deve ter como centro a carne. A carne de um boi escolhido e engordado especialmente para a ocasião.
O que se segue é a viagem ao interior da paisagem, mas também de mim mesma, para reviver o ritual de preparação dessa grande festa familiar.
Pra vocês terem uma ideia da paisagem, escolhi começar por esta foto, este caminho cheio de curvas onde tudo o que se vê além do asfalto é céu, o verde das árvores e a terra vermelha. Foi pra lá que eu fui:
Minhas irmãs fariam as famosas costelas assadas num círculo de fogo, uma comida espetacular, como exigia a ocasião.
Mas, para obter as lindas e imensas costelas, seria preciso matar o boi.
Então fomos a uma fazenda, conhecemos Maritânia e Caio, escolhemos um boi entre alguns mais gordos, e vimos sua morte e o tratamento das carnes se desenrolando sob nossos olhos. Uma coisa comum, corriqueira, a vida de todo dia desse casal simpático, que me impressionou muito. Uma rotina anual na vida de meus pais e de meus parentes todos que criam seus próprios animais para o alimento, morando em pequeníssimas cidades — menos de três mil habitantes — no interior de Santa Catarina. A maior parte dos tios ainda tem seu gado, suas terras, escolheram se manter nelas. Meus pais, um pouco mais velhos, optaram por morar na cidade, uma cidade mais roça que outra coisa, os laços comunitários todos mantidos e os hábitos antigos também. Não é possível imaginá-los comprando bife, filé, picanha, no supermercado. As carnes ali têm outro nome e eles as veem virar carne. Já não boi, agora carne. Ainda boi, depois a carne.
Maritânia nos recebeu solícita, mas mais que isso, alegre, os dentes perfeitos, coisa estranha à minha família, toda de dentes falhados, irregulares, com frestas na frente, frestas como as das paredes feitas de tábuas, seus dentes perfeitos seu rosto bonito, polonesa e não italiana, pernas fortes, as botas sujas de outras matanças. Caio cumprimentou meu pai e foi indicando o lugar no potreiro onde estavam separados três dos melhores novilhos, para nossa escolha. Maritânia nos levaria, mas antes nos disse que não nos assustássemos com os cachorros; assim que Caio ligasse o motor da fubica, eles saltariam de onde estivessem, não nos atacariam, mas viriam brincar nas nossas pernas e enquanto ela falava já os cachorros, já o barulho, algum susto, tudo acontecendo depressa, o barro e a merda do potreiro sob nossos pés, um cachorro sujíssimo, marrom, como um lobo imenso quis brincar comigo, me lambeu as pernas, me cheirou a bunda enquanto eu parada, petrificada, diante daqueles monstros que apenas brincavam, eu não podia acreditar. E então outro cachorro, maior, com uma cara de raposa, focinho longo, pelo curto, cor bege, de cachorro, não de urso, veio lamber a minha mão e a Maritânia, Sai filhos, elas têm medo, e já pra nós: — Ah, eles não fazem nada. E então mais dois cachorros menores, nos rodearam e outros mais saíram do paiol e já eram onze que latiam e nos levavam para a cerca de madeira em que subiríamos para ver melhor os bois e escolher um.
Eles não têm nome, mas números pendurados nas orelhas, escolhemos o mais simpático, mais gordo, o Mais bonito, meu pai disse, o de número 45. Ele e não outro foi tocado pelo Caio a um cercado menor, teve uma corda amarrada no pescoço e a outra ponta amarrada na fubica, e era Maritânia que retesava a corda, a amarrava com força, sempre sorrindo e olhando para nós, como se a dizer Aqui fazemos assim, é tudo com cuidado, ele não vai sofrer nada, vai dar tudo certo, vocês vão ver.
E, de fato, Caio ligou o motor, foi devagar um pouco à frente e o boi 45 andou, não havia mesmo saída, contorceu seu pescoço como podia, Caio deu-lhe tempo, olhando sempre o boi, nunca pra nós, e então andou mais um pouco pra frente, o boi obedeceu, de novo não havia saída, parou, se contorceu, tentou recuar, se soltar da corda, não emitiu nenhum som e então, já um pouco mais para a frente boi e homem pararam, Caio saltou do motor e foi para a carroceria da fubica, constatou a distância entre ele e o boi, encurtou-a puxando um pouco a corda, dando um novo nó. Maritânia, de camiseta azul, as botas nos pés, numa mão um balde, noutra a faca, bem ao lado do boi. Caio voltou à carroceria, pegou uma enorme marreta e antes que eu esperasse golpeou a cabeça do boi 45. Uma pancada tão forte, uma pancada tão correta, o boi caiu de imediato e fiquei boquiaberta com a ciência de Caio, a corda tão retesada tinha a distância certa para que o boi 45 pudesse cair e chegar até o chão, imóvel, desacordado, podia jurar que já morto.
Fotos de Ieda Magri |
Mas Maritânia se aproximou, estendeu a mão com a faca ao marido e ele a enterrou no pescoço do boi 45 que, de novo, não emitiu nenhum som. O sangue saiu alto, pra cima, borbulhava muito vermelho e inundava o chão, os pés nas botas de Maritânia e seu marido. O boi 45 teve um espasmo, Caio retirou a corda, nos disse Já está morto, falta só o coração parar de bater.
Então Caio guardou a fubica e voltou com um trator de pás, onde prendeu o boi 45 pelas pernas depois de ter cortado as patas com uma serra, tirado habilmente o couro dos joelhos buscando a abertura da tíbia por onde passariam os ganchos. E o boi 45 foi suspenso pela máquina agrária, o pescoço dobrado no chão. Estendeu ao meu pai uma faca de cabo branco, pontuda, muito afiada, e meu pai então passou ao papel de coadjuvante número três, os homens retirando o couro, Maritânia lavando o sangue, afastando os onze cachorros, suplicando aos outros bois — dizendo a eles Meus filhos — que fossem embora dali, que recuassem, eles não tinham que ver essas coisas.
E os homens tiravam o couro que descia do boi como um grande tapete virado do avesso, fácil, deslizando pelas facas afiadas, sem que se prestasse atenção, agora como se tudo acontecesse sem tensão, sem precisar de cuidado, já podíamos nos ocupar com outras conversas. Assim, quando Maritânia disse Vão embora, meus filhos, Caio pôde dizer Mais dia menos dia vai lhes acontecer o mesmo, se não aqui, assim, sem sofrimento, no abate, um atrás do outro, Assim é o destino. E já podia sorrir enquanto perguntava ao meu pai até onde deveria tirar o couro do rabo, o que significa quanto do rabo você quer transformar em comida e quanto você vai jogar fora, enterrar lá adiante no morro, com as patas, as entranhas e o couro. Ah, um palmo, disse meu pai. E Caio cortou com a serra o rabo do boi, dispensou a um lado, os cachorros saíram correndo a brigar por ele enquanto o homem voltava a se concentrar, tirando o couro, cortando a pele, a gordura, limpando aquilo que viria a ser a nossa comida.
Mas já o couro todo no chão, revelando a junção no pescoço que separava o que era comida e o que era resto a ser enterrado no morro e Caio começou a abrir a barriga do boi 45, Maritânia com seus braços aparando a buchada e Caio inquisitivo para meu pai, Vai querer os miúdos?
E meu pai, Se o fígado estiver bom, sim, e o coração. Então de uma vez foi caindo um enorme volume amarelo e com habilidade Maritânia foi ajeitando a queda até que tudo se acomodasse no chão e Caio extraiu um fígado enorme, roxo, em forma de folha.
Maritânia pegou-o das mãos do marido e o colocou no balde com água, lavou-o e o entregou ao meu pai, que o guardou num saco plástico, na carroceria da caminhonete de nosso primo que nesse meio-tempo já havia chegado para pegar as carnes.
Deixei de acompanhar o destino do fígado porque Caio extraía o coração e tive a impressão de vê-lo pulsar.
Da enorme veia saiu um resto de sangue escuro, ele o partiu e retirou a veia depois passou-o para a mulher que realizou os mesmos gestos mecânicos de lavar e entregar ao meu pai, o saco plástico, a caminhonete, mas eu fiquei presa naquele coração de boi, de um rosa claro, tão bonito como o coração do Jesus do calendário da minha infância, que prometia a verdade e a vida. Um coração que era vida, um coração que andava pelo gramado, que comia, um coração que era agora comida.
De repente olhei em volta, os muitos olhos dos bois vivos, com outros números, e tive a impressão de estar no conto do Tólstoi, “Kholstomer”, e que quem estava narrando era um cavalo. Um boi me olhava com fúria e imaginei a revanche dos ruminantes.
Eles sabiam o que estava acontecendo?
Um dia em que meu irmão e eu estávamos na carroça, ao chegar em casa, meu pai desatrelou o boi — tirou a canga — soltou-o para que entrasse no potreiro e disse:
— Vai Pintado, que amanhã é seu último dia de vida.
Perguntei: — O pintado vai morrer, pai?
— Amanhã.
Então, pensando que meu pai era Deus e que sabia de tudo o que iria acontecer, quis saber o porquê.
— Vamos matá-lo, ele disse simplesmente.
E meu irmão: — Pai, não mata o Pintado. Ele vai ser bonzinho amanhã e depois.
O pai riu e disse que ele não servia pra canga e por isso serviria pra mesa.
Foi aí que entendemos que todos os nossos animais tinham função. O Pintado, que era teimoso, seria sacrificado. Ele seria uma coisa de comer. Meu irmão e eu passamos bom tempo antes de dormir nos perguntando o que o Pintado estaria fazendo e se ele sabia que iria morrer. Nosso pai tinha avisado, mas ele teria entendido?
O mais terrível era justamente não saber se os animais sabiam ou não que iriam morrer, se eles sentiam ou não com antecedência. Na hora em que estavam sendo mortos, eles sabiam, eles sentiam não só a dor, mas também a angústia, porque do contrário, por que se recusavam à corda e à faca? Por que tentavam fugir? Mesmo as galinhas, quando íamos buscá-las no galinheiro — era nossa tarefa — por que fugiam? E por que cacarejavam desesperadas quando nossa mãe estava prestes a torcer-lhes o pescoço?
Coetzee, em Infância, me deu uma resposta sobre os sentimentos dos carneiros que serve pros meus bois: “Às vezes, quando está no meio dos carneiros — quando eles foram reunidos para o banho de inseticida, quando estão cercados e não podem escapar —, pensa em sussurrar-lhes, avisá-los do que os espera. Mas então percebe naqueles olhos amarelos algo que o silencia: uma resignação. Um conhecimento prévio não somente do que acontece aos carneiros nas mãos de Ros atrás do abrigo, mas do que os aguarda no final da longa e sedenta viagem de caminhão até a Cidade do Cabo. Eles sabem tudo, até o menor detalhe, e, no entanto, se submetem.”
Agora já adulta, no dia em que disse: — Pai, acho que esse aí é o melhor, eu escolhia o boi 45 pra ser morto. O mesmo que dizer: — Quero comer esse aí. E pronto, seja feita a sua vontade. Entre os três oferecidos pelo criador, escolhi ele. Meu coração acelerava quando eu dava zoom no app de fotos do telefone e clicava. Será que ele pressentia o que estava prestes a acontecer? Ele sentiria? Saberia? A princípio, ele foi sossegadamente. Mas então percebeu algo porque se recusou a continuar andando. Mas o mais estranho, a partir desse momento, foi ver os outros bois e vacas vendo tudo.
Resignados? Eles se recusavam a ir embora e nos olhavam muito fixamente, como se protestassem ou fossem solidários. Todos aqueles olhos acusativos.
Quando estive no México e subi ofegante aqueles degraus todos da pirâmide do sol sentia meu coração bater e o sentia na boca e lembrava que as vítimas dos sacrifícios ao sol eram humanas. Eram uma eu, um você, e elas dançavam ao subir e então tinham o coração arrancado enquanto ainda vivas. Elas sabiam?
Ao descrever o sacrifício de uma mulher, em A parte maldita, Bataille não deixa dúvidas: “De modo algum deixavam-na saber que iria morrer, pois sua morte devia ser para ela súbita e inesperada.” Mas logo em seguida, diz que os condenados nada ignoravam de seu destino e mesmo assim deviam passar a noite dançando. Era comum embriagá-los e oferecer-lhes alguma mulher, diz. Assim, parece que os homens sabiam, as mulheres não. Mas Bataille não é nada claro. Páginas adiante fala de uma escrava que dançava chorando, suspirando, oprimida pelas angústias diante do pensamento da morte próxima.
Nos sacrifícios que Bataille descreve, o deus sol nunca fica satisfeito. Ele conta que nas proximidades da Páscoa escolhia-se um jovem de “beleza irrepreensível” entre as vítimas (geralmente um prisioneiro de guerra capturado em batalha e oferecido pelo sacrificante, o seu captor, que tinha por ele grande respeito, já que os que seriam oferecidos eram tomados como filhos e a eles tudo era dado). Esse jovem vivia como um grande senhor um ano inteiro depois de ser escolhido e era tomado como a imagem de um deus. Era adorado, portanto. E vinte dias antes do sacrifício entregavam-lhe quatro mulheres, que ganhavam nomes de deusas e só o abandonariam nas escadas da pirâmide na hora do sacrifício. “Quando atingia o cume da pirâmide os sacerdotes lançavam-no sobre um cepo de pedra e enquanto o mantinham deitado de costas, bem segurado pelos pés, pelas mãos e pela cabeça”, o sacerdote que segurava a faca de obsediana “enterrava-a de um só golpe no peito do jovem e então arrancava o coração palpitante e oferecia-o ao sol”. O corpo do morto pertencia ao seu sacrificante e, “na maioria das vezes, as carnes consagradas pela imolação eram comidas”.
Quando li essa passagem pela primeira vez, tremi de horror. Não absorvi nada do livro de Bataille senão essa cena. No dia em que a lembrei no alto da pirâmide no México, o dia em que quase perdi meu dedo indicador para colocá-lo no ponto do tamanho de uma moeda — era o dia em que havia uma abertura, o dia em que o sol nos olharia e receberia nossos sacrifícios, atendendo nossos desejos mais íntimos — no dia em que a lembrei me deitei de costas segurando meu dedo dolorido e me imaginei ali, sem coração. Uma multidão zunia ao meu redor e eu estava vazia, vazia. Sem coração.
Depois, quando a lembrei olhando o coração inerte do boi sendo lavado, pensei que outra vez estava cheia, embora meu coração estivesse apertado e batendo sofregamente.
Fui eu que tomei o coração das mãos da Maritânia, não meu pai, fui eu! e o levei, cuidadosamente, até a carroceria da caminhonete.
Uma mulher, em seus quarenta anos, hesitante. — Então isso é um coração?
Então, naquele dia de outubro, quando viajei para a casa dos meus pais e escolhemos e vimos matar o boi 45, um boi completamente desconhecido, embora eu o tenha escolhido no piquete, pensei em como seria quando arrancassem o coração do boi. É tradição, e na minha família não poderia ser diferente, assar e comer o coração no dia da matança ou no dia seguinte. Enquanto todo o ritual acontecia, me fixei nestas duas imagens: a menina, eu já mulher, com o coração em oferta entre as mãos e, depois, o coração sendo comido pela família, a textura que eu bem lembrava, o sabor um pouco amargo, forte, mas bom, que tantas vezes experimentei na infância. O boi, então, era apenas uma coisa, apenas alimento, apenas a carne que comíamos com alegria na nossa mesa em forma de tantos pratos. Mas por que a cena tem algo de insólito? Por que esse coração sendo arrancado — embora o boi morto — sendo lavado e depois assado e comido desperta em mim uma pequena aflição? A que me remete esse coração? Talvez o pensamento em forma de pergunta que meu superego não quer deixar vir completamente à tona seja — E se fosse o coração de um homem? Enquanto a Maritânia lavava o coração do boi, a frase começou a aparecer: “Arrancavam o coração ainda palpitante e assim o elevavam ao sol”. O ainda palpitante era o que me chocava. Verifiquei, o coração do boi não estava palpitante.
Nunca se guarda um coração. E então, durante os preparativos da festa, ao meio-dia, o coração do boi 45 foi assado e comido. Me sentei em frente à minha mãe e comemos. Em algum momento, no meio da conversa, minha mãe falou, fingindo ingenuidade:
— Para o tanto de filhos que temos, temos poucos netos. Não sei por quê, nenhuma das minhas filhas quis ter filhos.
O coração começou a crescer na boca. Era difícil de engolir.
A frase dela ainda está viva.
— Filho estraga a vida.
Ela parece ser feliz com seus cinco filhos e o amor do nosso pai. Mas o medo de ver uma filha perdida, mãe solteira, amargou o tempo em que crescemos e mesmo que ela não quisesse dizer “Não tenha filhos nunca”, mas “Tenha filhos só depois de ter uma profissão”, “Só depois de se casar com o homem certo”, o impedimento dela ressoou num para sempre. Só um dos meus irmãos tem filhos. Duas meninas. Porque com o homem não há problemas, ele pode ter filhos.
A sua frase “Para o tanto de filhos que temos, temos poucos netos” amargou o coração do boi. Não foi a frase. Foi o modo como ela a disse, como se não soubesse, se não entendesse, como se isso não fosse também a questão de nossas vidas, das três filhas. O modo cândido, doce, de dizer me tirou a força de mastigar.
Acho que eu gostaria de arrancar o coração da minha mãe.
Mas continuei quieta, comendo, como se nada tivesse acontecido. Fazia o coração me dizer: Você já é adulta, Ieda, você pode fazer o que quiser, inclusive pode escolher não se comportar como uma criança, pode escolher não começar a chorar agora, na frente de todo mundo. Você já tem quarenta anos!
Então algo novo aconteceu. Terminamos de comer e minhas irmãs e eu fomos buscar o sal grosso para o preparo das costelas: a primeira camada de sal, colocá-las nos espetos gigantes que seriam presos ao chão, fazer o círculo de fogo. Foi para isso que viajei muitos quilômetros, estava esperando justamente esse momento, eu aprenderia, com minhas irmãs, a fazer essa coisa mágica, assar as costelas inteiras num círculo de fogo, a festa acontecendo ao redor, era isso que justificava a matança do boi, era a hora do prazer e da alegria. Ia começar, eu esperava isso como uma criança espera para brincar com um brinquedo novo. O chope já estava gelado, instalado, as mesas sob as árvores estavam sendo cobertas com toalhas brancas, o chão da casa lavado. Já era a festa. A festa de preparação da festa. Os cinquenta familiares chegariam em algumas horas.
Mas o sal que deveria ser branco, era temperado. O sal tinha alho. E foi ela quem comprou. Tenho uma alergia séria a alho, não posso comê-lo de maneira alguma. E ela capitalizou isso a semana inteira. Disse que foi difícil encontrar o sal sem tempero, mas ela tinha conseguido! Pagou mais caro pelo sal limpinho, mas, sim, tinha conseguido. O assunto do alho me oprimiu a semana inteira, chamou a atenção sobre mim o tempo todo, me recolocando naquele lugar de menina frágil e doente que habitei na infância. E ela, a minha salvadora.
De tudo, só compreendi uma coisa: ela mentiu pra mim; ela quer me fazer mal; ela me odeia; ela acha que invento minhas doenças; ela me coloca num lugar impossível, eu não a suporto. A cena ridícula enfim começou. Uma menina velha chorando. Chorava por mim, por ela, pelas nossas misérias, pelo coração do boi que se revoltava no meu estômago, pela dor de barriga que viria durante a festa. Ela tinha temperado o coração com alho. Minha própria mãe. Não o cozinheiro do restaurante em que sou anônima, não o garçom mentindo pra mim, a minha mãe, o coração, o alho.
Uma mulher de quarenta anos chorando por toda a extensão da infância, no meio de tios, primos, pais, irmãos. Um choro sem contenção. Alto, sonoro, desesperado.
Não consegui olhar pra minha mãe. Ela também me evitou até o início da festa, quando foi me buscar na fogueira, perguntando se eu gostaria de ir com ela pra casa, tomar um banho. Mas eu ainda não podia ficar perto dela. Só sua presença me oprimia. Não conseguiria falar, nem tocá-la para uma reconciliação. Desprezei o convite e depois senti uma enorme vergonha. Ela era minha mãe! Eu não podia tê-la humilhado assim na frente das pessoas de sua convivência, pessoas que vejo de ano em ano, mas de cujo prestígio ela, sua vida, depende. E a do meu pai.
À noite, durante a festa, conversamos e nos abraçamos como se nada tivesse acontecido, mas minha dor era imensa. Durante toda a festa, era como se eu não estivesse ali, estava num estado de entorpecimento, o corpo dolorido, e nada daquilo me dizia respeito. Só sabia que algo grave havia acontecido. Algo que não poderia ser reparado. Toda a tensão, toda a violência, todo o sangue derramado do boi se misturava à minha mãe e eu e nós permaneceríamos divididas ao meio.
E tudo tem a ver com o coração. Coração de gente, coração de bicho.
O que, afinal, causa inquietação na imagem do boi no abate?
Numa espécie de lapso, não dura mais que um segundo, projeto a imagem do meu próprio corpo no lugar do corpo do boi. Estremeço ao me ver ali, pendurada. E logo sem pele, sem entranhas. Mas lembro da inconsciência e o tremor passa, o horror não se instala. Depois de morta, não posso ver o meu corpo como quando ainda viva, com dor. A imagem, então, perde força.
Penso no corpo amado ali, pendurado e branco, carne exposta, e então o horror se instala. Pouco importa se vejo pelos olhos de um dos bois ainda vivo ao nosso redor ou se pelos meus olhos de todo dia. A analogia com outro corpo — um corpo amado — é impossível de sustentar.
Penso no corpo de minha mãe, penso no que tirariam de dentro dela se a esvaziassem. Ela foi esvaziada cinco vezes. Deitada numa cama, mas nua e exposta. Embora viva e embora o coração palpitante — os cinco corações palpitantes que saíram de dentro dela — seja vida, a ideia de um esvaziamento, de um corte que produz sangue e dor é perturbadora. A imagem do meu nascimento é perturbadora. E me faz amá-la. Minha própria mãe exposta assim para servir a outra vida, a minha, é algo muito perturbador. Tive essa coragem? E: tenho esse direito?
“Se uma escritora é apenas um ser humano com um coração, o que existe de especial no seu caso?”
“O coração é sítio de uma faculdade, a simpatia, que, às vezes, nos permite partilhar o ser do outro. A simpatia tem tudo a ver com o sujeito e pouco com o objeto, ‘o outro’, como percebemos de imediato quando pensamos no objeto não como um morcego, mas como outro ser humano.”
Quando passei a pensar nos animais e em mim mesma da perspectiva do animal, fui buscar Elizabeth Costello, do Coetzee. Esperava que ela me ajudasse justamente com o coração. Quando a li há mais de dez anos, quinze talvez, essa personagem me arrebatou. Lembrava de poucas cenas, almoços, jantares, palestras, ela na presença do filho, sempre constrangida, nunca lembrava as palavras. Talvez coisas concretas, um beliche, ela velha, à espera. Foi à procura dessa cena que busquei o livro em vários sebos no último ano.
Relendo o livro, reencontro a força impressionante no diálogo com Kafka, na primeira palestra. Minha imaginação simpatizante não é suficientemente simpatizante com a causa dos animais no matadouro. Só consigo pensá-los um a um. Quando ela, Elizabeth, se coloca no mesmo lugar — não no lugar, mas no mesmo lugar — de Pedro Rubro, quando ela se coloca no mesmo lugar que o camponês diante da lei, então minha imaginação simpatizante é tocada. E é esse corpo-coisa-pensante-e-que-dói que redimensiona o boi e a velha. O boi enquanto mulher, a mulher enquanto macaco, o macaco enquanto homem.
No Grande Sertão: veredas aparece um macaco enquanto homem, um homem enquanto macaco. E o que acontece lá é bem mais terrível do que minha imaginação poderia conceber, por mais animais que tenha visto morrer, feito morrer, e comido na minha vida inteira.
Mais não se podia. Céu alto e o adiado da lua. Com outros nossos padecimentos, os homens tramavam zuretados de fome — caça não achávamos — até que tombaram à bala um macaco vultoso, destrincharam, quartearam e estavam comendo. Provei. Diadorim não chegou a provar. Por quanto — juro ao senhor — enquanto estavam ainda mais assando, e manducando, se soube, o corpudo não era bugiu, não, não achavam o rabo. Era homem humano, morador, um chamado José dos Alves! Mãe dele veio de aviso, chorando e explicando, era criança de Deus, que nu por falta de roupa… O filho também escapulia assim pelos matos, por da cabeça prejudicado. Foi assombro. A mulher, fincada de joelhos, invocava. Algum disse: “— Agora que está bem falecido, se come o que alma não é, modo de não morrermos todos…” Não se achou graça. Não, mais não comeram, não puderam.
Enquanto os outros bois e vacas nos encaravam quando matávamos e quarteávamos o boi 45, eu também imaginava essa cena de filiação. Mas aí a palavra alma sempre vinha em meu socorro.
E por alma eu traduzia consciência. A semelhança dos corpos é que é incômoda. Nenhum de nós se solidariza com uma galinha. O boi tem algo nos olhos que nos lembra de nós mesmos, e o macaco, inteiro, é muito ainda próximo do que fomos. Mas é esta ideia de equivalência — homem, animal — que insultava a memória dos judeus na primeira palestra de Elizabeth Costello. Embora ela insista que os carniceiros treinaram a morte nos abatedouros de animais, tomar por animais os homens é um insulto contra a memória dos mortos. É banalizar a morte do “homem humano”.
“Não, animais não são gente”. Nossa imaginação simpatizante não pode ir até aí. Os animais são os animais. Os humanos são os humanos. Só se unem na alegoria. Quando a imagem justaposta vem nua, crua, cruel, não é suportável.
Então, o coração. Ajuda ou atrapalha? É essa a grande questão que se coloca Elizabeth Costello diante dos animais no matadouro. O que o coração pode fazer?
Dito de outro modo: O que a poesia pode fazer quando a filosofia falha?
Ou ainda: não é a razão que nos diferencia dos animais de forma absoluta. É o coração.
“Se uma escritora é apenas um ser humano com um coração, o que existe de especial no meu caso?”
*Ieda Magri é doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora adjunta do departamento de Literatura Brasileira e Teoria da Literatura da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). É autora dos romances Ninguém (7Letras, 2016), Olhos de bicho (Rocco, 2013), Tinha uma coisa aqui (7Letras, 2007) e do ensaio O nervo exposto: João Antônio, experiência e literatura (Lume, 2013). Sua pesquisa atual “Literatura brasileira e latino-americana: questões de inserção no cenário contemporâneo” é apoiada pela Faperj no programa Jovem Cientista do Nosso Estado (JCNE).
*Keli Magri é jornalista pós-graduada em produção e revisão de texto e tem curso técnico em fotografia. Atualmente é analista de comunicação na agência MB Comunicação, em Chapecó/SC. kelimagri@gmail.com
[1] O texto, inédito em publicação, foi apresentado no projeto Em obras — ciclo de palestras performáticas, de Paloma Vidal, em maio de 2019 no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do SESC-SP. https://cicloemobras.wordpress.com/blog/