Diante de um quadro de tal natureza, este ensaio procura sintonizar o dial de sua reflexão na freqüência das vozes que se levantaram do silêncio imposto pela miséria e pela violência nesses espaços marginalizados. Hoje, essas vozes se fazem ouvir através das mais variadas formas de manifestações artísticas e ecoam para além das fronteiras de seu lugar de origem:
São as vozes apolíneas do rap que, através do canto – falado, se deixam apanhar em sua forma de verso. Ao mesmo tempo, escapam do verso e se oferecem à crônica desse desespero;
São as vozes dionisíacas da festa irreverente, notadamente os bailes funk onde os artistas se permitem cantar e dançar os signos proibidos. Soltam a língua e vociferam sobre a emergência do desejo através de novas construções imaginárias dos seus corpos;
Atraindo significações inusitadas para o binômio sexo e violência, as manifestações do desejo, no universo do funk e do hip hop, instauraram uma ética própria engendrada no fundo desses acontecimentos;
É importante sublinhar as vozes que se equilibram nas linhas e entrelinhas das produções literárias e poéticas, chamadas marginais, que atualmente ocupam espaços editoriais e da mídia, jamais atingidos pela literatura de cordel, com seus séculos de criação, permanência e desenvolvimento formal;
As vozes que ressoam das explosões de cores e traços dos grafites espalhados pelos muros das ruas e avenidas;
As vozes que gritam ainda mais alto soltam impropérios, fazem ameaças e expõem conflitos através das pichações das paredes das edificações principais das cidades;
As vozes que ressoam dos corpos que dançam a língua das ruas e ecoam a partir das coreografias dos atletas de um cotidiano exaustivo e opressor.
Na mixagem dessas vozes que ousam “desafiar os limites entre classes sociais e fronteiras culturais”, no dizer de Heloisa Buarque de Hollanda[2], é interessante observar o tom dessa autonomia criativa e o timbre criador das subjetividades engendradas nesse processo.
ECOS DA PERIFERIA NOS CENTROS ACADÊMICOS
A partir dos anos 80, começaram a surgir novas configurações no cenário cultural brasileiro que não puderam ser interpretadas, imediatamente, em seu status nascente. As novas cenas que se desenrolavam e os novos atores que as representavam causaram uma estranheza que aos poucos se transformou em múltiplas formas de reação.
Era difícil avaliar as proporções desses fenômenos artísticos que nasciam nas periferias e favelas das grandes cidades e conseguiam atrair multidões de jovens: o hip hop, para o seu movimento, e o funk, para os seus bailes. A estranheza, aliada à desconfiança era, uma vez mais, reanimada diante dessas manifestações artístico-culturais que surgiam com uma força impactante do interior das comunidades onde estão impressas as marcas do que se reconhece como popular. As questões sobre esse tema foram se ampliando de acordo com o deslocamento desses jovens na ocupação da cidade, que seguiam conquistando espaços cada vez mais centrais. Essas manifestações chamadas de estéticas da periferia tiraram da invisibilidade milhares de jovens que só eram contados nas estatísticas de criminalidade.
Aos poucos, foram surgindo os primeiros pesquisadores interessados em seguir a novidade. Foi preciso que se criassem novas formas de abordagem e novas categorias metodológicas mais apropriadas para a análise dessas manifestações que desafiavam as antigas matrizes de compreensão dos fenômenos de massa. A partir das pesquisas iniciais, aparece em primeiro plano uma nova configuração do perfil dessa juventude. Esse novo perfil apontava para um panorama cultural muito mais complexo a ser investigado, do que uma simples mudança figurativa para se contemplar. Era preciso, portanto, não apenas olhar, mas, sobretudo, ouvir. A aproximação do foco na boca desse perfil nos despertou de um sono profundo. A periferia começava a falar de seu próprio lugar, em seu próprio nome, realizando o transmudamento da clássica resistência em ação.
Essa transmudação no mundo em volta, de fora para dentro e de dentro para fora, é o que faz eclodir o acontecimento, como é teorizado por Allain Badiou[3]. A juventude das periferias brasileiras deu início a um processo de mudança sem precedentes, operando um corte profundo nos tradicionais sistemas de políticas culturais, em seu estatuto transgressor mais radical.
É possível imaginar que, sob o impacto do primeiro contato com a experiência do funk ou do hip hop, alguém se pergunte: “Onde estive todo esse tempo em que esse vulcão de som e fúria, ritmo e poesia preparavam tal irrupção?”. Hermano Vianna, um pioneiro em estudar essas “tribos urbanas” no Brasil, através do seu livro, O mundo funk carioca, se tornou uma referência obrigatória para o conhecimento e a compreensão não só do funk; hoje ele é um dos responsáveis pelo mapeamento da música popular periférica em todo o território brasileiro. Numa entrevista, Vianna[4] fala de sua perplexidade frente ao desconhecimento da mídia e de alguns setores da sociedade brasileira em relação ao fenômeno do funkcarioca, nos primeiros tempos. No seu texto publicado em vários jornais, por ocasião do lançamento de um programa de televisão, “Central da Periferia”, Vianna[5] expõe a radicalidade com que as periferias em todo o Brasil estão tomando as rédeas de sua história. A prova maior dessa transformação pode ser observada através dessas novas políticas culturais que as periferias estão desenvolvendo, numa velocidade impressionante, sem intermediações formatadas nos modelos de representação.
Atualmente, esses artistas ditam seus padrões estéticos e já podem contar com um centro próprio, criador de estratégias de mercado. Isto não quer dizer que não haja intelectuais, pesquisadores, agentes culturais e artistas de outros setores da sociedade envolvidos com os projetos das periferias. Porém, o que há de novidade nesse momento é que o lugar que a academia, alguns setores da classe artística e as ONGs ocupam em relação às políticas culturais da periferia, é o lugar das parcerias. Isso porque no fechar e abrir dos séculos XX e XXI, respectivamente, se tornou impossível ignorar a importância de tal acontecimento: esse pequeno giro, a partir da posição que as periferias ocupavam na cidade, operou uma mudança dos lugares de poder e expressão, que tem nos processos de parcerias o signo desse deslocamento.
Esse acontecimento, que chamo o levante das vozes, é a expressão de um novo protagonismo que está se formando entre as lideranças das ações de políticas sócio-culturais. Este novo protagonismo não é apenas insurgente, mas, acima de tudo, criador de redes de produção com autonomia, deixando para trás os papéis de coadjuvantes, a partir dos quais eram requisitados e/ou se ofereciam apenas como objetos de estudo. É o que Sílvia Ramos[6] definiu como novos mediadores:
As marcas específicas dos novos mediadores são: a liderança dos grupos pelos próprios jovens oriundos das favelas e a produção de um discurso sobre a favela na primeira pessoa; a capacidade de expressar signos com os quais os jovens das favelas se identificam e ao mesmo tempo criar modelos que recusem as imagens tradicionais dos jovens das favelas; a criação de novas metáforas por força das histórias de vida; a capacidade de transitar na grande mídia e na comunidade, entre diferentes classes socais, facções e governos, isto é, transitar entre o local e o universal.
Na constituição desses novos mediadores, isto é, esses novos atores políticos na cena das políticas de cultura, o lugar do intelectual também sofreu os seus efeitos e se encontra vulnerável aos deslocamentos e à recomposição da geografia cultural em conseqüência dessas mudanças. Assim, o papel do intelectual, tanto na academia, quanto na sociedade, exige ser repensado. Heloisa Buarque de Hollanda[7] nos adverte para o que há de fundamental na determinação dessas mudanças:
Seguramente não é mais possível pensar as manifestações estéticas e culturais hoje sem articulá-las às questões básicas do desenvolvimento econômico e social. Por toda parte, emergem novos territórios culturais e disseminam-se novas dinâmicas de criação e intervenção que rapidamente se articulam como respostas e interpelações aos efeitos contraditórios dos processos neoliberais de globalização e transnacionalização da cultura e da informação.
Nesse processo, o intelectual, em parceria com os artistas, tem bastante campo para cultivar sementes híbridas que prometem frutos culturais e artísticos promissores, ainda que não totalmente dimensionados nesse momento. Pensar a universidade hoje, levando em consideração essas mudanças, torna-se urgente. O presente não nos ilude como nos advertem MV Bill e Celso Athayde[8], em dois trabalhos que comprovam a emergência desse novo protagonismo. Ao escreverem o livro Falcão, sobre os meninos no tráfico, os dois autores fazem uma verdadeira etnografia desta situação. O mais interessante é podermos observar em cada linha escrita a dicção e o tom de dois observadores que analisam a situação de dentro, a partir de seu próprio pertencimento. Numa outra ocasião, escreveram, em parceria com o antropólogo Luiz Eduardo Soares, o livro Cabeça de porco, que trata também do mesmo tema e que nos serve também de exemplo pelo cruzamento entre a voz do intelectual e as vozes dos novos protagonistas. Vejamos como MV Bill e Athayde abrem o seu livro Falcão aos seus leitores:
Esses jovens têm sua própria linguagem, têm suas próprias leis. Se realmente quer entendê-los, terá que fazer um esforço, tanto para compreender suas expressões gramaticais, quanto suas atitudes, e, para isso, cada um de nós temos que se despir de todo ódio que nutrimos e de todo medo que desenvolvemos a partir dele. Temos que renunciar ao que nos foi ensinado sobre o Bem e sobre o Mal. Este provavelmente é o bilhete mais seguro para viajar na boléia desta compreensão, mais próxima de uma realidade que muitas vezes até a própria favela desconhece.
A voz da rapper carioca Nega Gizza, no seu rap “Filme de terror”[9], mostra a mesma preocupação ao dizer:
O Brasil nos condena a viver como animal irracional /
vamos fingir que vai passar / vamos fingir que é natural /
o tempo do conformismo passou
Fingir que vai passar, fingir que é natural são versos que demonstram claramente que a artista sabe o que está acontecendo à sua volta e consigo mesma. A impotência para resolver os problemas com a urgência que eles requerem se traduz em irônico fingimento da ignorância. Da academia, a voz de Beatriz Resende[10] também se alia a essa problemática:
Na literatura, o sentido de urgência, de presentificação, se evidencia por atitudes, como a decisão de intervenção imediata de novos atores presentes no universo da produção literária, escritores moradores da periferia ou os segregados da sociedade, como os presos, que eliminaram mediadores na construção de narrativas, com novas subjetividades fazendo-se definitivamente donas de suas próprias vozes.
Nesse processo está em jogo uma mudança dos valores simbólicos a qual nos obriga a redimensionar as questões vinculadas ao binômio ética / estética, no contexto das dinâmicas políticas e econômicas em âmbito mundial. Na trama dos discursos transgressores, no Brasil, essas vozes que se fazem ouvir como fios condutores desse processo nos dão a dimensão exata das diferenças culturais que se estabelecem a partir de desigualdades sociais e que repercutem diretamente na desigualdade dos direitos. A desigualdade dos direitos civis, jurídicos e até de sobrevivência são os espectros das desigualdades no Brasil camufladas em formações heterogêneas. Do centro da heterogeneidade da nação brasileira, a importância do momento atual se deve exatamente pelas vozes que vêm compor a narrativa do re-mapeamento da geografia humana do país. Beatriz Sarlo[11] diz, a propósito:
Uma cultura deve estar em condições de “nomear as diferenças que a integram”. Do contrário, a liberdade cultural torna-se um exercício destinado unicamente a realizar-se nos espaços das elites estéticas ou intelectuais.
Uma rede de televisão poderosa como a Globo exibe um programa cujo formato parece reconhecer a autonomia dos empreendimentos das periferias. Vianna enfatiza que este programa apenas se rendeu ao fato de que a periferia está em toda parte e agora ela é que engloba o centro e não mais o contrário, como sempre tinha sido. O programa não se constituiu para dar oportunidades a esses artistas, mas, diz Vianna[12]:
Para colocar todas essas questões em discussão, trazendo essa realidade periférica – e suas festas, e seus problemas – para a TV (mesmo tendo a humildade de saber que a cultura periférica não precisa mais da TV para sobreviver).
Diante desses novos fatos, aquela indiferença, aquela estranheza, tanto da mídia, quanto de alguns setores da sociedade, paulatinamente, foram se transformando em reações diversas e adversas. As adesões ao hip hop e ao funk por um número bastante significativo dos filhos das classes favorecidas, representavam um perigo e um alerta para os seus pais. Assim, as primeiras reações à indiferença ou à estranheza, deram lugar a uma antipatia que, não raro, se transmutou em processos de rejeição sistemáticos que culminaram, muitas vezes, na interferência judicial e em concomitantes proibições dos bailes funk. Em relação ao hip hop, não há um rapper ou DJ que não tenha uma história para contar de perseguição policial e até de prisão. As semelhanças com episódios da história do samba não são meras coincidências.
“PERIFERIA É PERIFERIA EM QUALQUER LUGAR”[13]
“Estou em casa”, disse Chuck D., um dos pioneiros do hip hop americano, assim que chegou ao conjunto habitacional Cidade de Deus, levado pelo rapper carioca MV Bill, morador desta comunidade, na zona oeste do Rio de Janeiro. Chuck D. pertence ao Public Enemy, um dos mais famosos grupos de hip hopdo mundo e esta cena aconteceu quando o grupo veio ao Brasil, em 2003, para participar da Semana Hutus de Hip Hop, promovida pelo movimento hip hop carioca.
Essa afirmação, “estou em casa”, nocauteou definitivamente toda e qualquer polêmica, que muitos ainda se esforçam para levantar, sobre a legitimidade da arte popular pelo viés das identidades nacionalistas. O movimento hip hop no Brasil já foi inúmeras vezes acusado de ser uma manifestação artística dos americanos, imitada pelos brasileiros. A fragilidade dessas acusações se torna mais evidente quando elas são apresentadas como apoio à argumentação de que o hip hop não é arte, o rap não é música nem poesia e o funk é música de bandido.
Essas reações negativas e discriminatórias ao hip hop e aos bailes funk são comuns e, de certa forma, já naturalizadas, pois estão referidas aos produtos criados pela cultura popular. Em cada momento, quando surge uma nova manifestação de arte reconhecida como oriunda do universo popular, uma nova tensão se estabelece e são trazidas à ba(i)la as mesmas dúvidas de sempre: se é arte ou não, ou se se constitui como legítima manifestação de alguma identidade local, regional ou nacional. Néstor Garcia Canclini[14] nos oferece uma definição bastante precisa dessa problemática. Ele diz:
O popular é nessa história o excluído: aqueles que não têm patrimônio ou não conseguem que ele seja reconhecido e conservado; os artesãos que não chegam a ser artistas, a individualizar-se, nem a participar do mercado de bens simbólicos “legítimos”; os espectadores dos meios massivos que ficam fora das universidades e dos museus, “incapazes” de ler e olhar a alta cultura porque desconhecem a história dos saberes e estilos.
A essa forma de exclusão de que nos fala Canclini, se sobrepõe a associação que se faz entre o funk, por exemplo, e os processos de violência ligados ao tráfico de drogas. Micael Herschann[15], atento a esta questão, comenta:
Se, por um lado, a imagem do funkeiro aparece nos meios de comunicação de massa e no imaginário social constantemente estigmatizada / demonizada e associada inclusive ao narcotráfico, por outro, atesta-se um grande interesse da indústria cultural pelo conjunto de expressões culturais manifestadas por esses jovens.
Ecio de Salles [16] discute, nas suas pesquisas sobre o rap, essa problemática específica sobre o estatuto de arte que deve ou não ser conferido ao hip hop e se o rap pode ou não ser considerado um fato literário. Já existem vários estudos sobre esta questão em todos os países onde o hip hop se estabeleceu, e apontarei apenas alguns entre os mais interessantes. Dentro desta perspectiva, Salles[17]afirma sobre os rappers brasileiros que:
Eles estabelecem um vínculo entre arte, cultura e o cotidiano de suas comunidades, o qual implica uma recuperação de aspectos do fazer artístico há muito superados na história da cultura ocidental, realizando uma arte profundamente arraigada na cotidianidade, nos problemas e nas belezas que fazem parte da vida dos setores populares.
Chistian Béthune, pesquisador francês, conhecido pelos seus estudos sobre o jazz (enquanto categoria estética), faz uma reflexão substancial sobre o fenômeno do rap na França[18]. Lá, como aqui, a arte popular também sofre discriminações de toda espécie. Assim, dentro desta ocorrência, o autor aponta erros fundamentais nas análises apressadas deste fenômeno, sublinhando o esquecimento dos críticos em relação às particularidades locais, através de comentários de cunho esquemático e preconceituoso. Sobre isso, diz Béthune[19]:
n’ont pas hésité à dénoncer la culture hip – hop comme un effet supplémentaire de l’américanisation généralisée des nos vieilles sociétés et à considérer le rap français comme un simple succédané du rap américain.
A análise deste autor sobre as particularidades do hip hop na França, principalmente quando ele compara a produção do jazz com a do rap, nos diz que é impensável uma evolução estilística do jazz em seu país, enquanto o rap se afirma de uma maneira muito mais autônoma. Vê-se que essa autenticidade não é cobrada do jazz e assim somos levados a concluir que a mão pesada da crítica em relação ao rap é um fenômeno global e não apenas brasileiro. Ou seja, “periferia é periferia em todo lugar” não é um verso caído dos céus na boca do rapeador Gog.
No Brasil, essas manifestações artístico-culturais quando pensadas sob os aspectos do universal versus local ganham um colorido especial pela própria constituição da sociedade brasileira. Originadas de um mosaico de etnias, e espalhadas por um país de proporções continentais, as produções culturais tupiniquins apresentam uma diversificação que se coaduna com as diferenças profundas entre as várias regiões e com diferenças marcantes até mesmo dentro de cada região do Brasil. Contraditoriamente, isto não impede o desenvolvimento de processos de intolerância em relação às diferenças, que alcançaram patamares de violência inaceitáveis. No entanto, as contradições fazem parte da própria caracterização híbrida, também oriunda dos processos migratórios, entre outros, assim como é formulado por Néstor Garcia Canclini[20]:
Sem dúvida, a expansão urbana é uma das causas que intensificaram a hibridização cultural. (…) Passamos de sociedades dispersas em milhares de comunidades rurais com culturas tradicionais, locais e homogêneas, em algumas regiões com fortes raízes indígenas, com pouca comunicação com o resto de cada nação, a uma trama majoritariamente urbana, em que se dispõe de uma oferta simbólica heterogênea, renovada por uma constante interação do local com redes nacionais e transnacionais de comunicação.
O que está em jogo aqui é essa vocação antropofágica da cultura brasileira, já tão cantada e decantada pela arte modernista. Por isso, entre as causas que fazem com que o movimento hip hop exista no Brasil, aquelas que se relacionam com a identidade negra ultrapassam, de longe, questões nacionalistas, por exemplo. Então, é absolutamente inoperante a análise que se quer sustentar baseada em pensamentos ideológicos de fundo patriótico. Neste ponto, é importante dar a palavra a Rodrigo Pimenta[21], carioca, filho de nordestinos, adepto do hip hop:
Não só no Brasil, mas todos os negros do mundo se identificam com o negro americano. Quando a gente busca uma identidade negra, a gente se baseia no negro americano, porque a gente vê, mesmo nos filmes, o negro se juntando e lutando contra um estado racista e enfrentando a morte. (…) eles creram, eles lutaram, são de um país racista, mas o negro tá lá. Conquistou o seu lugar. A lição de bom que a gente tem que tirar deles é ter a identidade negra assim, em termos mundiais e, ao mesmo tempo, a identidade negra brasileira.
Sobre a improcedência das críticas ao hip hop que tentam invalidá-lo por ser um produto de expressão norte-americana, independente do país onde está sendo recriado, é importante voltar a Béthune[22], fazendo-o dialogar com Pimenta:
Parti d’un modèle américain parciellement assimilé, le rap hexagonal a su se forger une personnalité littéraire et musicale en prise directe avec les préoccupations poétiques d’une jeunesse en quête d’une forme adaptée à ses aspirations créatices. Mettant en scène un vécu propre, utilisant avec discernement tant les influences africaines et maghrébines que certains modes d’expression populaire issus du terroir, dans sa diversité le rap français a su prendre ses distances avec l’Oncle d’Amérique sans pour autant renier sa dette.
Para acentuar o diálogo, voltemos a Pimenta: “Aqui a gente costuma brincar que o rap é embolada do americano. Então, a gente sempre costuma fazer uma coisa, mas botando a nossa cara”. E mais, no momento em que as versões locais do rap desmentem a acusação de que o rap, em qualquer país onde se desenvolveu, é nada mais que uma cópia do rap americano, as argumentações se apropriam de outras ideologias classistas e hierárquicas e volta-se para o ponto inicial: as mídias e as classes dominantes de qualquer país só enxergam a arte popular de forma paternalista ou excludente.
Portanto, a importância maior deste momento se deve às novas configurações que as estéticas da periferia imprimem no panorama da geografia cultural das cidades. Vianna oferece uma grande janela[23]para olharmos para esse panorama. Ele diz:
O pano de fundo para essa grande transformação das periferias não é apenas brasileiro, mas reflete uma tendência global. A população urbana do mundo hoje é maior que toda população do planeta em 1960. O número de habitantes das grandes cidades cresceu vertiginosamente num período em que a economia da maioria desses centros urbanos estava (e continua a estar) estagnada, sem gerar empregos. Mesmo assim a migração para as cidades não parou, e hoje – pela primeira vez na história da humanidade – há mais gente vivendo em cidades do que no campo.
Assim, a arte pode ser vista como um passaporte entre as fronteiras mais intransponíveis e uma forma de aliar os povos de diferentes nacionalidades, ou diferentes regiões de um mesmo país. Sobre isto, ouçamos mais uma voz na mesa virtual deste ensaio, Darco[24], um importante grafiteiro franco-alemão, entrevistado por Patrícia Osganian. Ele diz:
Pour moi, le hip hop a toujours été une culture plus ouverte que toutes les autres, ne serait-ce que parce qu’il abolit les préjugés traditionnels de l’art. Quand tu regardes un graffiti dans la rue, même s’il y a la signature, tu ne sais ni qui l’a fait, ni qui le regarde. Cela touche tous types des gens. Et il y a aussi um certain anonymat qui n’a rien à voir avec celui de séries imposées par les pubs et la culture de masse. On déconstruit les clichês. On transgresse les règles. On abolit les frontières. Il y a plus de liberté.
Pensar no quinto elemento do hip hop, o do conhecimento, leva necessariamente à questão das políticas culturais. Existem incontáveis veredas que podem nos levar ao centro dessa questão, mas o próprio centro da questão se constitui pelas suas confluências. B. de Hollanda[25] põe em relevo essas confluências e sublinha a importância de se promover:
a discussão e o mapeamento dos movimentos civis e culturais emergentes e novas perspectivas críticas para a compreensão dos fenômenos culturais surgidos nas grandes periferias urbanas e seu alcance de inclusão e desenvolvimento social.
Assim, o procedimento da análise semiológica desses fenômenos multiculturais nascidos das periferias e com grande vínculo com a violência revelam a complexidade das letras do rap e da festa do funk através de um olhar deslocado que acompanha o deslizamento do lugar da criação. Canta o rapper BNegão:
Humanidade mude, que tal mudar um pouco nosso próprio ponto de vista? / paciência sem subserviência é a combinação mais poderosa desse mundo.
O texto de B. de Hollanda cruza os versos do rapeador BNegão no centro desse debate que se refere aos processos de criação. Os parâmetros éticos e estéticos que circunscrevem esse tema margeiam outros solos correlatos e mostra essa urgência em re-pensar o lugar do intelectual na nova diagramação espacial da contemporaneidade. Não mais a era dos grandes especialistas, nem das criações espetaculares. Não mais arautos, nem porta-vozes. Que fatores se impõem para o entendimento dessa mudança? B. de Hollanda[26] entrega uma chave imprescindível:
Nesse quadro, a evidência sinaliza a ocorrência de uma significativa alteração na função social da arte e a entrada definitiva da produção cultural no mercado e na economia, tornando-se elemento-chave nos processos de afirmação da cidadania, de geração de emprego e inclusão social.
Isso faz lembrar o artigo de Frederic Jameson (2003) “O espaço, a fronteira final” no qual ele compara o tempo a um verbo na ativação do amadurecimento que traz à tona a transformação. Acrescento que para se dar essa transformação é preciso agir. Como seriam então dados os próximos passos? Beatriz Sarlo (2001: 220-221) diz que não há nenhuma saída fácil, mas arrisca refletir “no para salir do atolladero (Horacio González me aconseja no salir de los conflictos por el camino de la reforma) sino para seguir pensando dentro de él“. Imagino que o ato de pensar com os pés presos no atoleiro impede uma visão de longo alcance. Assim, o que precisa ser pensado é a própria condição do atoleiro, que se evidencia como impasse. BNegão fala assim desse atoleiro:
Enxugando gelo, sua realidade segura por um fiapo de cabelo / apego pelo tempo, melhor não tê-lo; não quero, nem há como contê-lo.
A paciência e a espera contradizem a urgência do momento. Por isso, BNegão grita: “Lembre-se: conselho depois do erro é como remédio depois do enterro”. Se o tempo é paradigma do moderno e o espaço é a condição do pós-moderno, as reflexões de B. de Hollanda e os versos de BNegão advertem para a urgência de ações que façam frente aos abusos de uma globalização que conduz o tempo e o espaço às prateleiras dos mercados. Por sua vez, as leis do mercado se deslocam numa velocidade incompatível com o tempo dos processos de significação e de re-significação dos quais emergem as criações artísticas e as produções culturais. Silêncio. O momento é de escutar as vozes.
*Numa Ciro é Psicanalista e doutoranda em Ciência da Literatura na UFRJ.
[1] MV Bill. CD, Declaração de guerra.
[2] HOLLANDA, Heloisa Buarque. “Apresentação”. In: _____________ (org.) Cultura e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004 p. 8.
[3] BADIOU, Allain. O ser e o evento. Tradução, Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., Editora UFRJ, 1996.
[4] VIANNA, Hermano. A MPB em discussão – entrevistas. Santuza Cambraia Naves, Frederico Oliveira Coelho, Tatiana Bacal (orgs). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, 275 p.
[5] VIANNA, Hermano. “Central da Periferia”. In: Folha de S. Paulo, 8 de abril de 2006, p. A 6.
[6]RAMOS, Sílvia. “Brazilian responses to violence and new forms of mediation: the case of the Grupo Cultural AfroReggae and the experience of the project ‘Youth and the Police’ “. In: Ciência e Saúde Coletiva, June 2006, vol.11, no.2, p.419-428. ISSN 1413-8123.
[7] HOLLANDA, Heloisa Buarque. “Apresentação”. In: _____________ (org.) Cultura e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004 p. 7.
[8] ATHAYDE, Celso & BILL, MV. Falcão – Meninos do tráfico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. P.10
[9] NEGA GIZZA, CD: Na humildade.
[10] RESENDE, Beatriz. “A literatura brasileira na era da multiplicidade”. In HOLLANDA, Heloisa Buarque (org).Cultura e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Aeroplano 2004: p. 161.
[11] SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna – Intelectuais, arte e videocultura na Argentina. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004. 2004: 181.
[12] VIANNA: 2006. Idem.
[13] GOG, CD Mensagem Positiva.
[14] CANCLINI, 2003: 205. Idem.
[15] HERSCHMANN, Micael. “Na trilha do Brasil contemporâneo”. In Abalando os anos 90 – Funk e Hip hop . Globalização, violência e estilo cultural. Rio de janeiro: Editora Rocco, 1997: 66.
[16] SALLES, Ecio de. “A narrativa insurgente do hip hop“. In Literatura das margens. Revista de literatura brasileira contemporânea. Brasília: 2004. p. 92.
[17] SALLES, Ecio de. “A narrativa insurgente do hip hop“. In Literatura das margens. Revista de literatura brasileira contemporânea. Brasília: 2004. p. 92.
[18] Le rap: une esthétique hors la loi (Béthune: 1999).
[19] BÉTHUNE, Christian. Le Rap: Une esthétique hors la loi. Paris: Éditions Autrement – Collection Mutations n.º 189, 1999: 80.
[20] CANCLINI, Nestor. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003: 285. – (Ensaios Latino Americanos, 1)
[21] PIMENTA, Rodrigo, numa entrevista a Numa Ciro, realizada no dia 3 de novembro de 2003, na Semana Hutus de hip hop. In CIRO, Numa. Rap: A crônica poética de um genocídio. Rio de Janeiro. Disponível em:http://www.overmundo.com.br/registro/confirma_registro.php?c=790&s=e5cb7c411f1d9a67f68deff4a954cfbc.
[22] BÉTHUNE, Chistian. Le Rap: Une esthétique hors la loi. Paris: Éditions Autrement, 1999: 179.
[23] Programa Central da periferia. Rede Globo. Último sábado de cada mês. 2006.
[24] OSGANIAN, Patrícia. “Darco, Mode 2: le graff sur le fil du rasoir”, in Dossier: hip hop. Les pratiques, le marché, la politique. Paris: Mouvements, n º 11, p. 8, 2000.
[25] HOLLANDA, Heloisa Buarque. “Apresentação”. In: _______ (org.) Cultura e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004 p. 8.
[26] HOLLANDA, Heloisa Buarque. “Apresentação”. In: _______ (org.) Cultura e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004 p. 7.