Ano XV 030201
1º semestre de 2020
especial
Tempo de leitura estimado: 11 minutos

A CIDADE SOB ATAQUE OU COMO SOBREVIVER ENTRE RUÍNAS

E de repente aqueles homens podiam ser montão, montoeira, aos milhares mis e centos milhentos, vinham se desentocando e formando, do brenhal, enchiam os caminhos todos, tomavam conta das cidades. E pegavam as mulheres, e puxavam para as ruas, com pouco nem se tinha mais ruas, nem roupinhas de meninos, nem casas. […] Era preciso de mandar tocar depressa os sinos das igrejas, urgência implorando de Deus o socorro. E adiantava? Onde é que os moradores iam achar grotas e fundões para se esconderem – Deus me diga?

João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas

Estes eram homens e mulheres, menores e morenos, de olhos esquivos e inquietos, e que, por serem fugitivos e desesperados, tinham em nome de que viver e morrer. Eles habitaram as casas em ruínas, multiplicaram-se, constituindo uma raça humana muito contemplativa. […] Há alguma coisa aqui que me dá medo. Quando eu descobrir o que me assusta, saberei também o que amo aqui. O medo sempre me guiou para o que eu quero. E porque eu quero, temo.

Clarice Lispector, “Brasília”

Viver numa cidade – e não importa, agora, o seu tamanho – significou, até hoje e em via de regra, conviver com os outros, tornando a existência individual uma coexistência. A vida urbana, em suma, sempre foi basicamente ligada ao que Heidegger definiu como mitsein, o “ser com”, o que significa ainda compartilhar experiências, ideias e práticas, tempos e espaços vitais, até chegar à definição daquilo que o sujeito é ou deveria ser. E tudo isso acontecia graças ao confronto com o Outro, que podia levar, por sua vez, tanto à identificação empática com ele, quanto à discriminação e à exclusão daquilo que se considerava diferente e hostil.

A cidade era, nesse sentido – e retomando as teorias de Roberto Esposito –, o espaço comunitário por excelência dentro do qual, todavia, podia agir um mecanismo ao mesmo tempo imunitário ou discriminatório, gerado pelo medo daquilo que se apresentava como novo ou estranho/estrangeiro. A cidade, qualquer cidade, produzia ou reproduzia, nessa perspectiva, o paradigma político, ou talvez biopolítico, que sustenta as relações de poder no mundo contemporâneo. Essa oscilação entre a inclusão e a exclusão tornava a dimensão urbana – sempre até ontem, antes da “grande doença” – mais complexa e bastante diferente da imagem totalmente disfórica (e, a meu ver, implicitamente eufórica) que nos deu, por exemplo, Émile Verhaeren no seu Les villes tentaculaires, e não correspondia mais, de resto, à visão ainda mais antiga que, da vida urbana, nos ofereceu Baudelaire.

O ritmo e o crescimento das cidades, com efeito, fizeram com que elas ocultassem aos poucos, nas suas dobras ou atrás das suas esquinas, a forma horizontal originária, para dar lugar a uma dimensão sempre mais vertical, tanto em sentido físico quanto metafórico, tanto arquitetônico (“concreto”, na ambivalência do termo) quanto social. Os arranha-céus, que despontaram inúmeros nos espaços esvaziados de cortiços e casebres, podem ser considerados, em princípio, exatamente os emblemas duma relação do alto para o baixo que distingue os incluídos dos excluídos no contexto urbano – sem apagar, porém, o movimento expansivo da urbs monstruosa e tentacular, espraiando casas e homens num território sempre mais vasto.

Esse distanciamento entre as classes não só não salvou os privilegiados do contato com aqueles que não “têm poder nenhum” (como diria Guimarães Rosa), mas produziu, por paradoxo, uma multiplicação infinita dos choques imaginados por Baudelaire, até eles perderem o seu caráter de revelação do inesperado. O choque, de fato, o encontro ou o confronto com o diferente, não era mais um episódio isolado, mas um mecanismo multiplicado e esperado de relações entre os indivíduos ou entre as classes – classes que, por sua vez, perderam aos poucos os seus confins exatos, embora continue até hoje a existir uma massa indefinida de outsiders, de excluídos e misérrimos que não pertencem a nenhuma categoria. Para dar um exemplo brasileiro, o fato de virar uma esquina e passar do luxo e da maravilha da Sala São Paulo – patrimônio cultural e arquitetônico das elites – para a região de Cracolândia inutilizava qualquer surpresa, neutralizando-a. Tratava-se, no fundo, de uma convivência que, descontando a permanência das diferenças, misturava-as, todavia, num microcosmo onde a comunidade se tornava a outra face da imunidade, numa coexistência sempre regulamentada por um Poder soberano que canonizava os comportamentos justos e errados, legitimando-se pela força da Lei.

Aquilo que eu quero dizer, no fundo, é que a cidade contemporânea, pelo menos até ontem, questionava e punha em dúvida as categorias clássicas, confundindo o horizontal e o vertical, o dentro e o fora, criando um curto-circuito entre as noções estabelecidas de cidadão (membro da pólis, com os seus requisitos políticos) e de habitador da cidade (de quem circula por ela sem a ela pertencer, de quem mora nela sem demorar). Um discrime, todavia, que a atual situação de contágio geral da população parece anular (visto que todos estão sujeitos à pandemia, que, como nos diz a raiz da palavra, é um fenômeno patológico que diz respeito a toda a população, ao dêmos), mas que, na verdade, continua a se repropor no momento em que o slogan atual “stay at home”, repetido de forma obsessiva, exclui justamente aqueles que não têm casa e que, sendo “sem-teto”, aparentam não pertencer (e, de fato, não pertencem) ao dêmos.

A epidemia generalizada, mudando o aspecto e o ritmo da cidade, suspendendo o seu tempo e esvaziando os seus espaços comunitários, coloca, portanto, novas e inesperadas questões sociais e políticas (ainda relacionadas, então, com a pólis) que devem levar não só a repensar a cidade como coexistência de muitos, mas a reavaliar direitos e deveres individuais. Assistimos, em outras palavras, a uma subtração ou a uma limitação das prerrogativas próprias de todos os cidadãos – daqueles que moram na rua como daqueles que demoram nas suas casas e nos seus arranha-céus –, visto que todos estão obrigados, diante duma Lei pensada para salvaguardar a “saúde pública”, a se submeter às ordens impostas pelo Poder. O problema sociopolítico reside, justamente, nessa compulsória imposição dos deveres, nessa supressão ou limitação dos direitos.

Num artigo recente, Giorgio Agamben questionou, justamente, o atual estado de exceção que, em aparência, limita fortemente a autodeterminação do sujeito, tomando conta da nossa vida tanto individual quanto – e sobretudo – coletiva. Essa “abolição do nosso próximo”, enquanto possível portador do contágio, seria, na opinião do ilustre filósofo, uma medida autoritária que levaria, justamente, à anulação daquela convivência que é o princípio sobre o qual se rege a dimensão urbana. Se é verdade, por um lado, que a pandemia, proibindo os contatos entre as pessoas ou a circulação no espaço urbano, leva a uma desfiguração completa (social, política, econômica…) das cidades – e basta olhar para o esvaziamento completo de praças e ruas, que tem transformado os “espaços públicos” em lugares desertos e imóveis, ao ponto de lembrar um quadro metafísico, à la manière de De Chirico –, devemos, por outro lado, considerar que os regimes que se mostraram e se mostram mais reticentes em tomar medidas mais rigorosas são em geral (com a exceção da China, onde tudo começou) os regimes populistas, soberanistas ou até pseudofascistas, como os Estados Unidos de Trump, a Grã-Bretanha de Johnson e, não por acaso, o Brasil de Bolsonaro.

Se podemos, então, concordar em via teórica com Agamben, visto que todos nós renunciamos a uma parte importante da nossa liberdade e dos nossos direitos, não podemos todavia esquecer que aquilo que está em jogo é a nossa existência e a dos outros, ou, para usar uma expressão de Walter Benjamin tantas vezes evocada pelo filósofo italiano, a “vida nua”, a nossa pura sobrevivência enquanto espécie humana. Diante de milhares de mortos, de milhões de contagiados, não vejo alternativas ao sequestro, imposto e, ao mesmo tempo, livremente escolhido, de nós mesmos, tornados agentes patógenos em relação aos outros.

Tudo isso, aliás, acaba inutilizando, pelo menos em parte, as considerações de Guy Debord, avançadas no capítulo 172 do seu La société du spectacle, sobre a imagem ambivalente da cidade que o urbanismo moderno persegue através do isolamento dos seus habitantes. Citando:

O movimento geral do isolamento, que é a realidade do urbanismo, deve também conter uma reintegração controlada dos trabalhadores, segundo as necessidades planificáveis da produção e do consumo. A integração no sistema deve apoderar-se dos indivíduos isolados em conjunto: fábricas, casas da cultura, colônias de férias, todas essas coisas devem funcionar como “grandes conjuntos habitacionais”, especialmente organizados para os fins desta pseudocoletividade que acompanha também o indivíduo isolado na célula familiar: o emprego generalizado dos receptores da mensagem espetacular faz com que o seu isolamento se encontre povoado pelas imagens dominantes, imagens que somente através deste isolamento adquirem seu pleno poderio.

De fato, nessa crítica contundente da sociedade capitalista, aquilo que necessariamente falta é a possível emergência dum fator que não é nem político nem econômico, mas patológico, fruto, então, duma globalização incontrolável da doença contra a qual não temos armas senão o isolamento individual que nos expõe sozinhos – e nisso concordo com o ilustre filosofo – às “imagens dominantes”. E que a análise, embora magistral, não possa ser aplicada ao tempo presente, o demonstra a ideia da existência daqueles grandes conjuntos habitacionais que, pelo contrário, o atual Poder imunizador proíbe, não só de habitar, mas de frequentar, seja mesmo de forma esporádica.

As cidades de hoje, enormes lazaretos, perderam, assim, as suas características, impedindo qualquer convivência, qualquer circulação das pessoas: nem villes tentaculaires, nem dimensões onde os indivíduos se chocam ou se mesclam em lugares promíscuos, elas mantêm, sim, as suas prerrogativas urbanísticas e arquitetônicas, que perduram, todavia, num tempo parado e num espaço constelado por vazios, caracterizado por lugares totalmente desertos. Cidades, enfim, que sobrevivem numa “espera enorme” (para citar ainda uma definição do deserto/sertão rosiano), num “silêncio imenso” (lembrando Macunaíma), onde resta e no qual ecoa apenas a esperança daquilo que pode acontecer, daquilo que com certeza vai acontecer, mas em contextos que não vão permanecer com certeza iguais ao que eram.

As cidades tentaculares e tentadoras de Verhaeren (opostas, na sua visão, tanto a Les campagnes hallucinées, quanto a Les villages illusoires, numa rígida, quase psicótica, taxonomia), ou, para dar outro exemplo, a Metropolis de Fritz Lang de anteontem, depois a nossa cidade de ontem e, afinal, esta estranha e alienante cidade de hoje – dimensão assolada na qual vivemos mas não convivemos – acabam desenhando, no decorrer de pouco mais de um século, uma sequência de mudanças radicais da qual desconhecemos os êxitos. Eu, pelo menos, não os conheço: eu em fuga dos outros, sozinho por emergência, sobrevivendo, num contexto de mortos e doentes, numa normalidade totalmente anormal, numa condição inabitual dentro do meu espaço habitual – na habitação, enfim, na qual estou “isolado em conjunto”, longe dos outros e perto de mim mesmo, tentando todavia escapar ao poderio das “imagens dominantes”, impostas pela sociedade do espetáculo e veiculadas, agora, pela comunidade virtual e imunitária da rede.

Disponível em: http://tudigit.ul.tu-darmstadt.de/show/Sp_Rom1834/0001

* Ettore Finazzi-Agrò é professor titular da Sapienza Universidade de Roma.