Ano XVIII 01
dossiê
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ELA TINHA QUE ME TRATAR COMO SER HUMANO

Atravessamentos Discursivos e Corpóreos no Relato dos Partos de uma Mulher Preta em Situação de Rua

Partindo da análise de dados provindos de relato de parto, o presente trabalho, de cunho qualitativo-interpretativista não essencialista, visa compreender a construção e os efeitos dos discursos dominantes nos partos de uma mulher negra que já esteve por muito tempo em situação de rua, bem como as construções identitárias e implicações em movimentos de agentividade durante o evento do parto.

Os dados gerados foram analisados à luz da análise de narrativa e das performances adotadas em interação pela participante, estando alinhada à Linguística Aplicada Crítica (Moita Lopes, 2006) e à perspectiva de um caminho de pesquisa voltado para a equidade, para a escuta atenta aos grupos subalternizados e para as transformações necessárias no campo social. Servirá de aporte teórico metodológico a Análise de Narrativas. Para tal, me ancorarei sobretudo em Histórias de vida de Linde (1993), entendendo que um parto é evento altamente reportável que vem a constituir o repertório de histórias de vida de alguém, sendo algo a ser contado e recontado no curso de uma vida de acordo com as circunstâncias.

Percepções sobre violência obstétrica

Cunhado na década de 1970, violência obstétrica é um termo antagônico à humanização do parto, conceito que viria a ser amplamente disseminado na década de 1990. Entendo por violência obstétrica o abuso ou privação de medicalização; patologização de processos naturais (gestação e parto); usurpação da autonomia e poder de decisão maternos, dizendo respeito a ações relativas ao parto que afetam a dignidade e geram danos à mãe e ao recém-nascido. Embora seja esta a forma como a violência obstétrica é compreendida pelo senso comum, é este um termo disputado no contexto médico e com diferentes perspectivas de entendimento.

Cabe lembrar que a violência obstétrica extrapola a esfera das violências deferidas sobre o corpo físico, haja visto que as violências verbais também ferem a dignidade humana e geram traumas, distorções e violações sobre a percepção que a parturiente tem de si enquanto mãe, mulher, cidadã, sujeita, fixando a experiência singular do parto como um momento de sofrimento por toda a vida. Aquilo que aqui entendemos por violência verbal tem raízes espraiadas nos grandes Discursos[1] normativos do racismo, do patriarcado e da medicina. Segundo Diniz et al (2015 p. 91) há uma correlação entre raça, classe e escolaridade, visto que mulheres negras, pardas e com menos escolaridade são as principais vítimas de violência obstétrica.

A medicina tradicional e normativa crê-se soberana. Tende a lidar com os pacientes como se diante de alguém destituído de subjetividade. Como se um corpo apenas, sem opiniões, sentimentos, ingerência. Dona de verdades e performando como um deus, a medicina normativa é branca e masculina em sua espinha dorsal. No que diz respeito ao tratamento deferido a pacientes mulheres dentro da medicina tradicional, as assimetrias se escancaram. Se falarmos de mulheres não brancas e de classe popular, o fosso é ainda mais fundo.

O termo “violência obstétrica” continua sendo um tabu entre os profissionais de saúde, mais especificamente dentro da assistência ao parto, e sua aderência na área médica ainda encontra resistência por ser assimilada aos conceitos de patologização, patogenização e medicalização do parto. (Leite et al. 2022, p.486). Entende-se que haja a partir daí uma espécie de “zona cinzenta”, um terreno nebuloso onde não se pode definir ao certo se determinado procedimento seria de fato abuso ou banalização por parte da equipe médica ou se houve necessidade, de fato, de realizar tal procedimento. Os movimentos sociais pró-humanização do parto têm se empenhado no sentido de fomentar reflexão sobre a temática e de denunciar determinadas condutas que não correspondem ao entendimento de um parto verdadeiramente humanizado e respeitoso. As mulheres negras e de baixa escolarização foram e continuam sendo os principais alvos de violências, abusos, desrespeitos e privações durante o parto, conforme apontam os indicadores de qualidade da atenção ao parto da pesquisa  Nascer no Brasil.[2] Para Diniz et al (2015, p. 4):

[…] quanto maior a vulnerabilidade da mulher, mais rude e humilhante tende a ser o tratamento oferecido a ela. Assim, mulheres pobres, negras, adolescentes, sem pré-natal ou sem acompanhante, prostitutas, usuárias de drogas, vivendo em situação de rua ou encarceramento estão mais sujeitas a negligência e omissão de socorro.

O acúmulo de intersecções de eixos de subordinação é fator que delimita a dimensão da opressão sofrida. Enquanto o entendimento de violência intervencionista mais óbvia ao senso comum acomete as mulheres brancas/ de classe média, as mulheres racializadas, além disso e sobretudo, sofrem pela falta de assistência e abusos subjetivos – linguísticos, psicológicos, morais, identitários.

Apesar da esmagadora incidência de violências sofridas por essas mulheres, os entendimentos podem ser distorcidos, uma vez que a mentalidade intervencionista da medicina obstétrica brasileira ainda entende que determinadas intervenções (vide a episiotomia, corte feito no períneo com o intuito de facilitar a passagem do bebê; a manobra de Kristeller que consiste em pressões fortes na região da barriga para acelerar a expulsão da criança; o uso indiscriminado da ocitocina sintética, sendo a ocitocina um hormônio naturalmente produzido pelo corpo feminino que pode estimular as contrações uterinas; e a cesárea eletiva) sejam sinônimo de cuidado e precaução, contrariando as orientações da Organização Mundial de Saúde, que lista estes e uma série de outros procedimentos não recomendados durante o evento do parto.

Por um enfoque de/descolonial

Na intenção da adoção de um enfoque verdadeiramente des/decolonial, me aplico a entender que a experiência da maternagem, bem como do parto, desponta sempre de um corpo sócio e historicamente situado. Para Antoniazzi (2021, p. 93), alinhando-se a bell hooks, a afirmação da interseccionalidade é base para um feminismo que não opera no registro da opressão no sentido da reprodução do racismo ou classismo que despontam de uma visão universalista. Situações são vivenciadas e descritas por corpos situados. A generalização não contempla as partes que constituem o todo, sendo o caminho o acolhimento da diversidade de experiências sem que um enfoque se sobreponha ou se imponha aos demais.

Para Haraway (1988, p. 23), importam as perspectivas parciais por seu viés categoricamente crítico. A autora advoga por uma prática de objetividade em prol da contestação, da desconstrução e da reconstrução de possibilidades de ver. Posiciona-se, assim, a favor de epistemologias não universalizantes, corporificadas, complexas e contraditórias, nebulosas, sem clareza ou precisão (1988, p.30, p.41). Ainda em Haraway, vem bem a calhar dentro do tema de pesquisa aqui desdobrado o entendimento de que “vários corpos biológicos em competição emergem na interseção da pesquisa e dos textos biológicos, das práticas médicas e outras práticas de negócios, e da tecnologia” (1988, p.4). Tratamos aqui de uma disputa de entendimentos situados e corporificados acerca de um evento (igualmente situado e corporificado). Apenas alguns deles, os não marcados, se naturalizam e se respaldam pela capa da objetividade científica, enquanto os corpos marcados, com todas as suas complexidades, são objetivos em sua não objetividade – isto é, muito dizem dentro de sua imprecisão crítica.

Lugones também trata a descoloneidade como tema central. A autora aponta a crítica ao universalismo feminista por parte das mulheres racializadas e do terceiro mundo, denunciando que a denominação “mulher negra” é intersecção que evidencia um apagamento, como se a categoria “mulher” contemplasse apenas algumas, as não marcadas. De acordo com Lugones, tais hierarquias e dicotomias são elementos fundantes do pensamento colonial moderno sobre raça, gênero e sexualidade, que, basicamente, se vale da separação entre humano e não humano, guarda-chuva maior para outras dicotomias (homens e mulheres, por exemplo). É a partir de tais binarismos e dicotomias que os colonizados são subjugados. Quem denomina – dá o nome, intitula – é o colonizador, homem, branco. Entre os animais, a fêmea sendo vista como um piloto ou um avesso do macho, esse sim, a perfeição. Mas se os colonizados são seres primitivos, menos que humanos aos olhos do colonizador, as categorias “homens” e “mulheres” não lhes caberiam. Afinal, “a diferenciação racial nega humanidade e, portanto, gênero às colonizadas” (2014, p. 943), sendo gênero uma imposição colonial que ignora outras cosmologias e formas de perceber e ser no mundo. A autora propõe a partir daí um pensamento de fronteira feminista, entendendo que esse “locus fraturado”, essa liminaridade de fronteira, seja em si lugar próprio, e não uma mera cisão que propulsiona a repetição de hierarquias dicotômicas ad aeternum (2014, p.947). Um feminismo de/descolonial não apaga a diferença colonial, pois é a partir da observação crítica dessa diferenciação que há o espaço para a renovação.

Assim, me aplico ao exercício de suscitar o olhar para esse pensamento de fronteira como espaço onde coabitam cosmologias diversas e de onde é possível percebermos umas as outras e firmar a coalizão feminista e descolonial, tal qual idealizada por Lugones.

As maternagens são múltiplas

A maternidade sempre ocupou lugar central em culturas não ocidentais, haja vista o papel da mulher nos países da(s) África(s) no período pré-colonial, com o prevalecimento do senso de coletividade e igualdade de gênero. Ainda hoje, a experiência da maternidade é considerada locus e fonte de poder (e resistência) para as mulheres negras em muitos países. A maternidade negra é política, uma forma de ativismo social que como tal empodera e é reconhecida como status dentro da comunidade (O’Reilly, 2021, p. 121-122). No entanto, é importante salientar a importância também da autodefinição (p. 133) dentro dos processos de maternagem. Afinal, as experiências e a relação das mulheres negras com a maternagem não é a mesma das mulheres brancas. Enquanto as feministas brancas falam em divisão de tempo com as crianças para disputarem no mercado de trabalho em pé de igualdade com os homens, as mães negras expressam muitas vezes o desejo de passarem mais tempo com seus filhos, não podem se dar ao luxo de serem donas de casa e muitas vezes estão trabalhando como cuidadoras dos filhos de outras mulheres (quase sempre brancas), que terceirizam parte da maternagem para se lançarem no dito mercado de trabalho. Contam então com suas redes de apoio dentro de suas comunidades – o othermothering – como estratégia de sobrevivência (O’Reilly, 2021, p. 118-119). A generalização da maternidade como um problema “de mulher” é uma encrenca que pasteuriza, essencializa e generaliza o que se entende por “mulher”, sendo denominado pela parcela normativa das mulheres que se creem estruturalmente como a régua do mundo feminino. Esse imbróglio afastou muitas mulheres negras do “movimento feminista” (O’Reilly, 2021, p. 114), termo que, como é possível inferir pela explicação acima, já é em si problemático e acachapante.

O feminismo matricêntrico, comprometido com uma perspectiva interseccional, se distancia de essencialismos e de conceitos prévios que universalizam a experiência materna e é um guarda-chuvas que abarca uma multiplicidade de formas de maternar, entendendo que partam de lugares próprios, situados e sociocircunscritos. Assim, se propõe a colocar as mulheres mães em posição agentiva, com autoridade e autonomia (O’Reilly, 2021, p. 104).

Figura 1
Figura 1[3]
Figura 2
Figura 2[4]
Mulheres mães em situação de rua: entre opressões, intersecções, resiliência e agência[5]

Ser mulher-mãe em situação de rua no Brasil é condição que vai de encontro ao ideário normativo da “boa mãe” (Badinter, 1985, p.238), desafiando padrões e atribuições de um dispositivo da maternidade[6], uma vez que ser mãe e os entendimentos de maternidade são construções sociais. Conforme sintetiza Santos et al. (2021, p. 2): “trata-se de mulheres que vivem em um profundo contexto de desamparo e desproteção social, desafiando normas instituídas sobre o que é ser mulher e mãe, provocando respostas do Estado”. Por representarem esse desafio ao que é tido como padrão, são então submetidas a violências múltiplas: medidas proibicionistas, políticas intervencionistas e normas punitivas. Mesmo que esse conjunto de violências interfira nos direitos da mulher e, dentro deles, nos direitos reprodutivos, são legitimadas pelas instituições (como ocorre nas separações compulsórias de mães e filhos), sob o argumento de que essas mulheres não são capazes de dar conta de sua prole, sendo indexicalizadas com perigo, criminalidade, prostituição e correlações preconceituosas entre a situação de rua e o uso de drogas, que desconsideram contexto e nuances. Essas mães são, em sua maioria, mulheres negras e se defrontam com um emaranhado de estigmas e preconceitos em interseccionalidades de raça, gênero e classe, em uma sociedade de mentalidade colonial, racista e patriarcal. Por não serem reconhecidas pelos discursos normativos dentro do protótipo social eugenista de “boa mãe”, encontram resistências constantes na criação de seus filhos e filhas, sendo confrontadas por discursos moralizantes de culpabilização e consideradas, dentro da lógica dos discursos hegemônicos, como um desvio (Mendes e Venosa, 2021). Seriam, então, um “desafio lançado à natureza, a a-normal por excelência” (Meruane, 2014, p. 15) e, por tal motivo, sofrem inúmeras cobranças (Rezende, 2020 p. 211), enquanto nesse movimento de responsabilização a figura paterna segue incólume em seu completo apagamento. Segundo Collins (2019, p. 304), “o ideal tradicional de família delega às mães plena responsabilidade pelas crianças, avaliando seu desempenho conforme sua capacidade de obter os benefícios de uma família nucelar”. A responsabilidade recai única e exclusivamente na mulher.

A ideia de maternagem cooperativa encontra ecos nos entendimentos sobre maternidade e maternagem de comunidades africanas, que muito diferem das construções normativas eurocêntricas. A maternidade é conceito chave nas culturas afrodescendentes, tendo a mulher protagonismo e relevância nessas sociedades (Collins, 2019, p. 292-298). As mães de criação, aquelas que dão suporte às mães de sangue na divisão de responsabilidades, ajudam a consolidar as redes femininas de cuidados cooperativos e se constituem de avós, irmãs, primas, tias, mas muitas vezes extrapolam relações consanguíneas. Em se tratando das mulheres negras em situação de rua no Brasil ou em redes de apoio de mulheres negras de forma geral, o que percebemos é que há mulheres que podem sentir na própria carne o que passam outras mulheres na mesma condição, tendo muitas vezes sido vítimas de opressões raciais do Estado intervencionista ou tendo testemunhado violências contra os seus. (Collins, 2019. p. 299).

Se é um fato dado que a força estruturante dos discursos hegemônicos mira no massacre dessas identidades forjando cobrar agência e apontando o dedo em riste para faltas e renúncias, é bem verdade que a agência cobrada já preexiste. E resiste. As mulheres mães (quase sempre pretas) em situação de rua têm em sua prole a latência da vida, da esperança, da mirada para o futuro e da ressignificação de sentidos de si e do mundo. Embora o desejo de maternar dessas mulheres em situação de vulnerabilidade extrema não encontre garantias de concretização, dadas as desigualdades profundas e necessidades específicas, ele se manifesta como possibilidade de construção de outras formas de caminhar pela vida (Santos et al., 2021, p. 7). A maternidade constitui para essas mulheres locus de transformação, de organização da subjetividade e resgate identitário (Zanello e Richwin, 2022, p. 79).

De uma perspectiva narrativa, o potencial de transformação que o maternar suscita em mulheres em situação de rua, tão presente em suas práticas discursivas, se articula, muitas vezes, como pontos de virada em suas histórias de vida (Kings et al, apud Santos et al, 2021, p. 11). Collins elabora como a maternidade, como símbolo de poder, pode promover crescimento pessoal, além de elevar o status das mulheres dentro da comunidade negra e, ao mesmo tempo, impulsionar o ativismo social (Collins, 2019, p. 296). Agência e maternidade, sob esse enfoque, andam de mãos dadas e determinam a forma como irão encarar e lidar com as questões que orbitam suas maternidades.

No momento em que o feminismo normativo olha com desdém para as mães engajadas em políticas de maternidade, coloca também em xeque o potencial de empoderamento da mulher-mãe na comunidade negra (Collins, 2019, p. 321). A despeito dos percalços e obstáculos na superação de opressões interseccionais, a maternidade e maternagem negras são símbolos de poder, que politizam, movem, produzem agência.

As agruras enfrentadas pelas mulheres mães em situação de rua deveriam ser encaradas como urgência pela pauta feminista. Ocorre que o feminismo normativo entende suas lutas como prioritárias e, à medida que o faz, tende a se limitar a pautas relacionadas exclusivamente à igualdade de direitos, não contemplando as necessidades urgentes de mulheres em situação de vulnerabilidade extrema: manterem-se vivas. Nas palavras de Kendall (2021, p.19):

[…] mulheres pobres que sofrem para colocar comida dentro de casa, pessoas de regiões pobres que têm de lutar para manter escolas abertas e a população que luta para ter o básico em questão de escolha sobre o próprio corpo também são questões feministas e que deveriam receber atenção dentro dos movimentos.

Crenshaw (2004), feminista negra que desdobrou o conceito de interseccionalidade[7], mostra em seus estudos o quanto as mulheres negras se deparam com dificuldades em relação aos problemas enfrentados, experienciando um agravamento da vivência dos problemas que se impõem pelo discurso dominante através dessa dupla opressão de ser mulher e negra. Um reflexo disso é que constituem a parcela social com menos recursos financeiros. Como mencionado, quando se encontra em situação de vulnerabilidade extrema, há outras prioridades mais urgentes do que a pauta por igualdade salarial, tais como questões relacionadas a alimentação e moradia. Denuncia então a opressão da categoria “mulheres” como limitada, essencializante, genérica e normativa.

Retomando Kendall (2021, p. 23), “tudo que afeta uma mulher é uma questão feminista, seja acesso a transporte, alimentação, educação ou salário mínimo”. Assim, o feminismo verdadeiramente interseccional não há de ser internamente hierárquico ou inclusivo por condescendência.

Estudos da Narrativa

Como uma ramificação dos estudos da interação, a análise de narrativa tem como objeto de estudo as narrativas que emergem em encontro social. Seu foco é microescalar – ou seja, focado em situações específicas, situadas e circunscritas em termos geográficos, históricos e sociais. No entanto, cada fala e história faz parte, constitui e diz sobre o macro – a sociedade como um todo, as influências culturais e seus discursos circulantes – havendo uma relação intrínseca entre ambos.

Histórias de vida e pontos de virada

Uma perspectiva fundamental neste trabalho, à qual irei me reportar, são as histórias de vida (Linde, 1993). Para Linde, todos temos histórias que nos constituem e que contamos e recontamos no curso de uma vida. Trata-se fundamentalmente de histórias relacionadas a marcos biográficos, como nascimento, casamento, doença, trajetória profissional. A autora entende que as histórias sofram acréscimos ou decréscimos a cada vez que são contadas, por adequações ao contexto da produção e performance, entendendo que o narrar é sempre situado e relacionado ao que se quer tornar relevante, e também por artifícios da memória e suas minúcias. Linde coloca ainda que uma história de vida contém algum ponto avaliativo extremamente significativo sobre quem narra ou sobre o que é narrado, além de trazer a questão da reportabilidade estendida como um aspecto fundamental de uma história de vida. Para que uma certa unidade discursiva seja considerada uma história constituidora da vida de alguém, ela deve possuir algo extremamente reportável que justifique ser contada e recontada ao longo dos tempos. Por se tratar de um acontecimento com grandes implicaturas, um parto integra, portanto, o repertório de histórias de vida de alguém e a narrativa de tal evento costuma vir encadeada e dar sentido a outras – prévias ou posteriores à narrativa do nascimento em si.

O “ponto de virada” (Mishler, 2002) é também uma categoria narrativa que servirá de aporte para a compreensão de guinadas nos rumos das histórias contadas mediante acontecimentos inusitados ou momentos considerados divisores de águas. Trata-se da construção narrativa de eventos destrutivos em um momento passado pontual que marcam e transformam a vida de alguém (Bastos & Biar, 2015). Segundo Mishler (2002:107), os pontos de virada seriam percebidos pelos narradores como

eventos que abrem direções de movimentos inesperados e que não podiam ser previstos por suas visões anteriores do passado, levando-os a um outro senso de si próprios e levando-os também a mudanças que traziam consequências para a maneira como eles se sentiam e para as coisas que faziam.

Dentro de um contexto de uma história de vida, os pontos de virada são então os elementos que configuram o reposicionamento de alguém diante de grandes marcos em suas experiências, reatualizando a percepção das mesmas e forjando identidades. Conforme veremos, o evento do parto é, potencialmente, um momento de transformações profundas na percepção dos sentidos que se tem sobre si, sobre a própria vida e sobre o mundo

A Força da Avaliação na Narrativa

No presente trabalho, iremos focalizar a avaliação, entendendo sua importância no valor que se atribui a um dado referente através de sua carga emocional e percebendo-a como a razão de ser da narrativa – aquilo que lhe confere o propósito de ser narrada e de sua reportabilidade.

Em Labov & Waletzky (1967), a avaliação pode se apresentar de duas formas na narrativa, podendo ser externa ou encaixada. A avaliação externa se dá quando o narrador interrompe seu relato e diz ao ouvinte a sua percepção sobre o fato narrado. Já na avaliação encaixada, o narrador faz sua avaliação de forma indireta, pela utilização de recursos linguísticos, como entonação; aceleração ou diminuição do ritmo de voz; alongamentos de vogais e repetições, não havendo, assim, interrupções do fluxo narrativo.

Alinhada com tal perspectiva, Charlotte Linde ressalta que na avaliação se encontra a expressão/dimensão da linguagem, exposta através de indicativos da ordem social do narrador. Com um viés mais contemporâneo e social da narrativa, Linde entende a avaliação como algo que constitui a determinação social de sentido atribuído a alguém, a suas ações e ao seu entorno (Linde, 1997, p. 165). Para ela, avaliação e prática social estão diretamente relacionados, sendo a avaliação um elemento através do qual se estabelece a negociação em interação social. A autora lança entendimento sobre a avaliação como um fator essencial para a compreensão de uma determinada pessoa, de suas ações e de seu contexto (Linde, 1993, p. 152).

Em tradução livre: “a avaliação compõe o coração da narrativa: a narrativa oral é bem mais sobre chegar a um acordo sobre o sentido moral de uma série de ações do que sobre um mero relato dessas ações”. Uma vez que avaliação e emoção mantêm uma relação de interdependência, não é possível separar avaliação de discurso. Emoções, avaliação e discurso estão interligados, influenciando-se mutuamente em uma indissociável relação de interdependência.

A seguir, serão analisados os partos de Dinara. Os excertos apresentados são unidades narrativas provindas de uma narrativa maior. Algumas apresentam traços mais canônicos, outras menos. As unidades narrativas podem ser percebidas como partes que funcionariam de forma independente, mas que se inter-relacionam na composição de um todo. Valho-me assim da metáfora do mosaico para aludir aos eventos narrativos que compõem esse painel maior do panorama de uma história de vida.

Dinara

Seus partos são por ela remontados olhando em retrospecto para a sua história de vida e inúmeros atravessamentos que marcaram profundamente sua humanidade enquanto mulher negra e moradora de rua. Tais partos por si sós não são construídos como focos centrais de violências físicas e discursivas em sua vida. Ela relata sua saga com muitos momentos que definem sua trajetória de forma abrupta, e os partos, por esse viés, embora também entalhados com a marca dos discursos hegemônicos, não são mais definidores do que o todo que compõe a sua vida. Proponho que possamos entender que os partos de Dinara não podem ser vistos como eventos isolados, dada a magnitude de suas experiências dentro do contexto situado de onde parte. Os partos de Dinara são parte do que constitui a complexidade de sua história de vida (Linde, 1993) e não serão analisados linearmente, pela necessidade de observarmos outros aspectos fundamentais fundantes de sua vida e de sua forma de se construir no mundo.

A vivência na rua está longe de ser um detalhe na vida de Dinara, se relacionando diretamente com sua percepção de si e do mundo, o que inclui a forma como constrói os atravessamentos em torno do seu maternar. Já os partos são eventos inteiros por si só. Cada parto é uma história que faz parte e sofre influência direta de uma história maior: a vivência na rua.

Se construções ocidentais em torno da maternidade (a partir da industrialização) reforçavam, dentro do “dispositivo da maternidade” performances esperadas da mulher-mãe como a figura que nutre, cuida, educa por instinto e vocação atrelando à mãe o “domínio” da esfera privada, tal relação se complexifica quando pensamos em contexto. E, evidentemente, o construto da maternidade não passa ileso pelos processos de colonização e escravização no Brasil e pelo encontro das concepções europeias sobre o maternar com as concepções culturais indígenas e africanas. Somado a isso, as relações de poder também ditavam as formas de se experienciar e dar sentido à maternidade/ maternagem (Zanello, 2018, 2022). Enquanto cabia à mulher branca procriar e seguir a cartilha ocidental de boa esposa e mãe devota, as mulheres negras tinham seus filhos arrancados de si “como bezerros separados de vacas” (Davis, 2016, p. 19), seja para servirem de amas de leite e “mães pretas” para os filhos das sinhás (Gonzalez, 1984, p. 229, 235), seja para a venda de seus filhos, escancarando a face da desumanização da mãe-mulher-preta na lógica colonial. Esse tipo de violência infligido às mães pretas as leva para movimentos de resistência dentro de seu maternar. A criação de redes de apoio e criação coletiva tem influência de entendimentos da cultura africana, em que maternar não é algo da esfera do privado e do vínculo biológico direto e se ancora na coletividade e na cooperação (Collins, 2019).

Os estigmas sociais sentidos pelos que se encontram em situação de rua marcam seu relato. Em diversos momentos é possível notar a associação dessa comunidade com uma suposta inaptidão para que se exerça o papel de “boa mãe”, construída no ideário dominante.

Análise do parto de Danilo

Em meio às dores de parto, o que poderia passar como sutil pelo filtro da naturalização se escancara à medida que Dinara dá vazão e extravasa sua dor:

Se você ficar gritando, você vai ficar aí sozinha” – sobre poder e opressão

ela falou “não, deixa ela romper porque pode ser que nasça normal” eu fiquei lá, fiquei lá, fiquei, fiquei, quando ela viu que eu gritei, subi, desci, deitei, rolei, ela viu que eu não, ela falou pra mim, “se você ficar gritando, você vai ficar aí sozinha”, eu com quinze anos lá, fiquei desesperada, ah vou parar de gritar, e fiquei ((simula estar fazendo força abafando o som)) aí:::, ela veio, me botou na mesa, abriu minha perna e fez um toque, eu fazia força e a cabeça do Danilo não passava↓, eu fazia força, fazia força

A fala da médica que atende Dinara toma forma de uma ameaça. Em um momento delicado, onde o esperado é o acolhimento, a ameaça de desamparo ganha peso. Através do recurso poético da repetição (“fiquei lá, fiquei, fiquei,”), Dinara enfatiza o tempo que passou esperando o momento de nascimento. Marca e avalia seu esforço e dificuldades físicas pelas quais passou durante o parto através de uma sequência de verbos no passado  (“quando ela viu que eu gritei, subi, desci, deitei, rolei,”). A fala construída aparece na narrativa como uma construção de ameaça de abandono: “se você ficar gritando, você vai ficar aí sozinha”). Diante da ideia iminente de ser deixada por conta própria no ambiente hospitalar por estar externalizando sua dor pelo grito, Dinara marca em avaliação o sentimento acometido: o desespero (“fiquei desesperada”). A instituição médica tem tal força que faz com que se leve a crer, muitas vezes, que devemos mesmo seguir à risca o que dizem, mesmo que isso implique coibir nossos instintos. Assim, Dinara se esforça a ir contra a própria natureza e abafar o grito (“ah vou parar de gritar”).  Novamente, constrói em sua narrativa uma agentividade impositiva por parte da equipe médica, tendo as pernas abertas e o toque subsequente sem o seu consentimento ou sem que ao menos seja informada de antemão sobre as manobras as quais seria submetida (“aí:::, ela veio, me botou na mesa, abriu minha perna e fez um toque”). Seu esforço e agência no sentido da realização do parto é também marcado pela repetição “eu fazia força, fazia força “.

Análise do parto de Maya

A percepção de violências linguísticas e psicológicas mobiliza em Dinara o sentimento da indignação e da raiva. Abaixo, Dinara narra a recusa da médica em tocá-la:

“Parece que loira tem alguma coisa contra mim, porque não é possível” – violências linguísticas, abandono institucional e seus desdobramentos: raiva, humilhação e revolta

DINARA não é! ela não me tocou, porque também minha vagina tava com cabelo, me chamou de porca, falando que eu não me raspei, que eu tinha que vir raspada, falou que não aceitava gritando, eu falei: “moça, mas tá doendo” “tem que se controlar, senão vai ficar aí”, de ironia comigo porque eu tava lá, não podia levantar, não podia socar a cara dela, porque se eu fosse levantar eu ia meter a mão na cara dela, mas com a mãe aberta, ela acabou de parir, ((inaudível)) parece que a loira tem alguma coisa contra mim porque não é possível
BARBARA uma coisa chamada racismo, né?

O circo perverso desferido a uma mulher negra em situação de rua marca sem cessar quem tem o poder e o faz com mais afinco diante de qualquer movimento de insujeição/insubmissão.

Dinara por um momento modaliza e justifica a médica se recusar a tocá-la por não estar depilada: “porque também minha vagina tava com cabelo “. Elenca então a sequência de humilhações desferidas pela médica: “me chamou de porca, falando que eu não me raspei, que eu tinha que vir raspada, falou que não aceitava gritando”. A força opressiva, mesmo com a revolta gerada, respinga e semeia a culpa, no movimento de vai e vem pendular já exposto anteriormente. Ela também constrói como a médica poderia se valer de sua condição para humilhá-la, uma vez que ela não poderia reagir à altura, como gostaria, pela sua condição de uma parturiente deitada com as pernas abertas (“não podia levantar, não podia socar a cara dela, porque se eu fosse levantar eu ia meter a mão na cara dela, mas com a mãe aberta“). A percepção do racismo é então emulada (“parece que a loira tem alguma coisa contra mim porque não é possível “). A humilhação aflora diante do tratamento recebido.

Ainda sobre o racismo:

“Ela tinha que me tratar como ser humano” – racismo institucional

BARBARA ela era a principal assim?
DINARA a principal
BARBARA entendi
DINARA entendeu? ela era a principal, isso que me deu mais tristeza, porque ela tinha que me tratar como ser humano e ela não me tratou, ela me tratou igual um bicho, falando que eu tinha, eu fiquei desesperada porque eu achei, será que é algum exame que ninguém me informou? eu fiz meu pré-natal todinho da Maya, não me informaram que eu tinha nada, eu fiquei dormindo naquele treco lá, eu fazia meus pré-natal todinho e não me informaram, no finalzinho que eu não consegui completar, por causa do negócio da enchente, eu perdi o cartão, perdi documento, perdi tudo, e ela me tratou daquela forma, igual um lixo, e já não tinha nada, aí começou lá na maternidade mesmo, um doou uma roupinha, fralda, eu saí de lá com o ganho da maternidade do pessoal que tinha me doado quando eu perdi as coisas na enchente

O sentimento de tristeza (“isso que me deu mais tristeza, porque ela tinha que me tratar como ser humano e ela não me tratou “) é destacado em forma de avaliação dentro combo das humilhações do contexto do racismo institucional. Dinara denuncia em seu relato a bestialização e desumanização (“ela me tratou igual um bicho”, “me tratou igual um lixo”) sofridos e como aquilo vinha em um momento de extrema vulnerabilidade: uma mulher negra, em situação de rua, parindo e ainda tendo perdido tudo o que tinha em uma enchente. Em sua narrativa, se questiona sobre o que possa ter deixado passar, já que seguiu todo o protocolo do pré-natal.

Análise do parto de Lia

A seguir, Diana relata o momento em que se deu conta que sua filha iria nascer:

“Eu fiz o meu parto” – ponto de virada: agentividade pelo protagonismo no parto eu” botei a mão, não, eu prendi a respiração, porque a contração tava vindo e se eu empurrasse com força, ela ia, eu ficava assim, me tremendo, me tremendo, aí eu levantei devagarzinho me tremendo, a contração parou, aproveitei que eu contava o tempo da pausa da contração, eu tampei o vaso, tirei com uma mão só, era uma coisa de louco, cara, eu tive que passar meu avental, aqueles que eles botam, branco, pelo soro, pelo negócio que segura o soro, abaixar lá embaixo, puxar, tirar, dobrar, abaixar

Relata então todos os passos cautelosos que adotou sem qualquer intervenção externa. Mesmo com medo, marcado em sua fala pela repetição “me tremendo, me tremendo”, esteve a todo tempo nas rédeas da situação. Enumera uma sequência de verbos no passado (levantei, tampei, tirei), que não apenas definem uma narrativa canônica, mas que aqui cumpre o papel de enfatizar sua agentividade: tampou o vaso, tirou apenas uma mão, passou o avental até embaixo, dobrou… A agentividade segue sendo marcada:

“(Fiz tudo) Sozinha” – sobre marcar a autonomia e agência

BARBARA você fez o parto sozinha?
DINARA sozinha, aí eu abaixei, a Lia saiu
BARBARA não tinha ninguém perto?
DINARA a Lia saiu, ela saiu dentro da bolsa
BARBARA empelicada, não é isso que fala?
DINARA é, ela saiu assim, dentro da bolsa
BARBARA mas como é que você se sentiu? você tendo feito o parto dela?
DINARA não, eu fiquei desesperada mas era muito bonito, eu não senti dor naquele dia, eu não senti uma dor, ela era muito pequenininha, ela nasceu um feijãozinho

O relato da construção de um parto sem interferências físicas ou discursivas parece associado a um sentimento de orgulho e uma consciência plena do próprio processo que permite a contemplação de sua beleza (o nascimento de um bebê empelicado, que descreve como “muito bonito”) além de não operar no registro da dor (“eu não senti dor naquele dia”), mesmo com o que descreve como um desespero pelo inusitado e pela responsabilidade sobre algo tão valioso que é nascimento de um filho. Sobre a momento em que a estagiária se dá conta de que Dinara fez seu parto, relata:

BARBARA mas não te deu ao mesmo tempo um alívio que não tinha ninguém, era só você e ela? ela saiu, foi você que tirou
DINARA é, não tinha ninguém, ela saiu, ninguém me machucou, mas veio a doida da menina, estagiária, que eu gritei, não desesperada, “oi, me ajuda aqui”, aí ela veio, eu super calma, quando ela abriu a porta, ela “ahhhhhh, meu Deus, calma mãe, calma”, eu “tô calma” “mas calma, olha pra mim, ai meu Deus o que eu faço” e não sabia o que fazer, aí fez assim na pele, não falava coisa com coisa, na bolsa, aquele saco lá, bolsa ((inaudível)) que fala? ela tocou na bolsa, mexeu, aí estourou, a Lia se esticou, aí a bolsa pá:::, e eu toda encantada lá, coisa que eu nunca tinha visto
BARBARA falam que é lindo
DINARA é uma coisa mágica, só que depois que saiu a Lia,

Dinara chama atenção no excerto acima para como, em um parto por ela executado, saiu ilesa, sem machucados de qualquer ordem. Ao pedir por ajuda, no entanto, a estagiária novata é descrita como alguém desnorteada, sem nenhuma intimidade com os protocolos de um parto e que pedia calma repetidas vezes a Diana como forma dela própria se acalmar. Mediante um toque, a bolsa estoura e revela Lia empelicada como um momento raro de magia.

BARBARA deve ter sido o primeiro parto que ela viu na vida dela
DINARA que ela viu na vida, ela falou, que foi o primeiro parto que ela viu, mais louco (.) ela “menina, você é incrível, hein? você teve a neném sozinha, eu quase matei sua filha, você reanimou ela”, ela chorava tadinha, deu pena dela, e eu toda emocionada, foi, eu fiz o parto da minha filha, eu consegui fazer ela respirar, eu tive calma, eu não gritei, não me desesperei, não tinha médico me apontando, eu fiz o meu parto, eu fiz o meu parto da Lia (.) Lia nasceu muito fora do peso, bem pequenininha porque eu não me alimentava direito

Aqui se coloca que a enfermeira estagiária era mesmo novata e não havia nunca presenciado um parto, muito menos como aquele. Suas qualidades de mãe empoderada são aqui corroboradas e enaltecidas pela enfermeira (“menina, você é incrível, hein você teve a neném sozinha”), que, nesse discurso construído, admite sua inabilidade e se responsabiliza por isso (“eu quase matei sua filha, você reanimou ela”). O sentimento de pena aqui, mais uma vez, evoca o esmaecimento da força da instituição médica (“ela chorava tadinha, deu pena dela”).

Por fim, conclui, com uma coda (uma espécie de “moral da história” que fecha a narrativa, após a qual volta-se ao tempo presente) que reafirma sua potência enquanto mulher mãe preta, a sua grande virada, rompendo com convenções de poder normativo. Elenca ela as suas ações: “eu fiz o parto da minha filha, eu consegui fazer ela respirar, eu tive calma, eu não gritei, não me desesperei, não tinha médico me apontando, eu fiz o meu parto, eu fiz o meu parto da Lia”. A filha é dela. O parto é dela. Dela e de mais ninguém.

A partir da pesquisa aqui proposta, espero ser possível fomentar pensamento crítico a respeito dos atravessamentos discursivos e questões sociais enfrentados por mulheres mães em diferentes contextos sociais (levando em conta, sobretudo, os efeitos que raça e classe vêm sobrepor sobre a condição de ser mulher-mãe Penso aqui que a humanização seja premissa básica em esferas sociais e institucionais na formação de profissionais de saúde e também para além da obstetrícia e da área médica. Por fim, as inter-relações cultura-discurso-corpo-afeto evidenciam como as determinações linguísticas não nos atravessam sem deixar suas marcas. Na mesma medida, seguir os rastros discursivos pelo faro das emoções (tão gritantes nas avaliações) permite reelaborar e redimensionar a experiência vivida.

Anexo: Convenções de transcrição[8]

(1.8) Pausa
(.) Micropausa
= Fala colada
[Texto] Falas sobrepostas
, Entonação contínua
↑texto Entonação ascendente da sílaba
↓texto Entonação descendente da sílaba
. Entonação descendente do turno
? Entonação ascendente do turno
Marca de interrupção abrupta da fala
::: Alongamento de som
>Texto< Fala acelerada
>>Texto<< Fala muito acelerada
<Texto> Fala mais lenta
<<Texto>> Fala muito mais lenta
TEXTO Fala com volume mais alto
°texto° Volume baixo
°°texto°° Volume muito baixo
Texto Sílaba, palavra ou som acentuado
(Texto) Dúvidas da transcritora
xxxx Fala inaudível
((Texto)) Comentários da transcritora
hhhh Riso expirado
hahahehehihi Risada com som de vogal
{{rindo} texto} Turnos ou palavras pronunciadas rindo
.hhh Inspiração audível

* Barbara Venosa é doutoranda em Estudos da Linguagem pela PUC-Rio, pesquisadora e artista visual. É também membra do grupo de pesquisa NAVIS – Narrativa e Vida Social, coordenado por Liliana Cabral Bastos e Liana de Andrade Biar.

 

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Notas

[1] Discursos com “D” maiúsculo aqui fazem oposição aos discursos com “d” minúsculo. Segundo Paul Gee (2001), os Discursos dizem respeito ao que permite identificar grupos sociais, suas ações, valores, conhecimento, possibilidades de existências, estruturas, dizendo respeito à estrutura macrossocial). Já os discursos se relacionam com o uso da linguagem, compreendendo a esfera microssocial.

[2] A pesquisa Nascer no Brasil, liderada pela Dra. Maria do Carmo Leal e sob coordenação geral da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP-Fiocruz), consiste em um estudo histórico que coletou dados de 23.894 mulheres, em 191 municípios e 266 hospitais, entre 2011 e 2012, e sintetizou pela primeira vez as práticas de atenção ao parto e nascimento no país, no século XXI.

[3] A imagem faz parte da instalação artística Par(t)ir, de minha autoria (bem como as fotografias de minha obra) que fez parte da exposição coletiva Mátria, no Parque das Ruínas, Santa Teresa, Rio de Janeiro, entre dezembro de 2022 e março de 2023. A obra é um desdobramento interdisciplinar da pesquisa aqui disposta e é composta por treze esferas de argila (preta, terracotta e tabaco) dispostas em três escalas diferentes. Cada esfera craquelada possui uma incisão, aludindo às violências múltiplas sofridas por mulheres de diferentes locais sociais no advento do parto. Das três esferas maiores, ecoam os relatos de parto de três participantes de pesquisa, sendo uma delas, Dinara.

[4] Vide descrição da figura 1.

[5] A construção dessa seção foi movida pelos sentimentos gerados durante minha entrevista com Dinara, a partir da qual se escancara como o maternar das mulheres em situação de rua é uma questão complexa, embebida de múltiplas camadas e atravessamentos sócias e com sentidos próprios, e que muito embora seja uma realidade de uma quantidade expressiva da população do país, segue invisibilizada.

[6] Para Foucault (2000, p. 244), um dispositivo seria um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos. A abordagem sobre um dispositivo da maternidade é aqui feita a partir de tais construções acerca do entendimento sobre poder e suas relações e modos de subjetivação.

[7] Há controvérsias em relação à autoria, visto que Lélia Gonzalez já se debruçava sobre a temática. Mas de uma forma ou de outra, foram pioneiras.

[8] Modelo baseado nas propostas jeffersonianas de transcrição.