Ano XIX 0201
Dossiê
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NA CONTRAMÃO, NOSSO AMOR É POLÍTICO: CONVERSA COM JOÃO SILVÉRIO TREVISAN

João Silvério Trevisan, nascido em Ribeirão Bonito (São Paulo), no dia 23 de junho de 1944, mergulha com sua sensibilidade artística por diferentes campos da escrita: ficção, ensaio, roteiro, jornal. Ativista dos Direitos Humanos/LGBTQIA+, carrega em sua experiência de vida uma trajetória extensa de luta e resistência, sendo um dos fundadores do Somos (1978), primeiro grupo de liberação homossexual no Brasil, e, ainda na mesma década, um dos editores fundadores do jornal que deu início a uma imprensa voltada para e sobre a comunidade homossexual brasileira, o Lampião da Esquina (1978-1981).

A primeira vez que tive contato com a sua obra foi em 2017, quando ainda estava na graduação. Nesse período, comecei a dar os primeiros passos para o que posteriormente se tornaria o meu interesse de pesquisa: literaturas LGBTQIA+ no Brasil. Nesse ano, conheci um de seus trabalhos ensaísticos mais famosos, o Devassos no paraíso (1986), mas só iniciei a leitura após um acontecimento que atravessou o meu existir: descobri que estava convivendo com HIV. Assim como os que recebem esse diagnóstico ainda hoje, me vi diante da morte e da impossibilidade de conexão com os outros. Foi um período de grande solidão e, na busca por algum auxílio, os ensaios de Trevisan serviram como apoio duplo: contribuíram com minhas leituras acadêmicas, mas, sobretudo, em minhas reflexões internas sobre o “eu” e o “outro” em um período de crise.

Conversei por e-mail com Trevisan para pensar como há, ainda hoje, reflexos das violências praticadas durante o golpe militar de 1964 na repressão à comunidade LGBTQIA+, principalmente após a ascensão da extrema direita e com os desafios políticos e sociais que surgiram desde então. Na conversa, buscamos traçar um paralelo entre o ontem e o hoje, com temas que perpassam, enquanto ferramenta política, os movimentos sociais, a imprensa, o corpo e o amor.

João Silvério Trevisan (divulgação)
João Silvério Trevisan (divulgação)

Sandro Aragão: Você identifica ainda hoje resquícios de uma coerção/repressão às nossas existências LGBTQIA+, similares às praticadas durante o regime de ditadura em nosso país?

João Silvério Trevisan: Sim, há uma clara continuidade. Para mim, não existe um paraíso onde chegamos e seremos felizes para sempre. Como qualquer outra atividade política tirânica, a ditadura militar brasileira de 1964 aprofundou as raízes da repressão sexual já presentes no DNA de toda cultura normativa. Mesmo que os períodos ditatoriais passem, a capacidade repressiva dessas culturas continuará e sempre irá encontrar novos pretextos para garantir sua paranoia sexual e restringir as fronteiras do gozo. Uma das perversidades maiores da repressão institucional é que o próprio gozo a ser combatido se transfere para a repressão, através do sadismo. Sejam ditaduras explícitas ou quaisquer organizações repressivas (inclusive religiosas), todas praticam o prazer sádico de oprimir nossos corpos. Reprimir se torna, então, uma forma de sequestrar o nosso gozo e usufrui-lo contra nossos corpos. Daí porque nossa resistência amorosa não se restringe aos períodos mais duros. Como se pode constatar nas democracias atuais, sempre que houver normas amorosas restritivas e impositivas, dissidentes como nós estarão sendo visados e oprimidos. Como eu disse: o paraíso é uma quimera, daí a resistência como parte do nosso amor.

SA: O Lampião da Esquina foi precursor de uma imprensa LGBTQIA+ no Brasil. Não se destinava apenas a dialogar com pessoas homossexuais, propunha-se como uma ferramenta para pôr em visibilidade questões que se referiam às nossas experiências dentro da sociedade a partir de perspectivas individuais/coletivas postas à margem. Pensando o período e o contexto político em que o Lampião foi criado e a forma como a imprensa LGBTQIA+ ― ou que se destina à comunidade ― está hoje, o que você percebe de mudança? Levando em consideração todo o caminho já feito até aqui, o que você vê como avanço e o que ainda precisa ser repensado?

JST: Acho que parte da minha resposta já está dada na anterior. Os avanços que tivemos são reais, mas também os recuos. A sólida bancada evangélica que integra a direita política brasileira é uma comprovação disso nos dias atuais. Ela tem um claro projeto de poder. Não há como fazer-de-conta. Pablo Marçal está aí e deve ser mais um de uma longa lista de influencers de direita insanos e vorazes pelo poder falocrático, na linha bolsonarista. A conquista mais preciosa que a comunidade LGBTQ+ ostenta hoje encontra-se nela mesma. Nas muitas décadas da minha trajetória, nunca vi entre LGBTs um nível de consciência política tão alto como na atualidade. Isso é o que mais assusta a direita extremista. Isso é também nossa maior força de resistência. Sim, ainda existem muitos problemas afetando a comunidade quanto à sua inserção política, inclusive por seu baixo amor próprio e seu narcisismo exacerbado, que é uma arma de defesa equivocada. Mas conseguimos uma representatividade razoável no Congresso Nacional, que é das mais corajosas em nossa democracia, e tem muita gente inteligente levando adiante o debate político dentro da comunidade, sem depender das parcas lideranças, partidárias ou não. Acho muito animadora a grande quantidade de LGBTQs anônimos pensando criticamente e debatendo ideias nas redes sociais, sem esquecer de bloggers, podcasters e influencers de todas as regiões e categorias. Essa consciência crítica em ebulição é nosso maior trunfo.

SA: As reflexões teóricas e sociais que surgiram, e estão surgindo, a partir da comunidade trans propõem perspectivas que desestruturam a nossa percepção sobre o corpo, o gênero, o comportamento, a cultura, entre outros aspectos. Nesse sentido, como você percebe esse movimento? Você consegue criar um paralelo entre o surgimento dos estudos gays e lésbicos durante as décadas de 60-70 e o que vem sendo feito hoje por teóricos como Paul B. Preciado?

JST: Sim, claro. Mais do que paralelo, vejo um desdobramento. Historicamente, por mais sutil que seja, há uma corrente de resistência dos oprimidos. Tente imaginar como era a sexualidade entre os gregos ou entre os tupinambás. Não sabemos com exatidão absoluta, pois sempre existe a sombra do apagamento. Se esse cuidado extremo em nos tirar do mapa do amor universal perdura até hoje, também devemos puxar o fio da meada das resistências, que sempre existiram e existirão. Sim, o nazismo varreu da Alemanha a intensa atividade LGBT do período e tentou apagar uma história longínqua que pessoas como o médico e ativista Magnus Hirschfeld vinham resgatando. Até a biblioteca especializada do seu Instituto de Estudos Sexuais foi queimada em praça pública. Mas nem por isso a história dos amores e gêneros dissidentes desapareceu. Sim, Paul Preciado continuou o que fazíamos desde os anos 60-70, com a eclosão das lutas de Stonewall, e nós demos continuidade a tudo aquilo que as multidões LGBTs vinham conquistando por séculos, em meio a inúmeros percalços, obscuros ou mais claros, como a condenação de Oscar Wilde. Era essa mesma convicção que, ainda no século XIX, levava o poeta Walt Whitman a exortar as multidões de amantes dissidentes do futuro, da qual fazemos parte. Nós o ouvimos e espero que sejamos ouvidos pelas multidões do futuro. Quero dizer que, se há um fio condutor dessas culturas repressivas, também existe um fio condutor em nossa capacidade de resistência. Com certeza, nós somos a Fênix do amor.

SA: Em seu livro Devassos no paraíso, você fala sobre como a Parada LGBT+ celebra o amor. Muito da luta LGBTQIA+ parte de um lugar que se refere ao direito de “ser” e de “amar”. Esse aspecto faz com que o amor seja levado para um campo político, de modo que nos faça refletir sobre quem ou quais corpos têm o direito de vivenciá-lo livremente. A partir disso, qual o papel do amor ou de uma ética amorosa dentro da comunidade atualmente? É possível dizer que o nosso amor continua obsceno/pornográfico aos olhos daqueles para quem a única possibilidade de existência é a norma?

JST: Se o nosso amor vem na contramão de uma cultura secular, então ele contesta essa cultura e, portanto, será obrigatoriamente político. Ocorre uma grave omissão quando a sociedade normatizada não se dá conta de que nossa luta não é um passatempo, nem algo de importância exclusiva de LGBTQs. Por uma série de fatores, nós estamos mexendo num dos pilares dessa cultura, que é justamente a capilaridade do amor nas vidas humanas, em qualquer momento da história e em qualquer parte do planeta. Ao reivindicarmos nosso direito ao amor e ao desejo, reivindicamos automaticamente a singularidade da nossa forma de existir. Nós somos reservatórios de resistência dos vulnerabilizados, em vários sentidos, por se tratar de uma luta em várias frentes. Um dos resultados menos notados da nossa batalha política é que gente como Jair Bolsonaro sabe que nós sabemos quem eles são. O raio X do nosso olhar os aterroriza porque nós os desnudamos de suas dissimulações ideológicas: nós aprendemos a olhar com o filtro do desejo. E podemos perceber que chegamos onde eles tanto cobiçam chegar, caso não se autossabotassem. Ou seja, politicamente nós temos nas mãos a criptonita capaz de revelar as fadinhas que existem no interior dos Bolsonaros de todos os padrões – e Pablo Marçal é o mais recente, ainda que não o último da cepa mais resistente desses “armários ambulantes”. Gostemos ou não, pela nossa condição de marginalidade, nós temos a capacidade profética de revelar. Somos o grupo secularmente jogado na cova dos leões, como os profetas bíblicos, e sobrevivemos para escancarar a natureza do amor humano e comprová-la com nossa diversidade. Esse é o nosso campo de batalha prioritário, no qual revelamos como o amor e o desejo se atualizam em múltiplas formas – o que para essa gente é aterrorizante. Lembro de dois parâmetros recentes que podem ilustrar esse meu raciocínio. Pouco depois da eleição de Jair Bolsonaro, no carnaval de 2019, houve o escândalo da exibição pública de um golden shower praticado entre dois homens, no centro de São Paulo. A mídia registrou o assombro do presidente eleito ao tomar conhecimento dessa prática erótica para ele inusitada. Aquele início de desgoverno vivenciou um rito de iniciação erótica no coração mesmo da direita radical, que se desconcertou ante nossa liberdade sexual, algo que seus corpos desconhecem. O segundo parâmetro da nossa capacidade profética ocorreu em 2024, como uma espécie de encerramento de ciclo. Foi quando a Parada LGBT–SP promoveu uma campanha para incentivar o uso do verde-amarelo, como forma de resgatar algo que nos tinha sido sequestrado pela direita extremista. O efeito gozoso, que eu vivenciei presencialmente, é que havia um mar de verde-amarelo, usado desde as roupas e fantasias até as bandeiras brasileiras que ostentavam na parte traseira as cores do arco-íris.  E isso veio acompanhado de uma onda de bate-leque trans praticado pela multidão presente. Do alto de um trio elétrico, eu pude testemunhar a orquestração de leques batendo furiosamente, como uma admoestação. Ali, inclusive, aprendi a bater meu próprio leque. A campanha de resgate foi um sucesso tal que os extremistas de direita passaram a temer o verde-amarelo patriótico, receando serem confundidos com “gente anormal”, quer dizer, nós.  Tanto que nas eleições deste ano juro que não vi uma única fantasia “patriótica” de verde-amarelo, tal como acontecia com a direita fanática. Esses dois momentos me parecem exemplos da capacidade profética, quer dizer, reveladora, que nós, agentes da dissidência, temos condição de praticar.

SA: “Que país é esse?” foi uma das perguntas que o moveu durante a criação do seu filme Orgia ou o homem que deu cria. Em que lugar essa pergunta se encontra em você hoje?

Cena de Orgia ou o homem que deu cria, de 1970 (divulgação)
Cena de Orgia ou o homem que deu cria, de 1970 (divulgação)

JST: Devo dizer que essa pergunta nunca deixou de ser feita por mim, nem mudou de lugar. A cada dia descubro novos nichos repressivos que me levam a renovar a minha perplexidade. Ela tem a ver com outra pergunta: onde fica o nosso país? É uma pergunta que faz sentido enquanto nos sentirmos exilados em nosso próprio país. A sensação de exílio, que mais experimento quanto mais vivo, é também o que me leva incansavelmente adiante. Porque vivemos em permanente estado de diáspora amorosa, esse exílio amoroso é que nos move adiante. Eu quero pertencer àquele país que me tem sido vetado. Se ele não existir, então eu vou inventar. Há uma comunidade inteira inventando diariamente esse país do nosso amor. Você acha possível existir alguma força capaz de nos conter? Claro que não. Essa mesma busca que não parece ter um final feliz é, na verdade, aquela que impulsiona nossa capacidade de inventar um mundo. Então, essa nossa capacidade de criar permanentemente não é algo secundário. Tratar-nos como gente de segunda classe é um grave equívoco das culturas repressivas – e um grave desperdício de energia que poderia mover adiante sociedades sem esperança como as que nos excluem e sequestraram a nossa pátria. Daí porque conquistar aquele verde-amarelo durante a Parada de 2024 é mais do que emblemático. É uma metáfora que aponta para o caminho do futuro, num mundo que parece em estado de agonia. Quando o filósofo grego Arquimedes propunha “Dê-me uma alavanca e moverei o mundo”, eu não tenho dúvida em identificar essa alavanca como sendo o amor. Porque, na voz visionária de Walt Whitman: “Uma vasta similitude entrelaça tudo”. Se o universo está em permanente estado de ebulição, ele é movido por uma força da agregação. E essa força que agrega tem um nome: amor universal. Entenda-se: em diferente escala, assim acontece com o nosso pequeno planeta Terra. Quando estamos falando da sobrevivência do nosso amor, falamos também da sobrevivência do planeta e do próprio gênero humano. Não se trata de triunfalismo, mas de alternativas para evitar a catástrofe. Retornar ao princípio do amor universal é o que nos resta.

* João Silvério Trevisan é roteirista, ensaísta e ficcionista. Autor do fundamental Devassos no paraíso (1986) e de Ana em Veneza (1994), publicou recentemente A Idade de Ouro do Brasil (romance, 2019) e Meu irmão, eu mesmo (romance, 2023, finalista do Prêmio Oceanos). Sandro Aragão é mestre em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Vinculado ao Programa de Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), atua em pesquisas voltadas para o campo dos afetos e da literatura LGBTQIA+.