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A LITERATURA NÃO VEM DO NADA: A PERMANÊNCIA DE SÉRGIO SANT’ANNA 

A imagem clássica de Sérgio Sant’Anna: sentado na cadeira de balanço, com um caderno sobre o colo, lápis à mão, pernas cruzadas. Um cigarro, muitas vezes. Era assim que trabalhava. E sua literatura repete a estratégia. Cotovelos firmes sobre os braços curvos, texto que se equilibra, pra frente e pra trás, num deslizar preciso, sem grandes solavancos, calcado na segurança da maturidade, na solidez da madeira maciça. Pouco barulho no contato com o assoalho.[1]

A morte do escritor em 10 de maio, aos 78 anos, vítima da Covid-19, nos tirou momentaneamente dessa experiência de suave roçar entre a cena e a linguagem. Machucou a realidade. “Não quero assustar ninguém, mas acho a peste que nos assola simplesmente aterrorizante. Não encontro outro modo de reagir senão escrevendo”, contou Sant’Anna no Facebook, onde, nos últimos anos, mantinha contato intenso e crítico com o mundo.

A memória fotográfica da cena do escritor em ação no apartamento de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, pode não ser real. A recordação pode ser totalmente inventada. Importa a dúvida quando se é Sérgio Sant’Anna. Os tempos verbais se misturam, a percepção sobre o texto vem à tona, com vontade de não aborrecer o leitor, apesar de trazê-lo conscientemente para dentro das “narrativas” ou “histórias”, termos usados pelo próprio autor para nomear seus escritos.

O escritor carioca marcou a literatura brasileira dos últimos 50 anos com letrinha miúda, de quem burlou de propósito a aula de caligrafia para criar modo maiúsculo de fazer uma ficção em contato com outras esferas e artes – e com a própria literatura, claro. Sant’Anna nos deixa poemas, contos, novelas e romances que aceitam, mas não se contentam com a artificialidade. No começo deste ano, publicou dois contos inéditos em jornal e revista de circulação nacional enquanto concluía uma novela.

São sempre narrativas que sabem brincar dentro de formas e formatos, como a dizer: é possível retornar ao que já nos é dado, o que está ao nosso redor. A peça de teatro, o concerto de música, a reportagem e a entrevista jornalísticas, a pintura, a instalação, a autobiografia, a partida de futebol, a carta, o voo de avião, o best-seller, a festa de despedida, a visita ao museu, a redação de emprego, o crime, a aula. Sim, há alguma conexão com as mitologias de Roland Barthes, se o francês fosse da ficção.

Ou se o fanático torcedor do Fluminense tivesse pendores para o ensaio, identificado como tal. Mas o olhar crítico da obra preferiu a assinatura da invenção para fuçar as estruturas da realidade. As personagens (nós) estão neste palco imenso, saturado de simulações, em que nada é gratuito, natural, harmônico. E o escritor sabia que o espetáculo literário também precisava ser divertido na sua metalinguagem. Sant’Anna, com dignidade artística raras vezes vista, manteve-se nesse projeto entre dois mundos. Vanguarda sem tirar o olho do retrovisor, que reflete uma ilusão maior ou menor sobre o público.

Sant’Anna pergunta a todo tempo sobre a consciência que as personagens têm delas mesmas e da circunstância delas em relação ao mundo. E responde em literatura, em ficção que é muito consciente dela mesma. Essa é uma constante, em menor ou maior proporção. Mas está sempre lá. É para esse lugar de autoindagação sem indulgência que o texto nos transporta, numa viagem mobilizadora de uma atenção particular aos detalhes interiores refletidos nas palavras. Não se trata do autor que olha para que o leitor possa enxergar. Trata-se do autor que é o leitor que é o autor em si. Conto (não conto).

Para que essa relação se desenrole, Sant’Anna precisa do cenário. Parece um vício teatral. As personagens sobre o tablado da existência. Sempre uma narrativa enquadrada, com limites. Arrisco dizer que ele era pouco afeito ao descontrole do sentido. Não consigo ler sua obra como algo sem planejamento. Vejo-o como um engenheiro que examina em lupa poética o trabalho do arquiteto.

Talvez por isso, como se em oposição, admirasse tanto a literatura de Clarice Lispector e João Gilberto Noll: escrituras soltas, pra fora e pra dentro, com liberdade de movimentos, sem barreiras. Os contos e romances de Sant’Anna não carregam a marca de algo que procura o que está além da realidade. O sobrenatural só aparece instigado pelo físico, pelo palpável, pelo visível. Esse belo confinamento estrutural foi ficando cada vez mais nítido com o passar do tempo.

Essa predominância/necessidade de uma “cena-forma” traz o leitor para um lugar seguro de reconhecimento. Permite exame minucioso do indivíduo. Não à toa, “o médico retirou do estômago aberto do cadáver um porta-retrato com a fotografia de rosto da mãe do pintor surrealista”, no conto “A morte do pintor surrealista, de Notas de Manfredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer), de 1973. Não sem motivo, o empregado recém-contratado, depois das peripécias sobre a “estreita marquise do décimo oitavo andar”, encontra e conhece “o tal ‘outro’, até que os dois se tornassem a mesma pessoa e falassem com a mesma voz”, em outro conto, “Um discurso sobre o método”, de A senhorita Simpson (1989).

O único enquadramento possível para a mágica ou o fantástico, por exemplo, está entre as quatro linhas do campo do esporte literário, talvez handebol, pois não se perde de vista a mão que balança o berço. A crença paira apenas nessa trama própria ao artefato literário, apontada de modo claro ao leitor. As regras são claras, ainda que “disfarçadas” na ilusão das possibilidades ficcionais. Sant’Anna dispõe de uma fé inabalável nas razões humanas inseridas na cultura. Nada nunca natural.

Quase no final do conto “A mulher-cobra” (A senhorita Simpson), lê-se: “Essa coisa que me fascina nos acontecimentos, fazendo com que eu, narrando-os, possa sentir-me existente, ao menos por algumas horas, antes que novas formas informes voltem a debater-se dentro de mim (é horrível)”. O protagonista-narrador se chama Sérgio Sant’Anna. E as narrativas nascem dentro do corpo do autor despertadas por um acontecimento externo vivido – às vezes propositadamente para ser narrado. Como convém, o autor se transforma no narrador que confere modo literário ao acontecimento.

Um dos segredos de Sant’Anna está em fazer com que esse circuito criativo não se autodestrua no esquemático. Nem sempre funciona, é verdade. Quando isso ocorre, abre flanco para a crítica pela dureza de textos que travam na página, como se a vida tivesse sido objeto de excessiva manipulação, de supercorreção, quase caricatura, sem ruídos. Na maioria das vezes em que a estratégia funciona, o prazer do leitor se dá em sintonia com o método. E a sensação epifânica da forma-que-transforma vem à tona.

Em A senhorita Simpson, encontrou mesmo ponto ótimo. Na novela que dá título ao volume, recupera o modelo de “meu tipo inesquecível” das Seleções do Reader’s Digest. E junta a isso Branca de Neve e os Sete Anões. Professora de inglês num curso noturno em Copacabana, miss Simpson vê-se envolvida com uma eclética turma de figuras masculinas. Até mesmo as personagens do livro de inglês ganham vida nesta divertida fábula pós-moderna, transformada num filme (Bossa Nova, de Bruno Barreto) bem distante do original, pelo qual Sant’Anna, aliás, tinha pouco apreço.

O amor é o centro temático da trama aí e em outras histórias, com boas doses de erotismo, o que sempre ameniza os aspectos experimentais, convenhamos. A literatura de Sérgio Sant’Anna ocorre inúmeras vezes entre o olhar de um homem e o corpo de uma mulher. Desenrola-se nesse punctum, nesse frame, nesse foco de luz, dentro da frase elegante porque bem composta, bem pontuada, bem arranjada. E, por que não dizer, com toques perfeccionistas na composição discursiva. Difícil dizer de gratuidade na obra. Trata-se de um projeto para construção de uma casa com começo, meio e apenas um fim inesperado, fora de controle, por isso surpreendente.

Em A dama de branco, um dos contos publicados no início do ano, Sant’Anna já incorpora a pandemia e nosso isolamento. Da janela vê essa mulher que busca a liberdade sem máscara na madrugada do mundo. É o fluxo do pensamento anunciado sob a batuta vanguardista de Erik Satie. “Às vezes, penso que a dama de branco é a própria morte. Sei que isso é um modo de prendê-la e logo me penitencio e sei que em outro momento pensarei outra coisa. A morte não passa de uma obsessão minha.” Ele conversa com o fim em forma de mulher, aproximação pressentida no ato da escrita. Na cadeira de balanço, o adeus desenha o desejo de enfim sair da realidade enquanto a saliva da boca bastante humana ainda toca o corpo da ficção.

Nesse espetáculo ininterrupto por décadas, o escritor manteve-se firme na direção de seus personagens de lápis e papel. Rascunhou seu sketchbook com poucas rasuras, determinado nos exercícios das inquietações interiores, percebendo as camadas das relações psicossociais. Futebol, sexo e as artes deram os melhores ganchos para suas histórias pouco naturais, ou melhor, histórias que ensinaram leitores-escritores o valor do crime que compensa se delicadamente narrado.

Sant’Anna também sacou como poucos o poder da comunicação de massa sobre o sujeito contemporâneo. Compreendeu o deslocamento dado pela indústria cultural, o inimigo a combater quando o assunto é a predominância quantitativa e horizontal de valor. Comentou jovens autores totalmente inseridos no universo midiático. Gostou de ler e elogiou abertamente o norte-americano David Foster Wallace, também inquieto especulador de formas, pasticheur paradoxalmente incomparável.

Intuição e emoção – elementos articulados sempre com um pé no freio e as duas mãos firmes sobre o volante – reaparecem com mais leveza e com menos pudor de demonstração, nas histórias declaradamente autobiográficas dos últimos anos. O autor de Páginas sem glória (2012) e Anjo noturno (2017) insere anedotas antigas de família, relembra a passagem por Belo Horizonte, em Minas Gerais, e a vida na capital do Rio, onde foi funcionário público e professor de Comunicação. A captação nostálgica do passado conta de quando a vida tinha sido mais vivida, de um período ainda “improdutivo”, da juventude pré-literária, com o mundo em ensaio. Sérgio Sant’Anna por Sérgio Sant’Anna.

Na última vez em que o encontrei, almoçamos no tradicionalíssimo restaurante Lamas, que ele adorava e fazia parte de seu cenário, de vida e literatura. Falamos sobre futebol, falta de grana, a ótima literatura do filho André e a tragédia brasileira. Não deixei transparecer a emoção de estar ali com ele. Me comportei no papel de autor de dissertação de mestrado sobre a obra e amigo eventual (graças ao jornalismo cultural) que contou com a ilustre e inesquecível presença no lançamento do livro resultante da tese de doutorado inspirada desde o princípio por sua literatura. Com problemas de saúde, ele saiu curvado, um tanto melancólico. Sempre nobre. Senti tudo como despedida.

No domingo de sua morte, foi a vez de me curvar em tristeza ante os livros na estante e reencontrar o abraço fraterno na letra infantil e torta da dedicatória. Balancei a bandeira tricolor, em verde, branco e grená. E torci para que suas histórias de elegante e lúcida composição fossem lidas não só pelos escritores brasileiros (ou o argentino Cesar Aira, entre outros) que o veneram e têm por exemplo. Por mais gente inquieta, ao menos de agora em diante. Para sempre.

Foto de Sérgio de Sá
Foto de Sérgio de Sá

* Sérgio de Sá é professor adjunto no Departamento de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da UnB. É autor de A reinvenção do escritor: literatura e mass media (Editora UFMG). Foi repórter e editor de Cultura do Correio Braziliense e colunista do portal Metrópoles. Ao longo da carreira, publicou reportagens e resenhas em O Globo, Estado de Minas e piauí, entre outros.

[1] Uma versão reduzida deste texto foi publicada no jornal Estado de Minas.